Serviços Personalizados
Journal
artigo
Indicadores
Compartilhar
Neuropsicologia Latinoamericana
versão On-line ISSN 2075-9479
Neuropsicologia Latinoamericana vol.5 no.2 Calle 2013
https://doi.org/10.5579/rnl.2012.0083
DOI: 10.5579/rnl.2012.0083
Estudo teórico sobre percepção na filosofia e nas neurociências
Étude théorique sur la perception en philosophie et en neuroscience
Estudio teórico sobre percepción en filosofía y neurociencias
Theoretical study on perception in philosophy and neuroscience
Andréa O. Oliveira; Carlos Alberto Mourão-Júnior
Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil
RESUMO
O presente estudo tem como objetivo investigar o conceito de percepção na filosofia e nas neurociências. Duas grandes concepções sobre a sensação e a percepção fazem parte da tradição filosófica: o empirismo e o racionalismo. No século XX, contudo, a filosofia alterou bastante essas duas tradições através de uma nova concepção do conhecimento sensível. As mudanças foram trazidas pela fenomenologia e pela psicologia da forma ou teoria da gestalt. A percepção apresenta estreita ligação com os sentidos, sendo as primeiras etapas realizadas pelos sistemas sensoriais, responsáveis por sua fase analítica. É como se cada característica fosse separada em suas partes constituintes, tais como forma, cor, movimentos e assim por diante. Porém, percebe o mundo com totalidades integradas e não com sensações fracionadas, o que faz supor que existam outros mecanismos, além daqueles de natureza analítica, que contribuem para nossa percepção sintética. Faz-se necessário entender como a percepção, conceito estritamente subjetivo, se relaciona com o cérebro, abordagem amplamente estudada pela neurociência cognitiva. Entretanto, as evidências atuais indicam que a percepção é um processo ativo – o cérebro constrói e edita suas percepções, por meio de fatores biológicos, mas regido por fatores históricos e culturais.
Palavras-chave: Percepção, Sensação, Cognição, Neurociências, Filosofia.
RESUMEN
El objetivo del presente estudio es investigar el concepto de percepción en filosofía y neurociencias. Dos grandes concepciones de sensación y percepción forman parte de la tradición filosófica: el empirismo y el racionalismo. En el siglo XX, sin embargo, la filosofía modificó estas dos tradiciones a través de una nueva concepción de conocimiento sensitivo. Los cambios fueron generados por la fenomenología y la psicología de la forma de la teoría gestáltica. La percepción está íntimamente vinculada con los sentidos, siendo los sistemas sensoriales los responsables de las primeras etapas y, por lo tanto, de la fase analítica. Cada característica puede ser separada en sus partes constituyentes, como ser la forma, el color, el movimiento, etc. Sin embargo, el mundo es percibido de manera integral y no con los sentidos fraccionados, lo cual sugiere que hay otros mecanismos detrás de esta naturaleza analítica que contribuyen a nuestra percepción sintética. Es necesario entender cómo la percepción, entendida estrictamente como un concepto subjetivo, se relaciona con el cerebro, un enfoque estudiado ampliamente por las neurociencias cognitivas. Sin embargo, la evidencia indica que la percepción en un proceso activo –el cerebro construye y edita sus percepciones a través de factores biológicos pero éstos están regidos por factores históricos y culturales.
Palabras clave: Percepción, Sensación, Cognición, Neurociencias, Filosofía.
RÉSUMÉ
La présente étude vise à investiguer le concept de perception en philosophie et en neuroscience. Ainsi, deux concepts majeurs en sensation et en perception font partie de la tradition philosophique : l'empirisme et le rationalisme. Toutefois, au vingtième siècle, la philosophie a changé ces deux traditions grâce à une nouvelle conception de la connaissance sensitive. Ces changements ont été amenés par la phénoménologie et la psychologie de la forme (ou théorie de la gestalt). La perception est liée de près aux sens, car elle est responsable de la phase analytique du système sensoriel. Chaque caractéristique peut être séparée en « parties constituantes », telles que la forme, la couleur, le mouvement, etc. Par contre, comme nous percevons le monde avec une intégrité intransigeante et pas avec sentiments divisés, il est possible qu'il y ait d'autres mécanismes, mis à part ceux de nature analytique, qui contribuent à notre perception de synthèse. Ainsi, il est nécessaire de comprendre comment la perception, un concept purement subjectif, est relié au cerveau, un organe très bien étudié par les neurosciences cognitives. Toutefois, la présente évidence indique que la perception est un processus actif : le cerveau construit et édite ses perceptions à l'aide de facteurs biologiques, mais ils sont gouvernés par des facteurs historiques et culturels.
Mots-clés: Perception, Sensation, Cognition, Neuroscience, Philosophie.
ABSTRACT
The present study aims to investigate the concept of perception in philosophy and in neuroscience. Two major concepts of sensation and perception make part of the philosophical tradition: empiricism and rationalism. In the twentieth century, however, philosophy changed these two traditions through a new conception of sensitive knowledge. The changes were brought about by the phenomenology and the psychology of form or gestalt theory. The perception is closely linked to the senses, representing the first steps taken by the sensory systems, being responsible for its analytical phase. Each feature could be separated into its constituent parts, such as shape, color, movement and so on. However, we perceive the world with uncompromising integrity and not with feelings fractionated, which suggests that there are other mechanisms besides those of analytical nature, which contribute to our synthetic perception. It is necessary to understand how perception, strictly subjective concept, relates to the brain, an approach widely studied by cognitive neuroscience. However, the current evidence indicates that perception is an active process - the brain constructs and edits their perceptions through biological factors but governed by historical and cultural factors.
Keywords: Perception, Sensation, Cognition, Neuroscience, Philosophy.
O conhecimento sensível é também nomeado conhecimento empírico ou experiência sensível e suas principais formas são a sensação e a percepção. Segundo Chauí (2005), a sensação é o que proporciona as qualidades exteriores dos objetos, bem como os efeitos internos dessas qualidades sobre nós. Através da sensação pode-se ver, tocar, sentir, ouvir as qualidades puras e diretas dos objetos, como cores, odores, sabores, texturas, sons, temperaturas. Sentem-se também qualidades internas que ocorre no corpo ou na mente pelo contato direto com as coisas sensíveis, tais como prazer, desprazer, dor, agrado, desagrado.
A experiência sensível é, ao mesmo tempo, a qualidade presente no objeto externo e o sentimento interno que o corpo possui das qualidades sentidas. A sensação é percebida como sendo uma reação corporal imediata a um estímulo externo sem que seja possível diferenciar, no ato mesmo da sensação, o estímulo externo e o sentimento interior. Essa distinção só seria possível num laboratório, através de analise da fisiologia e sistema nervoso.
Ao se examinar a sensação, nota-se que ninguém afirma que sente o quente, vê o azul e engole o amargo. Pelo contrário, afirma-se que a água está quente, que o céu é azul e que o alimento está amargo. Além do mais, não se percebe apenas uma característica do objeto. Ao se perceber a água, por exemplo, percebe-se não apenas sua temperatura, mas também, sua transparência, sua fluidez, ou seja, várias de suas características. O mesmo ocorre no caso de um alimento: além de seu gosto, sente-se ao mesmo tempo sua temperatura, consistência, sua cor, isto é, muitos de seus atributos. Percebe-se diversas qualidades e as sensações ocorrem de modo integral. Em outras palavras, ainda que se faça referência à apenas uma característica – água quente, céu azul, alimento amargo – concomitante a essa sensação tem-se outras. É nesse sentido que se diz, na realidade, que não há uma sensação isolada de outras, mas apenas sensações na forma de percepções, ou seja, como um conjunto de várias sensações. A percepção seria, portanto, uma síntese de sensações simultâneas (Young & Bruce, 2011). Neste contexto, o presente estudo teórico tem como objetivo investigar o conceito de percepção na filosofia e nas neurociências.
O conceito de percepção na filosofia
Duas grandes concepções sobre a sensação e a percepção fazem parte da tradição filosófica: o racionalismo e o empirismo. Os racionalistas baseiam seus conhecimentos integralmente na razão, por isso atribuem à matemática grande valor como instrumento de compreensão da realidade. A mente humana é, no racionalismo, o único instrumento capaz de chegar à verdade. O filósofo e matemático René Descartes é um dos principais teóricos dessa corrente filosófica. Descartes tem como ponto de partida a busca de uma verdade primordial que não possa ser posta em dúvida, por isso, faz da dúvida seu principal método. A alucinação, o engano dos sentidos, os erros, tudo isso faz com que não seja possível encontrar a menor segurança no mundo. Assim, põe-se a pensar que tudo é falso, duvidando de todas as coisas, a única coisa que não pode ser falsa é a sua própria existência (Marias, 2004).
A principal argumentação de Descartes consistia na consideração de que se pode pôr em dúvida a realidade de seu próprio corpo e a realidade do mundo exterior, mas não pode duvidar de sua própria existência, já que para duvidar é preciso existir. Por isso se conclui que o ser é uma coisa distinta e independente do corpo e da realidade externa (Costa, 2005).
