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Revista do NUFEN
versão On-line ISSN 2175-2591
Rev. NUFEN vol.1 no.1 São Paulo ago. 2009
ARTIGOS
Perspectiva social e projetiva das representações gráficas da família em crianças paraenses
Social perspective and projective of the graphic representations of the family in children of the Para
Ana Maria Digna Rodrigues de Souza1
Faculdade de Psicologia da Universidade Federal do Pará (UFPA)
RESUMO
As mudanças que se processam ao longo do tempo no funcionamento e composição do grupo familiar, com relação à tradição, sobretudo na classe de baixa renda, propõem uma discussão sobre a permanência da representação convencional da família. Paralelamente discute–se também as variações do sistema familiar em função da cultura e a importância das mudanças processadas ao longo do tempo. Estes problemas são a origem deste estudo, que explorou as projeções efetuadas nos desenhos da família de 216 crianças paraenses. Seu desempenho indica que o modelo de família nuclear ainda está em vigor na versão infantil do grupo familiar, porém a percepção do funcionamento deste, que envolve a atuação de seus membros, não é conservadora e varia relativamente em função do sexo e da classe sócio–econômica dos sujeitos. As diferenciadas valorizações dos membros não afetaram a escolha convencional do modelo identificatório, que atende as expectativas sociais para cada sexo.
Palavras-chave: representação da família; técnicas projetivas; desenho da família.
ABSTRACT
The changes which happened through the time in the performing and arrangement of the family group, in comparison with the traditional one, mainly in the economic low class, propose some discussion about the permanence of conventional familiar representation. On top of that it is likewise important to discuss the familiar system variations as a consequence of culture and the importance of changes through the time. These problems are the source of this investigation. It explored the projections produced by 216 native children of Para.Your acting indicates that the model of nuclear family is still in force in the infantile version of the family group, however the perception of the operation of this, that it involves the performance of your members, it is not conservative and it varies relatively in function of the sex and of the socioeconomic class of these. The valorizations different of the members didn't affect the conventional choice of the model identification that assists the social expectations for each sex.
Keywords: family representation; projective techniques; family drawing.
INTRODUÇÃO
A família é o primeiro agente socializador, ao transmitir sua versão das normas sociais para os filhos. Além da família, a escola, o grupo religioso, o grupo de amigos, os meios de comunicação de massa também exercem essa função. Os estudantes de psicologia costumam ler e ouvir o princípio de que a socialização primária, efetuada pela família, é mais marcante na formação da personalidade do que a socialização secundária. Para Berger e Luck (citado por Nicolaci-da-Costa, 1985), isto ocorre porque o sistema simbólico internalizado durante a socialização primária: a) é inevitável, já que o sujeito não escolhe seus agentes socializadores, b) é irrelativizável, pois calcado na versão dos pais, segundo o próprio sistema simbólico destes e c) ocorre em contexto de forte laço afetivo, que implica a identificação. Identificação que, segundo Sigmund Freud (1933), se diferencia das identificações que ocorrem durante a socialização secundária porque esta "apenas atingem o ego, já não mais atingem o superego, que foi determinado pelas imagos parentais mais primitivas" (p. 83).
Porém como célula de um sistema social, o padrão da família pode modificar-se conforme a evolução social, processo que produz, por vezes descontinuidade entre o sistema simbólico de uma geração familiar e de outra mais nova, especialmente nas sociedades mais complexas. É provável que os meios de comunicação contribuam para atenuar a divisão entre os campos público e privado, de modo que, ao longo dos anos, influências externas chegam cada vez mais cedo aos lares. Também há os efeitos do ingresso precoce das crianças em escolas–creche e das novas atribuições de papéis e responsabilidade dos pais. Lewis e Dessen (1999) comentam, entre outros fatores, a identificação sexual como função dos papéis de gênero incorporados na personalidade dos pais. Para eles, os pais não são os únicos agentes de socialização, embora tenham papel relevante na identificação sexual dos filhos. Os efeitos da sua ausência variam em função de classe sócio–econômica, idade dos pais, outros contatos significativos que os filhos efetuam com pessoas de fora, etc.
