O Início
O ano de 2020 começou com um janeiro de celebrações e promessas e um fevereiro de muitas festas, afinal, é o mês do carnaval. Esses dois meses foram cercados de notícias de um novo vírus que se espalhava pelo mundo, mas que ainda não havia chegado ao Brasil. Essas notícias, até aquele momento, se perdiam no tempo festivo; no entanto, foi em março que elas se tornaram protagonistas de uma realidade desconhecida.
A Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) começou seu ano letivo em março de 2020, mas suas atividades acadêmicas foram suspensas no mesmo mês. A comunidade universitária se deparou com a pandemia de síndrome respiratória aguda grave de coronavírus 2 (SARS-CoV-2), popularmente conhecida como COVID-19.
Naquele momento, se acreditava que a suspensão duraria no máximo um mês, todavia, não imaginávamos que se estenderia por 11 meses – até o momento da escrita deste ensaio.
Diante das dificuldades impostas pela suspensão das atividades, nasceu o projeto de extensão “Arte e Sonho: abordagem psicanalítica nos modos de cuidar das juventudes” (Imbrizi, 2020). A primeira ação criada foi a “Roda de Conversa sobre sonhos”, com o objetivo de construir, virtualmente, um espaço lúdico de troca e acolhimento, tendo como instigador os sonhos, pois, perante a novidade do contexto pandêmico, a falta de recursos simbólicos exigiu um maior trabalho do psiquismo. “A roda de sonhos” é, portanto, um dispositivo grupal em psicanálise (Sato, Martins, Guedes & Rosa, 2017) que promove um espaço de horizontalidade. Os encontros são abertos a todos que tenham interesse no assunto. No entanto, há um predomínio de participação dos alunos do curso de Psicologia da Unifesp, ou seja, de jovens universitários, entre 18 e 25 anos, na maioria residentes do estado de São Paulo. Nas rodas é feito um convite aos participantes, para que um sonho de sua escolha seja relatado ao grupo. Ao final do relato, pergunta-se as associações do sonhante e depois abre-se a conversa para que as demais pessoas também realizem livres associações sobre as imagens, temas, afetos, símbolos, condensações e deslocamentos presentes na narrativa onírica.
O objetivo deste ensaio é apresentar dois sonhos relatados na roda e as associações emergidas no grupo de modo a estabelecer articulações com o contexto social e político brasileiro que, atualmente, passa por crises sanitária, política e econômica decorrentes da gestão brasileira da pandemia. A cadeia de ideias com maior destaque nas rodas foi aquela que fazia articulações entre o período da Ditadura Militar brasileira (1964 -1985) e o modo de governar da extrema direita em tempos pandêmicos.
O primeiro sonho foi relatado por C.R.1 no dia 12 de junho de 2020, da seguinte maneira:
Eu estava no metrô, junto com a menina que mora comigo lá em Santos, porque a gente volta pra São Paulo juntas. A gente estava no metrô e estávamos com muito medo de entrar no vagão por conta do corona. Então a gente senta, uma do lado da outra, como sempre fazemos, só que aí a gente começa a ver que em volta da gente tem muitas pessoas sem máscara. Nisso, eu mudo de lugar, vou para um banco que está vazio e no que eu olho eu vejo ele e fica aquela sensação como se tivesse falecido por conta do Covid, mas não foi e eu acordo superassustada.
A discussão sobre essa narrativa onírica revelou como a morte e o luto estão presentes, de forma mais intensa, nesse momento de pandemia, uma vez que a sonhante vê no metrô seu avô, falecido no mês anterior ao sonho. O fato de diversas pessoas estarem morrendo e seus familiares terem perdido a possibilidade de se despedirem de acordo com seus rituais religiosos e/ou modos de partilha da dor, faz que o processo de elaboração do luto seja prejudicado (Crepaldi, Schmidt, Noal, Bolze & Gabarra, 2020), evidenciando o material onírico como uma forma encontrada pela sonhante para que a elaboração dessa perda acontecesse.