Descartes considera que o único conhecimento válido seja aquele que se encontra inato na alma. Essa ideia de inatismo é uma das contradições entre o empirismo e o racionalismo, porém o inatismo não seria uma ideia partida do nada, Descartes teria se baseado no inatismo platônico. Platão defendia a ideia de que todos nascem dotados de razão e esta não seria adquirida através da experiência e sim da reflexão e contemplação. Segundo Platão conhecer é recordar a verdade que já existe em cada um, é despertar a razão para que ela se exerça por si mesma (Marias, 2004). Para Descartes o espírito possui três tipos de ideias que se diferenciam em origem e qualidade, as ideias adventícias, isto é as que se originam das sensações, percepções e lembranças; as ideias fictícias, que são as criadas pela imaginação, fantasias, essas nunca são verdadeiras e não correspondem a nada que exista; e as idéias inatas, aquelas inteiramente racionais e só podem existir porque já se nascem com elas (Descartes, 1991).
O Filósofo Leibniz corrobora o pensamento de Descartes afirmando que o pensamento significa muitas vezes a operação do espírito sobre suas próprias ideias, quando age e considera uma coisa com certo grau de atenção voluntária: mas naquilo que se chama percepção, o espírito é em geral puramente passivo, não podendo deixar de perceber o que percebe atualmente.
Quando o espírito está muito ocupado em contemplar certos objetos, não percebe de forma alguma a impressão que, certos corpos produzem sobre o órgão do ouvido, embora a impressão seja bastante forte; todavia, não provém dali nenhuma percepção, se a alma não tomar conhecimento algum. As idéias que nos vêm por sensação, são muitas vezes alteradas pelo julgamento do espírito das pessoas adultas sem que elas se dêem conta.
Verifica-se, portanto, que no racionalismo a sensação e a percepção dependem do sujeito do conhecimento e a coisa exterior é apenas a ocasião para que a sensação ou percepção ocorram. Dessa forma, o sujeito é ativo e a coisa externa é passiva, ou seja, sentir e perceber são fenômenos que dependem da capacidade do sujeito para decompor um objeto em suas qualidades simples (a sensação) e de recompô-lo como um todo, dando-lhe organização e significação (a percepção) (Leibniz, 1992).
A passagem da sensação para a percepção é, nesse caso, um ato realizado pelo intelecto do sujeito do conhecimento, que confere organização e sentido às sensações. Não haveria algo propriamente chamado percepção, mas sensações dispersas ou elementares; sua organização ou síntese seria feita pela inteligência e receberia o nome de percepção. Assim, na sensação, "sentem-se" qualidades pontuais, dispersas, elementares e, na percepção, os indivíduos "sabem" que estão tendo sensação de um objeto que possui as qualidades sentidas por eles.
Para o racionalismo, a razão, tomada em si mesma e sem apoio da experiência sensível, é o fundamento e a fonte do conhecimento verdadeiro. O valor e o sentido da experiência sensível, bem como seu uso na produção de conhecimentos dependem de princípios, regras e normas estabelecidas pela razão. Em outras palavras, a razão controla a experiência sensível para que esta possa participar do conhecimento verdadeiro. No racionalismo o modelo perfeito de conhecimento verdadeiro é a matemática, que depende exclusivamente do uso da razão e que usa a percepção sensível sob o controle da atividade do intelecto (Aranha, 2003).
O empirismo, por outro lado, é uma doutrina filosófica que defende a ideia de que apenas as experiências são capazes de gerar conhecimentos. Essa doutrina foi definida no século XVII pelo filósofo inglês John Locke. Locke se interessava essencialmente pelo funcionalismo cognitivo, isto é, os modos pelos quais a mente adquire conhecimento. Para ele, o conhecimento é adquirido por meio da experiência e por este motivo, todo conhecimento tem base empírica.
Locke distingue dois tipos de experiência, um derivado da sensação e o outro da reflexão. As ideias que têm sua origem na sensação, na estimulação sensorial direta ocasionada por objetos físicos no ambiente, são impressões sensoriais simples. As ideias são geradas pela operação dessas sensações na mente, pela ação sobre essas sensações e pela reflexão acerca delas. Mas é da experiência sensorial que a função mental ou cognitiva de reflexão como fonte de ideias depende, visto que as ideias produzidas pela reflexão da mente se baseiam nas ideias já experimentadas por intermédio dos sentidos (Locke, 1960).
Outra doutrina proposta por Locke é a noção de qualidades primárias e secundárias aplicada a ideias sensoriais simples. As qualidades primárias existem no objeto quer as percebamos ou não. São qualidades primárias o tamanho e a dimensão de um edifício, pertencem a esse grupo, tudo o que é inerente ao objeto. Já as qualidades que dependem da pessoa que as percebe, são consideradas secundárias, como por exemplo, a cor desse edifício. Essas qualidades secundárias – como a cor, o odor, o som e o gosto – não existem no objeto, e sim na percepção que a pessoa tem desse objeto (Schultz & Schultz, 1998).
O filósofo irlandês George Berkeley concordava com Locke que todo conhecimento do mundo exterior vem da experiência, mas discordava da distinção entre qualidades primárias e secundárias. Ele dizia que não há qualidades primárias, mas somente o que Locke denominava qualidades secundárias. Para Berkeley, todo conhecimento era uma função da pessoa que percebe ou que passa pela experiência. Sua posição foi posteriormente denominada mentalismo, para denotar a ênfase em fenômenos puramente mentais (Zilles, 2005).
Berkeley (2010) afirmava que a percepção é a única realidade de que se pode estar certo. Não se é dado conhecer com certeza a natureza dos objetos físicos do mundo em que se vive. Tudo o que se sabe é como esses objetos são percebidos. Como esta percepção está dentro do indivíduo e, portanto, é subjetiva, a percepção não reflete o mundo externo. De acordo com Berkeley, um objeto físico nada mais é que um acúmulo de sensações experimentadas conjuntamente, de modo que a força do hábito as associa entre si na mente. O mundo experimentado – o mundo que deriva da experiência individual ou se baseia nela – é a soma dessas sensações. Sendo assim, não existe nenhuma substância material sobre a qual se pode estar certo, porque, se retirarmos a percepção, a qualidade desaparece. Não pode haver cor sem a percepção da cor, nem forma ou movimento sem a percepção da forma ou do movimento.
Para Berkeley, porém, os objetos reais, não eram entendidos como existentes no mundo material somente em função da percepção. Ele acreditava que como toda experiência ocorre dentro do indivíduo e é relativa à sua percepção, nunca se pode conhecer com certeza a natureza física dos objetos, uma vez que se conta apenas com a percepção que se tem deles. No entanto, sendo bispo, Berkeley invocou Deus para explicar a sua crença na existência de certo grau de independência, de consistência e estabilidade nos objetos do mundo material, Deus funcionava como uma espécie de permanente observador de todos os objetos do universo (Berkeley, 2010).
Para os empiristas, portanto, a sensação e a percepção dependem das coisas exteriores. São causadas por estímulos externos que agem sobre os sentidos e sobre o sistema nervoso e que recebem uma resposta que parte do cérebro. Essa resposta volta a percorrer o sistema nervoso até chegar aos sentidos na forma de uma sensação (uma cor, um sabor, um odor), ou de uma associação de sensações numa percepção (vê-se um objeto verde, sente-se o sabor de uma fruta, sente-se o cheiro da rosa, etc.) (Hessen, 2003).
Para um empirista, a sensação é pontual, isto é, um ponto do objeto externo toca um dos órgãos dos sentidos e faz um percurso no interior do corpo, indo ao cérebro e voltando às exterminadas sensoriais. Cada sensação é independente das outras, cabendo à percepção unificá-las e organizá-las numa síntese. A causa do conhecimento sensível é a coisa externa, assim a sensação e a percepção são efeitos passivos de uma atividade dos corpos exteriores sobre o corpo da pessoa. O conhecimento é obtido pela soma e associação das sensações na percepção e tal soma e associação depende da frequência , da repetição e da sucessão dos estímulos externos e de nossos hábitos (Luijpen, 1973).
O fundamento e a fonte de todo e qualquer conhecimento é a explicação sensível, responsável pela existência das idéias na razão e controlando o trabalho da própria razão, pois o valor e o sentido da atividade racional dependem do que é determinado pela experiência sensível. Por isso, são as ciências naturais ou experimentais como a física e a química que dão o modelo do conhecimento verdadeiro para o empirismo (Cupani, 1985).
David Hume, filósofo e historiador do século XVIII, se tornou famoso por seu empirismo radical e seu ceticismo filosófico. Ao lado de John Locke e George Berkeley, acreditava que o mundo material não existe para o indivíduo até ser percebido. Estabeleceu uma distinção entre duas espécies de percepção, que se distinguem por seus variados graus de força e vivacidade. As menos fortes e menos vivas são normalmente denominadas pensamentos ou ideias; ao segundo tipo denominou impressões, empregando esta palavra nem sentido diferente do usual.
A impressão compreende todas as percepções mais vivas, quando ouvimos, vemos, sentimos, amamos, odiamos, desejamos ou queremos. Hume (2004) admite que há uma diferença considerável entre as percepções do espírito, por exemplo, quando uma pessoa sente a dor do calor excessivo ou o prazer do calor moderado, e quando posteriormente recorda em sua memória esta sensação ou a antecipa através de sua imaginação. Estas faculdades podem imitar ou copiar as percepções dos sentidos, contudo nunca podem alcançar totalmente a força e a vivacidade da sensação original. O máximo que se pode dizer é que representam seu objeto de modo tão vivo que quase se pode afirmar que o vemos ou sentimos. Assim, o pensamento mais claro, mais vivo, é na realidade inferior à sensação mais embaçada.