Além da descontinuidade que se processa no tempo, pode vir a ocorrer também descontinuidade com relação a outros segmentos da sociedade, de modo que estes podem gerar sistemas simbólicos diferentes daqueles processados dentro do grupo familiar, produzindo, por exemplo, descontinuidade família–escola, freqüente no caso de indivíduos de baixa renda, bem como no caso de minorias étnicas, que, não raro, resultam em aversão à escola pelos estudantes, evasão escolar, baixo rendimento acadêmico, etc. A descontinuidade que se processa no tempo pode variar em diferentes comunidades e pode existir com relação a outros segmentos da sociedade, bem como em relação a outras culturas.
Posições teóricas como a de Safouan et al. (1996) que, com argumentos psicanalíticos, atribuem ao pai a autoridade do lar, mesmo no caso de sociedades matrilineares, estão sendo confrontadas com as conseqüências das mudanças sociais, por exemplo, com o fato de que cerca de 300 mil mulheres paraenses exercem hoje a dupla função de mãe e pai como chefes de domicílios, conforme noticiário local e informação do censo 2000. Mulheres nessas condições somam 26,7% no país atualmente. Para Brun (1999), as alterações atuais nas atividades das mulheres e dos homens, que incluem suas funções dentro da família, não chegam a mudar os estereótipos populares sobre os pais, convencionalmente mãe biológica idealizada como generosa e pura, "rainha do lar", para compensar a sua falta de poder social, este atributo ao pai, bem como a idéia de madrasta-vilã, no caso de reorganização familiar depois de uma separação dos pais. Esses papéis, entretanto, talvez sejam discutíveis em certos lugares. Silva (1999) realizou uma investigação sobre os modos de interação entre os membros de cada uma de dez famílias paraenses, utilizando Entrevista Familiar Estruturada, questionário e genograma. Seus resultados mostraram que esses grupos familiares funcionam segundo um padrão cultural em que predominam traços de personalidade peculiares da cultura indígena, dentre os quais se evidenciam um papel dominante e organizador na conduta das mulheres dentro do sistema familiar. Este resultado parece relacionar-se com parte dos que Souza (2000) obteve investigando aspectos da imagem corporal através da representação gráfica de pessoas, em sujeitos categorizados por naturalidade e sexo. Esta autora observou que as mulheres paraenses diferenciam-se positivamente dos demais sujeitos quanto a variáveis gráficas e formais relacionadas à catexe corporal. Na falta de elementos que explicasses os resultados, foi hipotetizado que esse traço seria evidenciado nos papéis desempenhados pelas mulheres paraenses nos grupos familiares a que pertencem pelo menos em gerações mais novas.
A partir do exposto, o presente estudo explora a representação da família efetuada por crianças paraenses, através de projeções no desenho da família.
Como extensão da pesquisa de Souza, que comparou o DFH de sujeitos categorizados por sexo e naturalidade, o propósito deste projeto é verificar diferenças qualitativas e quantitativas nas representações gráficas da família produzidas por crianças de ambos os sexos e diferentes condições sociais. O Desenho da Família foi o instrumento utilizado por Silveira, Falcke e Wagner (2000) para verificar o modo como crianças e adolescentes institucionalizados imaginavam um modelo de família e as particularidades das suas. Analisando os resultados, as autoras observaram que a família nuclear tradicional permanece como modelo, tende a ser pequena em sua composição e os sujeitos acrescentam o desenho de uma casa. Diferentemente deste tipo de representação da família, os sujeitos que nem sempre possuem lar, convivem com uma classe social que costuma produzir famílias que têm o maior número de filhos e nas quais predominam outros arranjos do grupo familiar, o que sugere a projeção das idealizações da família. Paralelamente, um dado de sua realidade concorda com o destaque dado á mãe na composição dessa estrutura pelos sujeitos, pois em seu contexto social a mulher tem presença ativa e protetora dentro da família.
Com objetivo geral semelhante ao da pesquisa mencionada, verificamos como as crianças belenenses imaginam um modelo de família. Foram feitas avaliações de aspectos gráficos gerais dos desenhos estudados por Kolck (1984), e da avaliação da família, tomando parte das dimensões de Ortega e Santos (1985) para análise de aspectos específicos de seu conteúdo e forma.
METODOLOGIA
a) Amostra:
252 estudantes de 7 a 10 anos colaboraram como sujeitos; destes foram avaliados 216 sujeitos, que representaram sua própria família, assim distribuídos:
b) Instrumentos:
– Teste do Desenho da Família.
