SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.4 issue4Neuropsychological rehabilitation in an adult patient following an anoxic brain damage author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

article

  • Portuguese (pdf)
  • Article in xml format
  • Article references
  • How to cite this article
  • SciELO Analytics
  • Curriculum ScienTI
  • Automatic translation

Indicators

Share


Neuropsicologia Latinoamericana

On-line version ISSN 2075-9479

Neuropsicologia Latinoamericana vol.4 no.4 Calle  2012

https://doi.org/10.5579/rnl.2012.125 

DOI:10.5579/rnl.2012.125

 

Neuropsicologia como ciência interdisciplinar: consenso da comunidade brasileira de pesquisadores/clínicos em Neuropsicologia

 

Neuropsychologie et interdisciplinarité: un consensus de la communauté brésilienne de chercheurs et de praticiens en Neuropsychologie

 

Neuropsicología y la interdisciplinariedad: consenso de la comunidad brasileña de investigadores y clínicos en Neuropsicología

 

Neuropsychology and interdisciplinarity: consensus of the Brazilian community of researchers and in practitioners of Neuropsychology

 

 

Vitor Geraldi HaaseI; Jerusa Fumagalli de SallesII; Mônica Carolina MirandaIII; Leandro Malloy-DinizI; Neander AbreuIV; Nayara ArgolloIII,IV; Letícia Lessa MansurV; Maria Alice de Mattos Pimenta ParenteII; Rochele Paz FonsecaVI; Paulo MattosVII; Jesus Landeira-FernandezVIII; Leonardo Ferreira CaixetaIX; Ricardo NitriniV; Paulo CaramelliI; Antônio Lúcio Teixeira JuniorI; Rodrigo Grassi-OliveiraVI; Christian Haag ChristensenVI; Lenisa BrandãoII; Humberto Corrêa da Silva FilhoI; Antônio Geraldo da SilvaX; Orlando Francisco Amodeo BuenoIII

I Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil
II Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil
III Universidade Federal de São Paulo, Brasil
IV Universidade Federal da Bahia, Brasil
V Universidade de São Paulo, Brasil
VI Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil
VII Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil
VIII Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Brasil
IX Universidade Federal de Goiás, Brasil
X Associação Brasileira de Psiquiatria

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo tem por objetivo apresentar uma revisão sobre a Neuropsicologia, definição da área, seu objeto de estudo e método(s), campos e formas de atuação e uma análise do seu percurso histórico no Brasil. Esta análise inclui um panorama sobre a avaliação neuropsicológica no país, as ferramentas de trabalho, assim como o processo de construção, adaptação e validação de instrumentos. Por fim, pretende-se estabelecer um consenso sobre a exclusividade ou não quanto ao uso de instrumentos neuropsicológicos por áreas específicas do conhecimento, assim como estabelecer diretrizes para utilização responsável destes. Atrelado ao conceito de Neuropsicologia está o de interdisciplinaridade, de igual interesse para esta reflexão. Conclui-se que a Neuropsicologia é por definição interdisciplinar e constitui-se como um campo de trabalho e investigação de várias áreas do conhecimento e de atuação profissional, que se interessam pelas relações entre funções mentais e sistema nervoso central, dentro de um universo mais amplo, denominado Neurociências. Os testes neuropsicológicos são instrumentos fundamentais para a prática clínica e de pesquisa em Neuropsicologia e devem ser entendidos como um dos meios através dos quais é possível traçar inferências sobre as relações entre a atividade cerebral e seus correlatos cognitivos e comportamentais. Por isso, seu uso exclusivo por uma determinada área deveria ser reavaliado. Acredita-se que estas reflexões possam servir como um parâmetro mais objetivo para o estabelecimento de políticas mais justas e comprometidas com o crescimento responsável da Neuropsicologia, área fundamental na América Latina e em nosso país.

Palavras-chave: Avaliação neuropsicológica, Cognição, Instrumentos, Interdisciplinaridade, Neuropsicologia.


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo presentar una revisión de la Neuropsicología, la definición, su objeto y método (s), campos y formas de actuar y una revisión de su historia en Brasil. Este análisis incluye una descripción general de la evaluación neuropsicológica en el país, las herramientas de trabajo, así como el proceso de construcción, adaptación y validación de instrumentos. Por último, tenemos la intención de establecer un consenso sobre la conveniencia o no de la exclusividad en el uso de instrumentos neuropsicológicos para áreas específicas del conocimiento, así como establecer los lineamientos para el uso responsable de los mismos. En relación con el concepto de Neuropsicología es interdisciplinariedad, de igual interés para esta discusión. Llegamos a la conclusión de que la neuropsicología es, por definición, interdisciplinaria y se constituye como un campo de estudio e investigación en diversas áreas del conocimiento y de actuación profesional que estén interesados en la relación entre las funciones mentales y del sistema nervioso central, dentro de un universo más amplio, llamado neurociencia. Las pruebas neuropsicológicas son herramientas esenciales para la práctica clínica y la investigación en neuropsicología y debe ser entendido como un medio a través del cual se pueden sacar conclusiones sobre las relaciones entre la actividad cerebral y sus correlatos cognitivos y conductuales. Estos instrumentos no deben ser para uso exclusivo de una sola área. Se cree que estas reflexiones pueden servir como un parámetro más objetivo para el establecimiento de políticas que sean justas y comprometidas con el crecimiento responsable de la Neuropsicología, un área clave en América Latina y en nuestro país.

Palabras clave: Cognición, Evaluación neuropsicológica, Interdisciplinariedad, Instrumentos, Neuropsicología.


RÉSUMÉ

L'objectif principal du présent document est de présenter une revue de la neuropsychologie, de discuter sa définition, objet, méthode(s), domaines d'application, et sa pratique professionnelle. Une brève analyse de l'histoire de la neuropsychologie au Brésil est également présentée. La discussion inclut des principaux instruments neuropsychologiques utilisés au Brésil, et sa construction, 'adaptation et validation. Par ailleurs, un consensus est recherché sur l'utilisation responsable des instruments neuropsychologiques par des professionnels de différents domaines de formation. Il est fait valoir que la neuropsychologie est par nature interdisciplinaire. Par définition, la neuropsychologie s'est consolidée en tant que domaine interdisciplinaire de la pratique et de l'enquête, englobant plusieurs domaines scientifiques et pratiques ayant un intérêt sur les relations entre le système nerveux central et les fonctions mentales, dans le plus grand domaine des neurosciences. Instruments neuropsychologiques sont des outils de base pour la pratique et la recherche en neuropsychologie, ce qui devrait être conceptualisé comme le moyen d'en obtener inferénces sur des associations systématiques entre l'activité cérébrale et ses corrélats cognitifs et comportementaux. En tant que tel, l'utilisation d'instruments neuropsychologiques ne doit pas être limité à une seule catégorie de professionnels. On croit que cette réflexion peut être utile d'établir des paramètres plus objectifs pour formuler des politiques qui se sont engagés dans la justice sociale et de croissance responsable de la neuropsychologie en Amérique latine et dans notre pays.