O pensamento humano não pode parecer mais ilimitado à primeira vista, pois não apenas escapa a toda forma de autoridade como a todo poder do homem. Unir formas e aparências incongruentes, formar monstros, e assim por diante; pode-se conceber o que ainda não foi visto ou ouvido, pois não há nada que esteja fora do poder do pensamento, além do que sugere absoluta contradição. Porém, apesar de o pensamento parecer possuir esta liberdade ilimitada, verifica-se, através de um exame cuidadoso, que realmente ele está confinado dentro de limites muito reduzidos e que todo seu poder criador não ultrapassa a faculdade de combinar, transpor, aumentar ou diminuir os materiais que são fornecidos pelos sentidos e pela experiência (Bunge, 1980).
Todas as ideias e percepções mais fracas se originam de impressões ou percepções mais vivas, declara Hume (2004). Para demonstrar sua teoria, expõe dois argumentos. No primeiro caso, demonstra que ao se analisar os pensamentos ou ideias, por mais compostos ou sublimes que sejam, constata-se que se reduzem a ideias tão simples como eram as cópias de sensações anteriores. Segundo, se o defeito de um órgão priva uma pessoa de uma classe de sensações, ela tem a mesma incapacidade para formar ideias correspondentes. Desse modo, um cego não pode ter conhecimento das cores nem um surdo dos sons. Ao restaurar um dos sentidos a um deles, ou seja, ao abrir as portas das sensações, a pessoa não terá mais dificuldade para conceber tais objetos. O mesmo fenômeno acontece quando o objeto adequado para estimular qualquer sensação nunca foi aplicado ao órgão dos sentidos. Uma pessoa de modos brandos não pode formar uma ideia de crueldade acirrada; nem pode conceber facilmente os ápices da amizade e generosidade um coração egoísta. Admite-se que uma pessoa pode possuir sentidos dos quais outras não tem noção, pois as ideias destes sentidos não foram apresentadas mediante o sentimento e a sensação reais vivenciadas por eles.
Assim, todas as ideias, principalmente as abstratas, são por natureza, fracas e obscuras; elas são apropriadas para serem confundidas com outras ideias semelhantes, e imagina-se que uma ideia determinada está aí anexada ao se empregar qualquer termo sem lhe dar exato significado. De outra forma, todas as impressões, ou seja, todas as sensações, externas ou internas, são fortes e vivas; seus limites são definidos com maior precisão e não é tão simples confundi-las e equivocar-nos. Logo, Hume (2004) esclarece que, ao se suspeitar que um termo filosófico esteja sendo utilizado sem nenhum sentido ou significado, deve-se inquirir de que impressão é derivada aquela suposta ideia e, sendo possível nomear uma, isto bastará para confirmar tal suspeita.
Hume (2004) pensou que tivesse destruído a possibilidade da metafísica, pondo em dúvida tudo àquilo que não pudesse confirmar mediante a experiência. Esse ceticismo extremo excluía tudo em que a humanidade acreditara e que jamais experimentara de fato. Além disso, questionou a noção de causalidade. Segundo ele, tudo o que se sabe da experiência é a sucessão de eventos. Não se pode com isso afirmar que um evento causa o outro. Não se pode ir além da experiência para afirmar isso, já que na realidade, não se experimenta um evento causando o outro, apenas verifica-se um evento seguindo a outro. Assim, a ciência baseada na causalidade é metafísica, não empírica, pois não pode ser comprovada. Isso atinge o cerne de todo conhecimento científico, uma vez que a comprovação é à base de todo conhecimento. Da mesma forma, jamais poderemos comprovar as afirmações filosóficas, a menos que elas sejam consequências da experiência direta.
Immanuel Kant, filósofo prussiano, estava impressionado com a ciência de sua época. No racionalismo, suas ideias foram influenciadas, sobretudo, por Newton e Leibniz. Ao mesmo tempo, seu interesse pela filosofia da ciência conduziu-o à leitura de David Hume. Kant ficou impressionado com a argumentação de Hume na experiência como base de todo conhecimento, o que se ajustava ao enfoque científico. Contudo, procurou demonstrar que apesar do ceticismo de Hume, ainda era possível construir uma metafísica, que seria a base real de uma forma de conhecimento universal e logicamente necessária. (Wood, 2008).
Em seu livro Crítica da razão pura, publicado em 1781, Kant afirmava que não resta dúvida de que todo o conhecimento se inicia pela experiência, pois do contrário, que outra coisa poderia despertar e pôr em ação a capacidade de conhecer senão através de objetos que tocam os sentidos e, em parte, produzem por si próprias representações, e por outro lado, coloca em movimento a atividade de entendimento para compará-las, conectá-las ou separá-las, transformando a matéria bruta das impressões sensíveis a um conhecimento dos objetos denominados experiência. Na ordem do tempo, nenhum conhecimento antecipa no indivíduo a experiência, e todo ele começa com ela. (Kant, 1985)
Mas, se todo o conhecimento se inicia com a experiência, nem por isso todo ele se origina da experiência. Pois poderia o conhecimento por experiência ser composto do que se adquire através das impressões sensíveis e daquilo que a própria faculdade de conhecimento (apenas provocada por impressões sensíveis) fornece de si mesma. Não se diferencia dessa matéria-prima, enquanto a atenção não despertar por um exercício duradouro que os torne aptos a separá-los (Dekens, 2008).
O conhecimento pode ser a priori ou a posteriori. O primeiro é aquele que não funda sua legitimidade na experiência; o segundo é aquele que resulta dela. Este último não pode ser universal, nem necessário; logo, a ciência determina um saber a priori, que não esteja limitado pelas contingências da experiência momentânea.
Kant propôs que apesar da origem do conhecimento ser a experiência, concordando assim com Hume, existem certas condições a priori para que as impressões sensíveis se convertam em conhecimento. Segundo Kant, fazem-se certos juízos que são indispensáveis a todo conhecimento, juízos que ele classificou como analíticos ou sintéticos. Os juízos analíticos são aqueles cujo predicado está contido no conceito do sujeito. Em contrapartida, os sintéticos são aqueles cujo predicado não está incluído no conceito do sujeito. Por exemplo, "todos os corpos são extensos", é uma afirmação analítica, pois não é necessário sair do conceito de corpo para encontrar a extensão. Já "todos os corpos são pesados" é um juízo sintético, pois neste caso, é preciso sair do conceito de corpo para encontrar o peso. Apesar dos juízos analíticos serem importantes, eles não se configuram em um verdadeiro avanço do conhecimento, pois não dizem nada além daquilo que já estava no conceito. O conhecimento efetivamente avança através dos juízos sintéticos (Wood, 2008).
Contudo, há uma nova distinção que deve ser elucidada conforme se trate de juízos a priori ou de juízos de experiência. À primeira vista, parece que os juízos analíticos são a priori, obtidos por pura análise do conceito, e os sintéticos, a posteriori. A primeira afirmação é verdadeira, e os juízos a posteriori são, via de regra, sintéticos. Kant passou a admitir, entretanto, uma terceira classe: os juízos sintéticos a priori. Estes são necessários e universais como os juízos analíticos, mas efetivamente ampliam o conhecimento, porque preenchem as duas condições exigidas: são, por um lado, a priori ou seja, universais e necessários; e por outro, sintéticos, isto é, aumentam efetivamente o saber (Kant, 1959).
No século XX, a filosofia alterou bastante essas duas tradições – empirismo e racionalismo – superando-as numa nova concepção do conhecimento sensível. Os responsáveis por essas mudanças foram à fenomenologia de Edmund Husserl e à psicologia da forma ou teoria da gestalt.
Empiristas e intelectualistas, apesar de suas diferenças, concordavam no fato de julgarem a sensação como uma relação de causa e efeito entre pontos das coisas e pontos do nosso corpo. As coisas seriam como mosaicos de qualidade isolada justaposta e nosso aparelho sensorial também seria um mosaico de receptores isolados e justapostos. Por isso, a percepção era considerada a atividade que "somava" ou "juntava" as partes numa síntese que seria o objeto percebido (Fuster, 2003).
Fenomelogia e Gestalt, no entanto, mostram que não há diferença entre sensação e percepção porque não se tem sensações parciais, pontuais ou elementares, isto é, sensações separadas de cada qualidade, que depois o espírito juntaria e organizaria como percepção de um único objeto. Sentem-se e percebem-se formas, isto é, totalidades estruturadas dotadas de sentido ou de significação (Luijpen, 1973).
A sensação e percepção de um objeto é sentir e perceber sua cor, suas partes, suas qualidades distintas, seus movimentos. O objeto percebido não é como para os empiristas, um feixe de qualidade isoladas que enviam estímulos aos órgãos dos sentidos; nem tampouco, como diriam os intelectualistas, um objeto indeterminado esperando que o pensamento diga às sensações o que é aquele objeto. O objeto-percebido não é um mosaico de estímulos exteriores (empirismo) nem uma idéia (intelectualismo), mas é, exatamente, um objeto-percebido (Zilles, 2005).
As experiências conhecidas como figura-e-fundo mostram que não se tem sensações parciais, mas percepções globais de uma forma ou de uma estrutura. Nelas se percebem totalidades e a percepção varia de acordo com o quê se percebe, figura ou fundo.