O segundo sonho refere-se ao encontro do dia 7 de setembro de 2020, sendo relatado por E.W.P.S2:
É um sonho que começa estranho. Sonho que estou em um carro, com um colega que era da escola, do ensino fundamental e ensino médio. Saí do carro achando estranho que eu estava sem máscara e as pessoas também. E, de alguma maneira, era estranho, pois ali eu já não era mais eu. De alguma forma, eu era uma mulher. Estava próximo de um parque. E era estranho, pois tinha uma passagem secreta, esquisita. Naquele momento, eu era uma mulher e tinha presenciado um tiro que saiu da passagem secreta. Me aproximo com raiva, querendo saber quem deu o tiro. Percebo que era um rapaz que estava fardado. Associei como Policial Militar. Penso em processar ele: 'Porque você está dando tiro assim no meio da rua?’. Aí acontece outra coisa estranha no sonho. Eu não era mais essa mulher. Eu era o cara que tinha dado o tiro. E esse tiro eu tinha dado enquanto estava de costas para essa mulher e não estava me importando de ter dado o tiro nem sabia o porquê eu tinha atirado. Eu lembro que esse caminho secreto tinha uma escada que dava acesso a uma passagem subterrânea, lá tinha um banheiro. Presencio um cara, negro, de ponta cabeça, enforcado e com sangue na boca. Também estava fardado. Fiquei com raiva e jurei que ia vingar. Acordo.
Ao escutar essa narrativa onírica, a cena do homem negro, enforcado e com sangue na boca, veio a imagem da morte de Vladimir Herzog, por um suposto suicídio, como uma das associações expostas no grupo, ainda que hoje esteja comprovado o enforcamento de Herzog pelas mãos do Estado3
Assim, os dois sonhos se complementam e provocam inquietações, nos participantes da roda, sobre como os familiares das pessoas assassinadas – principalmente aquelas que tiveram como motivo alegado da causa de morte os supostos "suicídios" – ou desaparecidas pelas mãos da ditadura brasileira, estão impedidos de realizarem o trabalho do luto, pois são impossibilitadas de velarem o corpo do morto, assim como acontece na pandemia que encurtou o tempo do ritual de despedida e restringiu o número de pessoas presentes na cerimônia (Cardoso, Silva, Santos, Lotério, Accoroni & Santos, 2020).
Isso posto, as cadeias associativas trazem uma relação direta entre o atual presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, e o contexto pandêmico com o período militar, pois a forma como está sendo realizada a gestão da pandemia mostra o quão pouco está sendo feito para se evitar as mortes. O discurso presidencial é de alguém que não se responsabiliza pela manutenção das vidas de seus cidadãos, negando a gravidade da pandemia e o poder da ciência para evitar a morte. Assim como nega o direito à vida daqueles que lutavam por um ideal democrático ao fazer apologias ao torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra.
Diante dessas atrocidades, as questões ressoantes são: como elaborar e aceitar uma morte quando não se sabe onde o corpo está? Como aceitar uma morte quando se tem certeza de que a causa dela não é aquela constatada no atestado de óbito, como os supostos “suicídios”? Como conviver com o desaparecimento de um ente querido sem saber se ele realmente morreu ou se pode estar em qualquer lugar do mundo ou, ainda, voltar a qualquer momento? E como aceitar as mortes que poderiam ser evitadas se a gestão presidencial estivesse do lado das políticas da vida?
O então e o agora
Em 2013, o Brasil foi palco de diversos atos contra o governo de Dilma Rousseff. Manifestações iniciadas pelo aumento na tarifa do transporte público culminaram no afastamento da presidenta em agosto de 2016. Meses antes da exoneração do cargo ocorreu a votação do impeachment na Câmara dos Deputados. Os que votaram majoritariamente a favor se pronunciaram endereçando uma dedicatória aos seus estados, seus familiares e, até mesmo, a Deus. Nesse momento, o então deputado Jair Bolsonaro finalizou seu voto favorável com o seguinte discurso: “Perderam em 1964, perderam em 2016. (...) Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff” (Estadão, 2019).