Mots-clés: Cognition, Instruments, Interdisciplinarité, Évaluation neuropsychologique, Neuropsychologie.


ABSTRACT

The main goal of the present paper is to present a review of neuropsychology, discussing its definition, subject matter, method(s), fields of application, professional practice. A brief analysis of the history of neuropsychology in Brazil is also presented. The discussion includes some of the main neuropsychological instruments used in Brazil, and its construction, adaptation and validation. Moreover, a consensus is searched on the responsible use of neuropsychological instruments by professionals with different training backgrounds. It is argued that neuropsychology is inherently interdisciplinary. By definition, neuropsychology has consolidated itself as an interdisciplinary field of practice and investigation, encompassing several scientific and practice fields with an interest on the relationships between the central nervous system and mental functions, in the larger field of Neuroscience. Neuropsychological instruments are basic tools for practice and research in neuropsychology, which should be conceptualized as the means to infer systematic associations between brain activity and its cognitive and behavioral correlates. As such, use of neuropsychological instruments should not be limited to just one category of professional. It is believed that this reflection may be useful to establish more objective parameters to formulate policies that are committed with social justice and responsible growth of neuropsychology in Latin America and in our country.

Keywords: Cognition, Instruments, Interdisciplinarity, Neuropsychological assessment, Neuropsychology.


 

 

Tem sido notável no Brasil o crescimento da pesquisa e da prática profissional na área de Neuropsicologia. Entretanto, há discordâncias em nosso meio com relação à abrangência da área e principalmente quanto à utilização dos instrumentos de avaliação neuropsicológica (Resolução do Conselho Federal de Psicologia - CFP, Brasil, 02/2003). O presente trabalho tem como objetivo apresentar um consenso de especialistas brasileiros sobre a Neuropsicologia, definição da área, seu objeto de estudo e método(s), campos e formas de atuação e análise do percurso histórico no Brasil. Esta análise inclui um panorama sobre a avaliação neuropsicológica no país, as ferramentas de trabalho, assim como o processo de construção, adaptação, validação e normatização de instrumentos, com implicações para a reabilitação. Por fim, pretende-se estabelecer um consenso sobre a exclusividade ou não do uso de testes neuropsicológicos por áreas específicas do conhecimento, assim como propor diretrizes para utilização responsável destes instrumentos.

 

A Neuropsicologia – definições e objeto de estudo

A Neuropsicologia é considerada uma disciplina científica que se ocupa das relações cérebro/funções cognitivas, ou seja, das funções cognitivas e suas bases biológicas (Rodrigues, 1993). É uma ciência de caráter interdisciplinar em suas origens, que busca estabelecer uma relação entre os processos mentais e o funcionamento cerebral, utilizando conhecimento das neurociências, que elucidam a estrutura e o funcionamento cerebral, e da psicologia, que expõe a organização das operações mentais e do comportamento (Seron, 1982).

Define-se também como uma ciência dedicada a estudar a expressão comportamental, emocional e social das disfunções cerebrais (Lezak et al., 2004), os déficits em funções superiores produzidos por alterações cerebrais (Barbizet & Duizabo, 1985), as inter-relações entre cérebro e comportamento, cérebro e funções cognitivas (Luria, 1966) e, de forma mais ampla, as relações entre cérebro e comportamento humano (Benton, 1971). Entre as funções neuropsicológicas estão atenção, percepção, orientação auto-psíquica, temporal e espacial, linguagem oral e escrita, memória, aprendizagem, funções motoras, praxias, raciocínio, cálculos e funções executivas.

Como parte de um corpo maior de conhecimento, as Neurociências, a Neuropsicologia é uma área interdisciplinar de conhecimento e atuação, que integra conhecimentos, instrumentos, métodos e modelos teóricos de várias áreas, como a Psicologia, a Neurologia, a Psiquiatria (e outras áreas da Medicina), a Linguística, a Psicolingüística, a Neurolinguística, a Inteligência Artificial, a Fonoaudiologia, a Farmacologia, a Fisioterapia, a Terapia Ocupacional, a Educação, a Biologia, entre outras. Interdisciplinaridade pode ser definida como um ponto de cruzamento entre atividades (disciplinares e interdisciplinares) com lógicas diferentes (Leis, 2005). O profissional em neuropsicologia, portanto, realiza uma revisão dos conhecimentos, seleciona-os e utiliza-os em função de seu objetivo: compreender a relação entre cérebro e funções mentais/cognitivas. Um corpo de conhecimentos interdisciplinares caracteriza a Neuropsicologia e pode ser acessado e utilizado por profissionais formados nas áreas que compõem esse corpo de conhecimentos. Conforme Lezak et al. (2004), os profissionais nesse campo têm formações em Psiquiatria, Neurologia, Neurocirurgia, Psicologia, Fonoaudiologia, entre outras. As sociedades de classe em Neuropsicologia no Brasil (Ex: Sociedade Brasileira de Neuropsicologia, SBNp) e no mundo (Ex: Sociedade Latinoamericana de Neuropsicologia, SLAN, e Sociedade Internacional de Neuropsicologia, INS) são formadas por profissionais de várias áreas e congregam conhecimentos advindos de pesquisa básica e aplicada de contribuições interdisciplinares relevantes.

A Neuropsicologia Cognitiva busca compreender o funcionamento do cérebro normal e de suas disfunções por meio de modelos ou arquiteturas funcionais de tratamento da informação. Procura extrair conclusões sobre os processos cognitivos normais a partir dos padrões de processos alterados ou intactos e das estratégias utilizadas, observados em pacientes com lesões/disfunções cerebrais. A Neuropsicologia Cognitiva tem papel importante também na validação de conclusões obtidas com os estudos de neuroimagem e outros dados neuropsicológicos (Caramazza & Coltheart, 2006), tendo uma forte contribuição da Psicologia Experimental (Temple, 1997). Ela está mais interessada no estudo de sintomas e manifestações (ex. anomia) e não síndromes (grupos de sintomas), como afasia de Broca (Caramazza & Coltheart, 2006), tendo sido útil no diagnóstico do locus funcional dos déficits cognitivos do paciente, considerando que um mesmo nível de desempenho em um teste pode ser decorrente de diferentes razões relacionadas ao funcionamento cerebral.

