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Revista do NUFEN
versão On-line ISSN 2175-2591
Rev. NUFEN vol.9 no.3 Belém 2017
https://doi.org/10.26823/RevistadoNUFEN.vol09.n03artigo12
Artigo
DOI: 10.26823/RevistadoNUFEN.vol09.n03artigo12
Uma leitura da noção de "agressão" nas obras de Fritz Perls
A reading of the aggression in the works of Fritz Perls
Una lectura de la agresión en las obras de Fritz Perls
Thauana Santos de Araújo; Adriano Furtado Holanda
Universidade Federal do Paraná
RESUMO
Este artigo se propõe a analisar o significado da noção de "agressão" para Fritz Perls, a partir de suas obras, apresentando sua teoria com base nessas produções e discutindo a conexão dos dois modos de agressão – dental e hostil. Foi feita uma leitura da teoria da agressão com vistas a apresentá-la e a debater as ambiguidades do conceito. As fontes primárias são quatro das cinco produções de Perls que abarcam a referida teoria, e um capítulo sobre agressão encontrado na obra de John Stevens (1975/1977). Evidenciou-se que o tema da agressão vai perdendo força ao longo das obras de Fritz e que sua exposição é confusa, bem como também é imprecisa e pouco clara a relação que faz entre agressão dental e hostil e a natureza biológica de ambas, especialmente da agressão hostil. Porém, concluiu-se também que agressão, para Fritz Perls, é uma função biológica e um instrumento que possibilita a própria preservação da vida em sentido biológico e existencial, e que regula o contato com o meio.
Palavras-chave: Gestalt-Terapia; Agressão dental; Agressão hostil; Função biológica; Contato.
ABSTRACT
This article aimed to analyze the meaning of the notion of "aggression" in Perls' understanding based on his works, presenting his theory based on these productions and discussing the connection between the two modes of aggression - dental and hostile - debated by Perls. A reading of the theory of aggression was made to presenting it and discussing the ambiguities of the concept. The primary sources were four of the five Perls’ productions that encompassed the said theory, and a chapter on aggression found in the work of John Stevens (1975/1977). It has been pointed out that the theme of aggression was losing its force throughout Fritz's works and that his exposition is confusing, as well as the imprecise and unclear relationship between dental and hostile aggression and the biological nature of both, specially of hostile aggression. However, it was also concluded that Fritz Perls' aggression is a biological function and an instrument that enables the very preservation of life in a biological and existential sense, and which regulates contact with the environment.
Keywords: Gestalt-Therapy; Dental aggression; Hostile aggression; Biological function; Contact.
RESUMEN
Este artículo intentó analizar el significado del término "agresión" en la comprensión de Perls a partir de sus obras, presentando su teoría sobre la base de estas producciones y una discusión de la conexión de los dos modos de agresión - dentales y hostiles - debatidos por Perls. Se realizó una lectura de la teoria de la agresión con el fin de presentar y discutir la ambigüedad del concepto. Las fuentes primarias son cuatro de las cinco producciones de Perls que adoptan esta teoría, y un capítulo sobre la agresión que se encuentra en la obra de John Stevens (1975/1977). Se observó que el tema de la agresión pierde fuerza en los libros de Fritz y su presentación es confuso y también es imprecisa y poco clara la relación entre la agresión dental y hostil y la naturaleza biológica de ambas, especialmente de la agresión hostil. Pero también hay la conclusión de que agresión, para Fritz Perls, es una función biológica y un instrumento que permite la conservación de la vida en sentido biológico y existencial, y que ella regula el contacto con el medio ambiente.
Palabras-clave: Gestalt-Terapía; Agresión dental; Agresión hostil; Función biológica; Contacto.
INTRODUÇÃO
O tema da agressão, trabalhado por Perls em suas obras, tem sido esquecido ou negligenciado, mesmo pouco trabalhado pela comunidade gestáltica desde sua formulação (Holanda, 2005; Staemmler, 2009). A Gestalt-terapia (GT), desde seu surgimento, encontrou dificuldades para se inserir na academia devido, dentre outras coisas, à demasiada ênfase que conferia às vivências e também em virtude da propagação de um discurso antiintelectualista, que resultou no enfraquecimento da abordagem, particularmente no contexto acadêmico (Perls, 1992/1994). É no rastro desses acontecimentos que a presente pesquisa se justifica. A teoria da agressão envolve conceitos que fundamentaram a primeira obra de Perls (1942/2002), que ainda trabalhava com a psicanálise na época. A teoria é, portanto, anterior à própria GT, sendo o objetivo da presente pesquisa apresentar e realizar uma leitura dessa teoria, a partir das obras de Fritz Perls, lembrando que Laura Perls também colaborou com sua elaboração e desenvolvimento. Com relação àqueles conceitos, considerados fundamentais para a GT – como contato, ajustamento criativo, figura/fundo, conflito, vazio-fértil e self –, muitos são melhor desenvolvidos nos livros subsequentes, mas a teoria da agressão segue marginalizada. Além disso, há escassez de pesquisas sobre o tema no Brasil (Holanda, 2005, 2009), o que foi confirmado por levantamentos feitos em bases de dados abertas como Scielo, PePSIC e BVS, com as palavras-chave "agressão e Gestalt", "agressão e Gestalt-terapia" e "agressão e Perls".
Dessa forma, o conceito precisa ser melhor deslindado, ou seja, é necessária uma discussão detalhada sobre o assunto considerando-se os postulados de Perls, com vistas a apresentar o conceito e debater suas ambiguidades, observadas pela leitura de suas obras. Tal discussão pauta-se tanto na exposição confusa desse tema que é basilar em Perls e, portanto, na GT, quanto em uma questão epistemológica. Em todas as obras, Perls faz uma miscelânea de teorias. Assim, a relevância deste estudo repousa no fato de que a pesquisa teórica favorece a reconstrução de teorias, revisões conceituais e, ainda, pode facilitar intervenções na realidade (Demo, 2000). Em outras palavras, pode ampliar os horizontes tanto para o campo da prática quanto para o campo teórico e epistemológico.
Em Ego, Fome e Agressão: uma revisão da teoria e do método de Freud, Perls (1942/2002) trabalhou a questão das "resistências orais", núcleo desta obra, e o berço do conceito da agressão. Fritz, fiel à sua visão holística, que considera o organismo um todo indivisível, equipara o processo biológico da fome e da alimentação aos processos mentais, ao que denomina de "metabolismo mental". Nesse livro, o referido autor avalia a ingestão de alimentos desde a alimentação do embrião até a mastigação completa, delineando estágios do desenvolvimento do instinto de fome e seus correspondentes psicológicos, categorizando-os como: pré-natal (antes do nascimento), pré-dental (aleitamento), incisivo (mordedura) e molar (mordedura e mastigação). Com base nesses estágios é que vai apresentar as resistências orais que irão fundamentar a concepção de processos mentais não sadios, como introjeção, narcisismo e retroflexão.
O ponto de maior confusão teórica que será enfocado aqui é o fato de Perls apontar dois significados diferentes para o mesmo termo "agressão", que ora aparece vinculado à agressão dental, ora à agressão no sentido popular do termo, ou seja, com a conotação de hostilidade (agressividade). Ambos os significados serão definidos ulteriormente. Portanto, este trabalho aponta como problema de pesquisa: o que significa a agressão para Fritz Perls?