O sentido geral é de uma disposição ou configuração – uma organização específica de partes que constitui um todo particular. O princípio mais importante da abordagem gestáltica é o de propor que uma análise das partes nunca pode proporcionar uma compreensão do todo, uma vez que o todo é definido pelas interações e interdependências das partes. As partes de uma Gestalt não mantêm sua identidade quando estão separadas de sua função e lugar no todo. Assim, uma Gestalt é um fenômeno irredutível. É uma essência que aí está e que desaparece se o todo é fragmentado em seus componentes (Fadiman & Frager, 1986 ; Sokolowski, 2004).
Na percepção, a organização ocorre instantaneamente sempre que se vê ou que se ouvem diferentes formas ou padrões. Segundo a teoria da Gestalt, o processo cerebral primordial na percepção visual não é um conjunto de atividades separadas. A área visual do cérebro não responde a elementos separados do que é visualizado, nem vincula esses elementos mediante algum processo mecânico de associação. O cérebro, na verdade, é um sistema dinâmico em que todos os elementos que estejam ativos, num dado momento, interagem entre si (Schultz & Schultz, 1998 ; Kelso, 1995; Shepherd, 2004).
Os princípios de organização perceptiva não dependem dos processos mentais superiores nem de experiências passadas; eles estão presentes nos próprios estímulos. O psicanalista Friederick Perls, um dos fundadores da abordagem gestáltica, contestava de forma ferrenha a ideia de que se poderia abranger o estudo do ser humano através de uma abordagem científico-natural-mecanicista inteiramente racional. A partir dessa premissa, Perls associou-se à maioria dos existencialistas insistindo que o mundo vivencial de um indivíduo só pode ser compreendido por meio da descrição direta que o próprio indivíduo faz de sua situação única (Perls, 1988).
Com efeito, a ideia de que mente e corpo constituiriam dois aspectos da existência diferentes e completamente separados, era uma noção que Perls, junto com a maioria dos existencialistas, achava intolerável. Ele acreditava que as pessoas criam e constituem seus próprios mundos; o mundo existe para um dado indivíduo como sua própria descoberta do mundo, o ser humano não é algo separado deste mundo (Fadiman & Frager, 1986 ; Hessen, 2003).
A percepção se realiza em um campo perceptivo e o percebido não está "deformado" por nada. Perceber é diferente de fazer geometria ou física; é diferente de pensar e não uma forma inferior do pensamento. A percepção não é causada por objetos sobre o indivíduo nem é causada pelo corpo do indivíduo sobre as coisas: ela é a relação entre elas e o sujeito e entre o sujeito e elas. A percepção é um acontecimento ou vivência corporal e mental (Luria, 1981; Andrade, 2004; Fuentes, 2008).
O conceito de percepção na visão das neurociências
Para as neurociências, percepção refere-se à capacidade, nos seres humanos, de associar as informações sensoriais à memória e à cognição, de modo a formar conceitos sobre o mundo e sobre nós mesmos e orientar nosso comportamento (Lent, 2010). Dessa forma, a percepção é dependente dos sentidos, mas diferente deles, o que a torna uma experiência mental particular. Por outro lado, ela envolve processos complexos ligados à memória, à cognição e ao comportamento (Squire et al., 2003).
Um dos aspectos fundamentais da percepção e que a diferencia das sensações é a chamada constância perceptual. Nas operações sensoriais, cada posição de um objeto produz uma imagem diferente, mas para a percepção trata-se do mesmo objeto (Purves et al., 2005). Como se pode saber que uma cadeira continua sendo a mesma cadeira mesmo que seja vista por trás ou por cima, bem ou mal iluminada, vazia ou ocupada por uma pessoa que a encobre parcialmente? No entanto, nessas diferentes condições, as imagens que chegam à retina são diferentes (Brodal, 1969).
A percepção apresenta estreita ligação com os sentidos, assim, pode-se falar em percepção visual, auditiva, somestésica, etc. As primeiras etapas da percepção são realizadas pelos sistemas sensoriais, responsáveis pela sua fase analítica. É como se cada característica da percepção fossem separados em suas partes constituintes e propriedades tais como cores, tons, movimentos e assim por diante. No entanto, a informação pode chegar aos sentidos em partes, mas não é assim que a percepção do mundo se dá. Os indivíduos percebem um mundo de objetos e pessoas, um mundo que nos bombardeia com totalidades integradas, e não com sensações fracionadas. Ao final do processo não se tem consciência dessa soma de partes e propriedades, mas sim dos objetos como percepções globais, unificadas. Isso faz supor que além dos mecanismos analíticos existam outros de natureza sintética, capazes de reunir as partes e propriedades em um só conjunto que faz sentido (Kelso, 1995).
O estudo científico da percepção começou pelas patologias descritas pelos neurologistas desde pelo menos o século XIX – são as desordens da percepção, denominadas agnosia (derivado do grego gnosis, conhecimento). As agnosias são comumente causadas por lesões do córtex cerebral e conforme a região atingida pode ser visuais, auditivas ou somestésicas. Menos comuns são as olfatórias e as gustatórias. Também podem ser específicas, quando causadas por lesões menores e que refletem a especialização funcional das regiões corticais. (Kandel et al., 2000). Dentre as agnosias, destaca-se a prosopagnosia, incapacidade de reconhecer faces; a amusia, incapacidade de reconhecer sons musicais e a assomatognosia, também conhecida por síndrome de indiferença, onde o indivíduo não reconhece partes de seu corpo (Lent, 2010).
O estudo das lesões cerebrais encontradas em pacientes com agnosia demonstrou que tais lesões se situam em regiões do córtex cerebral denominada córtex associativo (Devinsky et al., 2008). O termo expressa uma antiga concepção de neurofisiologistas de que o comportamento envolveria a associação entre as informações sensoriais e os centros motores.
A identidade de inúmeros aspectos do funcionamento das áreas associativas foi desvendada em decorrência do desenvolvimento de métodos de registro eletrofisiológico e identificação morfológica de neurônios individuais em animais, principalmente em primatas, bem como das técnicas de imagem funcional realizadas em seres humanos. Particularmente, foi possível revelar as áreas envolvidas nos mecanismos neurais da percepção (Fuster, 2003).
Essas áreas formariam uma hierarquia em que cada uma utilizasse a informação conduzida pela precedente para adicionar complexidade perceptual, até que a reconstrução mental do objeto percebido pudesse ser comparada com os "arquivos" presentes na memória. As propriedades mais complexas seriam, assim, construídas a partir da convergência de propriedades mais simples.
A hipótese hierárquica linear, no entanto, foi questionada, ao se descobrir entre as várias áreas visuais, a existência de especializações funcionais, podendo-se conceber a existência de "canais funcionais" distintos, cada um deles sendo capaz de processar aspectos diferentes dos objetos visuais, tais como forma, movimento e cor (Bear et al., 2008). A percepção seria então, obtida, através de processamento paralelo, onde a informação oriunda do mundo externo ou até mesmo do próprio corpo, seria segmentada e distribuída em subsistemas responsáveis por analisar cada atributo específico (Kelso, 1995).
Kandel et al., (2000) relatam que as faculdades mentais mais elaboradas seriam possíveis pelas conexões em série e em paralelo de diversas regiões cerebrais. Como resultado, a lesão de uma só área pode não causar o desaparecimento de toda uma faculdade como previsto por muitos neurologistas do passado, pois mesmo quando a função desaparece de início, ela poderá, com o passar do tempo, retornar parcialmente, porque as partes não lesadas do cérebro podem, até certo ponto, se reorganizar para desempenhar a função que foi perdida. Dessa forma, os processos mentais não são, em geral, representados por uma série de elos em uma cadeia única, pois, nessa disposição, todo o processo ficaria comprometido quando um dos elos fosse rompido. Ao contrário, os processos mentais são compostos por diversos componentes, representados por várias vias neurais, tais como uma malha de trilhos ferroviários que desembocam numa mesma estação. A disfunção de um trecho de uma via só perturba a informação conduzida por essa via, mas isso não precisa interferir de modo permanente com o desempenho do sistema como um todo. As partes restantes do sistema podem modificar seu desempenho, acomodando o tráfego adicional após a interrupção de uma linha.
Há muitas evidências em favor das vias paralelas, especialmente no sistema visual, como indivíduos que perdem a percepção de movimento sem qualquer outro distúrbio aparente. Os psicólogos têm também concordado com a idéia de canais paralelos, com base na aplicação de testes perceptuais, como é o caso do "Teste de busca", idealizado pela psicóloga Anne Treisman, na década de 1970. Neste teste, o sujeito deve verificar se há ou não um objeto discrepante – o "alvo" – numa série de elementos diversos, apresentados numa cartela. Quando apenas a cor é a característica discrepante, por exemplo, a resposta tende a ser mais rápida e independe do número de distratores. Mas quando há mais de uma característica discrepante, como a cor e a forma, a resposta vai se tornando mais lenta com o aumento de distratores. Supõe-se que isso se deve ao fato de que o indivíduo necessita de mais tempo para decidir já que utiliza dois canais perceptuais, e não apenas um (Gazzaniga et al., 2006; Mesulam, 1998).
Mishkin et al. (1983) propuseram duas vias corticais paralelas distintas para a percepção visual, com base nas evidências dos neurologistas e dos psicólogos, além de um amplo conjunto de dados produzidos pelos neurobiólogos e estudos experimentais com primatas. A primeira é a via ventral, crucial para identificação visual de objetos e a segunda denominada via dorsal, fundamental para a localização visual dos objetos.