A intervenção em Neuropsicologia contempla o processo de avaliação e reabilitação neuropsicológicas. A avaliação neuropsicológica geralmente abrange grandes classes de funções, como as funções receptivas (habilidades de selecionar, adquirir, armazenar e integrar informações através da visão, audição e somestesia); memória e aprendizagem; organização mental e reorganização da informação; funções expressivas (meios nos quais a informação é comunicada ou colocada em ação), entre outras. A avaliação envolve os processos/funções deficitários e os preservados, na tentativa de traçar um perfil neuropsicológico do caso em questão. Os transtornos neuropsicológicos normalmente incluem diferentes níveis de comprometimento de funções como memória, atenção, linguagem, funções executivas, habilidades perceptivo-motoras, entre outras, presentes em quadros de distúrbios neurológicos e/ou neuropsiquiátricos, do desenvolvimento ou adquiridos.

A reabilitação neuropsicológica, por sua vez, consiste na abordagem de tratamento que tem por objetivo recuperar uma função cognitiva prejudicada ou perdida ou adaptar o paciente aos déficits adquiridos, visando ao mais alto nível de adaptação possível. Wilson (1989) define a reabilitação cognitiva como um processo em que pessoas com dano cerebral trabalham junto a profissionais da área de saúde, familiares e membros da comunidade para remediar ou minimizar os déficits cognitivos. O conhecimento de modelos cognitivos e uma avaliação neuropsicológica completa são essenciais para o processo de reabilitação.

 

Histórico da Neuropsicologia

O termo neuropsicologia foi usado pela primeira pelo neurologista William Osler, em 1913, mas a área do conhecimento é bem mais antiga e interdisciplinar (Benton, 2000; Caplan, 1987). Alguns marcos importantes no histórico da Neuropsicologia e para a interdisciplinaridade são, de um lado, os estudos de Aloajouanine, Ombredane (Ombredane, 1929) e Duran, e de outro, os estudos de Luria. A Neuropsicologia, tal como conhecemos hoje, surge, em 1932, na França, como o trabalho pioneiro desses três autores representantes de diferentes áreas: um neurologista (Aloajouanine), um psicólogo (Ombredane) e uma linguista (Duran).

É importante salientar que a história da Neuropsicologia se mescla com a história da Neuropsicologia da Linguagem (ou Neuropsicolinguística), desde o início da década de 1860, com as idéias de Dax (1836) e de Broca (1861) sobre o papel especial do hemisfério cerebral esquerdo (HE) para a fala/linguagem. Conhecida inicialmente como "afasiologia", apenas a partir de 1932 ela se torna realmente uma área interdisciplinar, congregando as áreas de Neurologia, Linguística e Psicologia.

Por muitas décadas a atividade humana e a estrutura funcional da percepção e da memória, da atividade intelectual e da fala, do movimento e da ação foi descrita em termos puramente mentais e abstratos, baseada nas relações empíricas entre percepção e associação. Entretanto, um aspecto importante permanecia sem explicações: quais os mecanismos cerebrais nos quais esses processos se baseiam? (Luria, 1966). Neste sentido, a partir do conhecimento do cérebro, a Neuropsicologia organizou um poderoso instrumento conceitual para a revisão dos mecanismos e estrutura dos processos cognitivos, levando à criação de uma teoria da base cerebral da atividade mental humana. Luria propõe uma localização dinâmica das funções cognitivas, afirmando que os processos mentais humanos são sistemas funcionais complexos e integrados. Além disso, Luria revoluciona o campo através de idéias baseadas nas mudanças cognitivas a partir de alterações sociais ou comunitárias, o que abriu portas para a compreensão do dinamismo envolvendo as atividades mentais e o desenvolvimento do cérebro.

A evolução da Neuropsicologia tem como base a rota histórica dos estudos do comportamento e do cérebro. A característica distintiva da Neuropsicologia é o método anátomo-clínico, desenvolvido por pioneiros tais como Broca, Wernicke, Lichthein, Dejerine, Goldstein, entre outros, os quais tinham formações diversas, entre fisiologistas, neurologistas, psiquiatras, psicólogos, lingüísticas, entre outras. Walter Poppelreuter, por exemplo, tinha formação dupla em Medicina e Psicologia, tendo sido um dos pioneiros na introdução de técnicas psicométricas na avaliação neuropsicológica, ainda durante a I Guerra Mundial (Preilowski, 2000).

Além de outros pioneiros, tais como o já citado Luria (Tranel, 2005), a motivação para o desenvolvimento da Neuropsicologia no Século XX veio do trabalho colaborativo entre médicos e psicólogos. Destacam-se, entre estes, Kurt Goldstein e Adhemar Gelb, Norman Geschwind e Edith Kaplan, Klaus Poeck e Walter Huber, Morris Bender e Hans-Lukas Teuber, entre outros (Preilowski, 2000).

Dentre os eventos marcantes na história da área, ocorridos principalmente na segunda metade do século passado, estão a criação da Sociedade Internacional de Neuropsicologia, que desde 1951 organiza anualmente um simpósio de natureza interdisciplinar - International Neuropsychological Symposium - e também uma série de eventos que aconteceram entre as décadas de 1960 e 1980, sob a liderança de Henri Hecaen, Ennio de Renzi, Klaus Poeck, Norman Geschwind, Elizabeth Warrington e outros profissionais de diversas áreas para fomentar o desenvolvimento da Neuropsicologia (Boller, 1999, Zangwill. 1984). Além disso, a criação dos periódicos Neuropsychologia, por Henry Hecaen (Hecaen & Albert, 1978), e do periódico Córtex, por De Renzi, contribuíram para a divulgação da produção científica crescente oriunda de diferentes centros de pesquisa em Neuropsicologia. Também marcantes são as publicações dos livros "Higher Cortical Functions in Man" (Luria, 1966), "Cognitive Neuropsychology of Reading" (Marshall & Newcombe, 1973) e "Cognitive Neuropsychology of Memory" (Warrington & Shallice, 1969).

Um dos marcos do desenvolvimento da Neuropsicologia foi uma série de estudos de Brenda Milner sobre o paciente H.M. Apesar das suposições iniciais de que o hipocampo é relacionado à memória, foi uma surpresa, naquela época, o que aconteceu ao paciente H.M. Ele foi submetido a uma cirurgia na qual uma larga porção do Lobo Temporal Mesial (LTM) foi ressecado bilateralmente, incluindo o hipocampo e o córtex circundante, a fim de aliviar uma epilepsia intratável. Diversos relatos de outros pacientes amnésicos tendo lesões da formação hipocampal surgiram desde então (Bueno, 2010).