Em suma, o objetivo deste trabalho é analisar o significado da noção de " agressão" no pensamento de Perls a partir de suas obras, apresentando sua teoria a partir dessas produções, e discutir a articulação dos dois modos descritos de agressão – dental e hostil – entre si.
MÉTODO
As obras em análise aqui são quatro das cinco produções de Perls que foram traduzidas para o português, as quais abordam o tema da agressão, e um capítulo sobre agressão encontrado na obra de Stevens (1975/1977). Não consta a obra Gestalt-terapia explicada (Perls, 1969/1976) por esta não contemplar, pelo menos não diretamente, o tema da agressão. Além disso, essas produções, que vão de sua primeira obra (Perls, 1942/2002) até sua obra póstuma (Perls, 1973/2011), marcam sua trajetória da psicanálise até suas últimas ideias em GT (Helou, 2013, 2015), bem como apresentam o curso do conceito de agressão, que vai aparecendo cada vez menos nesses escritos. Os escritos em exame são os livros: Ego, Fome e Agressão: uma revisão da teoria e do método de Freud (Perls, 1942/2002); Gestalt-terapia (Perls, 1951/1997); Escarafunchando Fritz: dentro e fora da lata de lixo (Perls, 1969/1979); A abordagem gestáltica e testemunha ocular da terapia (Perls, 1973/2011); e o capítulo intitulado Moral, Fronteira do Ego e Agressão (Perls, 1975/1977).
Foram poucas as referências encontradas que tocam o tema da agressão, como em Fittipaldi (2007) e Helou (2013), encontradas em uma busca feita em bases de dados abertas – no referido caso, foram Scielo, PePSIC e BVS-Psi –, utilizando-se as palavraschave " agressão + Gestalt", "agressão + Gestalt-terapia" e "agressão + Perls". Com relação à s origens do conceito, apenas um artigo foi encontrado nas mesmas bases de dados utilizando-se as palavras-chave "agressão + Gestalt + origem" e "Perls + Freud" (Müller- Granzotto & Müller-Granzotto, 2007). Contudo, para o propósito deste artigo, apenas as obras mencionadas foram consideradas para a leitura da noção de "agressão" em Fritz.
O TEMA "AGRESSÃO" NAS OBRAS DE FRITZ PERLS
" Agressão" com função de interação entre organismo e meio
No livro Ego, Fome e Agressão: uma revisão da teoria e do método de Freud, Perls (1942/2002), partindo das formulações de Freud sobre a fase oral – o que não está explícito na obra –, disserta sobre as "resistências orais", ponto central da obra, e de onde nasce o conceito da "agressão". Fritz considera que a alimentação biológica e o processamento mental se dão da mesma forma: o ser humano morde, mastiga e incorpora o alimento físico e o "mental", assimilando o que lhe é nutritivo, ao que chama de " metabolismo mental".
Nesta obra, nascida antes mesmo da criação da própria GT enquanto abordagem independente, Fritz, que na época ainda era psicanalista, pretendia realizar uma revisão da teoria e do método de Freud, como consta no subtítulo do livro. Boris (2002), ao escrever sobre Perls e Ego, Fome e Agressão, assevera que Fritz desenha uma teoria da personalidade a partir da psicanálise, da psicologia da Gestalt, da teoria organísmica de Kurt Goldstein, da perspectiva holística de Smuts e de outras influências e sugere que o instinto de fome é mais básico do que o sexual, investindo no desenvolvimento alimentar e dental como correspondente do desenvolvimento mental, procurando substituir um conceito psicológico por um conceito organísmico. Tal interpretação é perfeitamente viável, pois, ao longo da obra, Perls (1942/2002) menciona e associa essas teorias ao desenvolvimento organísmico e mental – ou seja, total – do ser humano.
Para Perls (1942/2002), "(...) a tendência destrutiva, que deveria ter sua saída biológica natural na utilização dos dentes, (...)" (p. 169), representa uma função, e não um instinto em si mesma. Configura-se em um instrumento poderoso do instinto de fome. A fome de alimento mental e emocional comporta-se como a fome física, de modo que o neurótico está constantemente em busca de afeto, embora essa busca nunca seja saciada. Assim, aquele que não utiliza seus dentes prejudicará suas habilidades de usar suas funções destrutivas em seu benefício, de forma que, ao não preparar o alimento físico adequadamente para assimilação, haverá consequências na estrutura caracterológica e nas atividades mentais. Com isso, segundo Perls, se uma pessoa suprime a agressão, precisará encontrar uma saída (uma oportunidade de descarregar sua energia: esmurrar uma bola, cortar madeira, esportes agressivos, esfregar o assoalho), pois a agressão, como a maioria das emoções (nessa ocasião ele se refere à agressão como uma emoção), tem como meta não a descarga sem sentido, mas sim sua aplicação.
Sobre a resistência dental, o uso dos dentes é a principal representação biológica de agressão. "A projeção, mas também a repressão de (ou a resistência a) suas funções agressivas, é amplamente responsável pelo estado deplorável de nossa civilização" (Perls, 1942/2002, p. 174). Após estatuir isso, Perls reitera que é difícil para a maioria das pessoas aceitarem a similaridade estrutural dos processos mentais e físicos.
Já no início do livro, Perls (1942/2002) faz uma crítica aos tratamentos prescritos para a cura da agressão, dizendo que "são sempre os mesmos velhos e ineficazes agentes repressivos: idealismo e religião" (p. 40). E acrescenta: "quando decidi examinar a natureza da agressão, me convenci cada vez mais de que não havia nenhuma energia chamada agressão, que agressão era uma função biológica que em nossa época tornou-se um instrumento de insanidade coletiva" (p. 40). Simultaneamente, outro erro é cometido, afirma ele: "o equivalente emocional da agressão é o ódio" (p. 182). Segundo Fritz, ao invés de se permitir escapes para a agressão, um sentido, introduz-se o dogma de que o ódio deve ser compensado ou ser transformado em amor. Entretanto, conclui Perls, em que pese o treino pujante da caridade ou mesmo em virtude dele, cresceram a intolerância e a agressão. Não sendo paralisadas pelo amor, essas consequências passam a ser direcionadas contra o " corpo" (destaque dele) e contra quem não acredita em uma determinada concepção religiosa.
Para ele, o ciclo de perturbação interna não é diferente do de perturbação externa. Desse modo, uma mosca (elemento externo) é tão perturbadora quanto a fome, ou, como afirma em sua autobiografia, conflitos internos têm o mesmo teor que conflitos entre pais e filhos, marido e esposa, terapeuta e paciente, isto é, são tentativas – na maioria das vezes bem-sucedidas – de não mudar o status quo: "matar o futuro, evitar o impasse existencial e a sua pseudo-agonia" (Perls, 1969/1979, p. 217). Adentrando nesta seara, Perls (1942/2002) começa a desenvolver sua teoria do metabolismo mental. Inicia explicando que o recém-nascido ainda não precisa destruir estruturas sólidas, porém, as moléculas de proteína do leite terão que ser quimicamente reduzidas e divididas em substâncias mais simples. Já existe, todavia, um papel ativo que o neném tem que efetuar: o morder dependente.