Posteriormente, pode-se constatar a existência das vias paralelas do sistema visual no córtex humano, através de imagens de tomografia por emissão de pósitrons (PET). Haxby et al. (1994), por exemplo, realizaram um estudo no qual solicitavam aos sujeitos algumas tarefas envolvendo a localização de um ponto ou o reconhecimento de faces e relacionava essas tarefas visuais com as mudanças no fluxo sanguíneo cerebral. Os resultados demonstraram que as tomografias correspondentes às tarefas de localização mostraram aumento do fluxo sanguíneo na via dorsal, enquanto nas tarefas relacionadas ao reconhecimento de faces, a tomografia mostrava a via ventral com o fluxo aumentado.
Em outro estudo semelhante, Haxby et al. (2001) investigaram por meio de ressonância magnética funcional os padrões de resposta no córtex temporal da via ventral, quando indivíduos identificavam rostos e objetos feitos pelo homem. Um padrão distinto de resposta foi encontrado para cada categoria de estímulo, indicando que as representações de rostos e objetos no córtex temporal ventral podem ser amplamente distribuídas.
Sendo as vias paralelas caracterizadas pela especialização funcional, pode-se inferir que os primeiros estágios relativos aos mecanismos da percepção são analíticos. Os processos são inicialmente destinados a analisar as características de um estímulo: uns representam forma; outros analisam a cor; e outros, ainda, fornecem informação sobre a dinâmica ou o movimento da imagem visual. Cada uma dessas propriedades do objeto é analisada em canais próprios cujos neurônios são especializados em detectá-las. (Gazzaniga et al., 2006).
Entretanto, não é assim que se percebe o mundo. Os objetos são percebidos como um todo unificado. Se um automóvel azul passa à frente na estrada, não se tem a impressão de que a percepção final foi produzida em etapas, fragmentada; ou seja, a observação não sugeriria que a análise da forma do automóvel e da cor associada a essa forma ocorreram separadamente. Ao contrário, a cor e a forma do carro dão a impressão de um conjunto unificado.
Essas informações sobre forma, cor e movimento se entrecruzam no sistema nervoso de modo a permitir o reconhecimento cognitivo. Se as vias paralelas fossem arquitetadas como canais completamente independentes, esse resultado final da percepção não seria possível (Mourão-Júnior & Abramov, 2011).
Esses dados obrigaram a uma reconceituação acerca do mecanismo de processamento paralelo. As vias paralelas não operam de forma independente, e sim, cooperativamente. De qualquer modo, a via ventral pode ser compreendida como a que melhor responde à pergunta: "O quê?", enquanto a via dorsal responde mais eficientemente à pergunta: "Onde?". Isso significa que a via ventral é especializada para a percepção e o reconhecimento dos objetos visuais, por meio da determinação de o que é que estamos olhando, enquanto a via dorsal permite determinar onde está um objeto, bem como relacioná-los entre si e com o observador que os percebe (Baddeley, 2007).
"O quê?" e "Onde?" são os dois questionamentos básicos a serem respondidos na percepção visual. Não somente se deve reconhecer o que se vê, como também é necessário saber onde está para que a resposta seja apropriada. Daí se conclui que reconhecer objetos e percebê-los espacialmente, apesar de serem duas operações perceptuais distintas realizadas por vias paralelas, é também dois aspectos de uma mesma operação mental, realizadas pelo mesmo cérebro de uma mesma pessoa.
Qualquer sistema, seja ele biológico ou artificial, capaz de reconhecer objetos, deve conseguir separá-los de outros objetos e do fundo, além de mantê-los constantes perceptualmente. O psicólogo americano David Marr (1982) propôs uma investigação computacional acerca da representação do processamento de informação visual nos seres humanos. Marr descreve um quadro geral para a compreensão da percepção visual e sobre questões mais amplas sobre a forma como o cérebro e suas funções podem ser estudados e compreendidos. O processamento da visão é construído a partir de um conjunto de representações, no qual o cérebro humano usa um processo de três passos para computar um percepto em 3-D daquilo que vemos. Num primeiro momento, o cérebro cria um esboço primário em 2-D da informação sensorial que alcança os olhos. Esse esboço representa um objeto em duas dimensões apenas, como por exemplo, uma mesa. A seguir, o cérebro elabora um esboço dos dados em 2½ - D, que representaria um esboço bi-e-meio-dimensional. Este esboço mostra a orientação da mesa no plano de imagem, além de levar em consideração pistas de profundidade e orientações de superfície. Dessa forma, a percepção da mesa incluiria alguns aspectos de profundidade, mas não outros, de modo que o esboço ainda estaria incompleto com relação à informação sobre profundidade. Finalmente, cria um modelo em 3-D, representando objetos tridimensionais no ambiente circundante e as relações espaciais entre eles. Estes objetos seriam então armazenados na memória e poderia ser recuperado, sempre que fosse necessário, reconhecê-lo outra vez (Sternberg, 2008 ; Leeuwenberg et al., 1994).
O reconhecimento de objetos pode ser também compreendido partindo-se de suas partes componentes para o todo. O princípio central dessa teoria é o de que qualquer objeto pode ser descrito como uma configuração de partes limitadas. As características dos objetos incluem diversas formas geométricas, tais como cilindros, cones, blocos e cunhas. Essas características, denominadas geons (abreviatura de "íons geométricos") foram identificadas por Biederman (1987). Em sua teoria, o autor identificou cerca de 24 geons, responsáveis por descrever todas as formas dos objetos possivelmente reconhecíveis pelas pessoas. Os objetos são definidos pelo seu conjunto único de geons constituintes e por suas relações espaciais entre esses geons. Por exemplo, uma xícara é composta por dois geons, correspondentes a um cilindro e uma alça "fixada à lateral".
Segundo Biederman (1987), se parte da forma de um objeto foram apagados de tal forma que isso não interferia na identificação dos geons, os objetos poderiam ser rapidamente reconhecíveis, mesmo quando eles são novos, ocluídos, sofrem rotações ou se encontram extensivamente degradados. Gazzaniga et al., (2006), contudo, faz um alerta sobre uma limitação da teoria dos geons. Por um lado, as pessoas não tem dificuldade em reconhecer a semelhança entre duas xícaras de café, mesmo se uma delas não tiver alça. Por outro lado, realizam discriminações apuradas entre objetos que teriam descrições quase idênticas, baseadas nos geons. Não só identificam a diferença entre cães e gatos, por exemplo, como conseguem reconhecer as semelhanças existentes entre as várias espécies de cães. Uma teoria completa do reconhecimento de objetos deve ser capaz de explicar, além das distinções preliminares entre as classes de objetos, nossa capacidade para reconhecer objetos específicos.
Algumas teorias da percepção, como as descritas acima, são centradas no objeto, pois atribuem a ele eixos invariantes ou associações de bordas que, armazenadas na memória, poderiam ser reconhecidas posteriormente. Essas teorias tende a comparar o sistema nervoso com um computador, programado para realizar determinadas operações que culminariam com a percepção (Burgess, 2011). Outras propostas, por sua vez, ainda baseadas na computação, levam em conta a capacidade de aprendizagem do indivíduo. Na primeira vez que se vê um objeto, algumas imagens bidimensionais dele são armazenadas na memória. O reconhecimento posterior do objeto ocorreria através de uma comparação entre as imagens subsequentes, que estariam ligeiramente diferentes das primeiras. Se as imagens fossem semelhantes, o objeto seria reconhecido como o mesmo anterior, caso contrário, seria classificado como um novo objeto. À medida que aumentasse o número de imagens semelhantes, a probabilidade de acerto aumentaria e a exatidão do reconhecimento também. Nesse sentido, trata-se de uma teoria centrada no indivíduo e amplamente baseada na aprendizagem (Shepherd, 2004).
A percepção de objetos depende particularmente da análise da forma de um estímulo visual, ainda que outras características como cor, textura e movimento contribuam para a percepção normal. Apesar da variabilidade da informação visual, percebemos o objeto como constante. Assim, a via ventral tem como função possivelmente extrair características invariantes dos objetos, independente das modificações de localização, proximidade da retina, orientação espacial e condições de luminosidade da informação visual. E são esses aspectos, exatamente, àqueles necessários ao reconhecimento dos objetos (Gazzaniga et al., 2006).
Lent (2010) aponta que estudos neurofisiológicos, através de experimentos feitos com macacos, têm constatado que os campos receptores e a seletividade dos neurônios vão sendo "construídos" passo-a-passo, como propõe a hipótese hierárquica, porém dentro da via ventral de processamento paralelo. Ou seja, na via ventral, a percepção vai sendo formada gradativamente de área em área, até a imagem final de o objeto ser armazenada na memória, verbalizada ou empregada para nortear o comportamento.
O processo é continuado, afirma Gazzaniga et al. (2006), à medida que cada etapa consecutiva codifica combinações mais complexas. Encontram-se, no topo da cadeia, neurônios altamente seletivos para formas específicas, como mãos ou faces. Esses tipos de neurônios têm sido denominados unidade gnóstica, referindo-se à idéia de que as células podem sinalizar a presença de um estímulo conhecido que tenha sido encontrado no passado, tais como um objeto, lugar ou animal. Essa hipótese reducionista ficou cunhada como "célula-avó", aludindo à noção de que pode haver células gnósticas que tornem excitadas apenas quando a avó de alguém aparece.