Na década de 1960, com o nascimento da Psicolinguística, num enfoque de processamento da informação, a Neuropsicologia teve um ganho teórico substancial (Kristensen et al., 2001). A Linguística é um pilar tão importante quanto a Psicologia e a Neurologia para a área de Neuropsicologia. Grande número das tarefas e testes elaborados e utilizados regularmente em Neuropsicologia tem (ou deveriam ter) critérios linguísticos, cuja interpretação requer muitos conhecimentos de processamento de linguagem (sem falar das tarefas específicas de avaliação da linguagem, que fazem parte do processo de avaliação neuropsicológica). Portanto, a interpretação da avaliação de outras funções cognitivas também depende de parâmetros linguísticos.

A Neuropsicologia, desde sua origem, é muito mais experimental do que psicométrica, com tarefas e paradigmas experimentais que conduzem a interpretação de processos subjacentes ao desempenho, preservados ou deficitários. Recentemente, conhecimentos de psicometria têm sido agregados à Neuropsicologia, mas sua base essencialmente experimental e interpretativa teoricamente por modelos cognitivo-linguísticos de processamento da informação sempre será o cerne.

No contexto brasileiro é preciso mencionar iniciativas no âmbito didático, de assistência e de pesquisa, que resultaram na criação de ambientes propícios ao desenvolvimento da área de Neuropsicologia. Podemos destacar, por exemplo, as iniciativas pioneiras, como a de Antônio Branco Lefèvre (1916-1981), neurologista, que ao escrever a tese de doutorado sobre "Contribuição para o estudo da patologia da afasia em crianças" (Lefèvre, 1950), inaugurou e estendeu as fronteiras da Neuropsicologia brasileira. Sua tese foi reconhecida internacionalmente. Lefèvre foi reconhecido como o pai da Neurologia Infantil no Brasil (Reimão et al., 2008), tendo sido organizador do exame neurológico evolutivo (ENE) (Lefèvre, 1972). Nos anos 80, a psicóloga Beatriz Lefèvre publicou o livro Neuropsicologia Infantil (Lefèvre, 1989). Na Divisão de Clínica Neurológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), Beatriz e Antonio Lefèvre criaram setor destinado à avaliação de pacientes em enfermarias e ambulatórios de Neurologia. Os casos eram amplamente discutidos em reuniões gerais da clínica neurológica, com a participação de residentes, graduandos e pós-graduandos. Dessas reuniões participaram alunos do Professor Lefèvre, como a neurologista Irene Abramovich, que escreveu o primeiro trabalho sobre aquisição de apraxias buco-faciais, e o futuro Dr. Norberto Rodrigues, que veio a ser um dos fundadores da Sociedade Brasileira de Neuropsicologia (SBNp).

Maria Alice de Mattos Pimenta Parente, fonoaudióloga, publica em 1974 um estudo com 100 pacientes neurocirúrgicos da então Escola Paulista de Medicina (Hospital São Paulo), com a avaliação neuropsicológica de Luria e coordena grupo brasileiro que integrou pesquisa internacional, liderado por A. R. Lecours, da Universidade de Montreal, sobre fatores sociais, como analfabetismo, e a manifestação das alterações de linguagem após lesão cerebral, projeto do qual derivam várias publicações (Lecours & Parente, 1982; Lecours, Mehler & Parente, 1985, a, b, c, 1988; Parente & Lecours, 1998, 1988 a, b,). Além de importantes publicações em nível nacional e internacional, a professora Maria Alice Parente constituiu um grupo de pesquisa em Porto Alegre, na UFRGS, em Neuropsicologia, tendo sido responsável pela formação de vários profissionais que hoje atuam na área. A partir de 1984, Maria Alice Pimenta Parente ministrava cursos de afasia na PUC/SP. Em 1987, Maria Alice Parente e Letícia Lessa Mansur (USP), também fonoaudióloga, criaram em cooperação com a Divisão de Clínica Neurológica e Clínica Médica, o campo de estágio em Neurolinguística do Curso de Fonoaudiologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Contaram para isso com a parceria de Lúcia Iracema Zanotto de Mendonça (neurologista) e Wilson Jacob Filho (geriatra). Em 1990, Letícia Lessa Mansur criou um Programa de Aprimoramento em Neurolinguística no curso de Fonoaudiologia da USP, com o objetivo de capacitar fonoaudiólogos à assistência e pesquisa na área de adultos e idosos portadores de distúrbios linguístico-cognitivos decorrentes do envelhecimento e de doenças neurológicas. O curso foi aprovado a partir do reconhecimento da atuação de profissionais de saúde, entre eles os fonoaudiólogos na área de Neuropsicologia.

Do ponto de vista clínico, a psicóloga Candida Helena Pires de Camargo, em parceria com o Professor Raul Marino Junior, tiveram uma importante trajetória no Brasil na avaliação neuropsicológica de pacientes com Epilepsia e outros transtornos neurológicos, através de um trabalho que culminou na formação de vários profissionais da área.

A partir daí, muitos outros ambientes de formação, assistência e produção de conhecimento surgiram (e ainda estão surgindo) em diversos estados brasileiros, em instituições de Ensino Superior, Instituições de Saúde e Centros Clínicos. Foge do escopo do presente manuscrito expor todas estas bem sucedidas iniciativas, centros de pesquisa e clínica brasileiros. Para ter uma ideia da disseminação da área em termos de investigação científica, pode-se consultar o "Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq". São encontrados mais de 50 grupos de pesquisa com o termo Neuropsicologia.žNa Plataforma Lattes do CNPq são encontrados em torno de 100 pesquisadores com bolsa de Produtividade em Pesquisa, com uma grande diversidade de formações, que trabalham com temas relacionados à Neuropsicologia. É importante ressaltar que nenhum curso de graduação no Brasil prepara o profissional para atuação em Neuropsicologia. A formação, portanto, ocorre em nível de Pós-Graduação (ou prática supervisionada).

 

Pressupostos teóricos e método(s) de estudo da Neuropsicologia

A Neuropsicologia baseia-se na interação entre modelos cognitivos e modelos neurais (neuroanatômicos e neurofisiológicos). Os modelos cognitivos são fornecidos por várias áreas, como a Psicologia Cognitiva, a Linguística, a Psicolinguística, a Neuropsicolinguística. Os modelos neurais são fornecidos pela biologia (Anatomofisiologia), como o modelo de Luria, por exemplo. Ainda, está calcada nos pressupostos da modularidade (Fodor, 1983) e nos conceitos de associação e dissociação.