O ano de 1964 marca o início de um período de quase 21 anos de ditadura militar no Brasil. Durante esse regime, muitas pessoas foram perseguidas, presas e mortas por lutarem por uma sociedade livre que propiciasse oportunidades iguais para todos. Uma figura marcante dessa repressão é o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, dirigente, por quatro anos (1970-1973), do Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) de São Paulo (Moraes, 2015). Nesse período, "pelo menos 50 pessoas morreram enquanto Ustra comandou o DOI, e há registro de mais de 300 pessoas torturadas sob suas ordens” (Jiménez, 2016).
Dilma Rousseff, durante a ditadura, foi presa e torturada em sessões comandadas pelo coronel Ustra (Guimarães, 2018). Por conseguinte, a fala de Bolsonaro não é um ataque direcionado somente à então presidenta, mas também a todas as pessoas torturadas e/ou mortas durante o regime, assim como seus familiares que foram obrigados a assistir, em rede nacional, uma demonstração desumana de desrespeito com a história e memória de tantas pessoas.
Quatro anos antes do impeachment, Dilma Rousseff teve, como marco importante de seu governo, a instauração da Comissão Nacional da Verdade (CNV)4. Ao instalar a CNV, a presidenta afirma: “A ignorância sobre a história não pacifica, pelo contrário, mantém latente mágoas e rancores" (Planalto, 2014, 6:11), explicitando, assim, a importância da CNV para a sociedade brasileira.
Em dezembro de 2014, foi entregue à presidenta o relatório da CNV. No Volume III, intitulado “Mortos e Desaparecidos Políticos", há uma lista acompanhada de 434 histórias divididas em 191 mortos e 243 desaparecidos – no período de 18 de setembro de 1946 a 5 de outubro de 1988 – dos quais 33 foram identificados ao longo das últimas décadas. Nesse relatório, consta que:
Para a Comissão Nacional da Verdade, o rol de vítimas aqui exposto não é definitivo. As investigações sobre as graves violações de direitos humanos ocorridas no período enfocado pela Comissão – de 1946 a 1988 – devem ter continuidade e, notadamente no que se refere à repressão contra camponeses e indígenas, a produção de um quadro mais consolidado de informações acarretará a identificação de número maior de mortos e desaparecidos (Comissão Nacional da Verdade, 2014, p. 25).
Em consonância com esse trecho, podemos acompanhar a história narrada por Daniela Arbex (2015) sobre a morte – alegada pelo Estado como suicídio – e desaparecimento do corpo de Milton Soares de Castro, enquanto estava preso na Penitenciária de Linhares, em Juiz de Fora, devido às suas atividades como guerrilheiro. Seu corpo nunca foi entregue para que a família se despedisse e constatasse a materialidade de sua morte. Arbex comprovou, por meio de uma investigação minuciosa que resultou no encontro da ossada na Cova 312, que Milton não se matou.
Além de Milton, há também, a história de Vladimir Herzog, jornalista assassinado pelos militares em 1975. Depois de torturado, o corpo de Vladimir foi “encontrado” em uma cena indicativa de suicídio por enforcamento. Entretanto, muitos aspectos dessa cena dão indícios da impossibilidade de tal acontecimento devido às discrepâncias entre a localização da janela e a estatura do jornalista.
A morte de Herzog pelas mãos do Estado gerou comoção nacional, impulsionando a luta pela redemocratização do país. Sua esposa, Clarice Herzog, travou uma batalha para que a verdadeira razão da morte do marido fosse reconhecida e:
Apenas em 2013, a família teve nas mãos uma nova certidão de óbito, na qual a morte foi registrada como resultado de “lesões e maus tratos” infligidos no “II Exército (DOI-CODI)” – um eufemismo ainda para abuso, tortura, homicídio, mas mesmo assim significativo de uma enorme transformação política ocorrida no Brasil com o impulso das forças democráticas que não esmoreceram diante do poder fardado e da violência5.