– Entrevista para identificação do sujeito e de sua condição familiar e econômica.
c) Procedimento:
Foram visitados 57 estabelecimentos de ensino (Anexo 1) por 60 estudantes de Psicologia (Anexo 2) e aplicado o teste no local. A coordenadora do projeto efetuou todas as avaliações, que incidiram sobre:
– os desenhos; – o inquérito que fez parte do teste;
– a entrevista que se seguiu.
RESULTADOS
I. ANÁLISE DA REPRESENTAÇÃO GRÁFICA
1. MODELO DE FAMÍLIA
1.1 – Composição do grupo familiar
84,31% dos sujeitos, sem distinção de classe social ou sexo, representou a família nuclear, tradicionalmente constituída de pais e filhos.
1.2 – Composição do grupo familiar
80,39% preferiu representar sua própria família. Não se diferenciaram por sexo ou classe social.
1.3 – Inserção do sujeito no grupo familiar
92,68% dos sujeitos que representou sua própria família incluiu–se no desenho, sem variações por sexo e classe social.
2. CARACTERÍSTICAS GERAIS DO DESENHO DA PRÓPRIA FAMÍLIA
A variável classe social afetou a contextualização dos desenhos da família, porém somente no caso de sujeitos do sexo feminino. As meninas da classe média executaram mais desenhos com contexto com as da classe baixa.
2.2 – Localização do desenho na folha
A localização do desenho na folha foi afetada pela variável classe social, porém este resultado deve-se mais ao desempenho de sujeitos do sexo feminino. As meninas de classe de baixa renda realizaram mais desenhos no 3o quadrante, 4º quadrante e zona médio superior, enquanto as de classe média concentraram seu desempenho no 3º quadrante com maior freqüência de sujeitos. Os meninos também tenderam à diferenciação por classe social, porém no limite de significância estatística, para o nível de 0,005.
3. PERCEPÇÃO DA IMPORTÃNCIA E DO VÍNCULO COM OS PAIS PELOS SUJEITOS
Com relação à mãe, a maioria dos sujeitos representou-se mais freqüentemente ao seu lado do que intercalados por outro membro da família ou distanciados da mesma. No caso do pai, os sujeitos da classe média mantiveram o mesmo resultado da representação da mãe. Na classe de baixa renda, as meninas representaram-se menos freqüentemente ao seu lado e mais distantes do pai do que todos os outros sujeitos e os meninos executaram igual quantidade de desenhos em que estão ao seu lado e intercalados.
Desenhos da família com ausência do pai foram mais freqüentes que com ausência da mãe e esta diferença foi mais acentuada no caso das meninas da classe de baixa renda, seguidas de meninos da classe média e dos demais sujeitos, em ordem decrescente.
3.2 – Tamanho relativo dos membros
As meninas da classe de baixa renda tenderam a dar destaque à figura feminina com relação ao seu tamanho (mãe maior = 42,18%), mas, considerando-se todo o grupo, sua distribuição por esse desempenho não apresenta diferenças estatisticamente significantes. O mesmo ocorreu no caso do pai, embora as meninas da classe de baixa renda tendessem a representar o genitor com menor tamanho do que os outros sujeitos. As meninas da classe média, ao contrário, tenderam a representá-lo maior do que nos outros desenhos.
3.3 – Ordem de execução das figuras dos pais e do sujeito
As freqüências com que os sujeitos representaram o pai decresceram do 1º ao 5º lugar por ordem de execução do desenho da figura, com exceção dos sujeitos do sexo feminino da classe de baixa renda, que o representaram mais freqüentemente em segundo lugar, 1º lugar, 4º lugar, 3º lugar e 5º lugar.
No caso da mãe, as meninas a representaram em 1º lugar com maior freqüência, em especial as da classe de baixa renda. Os meninos tenderam a representá-la em 2º lugar mais freqüentemente, independente de classe social. Os sujeitos do sexo feminino diferenciaram-se estatisticamente por classe social nesse quesito, não tendo o mesmo ocorrido com os garotos.
Com relação à representação de si mesmo, esta ocorreu mais freqüentemente em 3o lugar na ordem de representação de cada membro do grupo familiar.