O sistema cognitivo exibe modularidade, ou seja, possui vários módulos ou processadores cognitivos de relativa independência. O dano (lesão ou disfunção cerebral) causado a um módulo não afeta diretamente o funcionamento dos outros módulos. Os módulos (conceito de macro-modularidade) seriam linguagem oral, leitura, percepção visual, percepção auditiva, memória (especificidade de domínio). Como exemplo, a capacidade de processar música seria relativamente independente da capacidade de percepção de linguagem. Cada módulo é decomposto em subprocessos (micro-modularidade). Alguns pacientes apresentam déficits graves na memória de curto prazo, por exemplo, mas possuem uma memória de longo prazo intacta. Outros pacientes possuem o quadro inverso.

Associações de sintomas constituem síndromes que se expressam por déficits de desempenho no mesmo conjunto de tarefas. Como exemplo, poderia-se mencionar um paciente A com bom desempenho de memória verbal, porém com baixo desempenho de memória visual. Dissociações de desempenhos dividem-se em simples e duplas. As dissociações duplas ocorrem quando um caso "A" apresenta um desempenho satisfatório na tarefa 1 e um desempenho insatisfatório na tarefa 2, mas um caso "B" apresenta um desempenho insatisfatório na tarefa 1 e satisfatório na tarefa 2 (Kristensen et al., 2001). Os estudos de casos múltiplos são úteis para mostrar dissociações duplas entre funções neuropsicológicas, que, por sua vez, são indicativas de processamentos funcionais distintos.

Modernos modelos neuropsicológicos, além dos dados de imagem provenientes de lesões em pacientes, apoiam-se em conhecimentos advindos de estudos de ativação cerebral em indivíduos sadios, bem como em inferências realizadas a partir de simulações de redes neurais criadas em computadores. Os esforços atuais de pesquisadores de diversas áreas ainda se dirigem à busca dos substratos neurais da atividade mental, ou processos cognitivos, em suas questões. Onde (quais áreas do cérebro estão implicadas em determinado processo?)Como (que tipo de correlações neuro-funcionais esse processo estabelece? Em que tipo de circuito neural ou rede determinado processo acontece?) Quando (em que sequência?) Por quê (em que bases se estabelece o suporte neural de processos específicos?) O avanço na obtenção de respostas a essas complexas questões pressupõe uma conjugação de saberes provenientes de diversas áreas.

 

A Avaliação Neuropsicológica

A avaliação Neuropsicológica (AN) pode ser definida por suas várias facetas. Aqui são apresentadas algumas das definições encontradas na literatura. A Avaliação Neuropsicológica Clinica é a aplicação dos conhecimentos da área de Neuropsicologia para avaliar e intervir no comportamento humano, relacionando-o ao funcionamento normal ou deficitário do sistema nervoso central. É também vista como a análise sistemática dos distúrbios de comportamento (e da cognição) que se seguem a alterações da atividade cerebral normal, causados por doença, lesão, disfunção ou modificações experimentais (Lezak et al., 2004). Assim sendo, um dos objetivos da AN é traçar inferências sobre as características funcionais do cérebro de um indivíduo (Benton, 1971). Esta avaliação deve possibilitar um diagnóstico e a documentação do estado do paciente; verificar a ocorrência de distúrbios cognitivos, comunicativos e/ou emocionais, relacionados à lesão/disfunção cerebral; desvendar a natureza dos sintomas, a etiologia, o prognóstico e a descrição das características de cada caso; determinar a magnitude das sequelas dessa lesão; seguir a evolução do quadro e, por fim, oferecer orientações terapêuticas (bases para a reabilitação). A AN utiliza técnicas especiais de avaliação das funções neurocognitivas do indivíduo para o estabelecimento de correlações entre seus desvios e as lesões/disfunções cerebrais (Rodrigues, 1993).

Compreende uma análise quantitativa e qualitativa da magnitude de alterações cognitivas, ou seja, do estado funcional neuropsicológico (Casanova, 1987). Tem-se a visão ampliada de avaliação neuropsicológica como uma investigação do perfil neuropsicológico, com a identificação das áreas preservadas e das deficitárias, e exploração das razões do desempenho comprometido.

É um processo complexo, que envolve, além da utilização de diversas ferramentas, como entrevistas e questionários (anamnese), escalas, observação em contexto clínico e em situações ecológicas, tarefas experimentais e também a utilização de instrumentos formais para a investigação das funções neurocognitivas preservadas e das deficitárias. Esta avaliação, através de instrumentos, pode ser do tipo exploração flexível (tarefas, provas ou testes específicos, selecionados para cada caso) ou uma exploração sistemática (triagens, baterias breves e extensas, aplicadas na íntegra) (Lezak et al., 2004). Ainda, a avaliação considerada funcional em Neuropsicologia pressupõe a compreensão da inter-relação entre os comportamentos (desempenhos) apresentados e as demandas ambientais (pessoas, regras sociais, barreiras físicas, rotinas, compromissos, interesses). É também chamada de avaliação ecológica.

Uma das metas da AN é explorar as razões do desempenho comprometido. Para tanto, deve ir além de procedimentos padronizados e buscar interação de fatores. A interpretação dos seus achados é o que torna uma avaliação propriamente neuropsicológica, pois ela extrapola a questão quantitativa para incluir complementarmente (e obrigatoriamente) a análise qualitativa, com base nas formas de resposta, nos tipos de erros, nas auto-correções, na noção de desempenho (consciência dos déficits ou não), entre outras. O teste é uma ferramenta útil ao neuropsicólogo, mas a prática em Neuropsicologia não se reduz ao seu uso. Tem sempre como base o referencial teórico para interpretar o comportamento (sintoma) e relacioná-lo com as bases neurobiológicas. Desta forma, salienta-se que a AN é muito mais ampla, complexa e teoricamente embasada do que a simples aplicação de testes. O instrumento neuropsicológico não se limita aos aspectos psicométricos, exige interpretação em função de modelos neurocognitivos, de correlação estrutura-função.

A avaliação é uma questão central em Neuropsicologia e deve ser considerada num contexto amplo. Suas inúmeras metas/objetivos são completamente e substancialmente diferentes das da avaliação psicológica. A avaliação psicológica, que constitui uma das funções exclusivas do psicólogo, nos remete aos primeiros estudos e desenvolvimento dos testes psicológicos no final do século XIX com a introdução da abordagem psicométrica. A avaliação neuropsicológica, apesar de poder utilizar complementarmente aportes psicométricos, sempre ultrapassa o conceito da psicometria, não sendo, em hipótese alguma, sinônimo de avaliação psicológica.