As histórias de Milton, Vladimir e dos demais nomes presentes no relatório da CNV são exemplos dos acontecimentos violentos ocorridos durante a Ditadura Militar brasileira e nos anos que antecederam sua consolidação. Os enredos, sobre os quais agora se tem conhecimento, não são os únicos, ainda é possível encontrar mais vestígios da ditadura. Essas trajetórias de vidas enterradas em covas, valas e no imaginário brasileiro precisam ser desenterradas e discutidas, uma vez que não é possível virar uma página na história de um país sem ler e entender a anterior, pois o não dito e, portanto, não elaborado, corre o risco de se repetir em ato (Freud, 1914/2010a), seja como tragédia e/ou farsa (Marx, 1851).
A impossibilidade do trabalho do luto
O desaparecimento político, segundo Fábio Franco (2017), é uma ação forçada motivada por relações de poder nas quais o próprio Estado prende, detém ou sequestra as pessoas. Frequentemente, também ocorre o desaparecimento administrativo, no qual utiliza-se a burocracia estatal para consumar a desaparição. O não preenchimento de dados, a falta de arquivamento ou até mesmo a perda de informações contribuem para a desrealização do desaparecido (Franco, 2017). Além disso, a Lei da Anistia n° 6.683/79, ao perdoar os crimes políticos cometidos na época da ditadura, levantou barreiras para investigações sobre os fatos ocorridos com os desaparecidos durante o regime, negando aos familiares a possibilidade de saber a verdade acerca da história de seus entes queridos.
Dilma Rousseff, ao receber o relatório final da CNV, discursa: "Conhecer a história é condição imprescindível para conhecê-la melhor. [...] A verdade não significa revanchismo. [...] A verdade liberta todos nós daquilo que ficou por dizer” (Planalto, 2014, 12:20). A falta de conhecimento sobre a verdade em relação ao desaparecido cria uma experiência absurda, na qual não se é vivo nem é morto (Endo, 2016). A ausência da materialidade da morte e do corpo impede a realização do luto e de seus rituais de despedida. Por conseguinte, ao desconhecer os acontecimentos culminantes no desaparecimento da pessoa, o sofrimento dessas famílias se estende no tempo. A impossibilidade de cicatrização da ferida por meio do luto evidencia tanto a indiferença do Estado quanto a continuidade da violência e injustiça (Araújo, 2012). Sem a abertura dos arquivos sobre o que aconteceu com os desaparecidos, a elaboração da perda realizada pelo trabalho do luto se torna impossível (Teles, 2017).
O depoimento de Carmem Navarro (mãe de Hélio Luiz Navarro de Magalhães, desaparecido da Guerrilha do Araguaia) evidencia como a falta da confirmação da realidade por meio dos órgãos institucionais impede o cessar da dor:
Eu tentei escrever alguma coisa sobre o meu filho, do meu sentimento, mas eu choro muito. (…) Então, eu procuro através de advogados, pessoas amigas, obter algum relato sobre ele, o que eu acho que é um direito meu como cidadã brasileira. Mas isso, parece, ninguém respeita. Os processos se iniciam e a resposta é “nada consta”. Enfim, eu estou vivendo no completo desconhecimento sobre o meu filho. Desconhecimento significa: a tela está em branco. Se a tela está em branco você pode pregar nessa tela o que você quiser. Então, ele está morto? Está vivo? É um morto-vivo? É um vivo morto? (Navarro (2005) como citado em Teles (2012, p. 113)
A negação das violências cometidas e o não reconhecimento das responsabilidades do Estado diante dos crimes realizados durante o período militar impossibilitam o trabalho do luto dos familiares de desaparecidos políticos, prorrogando os sentimentos de angústia e tristeza, uma vez que não foram reconhecidas publicamente as condições que confirmariam a vida ou as situações reais que levaram à morte do desaparecido. Antes de tudo, trata-se de ressaltar o reconhecimento público da violência sofrida e a punição dos algozes como pressuposto para o trabalho de elaboração do luto.