4. AFETIVIDADE
4.1 – Cores utilizadas nas figuras dos pais e do sujeito
No caso da figura do pai, os meninos utilizaram uma variedade de cores para colori-la. As meninas também utilizaram várias cores, mas, na parte inferior da figura utilizaram mais o lápis de cor azul do que outras cores isoladas.
Quanto à mãe, à exceção dos sujeitos masculinos da classe de baixa renda, os demais coloriram a sua figura mais freqüentemente com a cor vermelha. Os garotos da classe de baixa renda utilizaram mais os lápis de cor amarela para colori-la.
Ao representar sua própria imagem, a cor mais freqüentemente escolhida pelas meninas para colori-la foi o vermelho, em especial, as da classe média. Os garotos da classe de baixa renda pintaram-na mais de vermelho, seguido de verde, na parte inferinferior do corpo da figura. Os demais sujeitos coloriram com cores variadas suas figuras.
II – ANÁLISE DAS RESPOSTAS AO INQUÉRITO SOBRE O DESENHO DA PRÓPRIA FAMÍLIA
1. VALORIZAÇÃO DOS MEMBROS DA FAMÍLIA
A mãe foi apontada mais freqüentemente como o melhor membro da família por todos os sujeitos, em especial, pelas meninas da classe de baixa renda (55,22%), seguida do pai, de ambos os pais, de "ninguém" e de outros membros das famílias nuclear e ampliada, em ordem decrescente de freqüência. O grupo que mais declarou não haver membro especial foi o de meninos da classe de baixa renda (12,69%) e o que menos respondeu foi o de meninos da classe média (15,55%).
As razões da preferência por um dos pais ou por ambos apontam mais freqüentemente o relacionamento afetivo, em seguida, os ganhos materiais ou de dinheiro, a maternagem, a liberdade ou participação em atividades lúdicas, o pronto atendimento das vontades dos sujeitos e a cooperação nas atividades escolares ou admiração pela produção intelectual, em freqüência decrescente.
Predominou nas respostas dos sujeitos, à exceção das meninas da classe de baixa renda, a atitude de que ninguém seria considerado o pior membro da família, mas outros sujeitos desses grupos apontaram mais freqüentemente o irmão do mesmo sexo, seguido do pai, como o pior membro. As meninas da classe de baixa renda deram igual número de respostas "ninguém" e "meu irmão", e também "meu pai" com menor freqüência. Essa diferença foi estatisticamente insignificante, de modo que se considera que os sujeitos apontaram como pior o irmão ou irmã que é do seu próprio sexo, seguido (a) do pai, sem variação, em função da classe social.
As razões apresentadas para fazer a escolha do pior membro envolveram, principalmente, agressividade e hostilidade contra o sujeito e, menos freqüentemente, sentimento de abandono dos pais; comportamentos alheios socialmente inadequados ou incômodos para o sujeito, cerceamento de liberdade de escolhas ou controles sobre o sujeito, entre outras respostas que tendem a ser mais individuais.
2. EMOTIVIDADE/AFETIVIDADE DO SUJEITO COM RELAÇÃO AOS MEMBROS
2.1 Quem está triste nessa família?
Cerca da metade dos sujeitos (58,44%) declarou não perceber sentimentos de tristeza em membros da família. Os que deram resposta afirmativa apontaram a mãe, o pai, os irmãos e o próprio sujeito.
Sexo foi variável importante nas respostas dos sujeitos, sendo que mais meninos que meninas responderam que o pai é o membro da família que costuma ficar mais freqüentemente com raiva, em especial, os da classe de baixa renda. As meninas praticamente igualam os pais com relação a esta tendência, sem distinção de classe social.
A mãe foi apontada como o membro da família mais querido por metade dos sujeitos, em especial, pelas meninas da classe de baixa renda. Em segundo lugar, na preferência dos sujeitos de classe média, está o pai e em terceiro, os pais em conjunto. Os sujeitos da classe de baixa renda consideram ambos os pais em segundo lugar. Mas esta diferença não é estatisticamente significativa.
Cerca de 14% do grupo total não tem preferência.
3. OBJETO DE IDENTIFICAÇÃO
A variável sexo influenciou os resultados com alto grau de diferenciação estatística. Os sujeitos apontaram modelos identificatórios do seu próprio sexo, prioritariamente, um dos pais, mas também um dos irmãos ou um dos tios do seu próprio sexo. Este efeito da variável sexo foi mais acentuado nos sujeitos da classe de baixa renda.