Os instrumentos de AN têm lógicas de construção e de interpretação completamente diferentes daquelas dos instrumentos da avaliação psicológica. Em Neuropsicologia, os instrumentos são baseados em modelos da Neuropsicologia (Cognitiva e do Desenvolvimento); em geral os processos de construção ocorrem de forma interdisciplinar; apresentam rigor metodológico na pesquisa, utilizando-se de critérios psicolinguísticos para a construção de itens verbais; os dados gerados são quantitativos e qualitativos (tipos de erros e estratégias); buscam-se por dissociações entre funções e tarefas e pelo perfil neuropsicológico (habilidades preservadas versus deficitárias), sendo estes dados base para a intervenção Neuropsicológica. Portanto, estes instrumentos neuropsicológicos podem ser úteis a profissionais de diferentes áreas da saúde, com formação ou experiência clínica em Neuropsicologia, pois são usados para diagnósticos neuropsicológicos (e não psicológicos).

A abordagem neuropsicológica cognitiva, mais especificamente, utiliza-se do método de análise psicolinguística, no qual são usados indícios para inferir o processo subjacente ao desempenho nas tarefas, como a comparação do desempenho entre estímulos que variam em suas propriedades psicolinguísticas, por exemplo. Aspectos diagnósticos em Neuropsicologia baseiam-se na comparação entre os desempenhos nos diferentes testes do paciente em questão e os desempenhos esperados no indivíduo normal. O desempenho de um dado paciente pode ser interpretado de acordo com o modelo de processamento subjacente (modelo cognitivo).

Em termos históricos não se pode deixar de considerar que muitos estudos em avaliação neuropsicológica, ao longo dos anos, se basearam em descrição de casos, como os primeiros descritos por Paul Broca, Carl Wernicke, Brenda Milner e Elizabeth Warrington e Norman Shalice, que procuravam entender a complexa relação cérebro-comportamento. Após, com o surgimento de uma bibliografia mais extensa, um grande escopo de testes e baterias neuropsicológicas foi desenvolvido. Retornando ao percurso histórico iniciado anteriormente, Carl Wernicke, por exemplo, estabeleceu as bases do exame afasiológico utilizando-se de tarefas tais como nomeação de objetos, repetição de palavras e pseudopalavras, compreensão de sentenças, entre outras (Gage & Hickok, 2005). As técnicas de exame utilizadas pelos pioneiros eram eminentemente clínicas, sendo desenvolvidas ad hoc conforme as hipóteses formuladas para cada caso. À medida que o conhecimento foi avançando e com as contribuições de conhecimentos de psicometria, foram sendo padronizados os instrumentos de avaliação com o emprego de técnicas psicométricas progressivamente sofisticadas.

Instrumentos de exame afasiológicos amplamente utilizados atualmente, tais como a Boston Diagnostic Aphasia Examination (Goodglass & Kaplan, 1974) ou o Aachener Aphasie Test (Huber, Poeck, Weniger & Willmes, 1983), resultaram do resgate feito por Norman Geschwind do sistema originalmente proposto por Wernicke. Foi sob a supervisão de Geschwind que Harold Goodglass, um linguista, e Edith Kaplan, uma psicóloga, desenvolveram a Bateria Boston Diagnostic Aphasia Examination, a qual é internacionalmente usada, apesar dos limites para uso em países onde ainda não foi normatizada. Da mesma forma, em uma geração prévia, o trabalho psicométrico de McBride e Weisenburg (McBride & Weisenburg, 1935) foi realizado sob inspiração dos conceitos desenvolvidos pelo neurologista Nielsen (Caplan, 1987). Merecem destaque, ainda, os procedimentos diagnósticos desenvolvidos por Lissauer para as gnosias visuais (Geschwind, 1965), Dejerine para a leitura (Bub, Arguin, & Lecours, 1993), Liepmann para apraxias (Goldenberg, 2003), Gerstmann (1940) para gnosias digitais e orientação direita-esquerda, Head para esquema corporal (Head & Holmes, 1911/1912), e Henschel para acalculias (Boller & Grafman, 1983), dentre outros.

Os pesquisadores de áreas distintas, entre eles muitos médicos, linguistas e fonoaudiólogos, contribuíram também com instrumentos psicometricamente validados, tais como o Token Test (de Renzi & Vignolo, 1962), o Mini-mental State Examination (Folstein, Folstein, & McHugh, 1975) e a Frontal Assessment Battery (Dubois, Schlachevsky, Latvin, & Pillon, 2000). Não pode deixar de ser mencionada a longa tradição de exame do estado mental em Psiquiatria e Neurologia, a qual foi formalizada do ponto de vista neuropsicológico em obras como aquelas escritas por Strub e Black (1993) e Hodges (1994). Todo esse corpo acumulado de conhecimentos é "patrimônio" da Neuropsicologia como área interdisciplinar de pesquisa e atuação profissional e não reserva de mercado de uma classe profissional.

Portanto, "o fazer" da Neuropsicologia exige conhecimentos de Neuroanatomofisiologia, Epidemiologia Clínica, métodos experimentais, Estatística, funcionamento mental, Psicofísica, Psicopatologia, Lingiística, modelos cognitivos, procedimentos de entrevista clínica, entre muitos outros. O processo de avaliação neuropsicológica deve ser conduzido de forma interdisciplinar, por profissionais com conhecimentos que ultrapassam a formação básica do nível de graduação. A formação em Neuropsicologia deve ser obtida em cursos de pós-graduação que incluam informações teóricas e práticas (estágios com prática especializada e supervisionada). Esta avaliação depende de conhecimentos teórico-metodológicos que conduzam à interpretação dos escores e tipos de erros (análise quali-quantitativa).

Os instrumentos neuropsicológicos foram desenvolvidos a partir de uma tradição muito antiga e interdisciplinar de clinica e pesquisa. Os fatos históricos e argumentos apresentados constituem ferramentas para a o fato de existir, há séculos, uma categoria de instrumentos neuropsicológicos, os quais não se constituem em testes psicológicos. Tais instrumentos foram, são e serão desenvolvidos a partir das necessidades diagnósticas percebidas pelos diversos profissionais atuando na área interdisciplinar de Neuropsicologia. A utilização de técnicas estatísticas de validação e normatização decorre da filosofia de assistência à saúde baseada em evidências, a qual é prevalente em nossa época.