A fase posterior é a do surgimento dos dentes incisivos, junto com eles os primeiros meios para se atacar o alimento sólido. Esses dentes se comportam como uma tesoura, agindo em conjunto com os músculos do maxilar. Logo em seguida, o mamilo da mãe também será algo para ser mordido, o que pode ser doloroso. Se a mãe não compreender a natureza biológica desse impulso de morder, pode repreender a criança de forma excessiva. Palmadas repetidas provocarão uma inibição do morder. O morder significa machucar e ser machucado nesse contexto, mas o trauma do castigo não é tão encontrado quanto à frustração traumática da retirada do seio abrupta ou prematuramente. E quanto mais o morder é inibido, menos a habilidade para enfrentar um objeto será desenvolvida. A criança acreditará que seu equilíbrio não será mais restituído pelas tentativas de morder, ao contrário, que ficará ainda mais afetado e concluirá, então, que a fonte do leite não deve ser abordada de nenhum modo diverso do anterior. "A diferenciação entre o seio, que deve ser deixado intacto, e o alimento, que deve ser mordido, mastigado e destruído, não ocorre" (grifos do autor, Perls, 1942/2002, p. 201). A agressão frustrada projetada no mundo faz com que o mordedor ativo passe a ter medo de ser mordido, isto é, que quem não morde tem medo de ser mordido.
Com a continuação da evolução dentária, acrescenta Fritz, vêm os dentes molares, que são responsáveis por destruir os pedaços de alimento. Pessoas que engolem seu alimento sem a adequada mastigação se movem pela impaciência. Querem satisfação imediata de sua fome, combinando sua impaciência com gula e com uma incapacidade para obter satisfação. Perls (1942/2002) vai dizer que adultos muito sedentos se comportam igual a bebês impacientes e gulosos quando estes estão bebendo. Pessoas que engolem o alimento sólido como se fosse fluido, não desenvolvem capacidade para mastigar, para levar qualquer trabalho até o fim, nem capacidade de suportar expectativa. O ato de encher a boca não recua para o fundo, como era esperado, e o prazer de saborear e destruir o alimento não se torna o núcleo do interesse, ou seja, a figura (destaque dele). Aqui, encontra-se as mesmas funções mais e menos das evitações. "A função destrutiva é ‘ sublimada’ – afastada do objeto ‘alimento sólido’" (p. 169). Então, ela se expressará em formas danosas, como matar, fazer guerras, crueldade, ou como autotortura e autodestruição, no caso da retroflexão. Infere-se desse trecho que Perls acredita que a não expressão da função destrutiva no comer provoca sua expressão em hostilidades.
Assim, para Perls, conforme alega na obra de 1942, não há dúvidas de que a humanidade sofre de agressão individual reprimida, se tornando a autora e a vítima de agressão coletiva liberada. Para ele, somente aprendendo a utilizar as ferramentas de morder (os dentes), a agressão seria colocada em seu local biológico adequado, não sendo nem sublimada, nem exacerbada, nem suprimida, se harmonizando assim com a personalidade. Portanto, agressão hostil para Perls é aquela que se manifesta em formas danosas como no ato de matar, nas guerras, na crueldade, na autotortura, na autodestruição e na agressão paranoica. A autodestruição pode acontecer pela fixação das funções de aniquilação, destruição, iniciativa e raiva, as quais são necessárias à manutenção organísmica. A fixação dessas funções gera ódio, vingança e homicídio calculado, ambição e a caça obstinada ao amor, e competição habitual. Sacrificam outras funções do self, são autodestrutivas.
Como está se tratando aqui de dois conceitos diferentes de agressão em Perls, e como este termo tem significado próprio no contexto da linguagem coloquial e científica, faz-se oportuna e indispensável uma apresentação desse significado. Para tanto, numa tentativa de definir o termo agressão relativo à hostilidade, dois dicionários de relevo foram selecionados: Houaiss e Villar (2009) e a Enciclopédia Britânica (Huntingford, 2016). Houaiss e Villar (2009) definem agressão como ato ou efeito de agredir; ataque à integridade física ou moral de outrem; ato de hostilidade, provocação; (ETO) intimidação de um animal pelo outro, não relacionada à predação; (PSIC) predisposição destrutiva em relação a si mesmo ou a outros. A etimologia aponta para o latim aggressio, onis ‘agressão, acometimento, ataque’. Já "agressividade", além de aparecer como qualidade, caráter ou condição de agressivo e como disposição para agredir e/ou provocar, também designa espírito empreendedor, energia, atividade e combatividade. O dicionário ainda cita Freud e que, segundo este, agressividade é o conjunto de tendências presente em todos os seres humanos, manifesta em comportamentos reais ou em fantasias que visam prejudicar, destruir ou humilhar o outro. Note-se que "destruir", em ambos os verbetes, aparece com conotação de prejuízo a si (no primeiro verbete) ou a outrem (em ambos). Ainda, os verbetes, ousaria dizer, parecem sugerir, implicitamente, que há intenção no ato.
Huntingford (2016) define o comportamento agressivo da seguinte maneira:
Comportamento animal que envolve prejuízo real ou potencial a outro animal. Biólogos comumente distinguem entre dois tipos de comportamento agressivo: agressão predatória e anti-predatória, nas quais os animais prendem ou se defendem de animais de diferentes espécies, e a agressão intra-específica, em que animais atacam membros de sua própria espécie. A agressão intraespecífica é muito difundida em todo reino animal, (...). Dado que tantos diferentes tipos de animais brigam, agressão toma uma variedade de formas (p. 01).
Huntingford (2016) complementa que seu artigo segue a tradição dos biólogos de considerar somente os ataques intra-específicos como comportamento agressivo. A ê nfase é no contexto biológico – isto é, a raiz da agressão em competição por comida e parceiro; as influências do sistema nervoso, hormônios, genética e ambiente; e modelos científicos para analisar o resultado provável de interações agressivas. Essas duas definições, assim sendo, correspondem ao uso corrente do termo "agressão", que no presente estudo será referido como agressão hostil.
Voltando a Perls (1942/2002), ele afirma que "o restabelecimento das funções biológicas da agressão é, e permanece, a solução do problema da agressão" (grifos do autor, p. 176). "Quanto mais nos permitimos utilizar a crueldade e o desejo de destruição no lugar biologicamente correto – isto é, os dentes –, menos perigo haverá de a agressão encontrar sua saída como um traço de caráter" (p. 277). Acrescenta que quanto mais se investe agressão em morder e mastigar, menos agressão sobrará para projeção. Perls faz uma relação direta entre a agressão dental e a agressão hostil. A questão que ecoa dessa associação é se há agressão hostil em si, isto é, que não decorra diretamente de um bloqueio da agressão dental, ou se aquela sempre é resultante de uma má aplicação desta. Ainda, fica a dúvida sobre se Perls considera ambas as agressões como biológicas, ou somente a dental. From e Miller (1997) colocam que Perls apresentou, nessa primeira obra, sua contribuição mais relevante, talvez, para uma "(...) visão alternativa do desenvolvimento humano: empregou o surgimento dos dentes num bebê de oito ou nove meses como uma metáfora abrangente para a complexidade e refinamento em crescimento constante das capacidades motoras, dos sentidos e do equipamento mental em geral" (p. 22).
Do individual ao coletivo: "agressão" também com função social
O livro Gestalt-terapia (Perls, Hefferline & Goodman, 1951/1997) apresenta conceitos muito semelhantes ao livro anterior sobre a agressão, com um pouco mais de detalhamento, especialmente sobre a assimilação, postulando que a criança munida de dentes pode mastigar sua própria comida ao invés de simplesmente engoli-la inteira, o que dá início ao desenvolvimento de seu sentido de paladar com relação ao que gosta e ao que não gosta, lhe permitindo começar a filtrar o que engole e o que não engolirá psicologicamente do ambiente. Dessa maneira, o infante passa a abordar de modo crítico suas experiências. Quando falam em interação organismo/ambiente, sustentam que, ao teorizarem sobre impulsos e instintos, estão sempre se referindo a esta interação, e não a um animal isolado. Mais adiante no livro, colocam o "destruir" como parte da formação figura/fundo. Essas colocações dos autores apontam para uma orientação mais social e coletiva, e não individualista, da teoria da agressão, diferentemente da obra anterior.
A agressão na GT adquiriu, então, contornos muito distintos do que se considera agressão na linguagem coloquial. Perls, Hefferline e Goodman (1951/1997) frisaram seu papel na preservação de um sentido de si mesmo, e para o contato com o meio. A agressão nos permite arriscar ter um impacto no mundo, e a sermos criativos e produtivos. Nesse sentido, referem que o processo de ajustamento criativo a novos conteúdos e situações, por exemplo, sempre comporta uma fase de agressão e destruição, pois é dessa forma, alterando o velho e o dessemelhante, que este torna-se semelhante (pela assimilação). Assim que uma nova configuração toma lugar, antigos hábitos e o estado anterior são destruídos em prol do novo contato. A destruição do velho pode ser assustadora, contudo, a nova configuração traz consigo uma segurança dessa nova forma que passa a existir experimentalmente. A energia flui para a nova figura. Prosseguindo nessa linha de pensamento, ainda apontam para a importância de permitir ao paciente exercer sua raiva, teimosia e agressão no setting terapêutico, podendo ser espontâneo. Todavia, se o cliente resolver externar suas agressões em situações da vida real e receber em troca uma reação normal, entenderá o que está fazendo, recordará quem são seus verdadeiros inimigos, caminhando rumo à integração. Por isso, pede-se que o paciente se concentre na forma como ele censura, como ele se retrai, com quais músculos, imagens, e assim por diante. Não se solicita que ele deixe de censurar. Com isso, um elo é delineado para que ele comece a perceber-se reprimindo ativamente, ao que ele poderá começar a relaxar a repressão.
Nisso acompanha Staemmler (2009), ao asseverar que uma contra-resposta não agressiva em uma situação de vida real leva a pessoa a se aperceber de si mesma, cessando de imediato o comportamento agressivo. Mas ao contrário de Staemmler, Perls, Hefferline e Goodman (1951/1997) apoiam a expressão da agressividade do cliente no consultório, afirmando ainda que o reconhecimento da forma como nos censuramos e nos retraímos pode advir de tal expressão.
Refletindo sobre a agressão e o antissocial, Perls, Hefferline e Goodman (1951/1997) enfatizam que os fatores sociais são essenciais na formação da personalidade, mas que, da mesma forma que há atitudes antissociais, há costumes e instituições que são antipessoais (destaque deles). Assinalam que não tem sentido falar-se em instintos antissociais, contrários à natureza social do organismo, posto que tratar-se-ia de uma contradição. No entanto, "existem dificuldades de desenvolvimento pessoal, de crescimento, de realização da totalidade de nossa natureza" (p. 141). Ainda, argumentam que a sociedade de pessoas é, em alto grau, um artefato, tal qual as personalidades verbais. Inventar artefatos institucionais, promover mudanças sociais possivelmente "faz parte da natureza social conservativa subjacente, reprimida em qualquer sociedade que escolhamos levar em consideração. Nesse sentido, um comportamento pessoal é significativamente ‘ anti-social’ se tender a destruir algo dos costumes" (p. 142), instituições ou personalidades vigorantes à época.
Dentro desse prisma, colocam que um impulso que vagamente era sentido como diabólico ou homicida, no fim das contas, se configurava em nada além do que um desejo de evitar ou rejeitar algo. Ocorre que foi a própria repressão que converteu a ideia em uma ameaça constante; a repressão é uma agressão ao self e essa agressão foi conferida ao instinto. Mesmo Freud, em 1895, descobrira que não era a masturbação que causava neurastenia, e sim a masturbação culpada. E desde que falou dos conteúdos do id (destaque deles) pela primeira vez, esses se tornaram menos diabólicos, e mais tratáveis. Contudo, advertem que os teóricos se excederam na tentativa de demonstrar que os instintos são bons e sociais (destaques deles). Não é que agora certos comportamentos são aceitáveis por serem vistos como bons, e sim que serão considerados bons por serem agora " uma parte aceita da imagem da humanidade", ou, que: "O homem não se esforça para ser bom, mas é humano esforçar-se para conseguir o que é bom" (Perls, Hefferline & Goodman, 1951/1997, p. 143).
Ainda dentro do contexto do antissocial, declaram os autores que as atitudes passionais mais proeminentes de sua época são a violência e a submissão, pois coabitam ao mesmo tempo guerras e uma paz pública, e a supressão de revoltas pessoais. Tudo isso com a perda neurótica do contato e a hostilidade sendo dirigida ao self – sintomas somáticos de raiva contida (úlceras, dentes estragados, e outros). Segundo Perls, Hefferline e Goodman (1951/1997), no momento histórico em que Freud vivia e onde ele vivia, esse clima passional parece ter sido mais caracterizado pela privação e pelo ressentimento tanto em relação ao prazer quanto em relação ao alimento. Para os autores, num grau mais raso, a neurose está ligada com o isolamento e com a inferioridade, que em geral são mais percebidos, sendo assim menos graves. Os costumes, desse modo, caminham em direção a uma sociabilidade. Mas há, adjacentes, o ódio e o ódio por si mesmo inibidos, a raiva cotidiana. A neurose mais aprofundada é uma agressão retrofletida e projetada.
" O agrupamento de impulsos e perversões que são denominados agressivos – aniquilar, destruir, matar, combatividade, iniciativa, caça, sadomasoquismo, conquista e dominação – são agora considerados o que é anti-social por excelência" (Perls, Hefferline & Goodman, 1951/1997, p. 147-148). Assim é que, para esses autores, a prova de que a análise e liberação de agressões promoverão um passo a mais no avanço da sociedade rumo a "normas mais felizes" (p. 148) é justamente a rejeição social imediata e absoluta de diversas agressões. Nesse cenário, Perls, Hefferline e Goodman (1951/1997) procuram mostrar que a aniquilação, a destruição, a iniciativa e a raiva são fundamentais para o crescimento no campo organismo/meio. Se forem reduzidas, implicam em perdas na personalidade, principalmente autoconfiança, sentimento e a criatividade. Já o sadomasoquismo, a conquista e dominação, e o suicídio foram interpretados pelos autores como derivados neuróticos.
Aniquilar significa converter em nada, recusar o objeto e abolir sua existência. A gestalt "fecha" sem esse objeto. Destruir (desestruturar) é desmembrar um todo em partes, para assimilá-los como partes em um novo todo. Precipuamente, a aniquilação se configurava numa resposta defensiva à dor, à invasão do corpo ou ao perigo. Na evitação e na fuga, o animal deixa o campo doloroso; ao matar, retira friamente (destaque deles) o objeto afrontoso do campo. Em nível comportamental, isso ocorre com o cerrar firme da boca e o desvio da cabeça, e ao esmagar e chutar. A frieza na resposta se justifica por não haver nenhum apetite envolvido; a ameaça é externa. Ainda que a existência do objeto seja dolorosa, o animal não se alegra com sua não-existência, pois esta não é sentida na complementação do campo. O contentamento aparente é apenas o relaxamento da contração, um alívio. Se a fuga e a retirada são impossíveis, o organismo elimina sua própria awareness e retrai-se do contato, desvia o olhar e cerra os dentes. Uma análise deve, então, clarear quais atributos do objeto se necessita e quais se recusa, trazendo o conflito à baila para que possa ser decidido ou sofrido.
Em contrapartida, destruir é função do apetite. O crescimento de qualquer organismo se dá pela incorporação, digestão e assimilação de substâncias novas, o que exige a destruição dos elementos para obter os subsídios assimiláveis. Mais uma vez, não tendo sido o status quo destruído ou digerido, em vez de assimilação, a saída será a introjeção ou áreas sem contato. Há duas possibilidades de destino para o introjeto: sendo um corpo estranho no organismo, ele é vomitado, o que é um tipo de aniquilação, ou o self se identifica de maneira parcial com o introjeto, retém a dor e busca aniquilar parte de si próprio, porém, em sendo a rejeição inviável, vive um aperto constante, uma cisão neurótica.
Em Ego, fome e agressão, Perls (1942/2002) avalia que uma resistência oral relevante é o nojo. O nojo é essencialmente humano. No treinamento do homem, o nojo tem um caráter importante, pois ele significa a não-aceitação, a recusa emocional de alimento pelo organismo, esteja o alimento na garganta, no estômago ou apenas na imaginação. " Nojo significa a anulação do contato oral, separação de algo que se tornou uma parte de nós mesmos" (p. 173). Uma resistência adicional é a repressão do nojo (resistência contra a resistência, segundo Perls). É quando a criança é punida por querer vomitar o alimento pelo qual sentiu nojo, sendo compelida recorrentemente a ingerir aquele alimento. A solução que ela encontra é engolir o alimento rapidamente para não sentir seu gosto, e após algum tempo, geralmente consegue não sentir sabor nenhum. É aí que ela desenvolve uma falta de paladar, uma frigidez oral. Por exemplo, o descontentamento com a vida, falta de interesse e insatisfação com tudo são a expressão de nojo pela vida.
Nessas ponderações sobre aniquilação e destruição na obra, Perls, Hefferline e Goodman (1951/1997) as chamam de impulsos, e há momentos também, em outras ocasiões ao longo do livro, em que se referem à agressão como "energia agressiva". Não é feita uma diferenciação entre impulso, função e energia na obra. Além disso, tais impulsos, incluindo a raiva, são colocados como igualmente responsáveis pelo crescimento organísmico, não mais somente a agressão dental. Seriam tais expressões características da agressão hostil instrumentos da agressão dental para se alcançar tal crescimento? Como já foi falado, nessa obra e no escrito de 1942 há passagens que sugerem o entendimento de que a inibição da agressão dental produz a agressão hostil, e a repressão desta é igualmente perigosa. Isso fica ainda mais ambíguo no parágrafo seguinte, quando os autores explicitam que a destruição fervorosa e agradável (e raivosa) de certas incompatibilidades presentes nas relações pessoais fomenta, com frequência, o benefício mútuo e o amor, a exemplo do que ocorre na sedução e defloramento de uma virgem tímida, ou na destruição de preconceitos entre amigos.
Para Perls, Hefferline e Goodman (1951/1997) a agressão é, portanto, a marcha na direção do objeto do apetite ou da hostilidade, podendo ser benéfica para o sujeito em ambos os casos. Vai do impulso à tomada de providências, ou seja, aceita-se o impulso e a execução motora como próprios. Sintetizam afirmando que a aniquilação, a destruição, a iniciativa e a raiva são, desse modo, funções de bom contato, necessárias à subsistência, ao prazer e à proteção do organismo em situações difíceis.
Ao diferenciar aniquilação de destruição, os autores explicam que aquela visa o desaparecimento de algo, enquanto que esta visa fazer apenas a estrutura (destaque deles) desaparecer. Em algo destruído, mantém-se a matéria, ainda que alterada em sua característica física ou química. Múltiplas coisas e situações podem nos deixar irritados ou perturbados, casos em que almejamos aniquilar o elemento incômodo, porém, ficamos satisfeitos em apenas destruir, haja vista que a aniquilação real nunca é possível. No máximo, executamos uma pseudo-aniquilação por meio do esquecimento, da projeção, da repressão ou fuga.
Além da censura do desejo de aniquilar o incômodo, impede-se toda veiculação de expressões de destrutividade, aniquilação, raiva e combatividade, a serviço da paz pública. A raiva miúda, nutrida no dia a dia na competição nos escritórios, fábricas e outros locais, nunca é descarregada. Mas a grande raiva, que anda de mãos dadas com a grande iniciativa, é contida. E, com isso, passa-se a procurar grandes causas que justifiquem esse ó dio contido. Daí a importância das guerras, que servem a esse propósito, isto é, são telas de projeção (legitimadas) para canalização dessa agressividade. As pessoas estão ávidas para terminar suas situações inacabadas. Contudo, Perls e os demais autores observam que a fixação nesses elementos da raiva não é saudável (Perls, 1942/2002; Perls, Hefferline & Goodman, 1951/1997).
A análise da relação da agressão com o antissocial, realizada por Perls, Hefferline e Goodman (1951/1997) é complexa e de difícil interpretação, bem como sua definição do que é e do que não é agressão saudável, e se, o que é agressão saudável, necessariamente é agressão natural ou biológica também. Na esteira dessas reflexões, ainda avaliam – sobre a questão dos conflitos e da autoconquista – a necessidade de vitória, colocando como seu oposto o "desprendimento criativo" (p. 161, destaque deles), que está relacionado ao self espontâneo. Ao aceitar o próprio interesse e o objeto, e efetuando a agressão, o homem criativamente imparcial sente excitação com o conflito em si (e não com o conteúdo dele), ou seja, excita-se por estar em conflito, e cresce com ele ganhando ou perdendo a peleja, não está preocupado com o que poderia estar perdendo, pois sabe que está se modificando e já se identifica com quem virá a ser. Dito de outro modo, a não necessidade de vitória, que é acompanhada de identificação e aceitação das próprias necessidades em primeiro lugar, mobilizando a agressão, ocasiona o excitamento do organismo com o conflito, que cresce com ele, e desencadeia uma transformação. Em contrapartida, a necessidade de vitória na autoconquista teria um viés neurótico.
Há uma visão difundida de que os conflitos são ruins, destacam Perls, Hefferline e Goodman (1951/1997); de que carregam significados como: desperdício de energia, incitamento à agressão e à destruição, o que não seria bom; de que um dos oponentes não seria saudável ou seria antissocial, e deveria ser eliminado (a exemplo das diversas agressões hostis); de que conflitos equivocados não são bons e os conteúdos inconscientes são normalmente obsoletos e estão deslocados. Mas, nenhum conflito deveria ser diluído em terapia. Os conflitos internos são bastante energizados e dotados de interesse, representando um meio de crescimento. A terapia deveria levá-los à superfície para que se alimentem de material novo e atinjam um ponto de crise. A mesma lógica vale para o conflito intrapsíquico; havendo bloqueio da situação, o conflito e o sofrimento devem, do mesmo jeito, ser o caminho para se chegar a uma solução auto criativa. O conflito pode ser intenso por ter muito a ser destruído, mas a destrutividade não deve ser inibida (Perls, Hefferline & Goodman, 1951/1997).
Essas reflexões vão um pouco mais longe no estudo da agressão. Colocam o conflito como vital para a construção e incorporação do novo, e o quanto é importante deixar brotar dele espontaneamente a solução. Portanto, a destruição do velho e o exercício da agressão – e destruição – nessa jornada rumo ao novo andam de mãos dadas com o "vazio fértil", de onde a criação emergirá, proporcionando crescimento. O conflito e a agressão, então, destroem o que tem de ser destruído para dar lugar ao inédito, ao crescimento, eliminando o que o organismo não necessita ou não usa mais, mantendo o ciclo de renovação organísmica. Além disso, fica claro como os autores outorgam ao cliente a escolha da nova ação, deverá emergir espontaneamente dele a solução. Dessa forma, a agressão, em conjunto com o conflito, é colocada como caminho para a autoconquista, despida da necessidade de vitória. Sem agressão não há existência, de modo que o ser humano se desenvolve sob esses pilares. Em outras palavras, agressão é conflito, o qual é condição para o desenvolvimento humano.
Perls, Hefferline e Goodman (1951/1997) explicam, similarmente como Perls em Ego, Fome e Agressão (Perls, 1942/2002), que uma função fisiológica se autocompleta internamente, mas, basicamente, nenhuma função pode realizar isso sem assimilar algo do meio, sem crescer ou mesmo sem deixar algo no ambiente. Dessa forma, situações fisiológicas inacabadas instigam periodicamente a fronteira de contato1 em virtude de algum déficit ou sobra, e essa regularidade periódica se impõe a todas as funções, como o metabolismo, a necessidade de orgasmo, de compartilhar, de exercitar ou descansar, e todas se expressam no self em forma de anseios ou apetites, fome, ânsia de excretar, sexualidade e outros. No processo do contato, portanto, o excitamento do apetite passa a ser o fundo e algum objeto ou conjunto de possibilidades é figura. De acordo com Perls, Hefferline e Goodman (1951/1997), o apetite ou é incitado por algo no mundo externo, ou nasce espontaneamente no organismo. Obviamente, o ambiente não seria estimulante se o organismo não estivesse apto a responder. A mudança de um paciente que reposiciona a agressão de si para seus introjetos com o intuito de assimilá-los ou vomitá-los (ou seja, que aos poucos vai delimitando a figura/necessidade, antes vaga, e definindo seu apetite), é uma mudança na realidade. O que o ego aceita é um conflito consciente e o exercício da agressão. O conflito nada mais é do que uma perturbação da unidade do fundo, impossibilitando a emergência de uma figura nítida. Tentar escolher uma figura qualquer de um fundo confuso, como decidir por um dos lados rivais de um atrito, visando se chegar a uma solução mais fácil, resultará em uma figura frágil e pouco energizada. Mas, se o conflito em si for selecionado, a figura será plena de interesse e energia, mas também estará carregada de destruição e sofrimento. Reiterando, os autores querem dizer que o próprio conflito em si, quando escolhido enquanto figura ao invés de algum conteúdo, por meio do reconhecimento de que se está em um campo de confusão por mais doloroso que seja esse reconhecimento, se encarado pode ser muito mais enriquecedor do que o trabalho com "questões internas". Quando há um apego ao status quo, o organismo segue produzindo a necessidade, porém, a agressão não se dirige ao meio, onde uma solução poderia ser encontrada. Quando o processo de formação figura/fundo se completa, tem-se o contato final. Encontram-se no comer as mesmas características do contato final, um contato que se dá pela destruição e incorporação. "O que é degustado e mastigado é vívido e único, mas assim que é engolida espontaneamente, a figura desaparece e a assimilação é inconsciente" (Perls, Hefferline & Goodman, 1951/1997, p. 224). O contato consuma o crescimento. Já o desejo e o apetite, explicitam os autores, não são e não podem ser esquecidos. Permanecem como um fundo de dor caso não sejam descarregados.
A título de nota, um importante esclarecimento deve ser feito com relação à análise do antissocial e da agressão na obra Gestalt-terapia. O capítulo que trata dessa análise, em verdade, é reconhecido como sendo de Paul Goodman, inclusive encontra-se publicado em seu livro Nature Heals (Goodman, 1977), ainda que as ideias sejam dele e de Fritz. Na produção do Gestalt Therapy, Goodman assume mais especificamente a construção do corpus teórico do livro, ao passo que Fritz Perls procura ampliar seus exercícios práticos, iniciados na obra precedente (Belmino, 2016).
Belmino (2016) destaca que o propósito do processo gestáltico idealizado por Goodman envolvia fundar campos relacionais que revitalizassem a agressão e a experiência. Goodman tinha preferência por trabalhar mais em pequenos grupos do que em sessões individuais, pois assinalava a importância de se criar espaços de aprendizado e ampliação experiencial, o que caracteriza a clínica como um lugar político de transformação social. A prática psicoterapêutica de Goodman abarcava a ideia de viabilizar contatos humanos intensos que favorecessem formulações transformadoras aos envolvidos. Goodman procurou construir a ideia de que, mais importante do que curar uma patologia, era desenvolver o conflito genuíno e proporcionar espaços para a ação, para o crescimento e a excitação, de modo que sua visão de clínica se fundamentava na ideia de criar espaços de experimentação e criação, como forma de o indivíduo enfrentar as consequências da coerção das instituições.
Sob essas bases, Goodman vai dizer que Freud justificou o capitalismo competitivo como uma forma de libertação da agressão sem a necessidade da destruição física, embora reconheça que Freud pelo menos foi capaz de revolucionar ao criticar a repressão da sexualidade; e que, para ele, os culturalistas (a exemplo de Fromm e Karen Horney) foram os responsáveis por criar uma psicanálise conservadora e "sociolátrica" (Belmino, 2016, p. 246). Ainda, em crítica a Reich, assevera que, embora revolucionária, " sua teoria da pulsão acaba caindo no extremo oposto da leitura moral, ou seja, Reich acabou criando uma teoria utópica que pressupõe uma natureza harmônica, positiva e livre da destrutividade" (p. 246). Goodman considerava capital reconhecer a destruição e a agressão como aspectos integrantes da formação criativa da experiência, o que Reich descuidou ao postular uma sociedade utópica totalmente não repressora, numa colocação implícita da vida como positiva e libertadora, e da sexualidade como bela e alicerçada nos princípios biológicos da reprodução, escamoteando seu lado "sujo" – embora não menos excitante da experiência humana –, o que seria tão agressivo quanto à repressão total (Belmino, 2016).
Por essa ótica, as estratégias de repressão são respostas a construções sociais, e, desse modo, possuem uma função social, portanto, repressões compõem também o contrato social. Goodman procurou questionar veementemente os modelos coercitivos institucionais, porém, não pregava uma atitude revolucionária, estando mais para um reformista, o que encontra respaldo em sua tentativa de se desvencilhar de leituras morais a respeito dos caminhos da humanidade, bem como em seu abandono de modelos de sociedade que se bastassem em si e que conduzissem ao bem-estar. Com efeito, sua proposta sempre girou em torno da ideia de se criar espaços de variabilidade da experiência, que seria "o caminho para a via gestáltica de compreensão da experiência sem reduzi-la a qualquer dimensão moral" (Belmino, 2016, p. 268). À luz desse entendimento, Goodman compreendia o adoecimento também como parte dos aspectos mais humanos e, por isso, não poderia ser excluído da história humana.
Por isso que as ideias de Fritz Perls, que entendia o ego como relacional e a neurose como uma evitação do contato resultante do cerceamento da agressão, responsável por tornar o indivíduo apático, sem vitalidade e dividido entre o imperativo social e suas necessidades organísmicas, pareceram assaz interessantes para Goodman que, nota ainda, que Fritz corroborasse com Reich no tocante a sua crença na harmonia advinda de uma liberação da autorregulação, ele avançou ao observar a neurose como uma resposta às estratégias coercitivas que visavam, com base em uma leitura moral, coibir toda forma de diferença. Assim, Goodman, diferenciando agressão de violência, explicita o papel da agressão no seu sistema pacifista. Partindo das proposições perlsianas, seria viável elucidar que o pacifismo é diferente de uma apatia ou indiferença política, configurando-se, em contrapartida, em um meio de enfrentamento do sistema organizado (Belmino, 2016). Disso se depreende a ideia de destruição como exercício da agressão, em Goodman. Destruir é uma ação mobilizada pela excitação, um ato criativo.
Voltando à obra Gestalt-terapia, a discussão sobre o self e suas nuances é um tanto confusa, e foge aos propósitos do presente estudo. Por isso, me ative a expor o mínimo necessário que contempla o tema da agressão. Pelo exposto sobre a obra de 1951, nota-se que os autores trabalharam um pouco mais a relação entre agressão dental e hostil, e também a relação da agressão com o contato, com o ajustamento criativo, com o fluxo figura/fundo, com o conflito e o vazio-fértil, com o self e com outros temas, colocando-a como função e instrumento ativo na vida. Há momentos, também, em que a confusão entre agressão dental e hostil permanece e eles parecem se referir à agressão dental como sendo, de alguma forma, hostil em si, por natureza. Talvez certa ênfase a mais dada à agressão hostil enquanto igualmente responsável pela assimilação e pelo crescimento tenha gerado a confusão.
Na obra seguinte (Perls, 1969/1979), Fritz fala que sua dificuldade na elaboração dessa autobiografia se deveu a não saber se podia ou não considerar original sua teoria do " não-instinto" (p. 46, destaque dele). Em crítica a Freud, comenta que este errou ao considerar que a boca do recém-nascido continha uma energia não diferenciada em zona libidinal e função de alimentação, dizendo que ele jogou fora a função de alimentação, se posicionando contrariamente a Marx, que considerou o sustento o impulso principal do homem. Nesse momento, repete o que já havia dito sobre ambas as funções, isto é, que ambas são importantes, sendo o sustento indispensável para a sobrevivência do indivíduo, e o sexo, para a sobrevivência da espécie. Voltando aos instintos, deixa mais claro o que quis dizer nas obras anteriores ao destacar que qualquer deficiência, tais como de cálcio, afeto, aminoácidos, oxigênio, importância, gera a necessidade de auferir isso de algum lugar. Não há um instinto (destaque dele) de cálcio, ou de qualquer um desses elementos. Os instintos são criados sempre que um determinado equilíbrio é desestabilizado. A escassez de água gera um " instinto-de-água" (Perls, 1969/1979, p. 83) temporário denominado sede.
A dicotomia bom/mau, para ele, é uma função do organismo, se configurando em uma reação organísmica projetada. Fritz refere que lutar é algo bom se mobiliza o potencial do indivíduo, se está a serviço do prazer de crescer, como se vê em muitos esportes e competições intelectuais. Passa a ser algo "mau" se a luta for permeada por preconceitos e onipotência, baseando-se no prazer da destruição. Nesse contexto, o autor se refere à destruição em sua face negativa, pois o destruir da agressão dental visa assimilação e crescimento, sendo considerado em toda sua obra como algo positivo.
Perls (1973/2011), nesta outra produção, reafirma que todos nós crescemos treinando nossa capacidade de discriminar, sendo esta uma função do limite entre o "eu" e o outro. Aceitamos ou rejeitamos o que o meio oferta. Portanto, reitera que o alimento psicológico (valores, situações, fatos, atitudes, conceitos, padrões de comportamento, etc.) tem que ser assimilado tal como o alimento físico. Isto é, tem que ser desestruturado, analisado, separado e, novamente, concentrado da forma mais vantajosa possível para nós. Do contrário, não contribuirá para o desenvolvimento da personalidade. Todavia, assevera que estamos longe de entender direito a relação, ou talvez a identidade, entre o organismo e a personalidade.
Em outro trabalho, Fritz Perls (1975/1977), em capítulo intitulado Moral, Fronteira do Ego e Agressão, escreve sobre sua visão, já anteriormente apresentada na obra de 1951, de que moral e agressão estão conectadas. Expõe que a moral pode ser absoluta ou relativa de acordo com a personalidade total ou com a situação. Ele questiona a possibilidade de se encontrar uma resposta irrefutável na moral do organismo, e se, no nível não verbal, experiências podem ser tachadas de boas ou más. Acredita ele que tais experiências sucedem como um processo normal, de modo que poderiam servir de base para uma moral útil.
Como a agressão e a coesão dependem uma da outra, ao reconhecer o que está fora como ruim, aparece a necessidade de se destruir a ameaça. Tende-se a denotar as forças coesivas como boas e as agressivas como ruins. Porém, Perls (1975/1977) sugere que, para manter a coesão interna, é preciso agredir, destruir a ameaça externa. Então, explica novamente, como já havia feito nas obras antecedentes, o duplo objetivo da agressão em sua função de desestruturação: destruir para deixar impotente o inimigo ameaçador; na expansão, destruir para tornar o material desestruturado assimilável. Portanto, assinala que a agressão "não é uma invenção do diabo, mas um meio da natureza" (p. 56). Ao longo de toda essa reflexão, Perls (1975/1977) não indica sobre qual agressão fala (hostil e/ou dental), não as define ou diferencia, o que sugere que a indefinição e confusão teórica da agressão persistiu até esta obra. Segue asseverando que entende o desejo de pais e psiquiatras de se livrarem da agressão ou mesmo de descarregá-la como excreção física, porém, considera que a natureza não se daria ao trabalho de criar algo tão poderoso apenas para ser descarregado.
Perls (1975/1977) realiza, ainda, uma ampliação da perspectiva dental. Ele sublinha que não só os dentes, mas os músculos do maxilar, as mãos e as palavras também são ferramentas da agressão. "Esta resulta do trabalho orgânico de todas as partes da personalidade" (p. 57). E declara que, para promover a integração da personalidade neurótica, será preciso desestruturar os sintomas. Segundo o autor, ao se desestruturar os sintomas inevitavelmente se deparará com um razoável montante de agressão canalizada para o autocontrole, para a autopunição e também para a autodestruição. Como exemplo, notifica que se encontra agressão destrutiva (nesse caso, ele usa o termo "destrutiva" no sentido de hostilidade) na irritabilidade e na contenção. O que Perls registra em seguida é bem interessante: "afirmar que esta agressão como tal é responsável pelas distorções patológicas, tais como o hitlerismo ou sadismo, é como afirmar que o impulso sexual é o responsável pelas perversões" (p. 58). Para ele, não são, nem a agressão, nem o sexo, responsáveis pelas neuroses, e sim a "organização infeliz da agressão" (p. 58) da forma que é feita nas instituições e nas famílias.
Como o homem não dá ouvidos às suas discriminações orgânicas, reduz-se a possibilidade de satisfação em sua vida. O ser humano, assim, acaba se guiando pelo dever. E isso, segundo o ponto de vista perlsiano, tem relação também com a pobre organização dos hábitos alimentares. Na prática terapêutica, relata que procura reestruturar tais hábitos, pois problemas na ingestão satisfatória e apropriada do alimento acarretam, por meio da agressão biológica não utilizada, inúmeros problemas neuróticos. A moral introjetada, para Fritz (Perls, 1975/1977), é fruto de uma agressão incompleta, isto é, um morder, mastigar e digerir parciais dos padrões dos pais, professores e da sociedade. Talvez, parte deste alimento oferecido pelo meio nunca teria sido sequer mordido se não fosse imposto, não teria sido escolhido caso não servisse ao organismo. As partes úteis, talvez, foram fornecidas em momento e quantidade errados, de modo que precisarão ser regurgitadas, mastigadas e digeridas, enquanto o que não serviria de jeito nenhum precisaria ser vomitado. Em outras palavras, "a agressão sadia nada mais é do que aplicarse para conseguir a auto-realização" (p. 60). Na terapia, seria possível que ocorressem enjoos e vômitos numa atividade de mastigação, porém, posteriormente, sensações novas de sabores e um apetite mais realçado poderiam insurgir. Assim, "não é a própria agressão que é boa ou má, mas quando estamos mal, sentimo-nos agressivos" (p. 61).
Perls (1975/1977), nesta obra, igualmente não definiu ou diferenciou pormenorizadamente as agressões dental e hostil, e deixa claro que, quando respeitamos as necessidades do nosso organismo, lidamos melhor com os padrões morais. O autor se põe a favor de uma reorganização da agressão no sentido de se autorrealizar. De um modo geral, todas as suas obras mantêm os mesmos conceitos e reflexões sobre a agressão, com pequenas mudanças na escrita, na forma de se colocar as ideias e de concatená-las, e com pequenos acréscimos de exemplos ou mesmo de reflexões.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Infere-se de todo o exposto que a agressão, para Fritz Perls, representa uma função biológica e um instrumento de vida que possibilita a preservação de um sentido de si mesmo, e que media o contato com o meio. Permite ao indivíduo ter um impacto no mundo, ser criativo e produtivo. Sendo assim, é uma energia/função biológica de vida, da natureza, e é o que move o ser humano, podendo ser direcionada para o "mal" (machucar, prejudicar) ou para o "bem" (conquistar algo, ainda que implique em tirar algo de outrem). Perls adota uma perspectiva individualista: o indivíduo deve agredir em prol de seu bem-estar, ainda que isto implique em neutralizar ou imobilizar o outro. Entretanto, Perls não incita guerras ou brigas, posicionando-se de forma contrária a ambas, e reconhece que excessos das funções agressivas não são saudáveis. Sem agressão, não há luta por si.
Uma diferenciação ou mesmo um maior esclarecimento sobre a articulação que faz entre ambas as formas de agressão (dental e hostil), ora fica claro, ora fica confuso. Além disso, por vezes, Perls refere-se à agressão hostil como sendo também biológica, mas há passagens em que somente a agressão dental recebe esse tratamento. Com isso, alguns questionamentos ficam à espera de uma resposta: são funções, emoções, impulsos ou energias? Qual delas é a mola propulsora da vida, a energia, o combustível que move o homem? Ambas são biológicas, ou somente a agressão dental? Há uma falta de nitidez sobre a natureza biológica (ou não) da agressão hostil.
Supõe-se que, de um modo geral, ambas são naturais e saudáveis, dentro de um limite, e que a agressão dental é a função biológica (o correlato biológico) da agressão hostil. Assim, a agressão dental é o instrumento do instinto de fome, exerce a função de saciá-lo, de buscar a sobrevivência, tanto física quanto mental, do indivíduo, podendo fazêlo com a utilização de destruição, aniquilação e raiva quando o contato e a situação exigirem – tudo isso ainda dentro do "natural". Se o organismo for impedido de se auto prover, ou melhor, se a agressão dental for impedida de prover o organismo, o funcionamento "natural" dela será desviado para hostilidades. Portanto, a agressão é colocada como contato, em que pese a visão "etapista" de desenvolvimento humano de Perls, tomada a partir do desenvolvimento dentário. Infelizmente, a teoria da agressão permanece obscura e confusa, e deixada ao largo dos bastidores da abordagem gestáltica. A teoria da Agressão, que tomou uma proporção de fundamento nos princípios da obra de Fritz Perls, parece perder sua posição de relevância ao longo do tempo. Um esclarecimento da teoria é de crucial relevância para um vislumbre de sua real importância para a GT, discriminando caminhos, ou de reintegração, ou de abandono.
Referências
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Notas sobre os autores
Thauana Santos de Araújo. Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Paraná. Graduada em Psicologia pela Universidade Tuiuti do Paraná e em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Professora nas Faculdades FACEL e membro do Laboratório de Fenomenologia e Subjetividade/UFPR. E-mail: thauanaaraujo@hotmail.com
Adriano Furtado Holanda. Psicólogo, Mestre e Doutor em Psicologia. Docente do Programa de Pós-Graduação e Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Paraná. Coordenador do Laboratório de Fenomenologia e Subjetividade (LabFeno/UFPR). Pesquisador CNPq PQ2. E-mail: aholanda@yahoo.com
Recebido em: 21/03/2017
Aprovado em: 16/05/2017
1 Perls, Hefferline e Goodman (1951/1997) declaram que a experiência de uma pessoa se dá na fronteira entre organismo e meio, porém, embora se diga que o organismo faz contato com o meio, é o próprio contato em si a realidade mais simples e primeira. Em sua autobiografia, Perls (1969/1979) vai dizer que uma fronteira de contato reconhece as diferenças, e que "a fronteira-do-ego é o ponto zero entre o bem e mal, identificação e alienação, familiar e estranho, certo e errado, auto-expressão e projeção" (p. 235). Explica que é mais fácil entender o que se encontra "dentro" da fronteira, o sentimento de propriedade de que tudo que está dentro dela seja nosso, nos pertence, e tudo que está fora é do outro. Inveja e cobiça podem levar a querer por para dentro ou pode acontecer de se querer por para fora tudo aquilo que é sentido como tóxico, feio, ruim, fraco, maluco, estúpido, estranho, ainda que identificados como nossos. Este é o metabolismo que conduz a introjeções, representando uma falsificação do self, o que também acontece com as repressões e projeções. É um metabolismo que procura evitar dor, desconforto. Na saúde, se está em contato com o meio e com o próprio self, em outras palavras, com a realidade. Perls, na obra de Stevens (1975/1977), destaca que o bem-estar para o organismo tem a ver com identificação, enquanto o mal-estar é relativo à alienação. Essas são funções discriminatórias do organismo, trabalho denominado de fronteira do ego, em GT. Assim, a função básica da fronteira do ego é a discriminação, sendo o conflito básico da neurose a disputa entre a discriminação introjetada, estranha, e a discriminação do organismo. Para Fritz, é estranha a não consideração da agressão com relação a essas discriminações, posto que é a essência do conflito. Sem ela, a paz de espírito predominaria, de modo que, em qualquer conflito neurótico, é preciso conhecer a agressão que causa e mantém o conflito. Para uma crítica sobre o termo "fronteira" em GT, ver Staemmler (2009).