Resultados como esses inserem questionamentos acerca de quão específica é a responsividade de uma única célula. O reconhecimento depende do comportamento conjunto de grandes grupos de neurônios ou da especificidade de algumas células simples? Há que se considerar dois problemas vinculados à hipótese da célula-avó. Primeiro, a idéia das células-avós partem da premissa de que o resultado final da percepção de um objeto é codificado por uma célula simples. Nesse caso, se uma célula gnóstica "morresse", esperaríamos sofrer a perda momentânea de um objeto. Segundo, a hipótese das células-avós não elucida apropriadamente o fato de percebermos objetos novos, uma percepção no qual seus mecanismos permanecem inexplicados (Biederman, 1987).
O reconhecimento de objetos como resultantes da ativação de detectores de características complexas, seria uma alternativa à hipótese da célula-avó. Pela hipótese conjunta, o reconhecimento é devido não apenas a uma unidade, mas a ativação coletiva. Deste modo, conforme explicitam Gazzaniga et al. (2006), as teorias conjuntas fornecem explicações, por exemplo, para o fato de podermos confundir um objeto com outro visualmente semelhante, pois ambos ativam muitos neurônios iguais. Além disso, as teorias conjuntas também explicam a capacidade para reconhecer novos objetos, já que esses trazem uma semelhança com as coisas familiares e a percepção resultaria da ativação de unidades que representam suas características.
É de fundamental importância entender como ocorre o reconhecimento de objetos pelo sistema nervoso. Todavia, conforme o indivíduo se move, ele depara com uma série de objetos em locais específicos. De fato, se não tivesse a percepção da localização, o mundo seria uma massa confusa de informações visuais. As pessoas não apenas identificam objetos, como também as situam no espaço.
A via dorsal é a via do "onde?". Disso não se pode depreender que ela não realiza também operações perceptuais que envolvem o reconhecimento da forma dos objetos. Para localizar no ambiente um objeto, faz-se necessário distinguir sua forma, até mesmo para saber o quê localizar. Para responder à pergunta "onde?" e desse modo conduzir o comportamento, é preciso coordenar diferentes informações sensoriais e motoras. Essa função é realizada pelas áreas parietais posteriores do córtex cerebral (Lent, 2010).
A observação de pacientes com lesões do córtex parietal posterior (em sua maioria no hemisfério direito) tem sido importante para definir com mais propriedade sua função. Na maioria das vezes, os pacientes parietais ignoram tudo o que se passa à sua esquerda: o lado esquerdo do seu corpo, o lado esquerdo dos objetos, o lado esquerdo do campo visual, apresentando uma condição clínica conhecida como síndrome de indiferença. Se segurar sua mão esquerda e lhes mostrar, dirão que essa mão não é a sua, mas de outra pessoa. Testes neuropsicológicos aplicados em tais pacientes indicam que os mesmos não apresentam qualquer déficit propriamente visual, ou de memória. Na verdade, apresentam um déficit de percepção espacial característico da via dorsal, particularmente do córtex parietal posterior (Lent, 2010).
Kolb & Whishaw (2002) afirmam que uma característica notável de muitas células nas áreas visuais do córtex parietal é sua capacidade de permanecerem inativadas pela estimulação visual quando o indivíduo está sob efeito de anestesia. Isso ocorre especialmente em neurônios nas regiões parietais posteriores do ramo dorsal, visto que as células no córtex temporal, respondem a estímulos visuais mesmo quando a pessoa está anestesiada. O "silêncio" dos neurônios situados no córtex parietal posterior (sob anestesia) faz sentido se o papel deles for processar a informação visual para ação, uma vez que na ausência de ação, quando a pessoa está inconsciente, o processamento da informação não se faz necessário.
As células no ramo dorsal variam com a natureza do movimento no qual uma célula específica participa. O aspecto visual de um objeto a ser agarrado é conferido por uma categoria interessante de células. Por exemplo, se um macaco for pegar uma maçã, essas células são ativadas mesmo quando o macaco ainda está apenas olhando a maçã. Por outro lado, essas células não respondem quando o macaco se depara com a mesma maça em uma situação em que movimento algum deva ser feito. Curiosamente, essas células são ativadas se o macaco simplesmente olha outro macaco realizando movimentos para pegar a maça. As células têm, aparentemente, algum tipo de "entendimento" do que está acontecendo na realidade externa. Esse entendimento, no entanto, está sempre arrolado com a ação que se refere à percepção visual de objetos. Essas células fizeram com que os neurocientistas, segundo nos esclarecem Kolb & Whishaw (2002), concluíssem que o ramo dorsal é, de fato, um sistema visual de "como".
Em suma, novas linhas de pesquisa interdisciplinar vêm surgindo entre os diferentes campos das neurociências. Essas pesquisas têm produzido uma vasta gama de conhecimentos, permitido à neuropsicologia clínica a capacidade de ligar os achados da experiência comum com a ciência básica e suas devidas implicações clínicas, dando, assim, lastro científico à experiência perceptual, que no passado era apenas uma vivência fenomenológica, e hoje se incorpora aos domínios da ciência.
A filosofia da mente
A filosofia da mente consiste em reflexões acerca de estados mentais, que em sua totalidade constitui o que denominamos mente. Esses estados mentais podem ser classificados como sensações – dores, coceiras, cócegas, calafrios; percepções – ver, ouvir, tocar, cheirar; estados quase perceptuais – sonhar, imaginar, alucinar; emoções – amor, ódio, medo, alegria, pesar; cognições – crer, saber, entender, pensar; e estados conotativos – desejar, querer, intencionar.
Nenhum fenômeno mental é mais central do que a consciência para uma adequada compreensão da mente. O conceito de consciência pode ser correlacionado ao conceito de mente no sentido de que todos os seres que possuem mente devem ser ao menos capazes de consciência (uma pessoa que dorme possui mente e não está consciente, mas é capaz de consciência). O filósofo Cláudio Costa define consciência como a "experiência integrada que a mente tem da realidade externa e interna" (Costa, 2005).
Podem-se assinalar dois tipos distintos de consciência: a consciência perceptual e a consciência introspectiva. A consciência perceptual ocorre quando se utiliza os sentidos para ver, ouvir e sentir o mundo externo, ou seja, ocorre consciência perceptual quando se está acordado, em vigília, alerta. A modalidade perceptual da consciência pode ser entendida como a experiência que a mente tem da realidade externa, do mundo circundante e dos corpos. Por sua vez, a consciência introspectiva é reflexão, autoconsciência. Ela pode ser entendida como a experiência que a mente tem da realidade interna, dos seus próprios estados mentais, tal como eles são de fato. O filósofo norte-americano David M. Rosenthal (1986) entende a modalidade introspectiva de consciência como constituída por pensamentos ou cognições de ordem superior, tendo por objetos outros estados mentais tal como percepções, sensações, sentimentos e mesmo outros pensamentos.
Entretanto o problema mais importante para a filosofia da mente, não é o de se classificar formas de consciência ou de se investigar os seus traços mais característicos. O que vem inquietando os filósofos e cientistas é tentar compreender como, em um mundo totalmente físico, se faz possível a existência de algo irredutivelmente subjetivo e fenomênico como a consciência.
Para os professores norte-americanos especialistas em Filosofia da Mente John Searle e o Daniel Dennett, a razão pela qual parece impossível conciliar o fenômeno da consciência com o mundo físico estaria apenas no fato de não se possuir ainda uma ciência capaz de explicar em detalhes como o cérebro funciona. Quando a neurociência for capaz de explicar tal fato, mostrando qual é a constituição neurobiológica do material sensível, como dele se produz a percepção e a representação, qual é a estrutura neurofuncional da introspecção e da unificação dos estados conscientes em um centro móvel de "egoidade", a consciência passará a ser naturalmente entendida como uma propriedade física emergente da matéria biológica e completamente redutível a ela (Matthews, 2007).
A questão mais discutida em filosofia da mente é o da relação mente-corpo, da natureza do mental e de sua relação com o corpo, ou seja, com o cérebro. Há dois principais tipos de solução para esse problema: dualismo e fisicalismo. O dualismo afirma que a mente é distinta e independente do corpo material, enquanto o fisicalismo ou materialismo afirma que a mente é ela própria material, quando não lhe nega a existência.
A mais importante forma de dualismo foi o interacionismo proposto no século XVII pelo filósofo francês René Descartes, já citado anteriormente. Há porém, uma variedade de objeções feitas ao dualismo interacionista proposto por Descartes. Por exemplo: Como é possível que a substância mental, que não possui extensão nem propriedade física alguma, seja capaz de interagir causalmente com o corpo de modo que alguém, por exemplo, faça ele se levantar da cama ao acordar, ou retire a mão de perto do fogo? Como explicar o efeito de drogas e medicamentos na mente? Como explicar que uma doença como a de Alzheimer, que reduz o cérebro até um terço do seu tamanho, tenha efeitos tão devastadores sobre a atividade mental? Como explicar, em suma, o papel do cérebro? O que tais objeções revelam é que o dualismo não se integra à nossa crescente imagem científica do mundo.
A discussão contemporânea do problema mente-corpo nasceu de uma influente reação contra a tradição dualista, o assim chamado behaviorismo analítico. A idéia básica do behaviorismo analítico era a de que o mental, entendido como um conjunto de entidades subjetivas e privadas, ou não existe ou não desempenha papel algum. Conceitos que se referem àquilo que é mental – como os de dor, desejo, raiva, amor, etc. – devem ser analisados, para o behaviorismo, em termos de comportamentos ou disposições para se comportar (Chalmers, 1996).