O trabalho psíquico de elaboração do luto dos familiares dos desaparecidos políticos é impedido. A combinação entre desaparecimento forçado e administrativo cria uma ruptura na vida da família, pois não se pode esquecer, visto que não está morto. Não se pode dar um destino histórico ao sumiço do corpo sem a prova de sua morte (Endo, 2016). A tela em branco produzida pela falta de informação é agonizante, não permite o exame de realidade, tão necessário para o trabalho do luto. Assim, o sujeito é impedido de retirar as ligações estabelecidas com a pessoa amada e, só dessa maneira, direcioná-las para um novo objeto (Freud, 1917/2011).
No texto Luto e Melancolia, Freud (1917/2011) afirma o luto como resposta à perda de um objeto investido de libido, sendo esse uma pessoa amada, um ideal ou um projeto de vida, exigindo energia em excesso e caracterizando-se por: abatimento em demasia e dificuldade em escolher um novo objeto a ser investido. Ao contrário da melancolia, que não reconhece quem ou qual objeto foi perdido, o trabalho do luto demanda tempo e está atrelado “ao exame da realidade, que exige categoricamente que o indivíduo se separe do objeto, porque esse não existe mais” (Freud, 1926/2014, p.123). A melancolia produz a paralisação do sujeito na dor, que é agravada em decorrência da não identificação do objeto perdido pelo sujeito, o qual tem sua autoconfiança gravemente abalada. Tendo em vista esses conceitos, ressurgem questionamentos e lacunas que há muito nos assombram. Seja por uma pandemia seja por um regime ditatorial, a história brasileira é marcada por mortes sem corpos, corpos sem nomes e por lutos impedidos de qualquer forma de elaboração.
Butler (2019) e Franco (2017) estabelecem articulações entre o trabalho do luto e o âmbito social. A impossibilidade da elaboração do luto, inclusive de sua elaboração pública, gera uma imensa estagnação das famílias e de seus afetos. Essa paralisação afetiva parece importante para o governo, principalmente o atual, que venera um torturador e orgulhase de uma época na qual a violência e a morte eram companheiras diárias daqueles cuja luta ansiava por um ideal democrático. Desse modo, mantém-se viva a herança de uma era de torturas. É possível afirmar que a manutenção das estruturas de poder caminham pari passu à inviabilização do luto, ao produzir a melancolia como uma patologia social (Franco, 2019), fruto de uma rebelião aniquilada (Butler, 1997). Caso não fossem impedidas tais “subversões” – desde um corpo velado até a obtenção de respostas acerca de um ente desaparecido – seria inviável a continuidade da necropolítica como alicerce da sociedade brasileira contemporânea, baseada e evidenciada no massacre direto de uma parcela da população e/ou pela existência de um conjunto de políticas promotoras de uma administração mortífera (Franco, 2019).
Punição aos agentes da ditadura: para ontem e ainda hoje
As duas narrativas oníricas apresentadas neste ensaio, quando articuladas ao contexto histórico do período ditatorial brasileiro e da atual pandemia, revelam o que Freud (1914/2010a) já havia nos alertado, o não-dito retorna como ato. Ou seja, aquilo que não tem representação ou imagem na memória e no coração, o que o sujeito não pode re-cordar e ligar afeto e representação verbal, é revivido como um tipo de compulsão à repetição (Freud, 1920/2010b). As memórias da ditadura retornam em época da pandemia no Brasil, pois hoje, além da crise sanitária, há crises humanitárias e econômicas, desencadeadas pela forma como as escolhas políticas dos representantes do Estado delimitam os modos de gestão da pandemia. Como dito anteriormente, o Brasil está nas mãos de um presidente de extrema direita, acompanhado de seus filhos, os quais louvam os atos de um dos abusadores de um Estado Ditatorial. Alguns psicanalistas (Endo, 2016; Ab´Sáber & Kehl, 2010) e o filósofo (Safatle, 2010) têm apontado os resquícios da ditadura brasileira que insistem em se repetir no momento atual. A hipótese dos autores afirma a repetição do discurso ditatorial brasileiro como consequência da não punição de seus algozes, a despeito da criação de artefatos políticos importantes como o da CNV, após transcorridos mais de 50 anos.