13,34% dos sujeitos não fizeram opção por um modelo identificatório na família, declarando que gostariam de ser como eles mesmos. Neste caso, a influência da classe social ocorreu apenas para as meninas, com freqüência maior destas respostas na classe média e menor que no caso de todos os sujeitos na classe de baixa renda.
III – ANÁLISE DAS RESPOSTAS À ENTREVISTA
1. Com quem residem
Segundo depoimento dos sujeitos, cerca de metade deles reside com a família nuclear e a grande maioria dos sujeitos (94%) mora com pelo menos um dos genitores e mais alguém que pode ser um ou mais membros da família nuclear ou da família ampliada.
2. Quem paga as contas
Conforme informação prestada pelos sujeitos, estes responderam mais freqüentemente que a administração da renda familiar cabe a ambos os pais, separadamente ou em conjunto, e, secundariamente, à avó. Quando apontados separadamente, há uma certa tendência, não significativa, de que o referido genitor seja do mesmo sexo do sujeito. O avô e a tia também foram apontados por sujeitos da classe de baixa renda, com pouca freqüência.
3. Quem manda mais em casa
Os sujeitos responderam mais freqüentemente que cabe às mulheres do lar, especialmente à mãe, a administração deste. Em segundo lugar, por ordem de freqüência, ao pai, e em terceiro aos pais em conjunto. A outra mulher que divide o encargo com a mãe é a avó, com exceção das meninas de classe média, que atribuem esta responsabilidade prioritariamente à mãe.
DISCUSSÃO E CONCLUSÃO
A estrutura familiar percebida pelas crianças é predominantemente a convencional, chamada família nuclear, que se compõem de pais e filhos, o que concorda com a experiência de metade dos sujeitos.
Na maioria dos casos, as crianças representaram sua própria família, o que significa que comunicam aspectos de sua realidade mais do que a idealização infantil. Curiosamente, apenas as meninas da classe média contextualizaram em nível estatisticamente significativo suas representações da família. Os demais sujeitos tenderam a manter uma percepção focal desse objeto, que talvez tenha a ver com a importância que lhe é atribuída. Considerando ainda que os sujeitos da classe de baixa renda desenharam mais no 3º e 4º quadrantes e na zona médio superior, hipotetiza-se que os valores atribuídos à família são mais internalizados que no caso dos demais sujeitos, estes estabelecendo mais ligação com sua realidade atual.
Parte da versão consciente que os sujeitos apresentaram da divisão social de trabalho no grupo familiar diz respeito à administração da renda e à liderança do grupo. A primeira é apenas executiva, pois não foi perguntado quem seria o principal provedor da renda, embora algumas crianças tenham adiantado que o pai dá o dinheiro e a mãe paga as contas. Pelos dados obtidos, parece haver uma divisão da tarefa de administrar a renda, prioritariamente atribuída a um dos pais e, em menor grau, a outros membros, já que uma parte dos sujeitos não reside com a família nuclear completa. Um resultado curioso é que a escolha dos pais concorda com o sexo dos sujeitos, o que dá às respostas uma idéia de julgamento, mais do que de informação de fatos, isto é, pode estar associada à identificação.
Quanto à autoridade no lar, na classe de baixa renda, a mãe divide mais freqüentemente com a avó a função de administrá-lo, que o pai também exerce. Na classe média, a mãe assume mais isoladamente os encargos do lar. Isto não significa por si só que se trata de liderança, primeiro porque este tem sido o reduto das mulheres que são socialmente inexpressivas fora de casa e, segundo, porque, em outra resposta, os sujeitos do sexo masculino comunicam a percepção de que o pai pode ser severo ou exigente. Talvez os dados projetivos possam esclarecer um pouco mais a natureza dessas percepções.
No que concerne à importância social, as projeções indicam que os sujeitos equiparam os pais, com exceção das que foram produzidas por meninas da classe de baixa renda, que tendem a dar destaque social à mãe, embora essa atitude não tenha sido estatisticamente diferenciadora deste grupo.