As principais objeções ao behaviorismo se referem à circularidade no sentido de que a análise comportamental de um estado mental acaba sempre por recorrer a outros estados mentais, os quais por sua vez exigem novas análises comportamentais e assim indefinidamente; e à noção de disposição, já que a disposição de um corpo de apresentar certas propriedades em certas circunstâncias específicas costuma ser analisada, não em termos dessas mesmas propriedades, mas de propriedades intrínsecas do corpo. Se assim for, então um estado mental não é para ser analisados relativamente a esses mesmos comportamentos, mas a propriedades intrínsecas de estados cerebrais. Essa reflexão porém, implica no abandono do behaviorismo (Maslin, 2009).
Segundo Costa (2005), uma solução radical para o problema mente-corpo, introduzida por P.K.Feyerabend em 1963, foi o eliminacionismo. Em uma versão mais atual, defendida por Paul Churchland (1981), o eliminacionismo sugere que o vocabulário sobre estados mentais pertence a uma psicologia popular que não merece crédito; a psicologia popular deve desaparecer, como já desapareceram a astronomia, a física e a química populares. O mesmo deve acontecer com a psicologia popular quando for desenvolvida uma verdadeira neurociência. A sua linguagem será então eliminada em favor de uma outra, inteiramente derivada da neurofisiologia.
Não obstante, esse raciocínio é questionável. Ao examinar de perto o que a ciência refutou e eliminou, verifica-se que não foi o conhecimento elementar de senso comum, mas a sua extensão por filósofos e cientistas em extrapolações especulativas. Conceitos como os de corpo material, estrela, peso e calor não foram eliminados pela ciência, mas assimilados por ela, e generalizações do senso comum como a de que o Sol cruza o céu a cada dia, nunca foram em seu contexto próprio falseadas pela ciência. Por isso a ciência não costuma ser refutação, mas extensão e refinamento do senso comum mais humilde, não sendo plausível nem razoável pensar que a neurociência deva refutar ou eliminar a psicologia popular na sua totalidade. Além disso, querer substituir a psicologia popular ou sua extensão como psicologia científica pela neurociência, negando seu status epistêmico próprio, seria um erro adicional. Tal como ocorreu no caso da química, que foi fundamentada pela física, o correto seria a neurociência fundamentar a psicologia ao contrário de eliminá-la (Popper & Eccles, 1991).
A partir da segunda metade da década de 1950, surge uma nova teoria denominada "Teoria da Identidade de Tipo". Essa teoria propõe que estados mentais são idênticos a estados cerebrais. A inspiração para essa teoria é proveniente da bem-sucedida descoberta de identidades pelas ciências empíricas. Elas acabaram por identificar muitas macroestruturas aparentes a microestruturas por elas descobertas. Uma futura ciência do cérebro poderá muito bem no futuro, identificar estados mentais como sensações, emoções, desejos e crenças, entre outros, a estados neurofisiológicos específicos (Maslin, 2009).
Há uma variedade de objeções importantes contra a teoria da identidade de tipo; mas duas delas foram decisivas para o seu abandono pela maioria dos filósofos. A primeira objeção parte da consideração de que o mental possui um resíduo irredutível ao material, que são os assim chamados qualia – qualidades fenomenais privadas e diretamente experienciadas de eventos mentais como sensações, emoções e imagens mentais. Segundo essa objeção, a teoria da identidade não é realmente capaz de identificar os qualia com eventos cerebrais, pois o modo de sentir (how it feels) e ter (how it is like) os primeiros nunca se dá à experiência física intersubjetiva, como insistiu o professor de Filosofia da Mente Thomas Nagel (1974). De fato, por mais que se investigue o cérebro, nele não se encontrará nada parecido com os qualia. A segunda e mais poderosa objeção é a da múltipla realizabilidade. Estados mentais não podem ser univocamente identificados a estados cerebrais, como pretende a teoria da identidade de tipo, posto que eles podem se realizar nos mais diversos tipos de arranjos materiais. Isso é sugerido pelo fato de o cérebro ser plástico em suas funções. Quando uma pessoa sofre um acidente vascular cerebral, por exemplo, e perde a fala, outras áreas do cérebro aprendem a desempenhar o mesmo papel da área destruída, fazendo com que ela recupere ao menos parcialmente a habilidade de falar (Wright, 2008).
O sucesso da teoria da identidade de tipo durou pouco, pois ela foi eclipsada ainda na década de 1960 pelas teorias funcionalistas da mente, sugeridas por Putnam e outros. Conforme ressalta Costa (2005), a idéia geral do funcionalismo pode ser colocada da seguinte forma: há coisas que se definem primariamente por sua natureza material ou substantiva: um grão de areia, uma montanha, uma árvore... Mas há outras coisas que se definem primariamente por sua função. Esse é o caso do ofício de guarda-florestal ou de uma armadilha para pegar passarinhos. Pouco importa quem ocupa o lugar de guarda-florestal ou de que é feita a armadilha, se de madeira, metal, plástico, etc. O importante é que a função seja satisfeita (Costa, 2005).
A tese do funcionalismo em filosofia da mente é a de que os estados mentais pertencem a esse último gênero de coisas: a mente não se define pelo que é, mas pelo que faz. O funcionalismo lembra o behaviorismo, mas se diferencia dele por incluir estados internos entre os elementos do sistema funcional. O assim chamado funcionalismo da máquina, criado por Putman, realiza uma analogia entre cérebros e computadores, a mente nada mais seria do que o programa implementado no cérebro, e os estados mentais são os seus estados funcionais (Teixeira, 2012).
Uma consequência agradável de pensar assim é que, como programas podem ser alterados, a mente também pode. Outra consequência do funcionalismo é que sendo o mental definido em termos puramente funcionais, o substrato material não precisa ser um cérebro biológico (Teixeira, 1989).
No entanto, uma objeção desta teoria também se refere aos qualia. Como foi falado anteriormente, os qualia são tudo aquilo que possui caráter qualitativo-fenomenal na consciência. No entanto, o funcionalismo, ao identificar os estados mentais com papéis funcionais, deixa de fora os qualia. A existência dos qualia é, ademais, uma razão pela qual não parece possível que a mente venha a ser um programa implementado em um supercomputador. Um robô com um cérebro eletrônico pode realizar as tarefas práticas e até intelectuais idênticas a de um ser vivo com um cérebro biológico; mas não parece que ele possa ter os mesmos qualia. Ao se reconhecer a peculiaridade dos fenômenos neurofisiológicos – a sua indizível complexidade e sutileza – torna-se intuitivamente plausível a idéia de que os qualia são propriedades que se limitam a cérebros biológicos, sendo a sua reprodução por outros meios impossível. Há, também, que se tomar cuidado, ao abordar uma caracterização puramente funcionalista do mental (Wright, 2008).
Diante das teorias expostas acima, permanecem alguns questionamentos: Devemos então abandonar o materialismo? Ora, qual será a alternativa ao materialismo? O dualismo? Muito pouco foi falado sobre o dualismo. Mas isto não se deve ao fato de se querer ser propositadamente tendenciosos. Ao se adotar o dualismo, praticamente não resta nada para falar, exceto a afirmação de que mente e cérebro são coisas distintas. O dualismo não diz nada acerca da natureza da mente, apenas afirma que ela não é material. Ele só fornece um ponto de partida, e isto é muito pouco para que se possa elaborar uma ciência ou uma filosofia da mente. É possível porém que essa alternativa ao dualismo ou ao materialismo, a filosofia da mente não possa nunca vir a fazer.
Considerações Finais
A percepção é uma função cortical de fundamental importância para o desenvolvimento adaptativo, porém de difícil conceituação. Muitas teorias foram criadas para explicar a percepção. O maior problema, entretanto, foi sempre o de articulá-los com a Neurociência. Esta foi a grande proposta deste trabalho.
Constatam-se duas grandes concepções filosóficas sobre a sensação e a percepção: o empirismo e o racionalismo. No século XX, porém, a filosofia alterou essas duas tradições através de uma nova concepção do conhecimento sensível. A fenomenologia e a Gestalt foram as responsáveis por essas mudanças, ao mostrar que não há diferenças entre sensação e percepção, porque não há sensações parciais, ou seja, sensações separadas de suas qualidades. Sentem-se e percebem-se totalidades estruturadas dotadas de sentido e significação.
Para as neurociências, contudo, sensação e percepção são dois fenômenos distintos. A percepção está intricamente relacionada à sensação, sendo sua primeira etapa realizada pelos sistemas sensoriais, responsáveis por sua fase analítica. Entretanto, percebem-se objetos integrados, como um todo, e não características fracionadas, o que faz supor que existam outros mecanismos, além daqueles de natureza analítica, que colaboram para a formulação da percepção sintética.
A compreensão de como a percepção, conceito estritamente subjetivo, se relaciona com o cérebro, foi alvo de muitas indagações. A filosofia da mente tem discutido amplamente estas questões, tentando fundamentalmente estabelecer os limites científicos e metodológicos de uma ciência que não consegue explicar a percepção apenas por seus componentes biológicos, visto seu caráter subjetivo.