Segundo Ab´Sáber (2010, p.188), o Brasil é o “único país dos que foram submetidos às grandes ditaduras pró-capitalistas latinoamericanas da segunda metade do século XX que não puniu, nem disponibilizou informações a respeito das práticas de exceção hediondas cometidas por agentes públicos no período”. Safatle (2010) afirma que no Chile e na Argentina houve punição dos algozes da ditadura. Como exemplo, podemos assinalar os artefatos criados por outros países com o objetivo de não esquecer os tempos da ditadura como o “Museu da Memória e dos Direitos Humanos”, localizado na cidade de Santiago, no Chile, e o movimento “Mães da Praça de Maio” (Maçano, 2019) da cidade de La Plata, localizada na província de Buenos Aires, cujas mães, atualmente as avós, são referência de resistência política.
Para Endo (2016), a não punição dos torturadores e mandantes dos atos, que produziram tantos desaparecidos políticos no Brasil, traz a brecha para ações ilícitas e violentas perpetradas pelos representantes do Estado, os quais, novamente, não sofrerão qualquer tipo de penalidade e sanção judicial. No Brasil, um acontecimento emblemático, que retoma a repetição do recalcado, se refere ao conjunto de discursos antecedentes às declarações de voto a favor do impeachment da presidenta Dilma Rousseff. A não punição do discurso de ovação à ditadura, cujo deputado poderia ter tido o seu mandato cassado, ofereceu as bases para que esse mesmo agente público assumisse a Presidência da República e, com ironia, tenha sido eleito democraticamente pelo povo no ano de 2018.
Essas questões alertam-nos para o fato de que as repetições se referem sempre a um conteúdo que não pôde ser elaborado (Freud, 1914/2010a), não pôde ser dito e não conseguiu representação no campo simbólico compartilhado por uma nação. Há sempre o retorno do recalcado, responsável por repetir em atos aquilo que não favoreceu a transformação dos afetos em palavras e em imagens, no caso, os crimes da ditadura não punidos. A elaboração diz respeito a um árduo trabalho psíquico dependente da história singular, de quem sofre a perda de um ente querido, e dos suportes traduzidos em redes de afetos construídas e ofertadas pelas instituições pilares de uma organização social democrática. Ou seja, são as condições sociais, institucionais e jurídicas oferecidas pela sociedade para que o luto e os acontecimentos que levaram à perda sejam elaborados e para que as violências perpetradas sejam punidas pelos mesmos órgãos do Estado.
Na primeira narrativa onírica, a perda do avô e a não possibilidade da cerimônia de despedida, seja religiosa e/ou relacionada à troca de afetos no espaço social, deixa um resto que traz associações com o como cuidamos de nossos idosos – em um país no qual o presidente discursa aos seus seguidores que os mais frágeis ou os “menos úteis” precisam morrer (Barrucho, 2020) em nome do suposto crescimento econômico. No sonho, a imagem do avô retorna no cotidiano da estudante para que algum trabalho psíquico de elaboração das imagens e dos afetos associados à perda do ente querido seja realizado. Um olhar (in)familiar (Freud, 1919/2019) faz a estudante “recordar” no sonho a impossibilidade de se despedir, com o tempo necessário, do seu avô.
Na segunda narrativa onírica, há a repetição da palavra “estranho” que parece remeter à reatualização e superposição de tempos históricos na cena do sonho. O sonhante, ao retomar o cenário da ditadura em pleno anos 2020, revela o novo alvo das violências de Estado no contemporâneo: os jovens negros das classes populares ocupantes de territórios periféricos no Brasil. Repetem-se as imagens da tortura que precipitam cenas da época da ditadura que, como uma estranha e infamiliar aparição, são visibilizadas no conteúdo onírico manifesto do estudante. O jovem universitário, na cena do sonho, ora ocupa o lugar do torturador/policial, ora ele é aquele que observa, ora é o autor do tiro que mata “alguém” sem nome que pode representar as vidas matáveis e anônimas da necropolítica contemporânea. As associações encadeadas vislumbram imagens que circularam e ainda circulam na mídia televisiva, digital e impressa, sobre o “suposto suicídio” por enforcamento do jornalista Vladimir
Herzog. As associações de ideias remontam a dois fatos bem brasileiros: no sonho, o sujeito ensanguentado que sofre a tortura é um negro – o alvo dos policiais na história recente brasileira (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada [IPEA], 2020) – a mesma população que, na pandemia, é a que mais morre por efeito da contaminação pela SARS-CoV-2 (Vespa, 2020).