Uma outra perspectiva de análise é a relação afetiva dos sujeitos com seu grupo familiar. Neste caso há várias evidências, tanto provenientes de declarações verbais quanto de projeções gráficas, da superioridade da mãe sobre os outros membros adultos da família, inclusive com concordância entre os grupos. É a mãe que agrega mais os sujeitos em torno de si, que é mais investida de afeto e que é percebida como a melhor, embora o pai tenha também sua cota de preferência. Novamente neste caso, as meninas da classe de baixa renda tendem a acentuar a importância da genitora. As principais justificativas são a provisão de alimentos, cuidados, carinho e companhia.
Quanto às reprovações feitas pelos sujeitos, estes tendem a negar que possam ter esta atitude, mas quando declaram quem é o pior membro da família, surge a rivalidade fraterna, manifestada, preferencialmente, para o irmão ou irmã do sexo oposto ao do sujeito. Em segundo lugar, por ordem de freqüência, está o pai e, a seguir, os próprios sujeitos. As razões são, principalmente, agressividade física ou verbal e sentimentos de abandono, entre outras menos freqüentes. Porém, em outra resposta, os sujeitos reiteram que está tudo bem na família, que ninguém está triste.
No campo da afetividade valoriza-se traços tipicamente femininos e rejeita-se ações que fazem parte do estereótipo de gênero masculino, porém negativos.
Finalmente, em resposta a uma pergunta que alude diretamente à identificação sexual, os sujeitos, decidida e diferencialmente, apontam membros da família do seu mesmo sexo, em especial, um dos pais, como modelo. Essa concordância de sexos foi mais acentuada na classe de baixa renda. Quanto à ausência de escolha de modelo, isto ocorreu mais freqüentemente na classe média, em especial, nos sujeitos do sexo feminino. Ao contrário, o grupo que mais escolheu modelos identificatórios foi o de meninas da classe de baixa renda. Do mesmo modo, a ausência de respostas foi mais freqüente na classe média, neste caso, por parte dos meninos. É conveniente lembrar que crianças da classe média contextualizaram mais a família, o que pode incentivar as identificações secundárias.
É importante lembrar que em alguns casos os papéis sociais foram vinculados a membros adultos da família que são do mesmo sexo dos sujeitos. É o aprendizado das diferenciações de gênero.
Estes resultados parecem concordar com a posição de Lewis (1999) de que os agentes de socialização são mais complexamente determinados, estando entre eles, mas não exclusivamente, os pais. Estes, porém, influenciam a identificação sexual.
Psicólogos que praticam a hermenêutica convencional poderiam ver na imagem raivosa que os garotos têm do pai e na definitiva tendência para identificar-se os sujeitos com adultos do seu próprio sexo, uma ilustração do drama edípico. Por outro lado, as diferenças de classe sócio-econômica não concordam com o conceito universal de cultura, como é o caso da atitude dos sujeitos do sexo feminino da classe de baixa renda, que parecem tomar mais e enfaticamente o partido da mãe, valorizando a atuação desta. É provável que, justamente por identificar-se com esta, as meninas desse grupo estejam aptas a perceber que, na situação em que vivem, a maternagem exige resistência e firmeza, razão da admiração. Aqui, portanto, identificação é também vinculada ao desempenho social e administrativo da mãe.
Em resumo, do ponto de vista estrutural, o estereótipo da família nuclear se mantém, a julgar pelas representações infantis da família. A novidade é o valor relativo dos seus membros e o funcionamento do grupo, como, por exemplo, a divisão de funções. Nota-se que as mães são percebidas com responsabilidade semelhantes às do genitor, sendo que as meninas da classe de baixa renda atribuem-lhe maior destaque que ao pai. O mesmo acontece, agora no caso de todos os sujeitos, no campo afetivo, em que a mãe é reconhecida como membro em quem os filhos tendem a investir mais afeto, em especial, no caso da classe de baixa renda. Mas esta dinâmica não afeta a escolha de modelos identificatórios, sendo que as identificações se processam como esperado, isto é, os sujeitos identificam-se com pessoas adultas do seu próprio sexo. A não-identificação de um modelo identificatório na família ocorre mais no grupo de classe média, talvez porque estes sujeitos tenham mais chances de efetuar outras identificações concorrentes.
REFERÊNCIAS
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Artigo recebido em 23 de outubro de 2008
Aceito para publicação em 12 de janeiro de 2009
1 Dra em Psicologia clínica. Docente da faculdade de Psicologia da Universidade Federal do Pará (UFPA). e-mail: anadigna@ufpa.br