 

Considerações finais

Esta breve revisão procurou mostrar como a Neuropsicologia é intrinsecamente interdisciplinar. Isto é demonstrado tanto pelas suas origens históricas, pressupostos epistemológicos, quanto pela diversidade de profissões que se interessam por ela e a praticam. Neste contexto de multiprofissionalidade, a unidade da Neuropsicologia é fornecida pelos seus pressupostos localizacionistas, ou mais amplos de associação entre funções cognitivas e relatos de associações com regiões encefálicas, e, portanto, pelo método de correlação estrutura-função. Os instrumentos neuropsicológicos constituem a ferramenta indispensável para a análise das relações entre cérebro e comportamento/cognição e, como tal, seu uso não deve se restringir a uma categoria profissional. Ao contrário, devem ser feitos esforços para integrar a prática e a pesquisa originadas em diferentes profissões de modo a, em um momento futuro, eventualmente, criar uma campo unificado de pesquisa e atuação profissional.

As iniciativas de validar psicometricamente os instrumentos neuropsicológicos têm sido contestada pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP) como neuropsicológicos propriamente ditos. O argumento alegado é que tais instrumentos constituiriam, na verdade, testes psicológicos, cuja aplicação, conforme normativa específica é reservada a profissionais com graduação em psicologia. Entretanto, de acordo com as reflexões aqui contidas, entende-se que os instrumentos neuropsicológicos, diferentemente dos instrumentos psicológicos, são fundamentais para a prática clínica e de pesquisa em Neuropsicologia e não devem ser de uso exclusivo de apenas uma área. Em outras palavras, os instrumentos utilizados na avaliação neuropsicológica não podem ser caracterizados como testes psicológicos, pois não fornecem diagnósticos psicológicos, mas de modo que ultrapassa as fronteiras da psicologia e de qualquer outra área afim, possibilitam diagnósticos neuropsicológicos ou neurocognitivos. Ademais, a política de considerar todo e qualquer instrumento de avaliação neurocognitiva como teste psicológico é nociva ao desenvolvimento da neuropsicologia no Brasil e, portanto, aos seus potenciais beneficiários: pacientes, familiares, bem como profissionais de saúde e de educação. Por último, o presente consenso entende que a política restritiva de qualquer órgão de classe é lesiva aos interesses profissionais do neuropsicólogo e dos demais profissionais que trabalham e estudam o diverso campo das Neurociências. O paciente que necessita de intervenções neuropsicológicas tanto no nível da avaliação como da reavaliação tende a ser o mais prejudicado por políticas restritivas como esta.

Além da avaliação, há um vasto e ainda pouco explorado campo de reabilitação neuropsicológica. Tal domínio tem objetivos de capacitar pacientes e familiares a desenvolver estratégias para conviver, lidar, contornar, reduzir ou superar as deficiências cognitivas resultantes de dano neurológico/neuropsiquiátrico. Novamente neste âmbito a atuação interdisciplinar é premissa básica.

Os campos de atuação em Neuropsicologia estendem-se para os âmbitos de prevenção, pesquisa, ensino, avaliação e diagnóstico (funções preservadas versus deficitárias, estratégias utilizadas) e reabilitação neuropsicológicos nos transtornos do desenvolvimento e adquiridos (normal versus patológico – continuum entre normal e patológico) ao longo do ciclo vital. Vale lembrar ainda que os múltiplos contextos de atuação ampliam-se a cada dia, incluindo o contexto hospitalar, o educacional e a pesquisa científica. Como ciência, a Neuropsicologia não pode se furtar ao compromisso social. Acredita-se que estas reflexões possam servir como um parâmetro mais objetivo para o estabelecimento de políticas mais justas e comprometidas com o crescimento responsável desta área fundamental em nosso país. Podem, ainda, contribuir para reflexões sobre ações possivelmente semelhantes em outros países da América Latina.

 

Referências

Barbizet, J., & Duizabo, P. (1985). Manual de Neuropsicologia. Porto Alegre: Artmed.         [ Links ]

Benton, A. L. (1971). Introducción a la neuropsicología. Barcelona: Fontanella.         [ Links ]

Benton, A. (2000). Exploring the history of neuropsychology. Selected papers. New York: Oxford University Press.         [ Links ]

Boller, F. (1999). History of the International Neuropsychological Symposium: a reflection of the evolution of a discipline. Neuropsychologia, 37, 17-26.         [ Links ]

Boller, F., & Grafman, J. (1983). Acalculia: historical development and current significance. Brain and Cognition, 2, 205-223.         [ Links ]

Bub, D. N., Arguin, M., & Lecours, A. R. (1993). Jules Dejerine and his interpretation of pure alexia. Brain and Language, 45, 531-559.         [ Links ]

Bueno, O. F. A. (2010). Studing Memory: From the Frontal to Temporal Lobe and Vice-versa. In: Eklund, L.C. & Nyman A.S. (Eds). Learning and Developments (pp. 227-240). Nova Science Publishers        [ Links ]

Caplan, D. (1987). Neuroliinguistics and linguistic aphasiology. An introduction. Cambridge: Cambridge Universit Press.         [ Links ]

Caramazza, A., & Coltheart, M. (2006). Cognitive neuropsychology twenty years on. In M. Coltheart & A. Caramazza (Eds.), Cognitive neuropsychology twenty years on (pp. 3-12). New York: Psychology Press.         [ Links ]

De Renzi, E., & Vignolo, L. A. (1962). The token test: A sensitive test to detect receptive disturbances in aphasics. Brain, 85, 665-678.         [ Links ]

Dubois, B., Slachevsky, A., Litvan, I., & Pillon, B. (2000). The FAB: a Frontal Assessment Battery at bedside. Neurology, 55, 1621-1626.         [ Links ]

Fodor, J. A. (1983). Modularity of Mind: An Essay on Faculty Psychology. Cambridge: Mass - MIT Press.         [ Links ]

Folstein, M. F., Folstein, S. E., & McHugh, P. R. (1975). "Mini-mental state". A practical method for grading the cognitive state of patients for the clinician. Journal of Psychiatrric Research, 12, 189-198.         [ Links ]

Gage, N., & Hickok G. (2005). Multiregional cell assemblies, temporal binding and the representation of conceptual knowledge in cortex: a modern theory by a "classical" neurologist, Carl Wernicke. Cortex, 41, 823-832.         [ Links ]

Gerstmann, J. (1940). Syndrome of finger agnosia, disorientation for right and left, agraphia and acalculia. Archives of Neurology and Psychiatry, 44, 398-408.         [ Links ]

Geschwind, N. (1965). Disconnection syndromes in animal and man. Part II. Brain, 88, 585-644.         [ Links ]

Goldenberg, G. (2003). Apraxia and beyond: life and work of Hugo Liepmann. Cortex, 39, 509-524.         [ Links ]

Goodglass, H., & Kaplan, E. (1974). Evaluación de la afasia y de transtornos similares. Buenos Aires: Panamericana.         [ Links ]

Head, H., & Holmes, G. (1911/12). Sensory disturbances from cerebral lesion. Brain, 34, 102–254.