Se no caso de Herzog há omissão da violência de Estado presente no período da ditadura, a segunda narrativa onírica traz a omissão dos gestores públicos que negligenciam o cuidado às populações que vivem em situação de vulnerabilidade social. Como nos alerta Butler (2020), a elaboração do luto é impossível e pode perpetuar a posição melancólica de um sujeito quando a justiça não foi feita e quando há omissão das condições que levaram à morte de um ente querido. Kehl (2010, p.124) afirma que: “A impunidade não produz apenas a repetição da barbárie, tende a provocar uma sinistra escalada de práticas abusivas por parte dos poderes públicos, que deveriam proteger os cidadãos e garantir a paz”.
No que se refere às práticas discursivas abusivas, Safatle (2010) aponta a relação entre atos violentos e repressivos realizados por um Estado ditatorial e a violência cometida pela ação de sujeitos revolucionários contra um Estado ilegal. Desde Hobbes, há cláusulas legais para garantir o direito, dos cidadãos e cidadãs, à insurgência contra um Estado corrupto e ilegal. Para Safatle (2010), os desaparecidos políticos precisam ser reconhecidos como heróis insurgentes contra um governo ditatorial e, consequentemente, ilegítimo, e não como indigentes e criminosos sem nome ou como comunistas passíveis de serem exterminados como se fossem corpos descartáveis. Não basta dizer, deve-se problematizar e criminalizar aquilo que é dito como verdade naturalizada e que vai contra os interesses da humanidade; assim, os responsáveis por tais enunciados que ovacionam torturadores precisam ser punidos judicialmente e imediatamente.
O que precisa ser dito pelos quatro cantos do planeta se refere à construção de uma narrativa que valoriza as forças revolucionárias que lutam por um projeto de sociedade calcado na oferta de condições iguais para a liberdade de todos e todas. Para o filósofo, a grande exceção brasileira é ainda repetir um discurso no qual a violência de Estado ilegal é colocada no mesmo patamar da violência dos cidadãos que se insurgem contra um regime opressor. Portanto, cabe inverter as bases discursivas que colocam a força revolucionária dos heróis que se rebelaram contra um governo ilegítimo, como se fossem comunistas e esquerdistas merecedores do desaparecimento político e, em alguns casos, até de castigos violentos. Antes, trata-se da necessidade de punição dos responsáveis pelas ações do Estado autoritário que mataram os nossos revolucionários. Se a justiça não for a termo, como afirma Safatle (2010), os desaparecidos políticos correm o risco de serem mortos pela segunda vez, ao terem seus esforços e suas lutas deslegitimadas. É preciso punir os agentes dos crimes de Estado da Ditadura Militar e seus apoiadores, e essa é uma ação que deve ser colocada em prática para ontem, e ainda hoje, para que a história não continue a se repetir como farsa.
Somos filhos, netos, mães, pais, avós da ditadura. Se não a criamos, a herdamos. Nascemos, vivemos ou morremos com a sombra de diversos corpos recaídos sobre nossa psique. Somos responsáveis, também, por elaborar o luto juntamente com todas as famílias cujos entes foram apagados por um regime ditatorial que cavou, simultaneamente com tantas sepulturas humanas, seu próprio destino. O trabalho de elaboração do luto é necessário para que os fantasmas da ditadura não nos perturbem em demasia e nos libertem do espectro da melancolia que nos assombra. É nossa função a de assombrar a vida dos responsáveis por todas as atrocidades ocorridas durante o período da Ditadura Militar brasileira, cujas ações se repetem mascaradas em outra roupagem em tempos de pandemia.