O presente estudo não tem a pretensão de esgotar aqui o debate acerca da percepção, principalmente no que tange à relação de componentes subjetivos, neurocognitivos e neurobiológicos. Fazem-se necessários contínuos aprofundamentos neste tema, tanto em relação a novas abordagens como à natureza simbólica da percepção ou a constância perceptiva, como no que diz respeito a novas técnicas de neuroimagem que surgem a cada dia demonstrando ainda mais evidências sobre o assunto. O que a nós parece mais sensato admitir é que a percepção é um processo ativo (o cérebro percebe aquilo que quer perceber), assim como é a evocação de memórias (Goldberg, 2009) e a função executiva (Mourão-Júnior & Melo, 2011). Além disso, como já dizia o mestre Vigotski, toda função cortical superior tem uma origem plural, sendo a combinação de fatores biológicos, históricos e culturais (Vigotski, 2007). Espera-se que a reflexão teórica aqui apresentada suscite o interesse por novas investigações.
Referências
Andrade, V. M., Santos, F. H., & Bueno, O. F. A. (2004). Neuropsicologia hoje. São Paulo: Artes Médicas. [ Links ]
Aranha, M. L. A. (2003). Filosofando: introdução à filosofia. São Paulo: Moderna. [ Links ]
Baddeley, A. (2007). Working memory, thought and action. New York: Oxford University Press. [ Links ]
Bear, M. F., Connors, B. W., & Paradiso, M. A. (2008). Neurociências: desvendando o sistema nervoso. Porto Alegre: Artmed. [ Links ]
Berkeley, G. (2010). Obras filosóficas. São Paulo: Editora UNESP. [ Links ]
Biederman, I. (1987). Recognition-by-components: a theory of human image understanding. Psychological Reviews, 94, 115-147. [ Links ]
Brodal, A. (1969). Neurological anatomy in relation to clinical medicine (2 ed.). New York: Oxford University Press. [ Links ]
Bunge, M. (1980). Ciência e desenvolvimento. Belo Horizonte: Itatiaia. [ Links ]
Burgess, A. E. (2011). Visual perception studies and observer models in medical imaging. Seminars in Nuclear Medicine, 41(6), 419-436. [ Links ]
Chalmers, D. J. (1996). The conscious mind: in search of a fundamental theory. New York: Oxford University Press. [ Links ]
Chauí, M. (2005). Convite à filosofia. São Paulo: Ática. [ Links ]
Churchland, P. (1981). Eliminative materialism and the propositional atitudes. Journal of Philosophy, 78, 67-90. [ Links ]
Costa, C. (2005). Filosofia da mente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. [ Links ]
Cupani, A. (1985). A crítica do positivismo e o futuro da filosofia. Florianópolis: Editora da UFSC. [ Links ]
Dekens, O. (2008). Compreender Kant. São Paulo: Edições Loyola. [ Links ]
Descartes, R. (1991). Meditações (Coleção Os Pensadores). São Paulo: Nova Cultural. [ Links ]
Devinsky, O., Farah, M. J., & Barr, W. B. (2008). Visual agnosia. Handbook of Clinical Neurology, 88, 417-427. [ Links ]
Fadiman, J., Frager, R. (1986). Teorias da Personalidade. São Paulo: Harbra. [ Links ]
Fuentes, D., Malloy-Diniz, L. F., Camargo, C. H. P., & Cosenza, R. M. (2008). Neuropsicologia: teoria e prática. Porto Alegre: Artmed. [ Links ]
Fuster, J. M. (2003). Cortex and mind: unifying cognition. New York: Oxford University Press. [ Links ]
Gazzaniga, M. S., Ivry, R. B., & Mangum, G. R. (2006). Neurociência cognitiva: a biologia da mente. Porto Alegre: Artmed. [ Links ]
Goldberg, E. (2009). The new executive brain: frontal lobes in a complex world. Oxford: Oxford University Press. [ Links ]
Haxby, J. V., Horwitz, B., Ungerleider, L. G., Maisog, J. M., Pietrini, P., & Grady, C. L. (1994). The functional organization of human extrastriate cortex: A PET-rCBF study of selective attention to faces and locations. Journal of Neuroscience, 14, 6336-6353. [ Links ]
Haxby, J. V., Gobbini, M. I., Furey, M. L., Ishai, A., Shoulten, J. L., & Pietrini, P. (2001). Distributed and overlapping representations of faces and objects in ventral temporal cortex. Science, 293, 2425-2430. [ Links ]
Hessen, J. (2003). Teoria do conhecimento (2 ed.). São Paulo: Martins Fontes. [ Links ]
Hume, D. (2004). Investigação sobre o entendimento humano e sobre os princípios da moral. São Paulo: Editora UNESP. [ Links ]
Kandel, E. R., Schwartz, J. H., & Jessel, T. M. (2000). Fundamentos da neurociência e do comportamento. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan. [ Links ]
Kant, I. (1959). Prolegômenos a toda metafísica futura que possa apresentar-se como ciência. São Paulo: Companhia Editora Nacional. [ Links ]
Kant, I. (1985). Crítica da razão pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. [ Links ]
Kelso, J. A. S. (1995). Dynamic patterns: the self-organization of brain and behavior. Cambridge: MIT Press. [ Links ]
Kolb, B., & Whishaw, I. Q. (2002). Neurociência do comportamento. Barueri: Manole. [ Links ]
Leeuwenberg, E., Van der Helm, P., & Van Lier, R. (1994). From geons to structure. A note on object representation. Perception, 23(5), 505-515. [ Links ]
Leibniz, G. W. (1992). Novos ensaios sobre o entendimento humano (Coleção Os Pensadores). São Paulo: Nova Cultural [ Links ]
Lent, R. (2010). Cem bilhões de neurônios?: conceitos fundamentais de neurociência (2 ed.). São Paulo: Atheneu. [ Links ]
Locke, J. (1960). An essay concerning human understanding. Nova York: Dover. [ Links ]
Luijpen, W. (1973). Introdução à fenomenologia existencial. São Paulo: E.P.U. [ Links ]
Luria, A. R. (1981). Fundamentos de neuropsicologia. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. [ Links ]
Marias, J. (2004). História da filosofia. São Paulo: Martins Fontes. [ Links ]
Marr, D. (1982). Vision: a computational investigation into the human representation and processing of visual information. Nova York: Freeman. [ Links ]
Maslin, K. T. (2009). Introdução à filosofia da mente (2 ed.). Porto Alegre: Artmed. [ Links ]
Matthews, E. (2007). Mente: conceitos-chave em filosofia. Porto Alegre: Artmed. [ Links ]
Mesulam, M. M. (1998). From sensation to cognition. Brain, 121 ( Pt 6), 1013-1052. [ Links ]
Mishkin, M., Ungerleider, L., & Macko, K. A. (1983). Object vision and spatial vision: two cortical pathways. Trends in Neuroscience 6, 415-417. [ Links ]
Mourão-Júnior, C. A. & Abramov, D. M. (2011). Fisiologia essencial. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan. [ Links ]
Mourão-Júnior, C. A., & Melo, L. B. R. (2011). Integração de três conceitos: função executiva, memória de trabalho e aprendizado. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 27(3), 309-314. [ Links ]
Nagel, T. (1974). What is like to be a bat? The philosophical review, 83, 435-450. [ Links ]
Perls, F. (1988). A abordagem gestáltica e testemunha ocular da terapia (2 ed.). Rio de Janeiro: LTC. [ Links ]
Popper, K., & Eccles, J. C. (1991). O eu e seu cérebro. Brasília: Editora da UnB. [ Links ]
Purves, D., Augustine, G. J., Fitzpatrick, D., Katzs, L. C., La Mantia, A. S., McNamara, J. O., & Williams, S. M. (2005). Neurociências (2 ed.). Porto Alegre: Artmed. [ Links ]
Rosenthal, D. M. (1986). Two concepts of consciousness. Philosophical studies, 49, 329-359. [ Links ]
Schultz, D. P., Schultz, S. E. (1998). História da psicologia moderna. São Paulo: Cultrix. [ Links ]
Shepherd, G. M. (2004). The synaptic organization of the brain (5 ed.). New York: Oxford University Press. [ Links ]
Sokolowski, R. (2004). Introdução à fenomenologia. São Paulo: Edições Loyola. [ Links ]
Squire, L. R., Bloom, F. E., McConnell, S. K., Roberts, J. L., Spitzer, N. C., & Zigmond, M. J. (2003). Fundamental neuroscience (2 ed.). New York: Academic Press. [ Links ]
Sternberg, R. J. (2008). Psicologia Cognitiva (4 ed.). Porto Alegre: Artmed. [ Links ]
Teixeira, J. F. (1989). O que é inteligência artificial. São Paulo: Brasiliense. [ Links ]
Teixeira, J. F. (2012). Filosofia do cérebro. São Paulo: Paulus. [ Links ]
Vigotski, L. S. (2007). A formação social da mente (7 ed.). São Paulo: Martins Fontes. [ Links ]
Wood, A. W. (2008). Kant. Porto Alegre: Artmed. [ Links ]
Wright, E. (2008). The case for qualia. Cambridge: The MIT Press. [ Links ]
Young, A. W., & Bruce, V. (2011). Understanding person perception. Br J Psychol, 102(4), 959-974. [ Links ]
Zilles, U. (2005). Teoria do conhecimento e teoria da ciência. São Paulo: Paulus. [ Links ]
Endereço para correspondência
Carlos Alberto Mourão-Júnior
Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora
CEP 36036-900 - Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil
E-mail: carlos.mourao@ufjf.edu.br
Artigo recebido: 20/12/2011
Artigo revisado: 24/02/2012
Artigo revisado (2ª revisão): 23/12/2012
Artigo aceito: 23/12/2012