Hecaen, H., & Albert, M. (1978). Human neuropsychology. New York: Wiley.         [ Links ]

Hodges, J. R. (1994). Cognitive assessment for clinicians. Oxford: Oxford University Press.         [ Links ]

Huber, W., Poeck, K., Weniger, D., & Willmes, K. (1983). Aachener Aphasie Test. Göttingen: Hogrefe.         [ Links ]

Kristensen, C. H., Almeida, R. M. M., & Gomes, W. B. (2001). Desenvolvimento Histórico e Fundamentos Metodológicos da Neuropsicologia Cognitiva. Psicologia: Reflexão e Critica, 14(2), 259-274.         [ Links ]

Lecours, A. R., & Parente, M. A. M. P. (1982). Alfabetização Como Fator Determinante da Fisiologia do Cérebro Humano. Seara médica neurocirurgia, 11, 1-14.         [ Links ]

Lecours, A. R., Mehler, J., & Parente, M. A. M. P. (1985a). Illiteracy In Brain Damage: Manifestations Of Unilateral Neglect In Testing 'Auditory Comprehension' With Iconographic Materials. Neuropsychologia, 25, 231-245.         [ Links ]

Lecours, A. R., Mehler, J., & Parente, M. A. M. P. (1985b). A Contribuition to The Study Of Speech And Language Disorders In Illiterates With Unilateral Brain Damage. Neuropsychologia, 3, 1-39.         [ Links ]

Lecours, A, R., Mehler, J., & Parente, M. A. M. P. (1985c). Au Pied de La Lettre. Union Medicale du Canada, 114, 1021-1026.         [ Links ]

Lecours, A. R., Mehler, J., & Parente, M. A. M. P. (1988). Illiteracy In Brain Damage: A Contribution To The Study Of Speech And Language Disorders In Illiterates With Brain Damage. Neuropsychologia (Oxford), 26, 575-589.         [ Links ]

Lefèvre, A. B. (1950). Contribuição para o estudo da patologia da afasia em crianças. Tese de Doutoramento. Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.         [ Links ]

Lefèvre, A. B. (1972). O Exame Neurológico Evolutivo (ENE). São Paulo: Sarvier.         [ Links ]

Lefèvre, B. H. (1989). Neuropsicologia Infantil. São Paulo: Sarvier.         [ Links ]

Leis, H. R. (2005) Sobre o Conceito de Interdisciplinaridade. Caderno de pesquisa interdisciplinar em ciências humanas, 73. Retirado em 07/10/2010 de http://www.journal.ufsc.br/index.php/cadernosdepesquisa/article/viewFile/2176/4455        [ Links ]

Lezak, M. D., Howieson, D. B., & Loring, D.W. (2004). Neuropsychological Assessment (4th ed.). New York: Oxford University Press.         [ Links ]

Luria, A. R. (1966). Higher cortical functions in man. New York: Basic Books.         [ Links ]

Marshall, J.C., & Newcombe, F. (1973). Patterns of paralexia: A psycholinguistic approach. Journal of Psycholinguistic Research, 2, 175-199.         [ Links ]

McBride, K., & Weisenburg, T. (1935). Aphasia. New York: Commonwealth Fund.         [ Links ]

Ombredane, A. G. (1929). Les troubles mentaux de la sclérose en plaques. Paris: PUF.         [ Links ]

Parente, M. A. M. P., & Lecours, A. R. (1988a). The Influence of Cultural Factors in Neuropsychology and Neurolinguistics. International Social Science, 115, 97-109.         [ Links ]

Parente, M. A. M. P., & Lecours, A. R. (1988b). L'Influence Des Facteures Cultureles En Neuropsychologie Et Neurolinguistique. Revue Internactionale des Sciences Sociales, 6(115), 109-123.         [ Links ]

Parente, M. A. M. P., & Lecours, A. R. (1998). Participação do Hemisfério Direito Na Recuperação das Afasias de Analfabetos. Neuropsicologia Latina, 4(2), 73-78.         [ Links ]

Preilowski, B. (2000). Zur Geschichte der Neuropsychologie. In W. Sturm, M. Herrmann, & C. W. Wallesch (Eds.) Lehrbuch der klinischen Neuropsychologie (pp. 3-24). Lisse, NL: Swets & Zeitlinger.         [ Links ]

Reimão, R., Rossini, S., Lima, A., Moraes, M., & Rover, H. (2008). Professor Antonio Branco Lefèvre: the forefather of child neurology in Brazil. Arquivos de Neuropsiquiatria, 66, (3-A), 587-590.         [ Links ]

Rodrigues, N. (1993). Neuropsicologia: uma disciplina científica. Em: Rodrigues, N. & Mansur, L. L. (Eds.). Temas em neuropsicologia, 1, 1-18. São Paulo: Tec Art.         [ Links ]

Seron, X. (1982). Toward a cognitive neuropsychology. International Journal of Psychology, 17, 149-156.         [ Links ]

Strub, R. L., & Black, F. W. (1993). The mental status examination in neurology. Philadelphia: F. A. Davis.         [ Links ]

Temple, C. M. (1997). Cognitive neuropsychology and its application to children. Journal of Child Psychology and Psychiatry, 38(1), 27-52.         [ Links ]

Tranel, D. (2005). On the use of neuropsychology to diagnose brain damage and study brain-behavior relationships: a comment on Luria. Cortex, 41, 259-262.         [ Links ]

Warrington, E.K., & Shallice T. (1969). The selective impairment of auditory verbal short-term memory. Brain, 92(4), 885-896.         [ Links ]

Wilson, B. A. (1989). Models of cognitive rehabilitation. In: Wood, R.L. Models of brain injury rehabilitation (pp. 117-141). London: Chapman e Hall.         [ Links ]

Zangwill, O.L. (1984). Henry Hecaen and the Origins of the Neuropsychological Symposium. Neuropsychologia, 22, 813-815.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Vitor Geraldi Haase
Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Departamento de Psicologia
Av. Antônio Carlos, 6627
CEP 31270-901 - Pampulha, Belo Horizonte, MG – Brasil
E-mail: vghaase@gmail.com

Artigo recebido: 09/10/2012
Artigo revisado: 18/11/2012
Artigo aceito: 23/12/2012

Creative Commons License All the contents of this journal, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution License