Serviços Personalizados
Journal
artigo
Indicadores
Compartilhar
Revista do NUFEN
versão On-line ISSN 2175-2591
Rev. NUFEN vol.11 no.3 Belém set./dez. 2019
https://doi.org/10.26823/RevistadoNUFEN.vol11.nº03artigo57
Artigo
DOI: 10.26823/RevistadoNUFEN.vol11.nº03artigo57
Práticas integrativas e complementares: experiências de atenção psicossocial de Belém/Pará
Integrative and complementary practices: experiences in the Belém / Pará psychosocial care network
Prácticas integrativas y adicionales: experiencias en la red de atención psicosocial Belém / Pará
Ingrid Bergma da Silva OliveiraI; Amélia Belisa Moutinho da PonteII
IUniversidade do Estado do Pará
IISecretaria de Saúde do Estado do Pará
RESUMO
Práticas integrativas e complementares - PIC envolvem abordagens que atuam na prevenção de agravos, promoção, manutenção e recuperação da saúde. Pautam-se em modelos de atenção que enfatizam a escuta acolhedora, o desenvolvimento de vínculo terapêutico e a integração do humano com o meio ambiente e a sociedade, características afinadas com a Reforma Psiquiátrica e o pensamento antimanicomial. Neste artigo narramos a experiência com duas dessas práticas - a Terapia Comunitária Integrativa e as Danças Circulares, em dois Centros de Atenção Psicossocial - CAPS da região metropolitana de Belém, com o objetivo de relatar sobre as implicações dessas experiências na vivência dos usuários nos espaços de cuidado. O trabalho com as PIC em saúde mental mostra-se como possibilidade viável de intervenção e conta com boa adesão dos usuários e seus familiares. Constitui-se, também, como possibilidade de ampliação de trocas afetivas, de produção de vida, de transformação da maneira como se lida com as adversidades diante da vivência de um sofrimento psíquico.
Palavras-chave: Caps; Práticas integrativas e complementares; Saúde Mental.
ABSTRACT
Integrative and complementary practices - ICPs involve approaches that act in the prevention of health problems, promotion, maintenance and recovery. They are based on attention models that emphasize welcoming listening, the development of a therapeutic bond and the integration of the human being with the environment and society, characteristics in tune with the Psychiatric Reform and antimanicomial thinking. In this article we narrate the experience with two of these practices - Integrative Community Therapy and Circular Dances, in two Psychosocial Care Centers - CAPS of the metropolitan region of Belém, with the objective of reporting on the implications of these experiences on the users' experience in the spaces. caution. Work with mental health ICPs is a viable possibility of intervention and has good adherence of users and their families. It is also a possibility of expandingaffective exchanges, producing life, transforming the way one deals with adversity in the face of the experience of psychic suffering.
Keywords: Caps; Integrative and complementary practices; Mental health
RESUMEN
Prácticas integradoras y complementarias: las PCI implican enfoques que actúan en la prevención de problemas de salud, promoción, mantenimiento y recuperación. Se basan en modelos de atención que enfatizan la escucha acogedora, el desarrollo de un vínculo terapéutico y la integración del ser humano con el medio ambiente y la sociedad, características en sintonía con la Reforma Psiquiátrica y el pensamiento antimanicomial. En este artículo narramos la experiencia con dos de estas prácticas: terapia comunitaria integradora y danzas circulares, en dos centros de atención psicosocial, CAPS de la región metropolitana de Belém, con el objetivo de informar sobre las implicaciones de estas experiencias en la experiencia de los usuarios en los espacios. cuidado Trabajar con ICP de salud mental es una posibilidad viable de intervención y tiene una buena adherencia de los usuarios y sus familias. También es una posibilidad de expandir los intercambios afectivos, producir vida, transformar la forma en que uno enfrenta la adversidad frente a la experiencia del sufrimiento psíquico.
Palabras-clave: CAPS; Prácticas integradoras y complementarias; Salud mental.
INTRODUÇÃO
As políticas na área da saúde pública brasileira são formuladas a partir de iniciativas dos poderes legislativo e executivo, bem como de demandas e propostas da sociedade, considerando os princípios doutrinários e organizacionais do Sistema Único de Saúde - SUS, dentre eles a Universalidade, Integralidade, Equidade, descentralização e participação social. A partir desses princípios foi possível a introdução recente no SUS de práticas que rompem com formas tradicionais de atendimento em saúde, contemplando àquelas vinculadas a saberes milenares e que vem sendo amplamente utilizadas pela sociedade contemporânea (Luz, 2003).
No Brasil, o debate sobre as práticas integrativas e complementares começou a despontar no final da década de 70, após a Declaração de Alma Ata na Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde realizada pela Organização Mundial da Saúde - OMS e foi validado em meados dos anos 80 com a 8ª Conferência Nacional de Saúde, um espaço legítimo de visibilidade das demandas e necessidades da população, que já apontavam, àquela época, para uma nova cultura de saúde que questionava o modelo hegemônico vigente (Brasil, 2011).
Contudo, apenas em 2003 o Ministério da Saúde atendeu à solicitação de organizações e associações coletivas voltadas a práticas de Fitoterapia, Homeopatia, Acupuntura e outras, e coordenou as estratégias iniciais de organização de grupos de estudo para a formulação da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares - PNPIC, que foi apresentada em 2006 através da Portaria GM/MS nº 971 com a pretensão de responder, sobretudo, à necessidade de se conhecer, apoiar, incorporar e implementar experiências que já vinham sendo desenvolvidas na rede do SUS de muitos municípios e estados, mas na ausência de diretrizes específicas, ocorriam de modo desigual, descontinuado e, muitas vezes, sem registro e fornecimento adequado de insumos ou ações de acompanhamento e avaliação (Brasil, 2006).
A partir deste momento, tanto a sociedade civil quanto o governo federal iniciaram um movimento, ainda que tímido em um primeiro momento, por busca e oferta de novos modos de cuidado e autocuidado, considerando o bem-estar físico, mental e social como fatores determinantes e condicionantes da saúde. O reflexo desse movimento se deu na ampliação da capacitação dos profissionais da saúde pública em PIC e com isso no aumento da oferta desse tipo de atendimento no SUS.
Na primeira versão da PNPIC, no ano de 2006, foram ofertados apenas cinco procedimentos: medicina tradicional chinesa/acupuntura, homeopatia, plantas medicinais/fitoterapia, termalismo social/crenoterapia, medicina antroposófica. Em 2017 foram incorporadas outras 14 práticas: ayurveda, arteterapia, biodança, dança circular, meditação, musicoterapia, naturopatia, osteopatia, quiropraxia, reflexoterapia, reiki, shantala, terapia comunitária integrativa e yoga. E em 2018 foram incluídas ainda: apiterapia, aromaterapia, bioenergética, constelação familiar, cromoterapia, geoterapia, hipnoterapia, imposição de mãos, ozonioterapia e terapia de florais. Com as últimas atividades incluídas, o SUS atualmente oferta 29 procedimentos de PIC à população.
O portal de notícias do Ministério da Saúde divulgou dados recentes referentes às PICS anunciando que as terapias estão presentes em 9.350 estabelecimentos de 3.173 municípios, sendo que 88% das práticas são ofertadas na Atenção Básica e, somando as atividades coletivas, a estimativa para o ano de 2018 era de que cerca de 5 milhões de pessoas usufruiriam dessas práticas pelo SUS. Os dados de 2017 apontam que foram registrados 1,4 milhão de atendimentos individuais em práticas integrativas e complementares, e no mesmo ano foram capacitados mais de 30 mil profissionais da saúde pública nas mais diversas modalidades (Brasil, 2018).
Os sistemas e recursos terapêuticos contemplados pelas PIC envolvem abordagens que buscam atuar nos campos da prevenção de agravos e da promoção, manutenção e recuperação da saúde baseadas em modelos de atenção com ênfase na escuta acolhedora, no desenvolvimento de vínculo terapêutico e na integração do ser humano com o meio ambiente e a sociedade, constituindo uma visão ampliada do processo saúde-doença e a promoção global do cuidado humano, especialmente do autocuidado, contribuindo desta forma para o fortalecimento dos princípios fundamentais do SUS (Brasil, 2015).
No campo da Saúde Mental essas práticas encontram ressonância junto ao pensamento antimanicomial, condizente com a Reforma Psiquiátrica que promoveu uma ruptura com o modelo hospitalocêntrico, assegurando uma política de reabilitação e inclusão por meio de uma Rede de Atenção Psicossocial - RAPS que prioriza serviços não hospitalares de suporte às demandas advindas do sofrimento psíquico.
Dentre as práticas integrativas contempladas pela PNPIC, relatamos neste estudo o trabalho com duas delas, a Terapia Comunitária Integrativa e as Danças Circulares, em dois Centros de Atenção Psicossocial - CAPS da região metropolitana de Belém. A partir da experiência das autoras com a condução destas práticas podemos discutir acerca do impacto das mesmas sobre os espaços de cuidado em saúde mental e também sobre os usuários destes serviços.
TERAPIA COMUNITÁRIA: GIRANDO A RODA DA VIDA NO DENTRO-FORA DO CAPS
Grandesso (2007) nos esclarece que a Terapia Comunitária Integrativa - TCI vem se consolidando como uma importante tecnologia de cuidado em saúde mental, constituindo-se enquanto um instrumento valioso de intervenção psicossocial na saúde pública, que não pretende substituir outras estratégias presentes nos serviços de saúde, mas complementá-las, de modo a ampliar as ações preventivas, sobretudo de caráter coletivo.
A TCI foi desenvolvida no ano de 1987 na comunidade do Pirambu, em Fortaleza/CE, pelo médico psiquiatra Prof. Dr. Adalberto Barreto, como tecnologia de cuidado em programas de apoio à saúde mental daquela população, portanto, é um método de cuidado genuinamente brasileiro que valoriza a cultura e o modo de viver local (Moura, Ferreira Filha & Carvalho, 2012).
A TCI além de estar presente em todos os estados brasileiros, esta implantada em alguns países da Europa como Franca e Suíça, com alguma experiência no Uruguai e Argentina, aonde vem sendo desenvolvida por diversos profissionais da área da saúde (Vasconcelos, 2008).
Para Barreto (2005) a TCI é caracterizada como um espaço de promoção de encontros e aprendizagem interpessoal e intercomunitária onde se procura partilhar experiências e sabedorias de forma horizontal e circular, objetivando a valorização das histórias de vida dos participantes, a restauração da autoestima e da autoconfiança, a ampliação da percepção dos problemas e possibilidades de resolução a partir das competências locais. Além disso, tem como base de sustentação o estímulo à construção de vínculos solidários e a promoção da vida. É uma prática de efeito terapêutico destinado à prevenção na área da saúde e ao atendimento de grupos heterogêneos através do contato face-a-face, promovendo a construção de uma rede de apoio social, onde a comunidade busca resolver coletivamente os problemas.
A experiência como terapeuta comunitária no CAPS começou em 2010, logo após o curso de formação de dois anos na Universidade Federal do Ceará. Tinha o desejo de desenvolver rodas de Terapia Comunitária Integrativa dentro do CAPS, mas abertas à comunidade, com o objetivo de ampliar as portas do serviço para iniciar um trabalho de desmistificação da loucura, promover a troca de experiências, o estabelecimento de novos vínculos na comunidade e, principalmente, desenvolver um trabalho também na atenção primária em saúde mental, favorecendo a prevenção de transtornos mentais graves e ao mesmo tempo esclarecer acerca do acesso ao serviço ofertado pelos CAPS. A fim de atender a proposta da TCI de ser um grupo aberto de acolhida das diversidades, que derivam da força do saber popular e da troca destes saberes, desenvolvemos a estratégia de divulgação do serviço na área de abrangência do CAPS, a fim de alcançar maior adesão de participantes e alcançarmos os objetivos propostos com a terapia. Realizamos visita institucional na unidade de saúde do bairro, no CRAS, no centro comunitário e nas igrejas, a fim de explicarmos o funcionamento da TCI e a importância do cuidado em saúde mental. Durante as primeiras rodas de TCI houve uma participação inexpressiva, com um número que variava entre 8 e 10 pessoas, sendo todas usuárias do CAPS, e os encontros ocorriam semanalmente no turno da manhã e duravam aproximadamente 2 horas. Combinamos então com o grupo uma mudança de estratégia, passando a realizar as rodas na unidade de saúde do bairro com a finalidade de ampliar a adesão, e assim também realizamos os encontros no CRAS próximo ao CAPS e no salão paroquial de uma igreja em nossa área de abrangência. Com o passar do tempo o número de participantes foi aumentando significativamente, houve rodas com 50 pessoas entre homens, mulheres, crianças, jovens, adultos, idosos das mais variadas idades, favorecendo as trocas Inter geracionais. Nesta época já participavam usuários do CAPS, familiares de usuários, trabalhadores, convidados e pessoas da comunidade. Diante da demanda progressiva, foi solicitado pela direção do CAPS e pela equipe multiprofissional que as rodas de TCI fossem desenvolvidas uma vez por semana também no turno da tarde contemplando um maior número de interessados.
Este tipo de estratégia oferece espaço para a ampliação da comunicação e para o autoconhecimento, incentivando a vivência de uma rede de comunicação gestual – para além da fala, pela qual cada um pode expressar sentimentos, sejam eles de alegria, tristeza, medo, angústia, frustração, compreendendo-os para reagir face às situações adversas, considerando-se que as rodas de TCI representam o local em que os sentimentos de frustrações são revistos e trabalhados. A terapia contribui, também, como ferramenta em que é valorizado o poder de resiliência dos seus participantes, pois desenvolve atividades em grupo que fortalecem os participantes, individual e coletivamente, em prol da busca de novas estratégias voltadas ao enfrentamento dos problemas (Carvalho, 2013).
Por envolver relações entre pessoas de uma maneira bastante próxima, há que se pautar no respeito e na ética, tendo aí a sustentação de um setting terapêutico bem estruturado e suas "regras" de participação/convivência, como não dar conselhos, não julgar, ouvir quem está falando e falar na primeira pessoa do singular. O propósito é o de respeitar quem fala e exercitar a escuta (Barreto, 2005).
Além das regras que constituem o setting da roda de TCI, Barreto (2005) nos explica que o método tem sua identidade construída a partir de cinco pilares teóricos: o pensamento sistêmico que permite ampliar a percepção do sujeito em suas relações, valores e crenças, contribuindo, assim para a compreensão e transformação do indivíduo; a Teoria da Comunicação, que permite trabalhar com inúmeras ferramentas de comunicação interpessoal para além das palavras na busca de entender cada ser humano enquanto existência e pertencimento, no desejo de ser confirmado e reconhecido como indivíduo e cidadão, o que permite a ampliação de nossas próprias possibilidades de transformação e de ressignificação. A Antropologia Cultural que ressalta os valores culturais e as crenças como importante fator na formação da identidade do sujeito e do grupo. A pedagogia Freireana que nos lembra que ensinar é o exercício do diálogo, da troca, da reciprocidade, ou seja, de um tempo para escutar, de um tempo para aprender e de um tempo para ensinar. E por fim a Resiliência que nada mais é do que a capacidade dos indivíduos, famílias e comunidades em superar as dificuldades contextuais, funcionando como fonte importante do conhecimento que confere segurança, competência e saber.
As rodas de TCI percorrem fases que iniciam com o acolhimento, seguem para a escolha do tema, que diz respeito aos problemas ou situações que estão gerando preocupação aos participantes da roda e se decide sobre qual questão a roda vai tratar; a contextualização ou apresentação do problema, momento em que se extraem dos depoimentos da pessoa, cuja questão foi selecionada, o mote – uma pergunta chave que vai permitir a reflexão do grupo durante a terapia; a problematização, quando o grupo apresenta alternativas à resolução do problema à partir das experiências pessoais de cada um; e o encerramento com rituais de agregação, quando se estimulam as conotações positivas ao expoente por parte daqueles que compõem a roda (Barreto, 2005).
DANÇA CIRCULAR SAGRADA: A SABEDORIA DOS POVOS TRADICIONAIS AMPLIANDO POSSIBILIDADES DE CUIDADO PSICOSSOCIAL
As Danças Circulares Sagradas - DCS ou simplesmente Danças Circulares, originaram-se das danças primitivas e ganharam repercussão a partir da experiência do coreógrafo e bailarino polonês/alemão Bernhard Wosien, na Comunidade de Findhorn, situada ao norte da Escócia. Wosien percebeu ao participar de rodas de danças folclóricas dos povos, que elas concentravam grande inspiração, dinamismo e vitalidade, fatores que o motivaram a pesquisar esse universo no qual as danças, que sobreviveram as mais diversas mudanças linguísticas, geográficas e religiosas, são, antes de tudo, veículos de sabedoria dos povos.
Wosien elaborou uma coletânea dessas danças com seus passos, suas crenças, mitos, símbolos coletivos, gestos interpretativos e expressivos, histórias sobre suas origens, contextos em que eram dançadas etc., e a partir de então as DCS foram disseminadas pelo mundo em variadas formações em que é valorizado sempre o focalizador que te apresenta as danças, criando uma corrente de aprendizado, respeitando o espírito das práticas tradicionais em que uma pessoa passa um conhecimento à outra, muitas vezes, pela tradição oral (Wosien, 2000).
O processo de dança circular acolhe além da dança, o canto, o trabalho com ritmos, melodias, gestuais e não obrigatoriamente em formato circular. A composição dos elementos envolvidos na roda de dança circular é pensada de maneira a favorecer a aprendizagem e a interconexão harmoniosa e promover a integração humana, o auxílio mútuo e a igualdade visando honrar a diversidade com enfoque no bem-estar físico, mental, emocional e social (Brasil, 2015).
O trabalho com as danças circulares e a devolutiva que a roda proporciona mostram-se singulares nas experimentações no CAPS, não obstante, o contato entre os dançantes se faz, na maior parte das vezes, não somente pelas mãos dadas, mas também pelo olhar, já que todos se vêem na horizontalidade da roda. Esse contato interativo também se dá pelo respeito e acolhimento ao movimento de cada um e pelo cuidado de não invadir o espaço alheio causando desconforto. Deste modo, olhar, tocar, perceber e perceber-se, nesse contexto, vinculam a prática a uma densificação da experiência.
No trabalho com as DCS, o terapeuta agrega o papel de focalizador, aquele que explica como é a dança, fala sobre sua origem, situação típica da cultura em que é dançada, se é contemporânea ou coreografada, além de ensinar os passos e ritmos que a compõem, servindo de referência ao grupo com o qual compartilha a experiência. O focalizador ensina e introduz a dança, dança junto, de mãos dadas, acertando e errando os passos, pois o ideal não é fazer certo, mas fazer junto.
Como um contador de histórias, o terapeuta começa o trabalho com a criação da chegança, prepara o clima, a paisagem para a dança acontecer em um tempo sutil, que é do grupo. Na composição da chegança importa definir o centro da roda, pois este exerce papel organizador quanto ao espaço para os dançantes. O centro pode ser qualquer objeto que faça sentido para aquela vivência, um ramalhete de flores, uma esfera de vidro, uma mandala, uma imagem santa, uma cesta de frutas, vários objetos pertencentes aos integrantes da roda, enfim, existem muitas variações possíveis para compor o centro de roda, não havendo regra para isso.
Moldar essa paisagem dançante também requer a criação de ambiência, iniciada antes da dança e que se mantém durante todo o encontro grupal. O terapeuta direciona a orientação adequada das etapas da proposta, acolhe e coopera com o grupo, escolhendo criteriosamente os recursos e os adaptando à realidade social e de saúde dos participantes; atento aos atropelos e desatenção que possam se manifestar a fim de preservar a qualidade da interação ao longo das experimentações.
No CAPS em que aconteceram as vivências tratadas neste estudo, os bons encontros1 foram presentes em cada roda que nos propusemos a dançar com o grupo, em suas diversas composições desde o ano 2008, momento de mergulho na formação em Danças Circulares. As rodas sempre tiveram grandes variações quanto ao número de participantes, indo de 6 a 40 pessoas, e também quanto à composição dos mesmos. As experiências com as DCS, muitas vezes, aconteciam em uma sala em que o espaço restrito e o calor sufocante, somados a outras questões operacionais burocráticas, não atrapalharam a dinâmica das práticas. Pelo contrário, a frequência e o envolvimento dos usuários do grupo apontavam que apesar das condições desfavoráveis, o estar consigo e com o outro, em práticas como a dança, atribuía sentido à proposta e ao processo grupal, que a cada dia desenvolvia-se enquanto importante canal para o compartilhamento de experiências. Em certa ocasião, um usuário do serviço, que frequentava o grupo há seis meses, verbalizou que as danças o incomodavam, mas que ele não resistia a elas. Ele relatou que por ser evangélico não se sentia à vontade para dançar, pois via aquele ato como pecaminoso. Entretanto, como o grupo dançava junto geralmente na disposição de roda, ele acreditava que essa disposição dos dançantes minimizava suas preocupações com a prática, o que lhe permitia envolver-se. O desconforto que a aproximação dos corpos proporcionava ao usuário que se via sob forte influência religiosa – diretriz que apenas reconhece a dança quando ela é associada à adoração – dissolvia-se por meio da potência que resultava das relações estabelecidas nas práticas com dança no grupo. Talvez uma das paisagens onde essas danças aconteciam, exerceu especial influência nessa sensação de bem-estar com relação à prática, já que no CAPS havia um quintal espaçoso e arborizado, com destacadas castanheiras e outras árvores frutíferas, onde nos refugiávamos para dançar sempre que possível. Por ocasião dos festejos do Dia Mundial de Saúde Mental em 2011, fizemos uma grande roda no quintal com usuários, técnicos do serviço e familiares. No fechamento desse encontro festivo, dançamos "Te ofereço paz", uma dança circular contemporânea em que o sentido de ofertório é muito presente. No dia anterior ao encontro, havíamos nos deparado com um dos muros laterais do CAPS repleto de Alpínias, flores tipicamente tropicais. Colhemos, limpamos e ornamentamos com fitas de seda aproximadamente 30 flores para a oferta da dança final. Estávamos ritualizando coisas do ambiente para constituir lugar. No dia da celebração, tínhamos uma roda cheia de usuários, técnicos e familiares com suas motivações e dificuldades manifestando-se o tempo todo. Forças ativas e reativas em confronto permanente nos desafiavam. Alguns imprevistos surgiram e improvisos se fizeram necessários diante das dificuldades que extravasaram do encontro dos corpos, mas a experiência foi preservada. Embaixo de castanheiras, em nosso quintal do CAPS, dançamos juntos e misturados, levantando poeira do chão, com uma ou outra brisa para nos refrescar enquanto éramos nutridos pelos afetos. Finalizamos a celebração com a oferta das flores colhidas em nosso quintal. Cada um pôde levar para casa um pouco do que viveu, do próprio CAPS e de nós, simbolizado pelas flores. Esta foi uma opção de trabalho: misturar materiais, imagens ou mesmo objetos extraídos do cotidiano aos trabalhos com as DCS, às vezes se configurando em uma maneira de coligar práticas corporais a trabalhos manuais. No grupo, as danças também eram muitas vezes associadas a técnicas de massagem, relaxamento, experimentações lúdicas, teatrais e ações que promoviam autocuidados, dentre outras. Em uma ocasião na qual recebemos usuários do mesmo serviço, mas de atividades terapêuticas diversas para compor um encontro do grupo de trabalho corporal, onde praticávamos as danças circulares, contamos com uma dançante que apresentava uma deficiência física e usava uma muleta. Ela foi prontamente acolhida na dança e demonstrou entusiasmo ao perceber que, sim, poderia dançar. É óbvio que uma investida como essa requer alguns ajustes na escolha das danças, mas a riqueza de envolver sujeitos com limitações e possibilidades diversas em um encontro em que podem "dialogar", resulta em uma experiência de aprendizagem única para todos os envolvidos.
Mecca e Castro (2008) apontam que o cotidiano se constitui como uma processualidade que dá contorno a nossas experiências, mas que quando não se encontra em constante transformação, estagna a vida em uma sucessão de mesmos acontecimentos. De tudo, as experiências com as DCS no cotidiano do CAPS, em meio às incertezas, tentativas e improvisos, reafirmam que ali não é lugar de transtorno, mas de saúde mental, onde o relevo é a vida, e o sofrimento é apenas parte da existência.
Para Rotelli (1990), o manicômio era o lugar zero da troca (Quarentei, 1999). Nesse sentido, as composições híbridas com as danças circulares, mostram-se o contrário disso, configurando paisagens potenciais de troca. A mistura intensiva que a roda de dança circular proporciona nos espaços de atenção psicossocial, leva todos a batalharam por seus espaços, compartilharem suas histórias, cederam e demandarem, afastando-se de qualquer estereótipo de passividade, desmotivação ou vitimização que possa pairar sobre eles. Assim, territórios híbridos se compõem para fazer frente à inércia, ao distanciamento e à tristeza, propondo desdobramentos exploratórios.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A ideia da clínica ampliada, tão enfatizada na Saúde Mental, é justamente a de centralizar as operacionalizações dos dispositivos de saúde, como os CAPS, nos sujeitos inseridos em seus territórios e envoltos em suas redes sociais, considerando antes de tudo o transtorno como parte da existência e não como centro ou totalidade dela (Castro et al., 2011).
Conviver com a loucura cotidianamente nos serviços de saúde mental está sempre no lugar do imprevisto, do novo, do desassossego, e escutar esse cotidiano, interessar-se por ele, e propor caminhos, pode nos ajudar a sair da apatia a fim de reativar a potência vital desejante, de modo a devolver aos usuários o poder de criação, fugindo assim da mesmice engendrada pelas barreiras que os "fantasmas" lhes impõem.
O corpo vibrátil2 é habitado por "fantasmas", que o assombram e tendem a dominar a relação do corpo com o mundo, interceptando a afetação da potência poética. Os "fantasmas" nada mais são que assombros do passado, medos que vêm dos mesmos acontecimentos que repetidamente nos sufocam, em que tudo é esperado, sem espaço para imprevistos ou ajustes (Rolnik, 2005).
Sem espaço ou esperança para o novo, aos poucos vivemos em meio a escombros, as energias não se renovam, o pensamento não se reinventa, acumulamos queixas e deixamos de sonhar. Nesse cenário as práticas integrativas vivenciadas na RAPS de Belém promoveram a chegada daquilo que representava frequentemente uma fuga do cotidiano, uma vez que não se fazia na repetição, mas na criação, com ênfase para o estímulo do potencial criativo em grupo, seja no movimento com as danças, seja no enfrentamento de adversidades com a TCI.
Um ponto a ser destacado do trabalho com as PIC nos espaços de cuidado psicossocial é que este se mostra enquanto ferramenta do possível, uma vez que, por mais restrições de material, espaço e disponibilidade com que nos deparássemos nas instituições do SUS, tanto as rodas de TCI quando as de DCS apresentaram-se sempre como uma possibilidade viável de intervenção, e de baixo custo, com uma abrangência significativa em número de participantes e em impacto das ações sobre a vida das pessoas.
Outro ponto interessante a ser enfatizado é o aumento da adesão dos familiares ao tratamento pela possibilidade que as PIC oferecem de espaço de cuidado ao cuidador, que se percebe integrado na roda, muitas vezes compartilhando do mesmo sentimento e sofrimento que seu familiar em tratamento, mas vivenciar o mesmo acolhimento ou oferta de atendimento.
As PIC relatadas neste estudo propõem um exercício de relação horizontalizada, condizente com a maneira como acreditamos que os CAPS devem estruturar suas ações, pois é importante dar voz aos usuários, seja por meio de Assembléias, Conselhos Gestores e etc. Essas ações, dentre muitas outras, convergem para uma maior aproximação entre terapeutas e usuários, opondo-se à verticalidade e à hierarquização nos serviços, ampliando a assiduidade dos usuários às intervenções, possibilitando maior confiança dos familiares com relação às práticas, ampliando assim a possibilidade de estabilização dos quadros, dentre outros ganhos.
Souza e Santos (2008) afirmam que dar voz aos usuários perpassa por valorizar sua fala no fazer cotidiano e representa ferramenta efetiva de mudança dos modos de cuidado, posto que pressupõe uma relação que aumenta a habilidade do usuário de circular e argumentar em sua rede social, ampliando sua autoestima e autonomia.
Dar voz aos usuários, portanto, não se refere simplesmente a ouví-los, mas dar espaço para quem frequentemente cala diante de suposta "autoridade clínica", diante da rigidez dos serviços que tradicionalmente não permitem ao usuário expressar desejos e medos, e se fazer protagonista. Logo, as práticas com danças circulares e terapia comunitária integrativa oportunizam vivências comunicativas e interativas potencializadoras.
Por conseguinte, dançar em roda no CAPS, expor suas opiniões e vivências nas rodas de TC significa uma possibilidade real de ampliação de trocas afetivas, de produção de vida, e de transformação dos modos de ser e de encarar as adversidades diante da vivência de um sofrimento psíquico.
As experiências vivenciadas na RAPS em Belém/PA nos mostram um caminho de leveza e resolutividade, onde as PIC oferecem momentos de crescimento pessoal, aprendizagem de atitudes criativas para a resolução de problemas do cotidiano, além de uma possibilidade de interação dinâmica, de equidade, onde o fazer junto é mais importante que o fazer "certo", onde a cura não vira pauta, já que o mote é a resolução de questões que afligem as pessoas e que acentuam a sensação de desânimo, de apatia e sofrimento psíquico, portanto, tudo aquilo que desobstrui o fluxo da vida traz ampliação do bem estar e saúde, no entendimento desta enquanto aquilo que faz os dias menos gris.
Referências
Barreto, A.P. (2005). Terapia Comunitária passo a passo. 1. Ed. Fortaleza: Gráfica LCR. [ Links ]
Brasil. (2006). Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS - PNPIC-SUS /Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Básica. - Brasília : Ministério da Saúde. [ Links ]
_____. (2006). Ministério da Saúde. Portaria n.º 971/GM. 2006. Aprova a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) no Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União, n.º 84, seção I, Brasília, DF: Ministério da Saúde. Disponível em:< http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2006/prt0971_03_05_2006.html>. Acesso em: 10 Ago. 2019. [ Links ]
_____. (2011). Ministério da Saúde. Plano de ações estratégicas para enfrentamento das Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) no Brasil 2011-2022. Brasília: Ministério da Saúde. [ Links ]
_____. (2015). Ministério da saúde. Secretaria de atenção à saúde. Departamento de atenção Básica. Política nacional de práticas integrativas e complementares no SUS: atitude de ampliação de acesso / Ministério da saúde. secretaria de atenção à saúde. departamento de atenção Básica. – 2. ed. – Brasília : Ministério da saúde.
_____. (2018). Ministério da Saúde. Portal do governo brasileiro. Agência Saúde. Ministério da Saúde inclui 10 novas práticas integrativas no SUS. Disponível em: <http://portalms.saude.gov.br/noticias/agencia-saude/42737-ministerio-da-saude-inclui-10-novas-praticas-integrativas-no-sus>. Acesso em: 15 Out. 2018. [ Links ]
Carvalho, M.A.P et al. (2013). Contribuições da terapia comunitária integrativa para usuários dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS): do isolamento à sociabilidade libertadora. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro , v. 29, n. 10, p. 2028-2038. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2013001000019&lng= en&nrm=iso>. Acesso em: 10 Aug. 2019.
Castro, E. D. et al. (2011). Ateliês de Corpo e Arte. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, v. 22, n. 3, p. 254-262, set.-dez. [ Links ]
Deleuze, G. (1992). Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34. [ Links ]
Grandesso, M. (2007). Terapia comunitária: uma prática pós-moderna crítica: considerações teórico-metodológicas. São Paulo: Casa do Psicólogo. [ Links ]
Luz, M. T. Novos saberes e práticas em saúde coletiva: estudos sobre racionalidades médicas e atividades corporais. São Paulo: Hucitec, 2003. [ Links ]
Mecca, R.C; Castro, E.D. (2008). Experiência estética e cotidiano institucional: novos mapas para subjetivar espaços destinados à saúde mental. Revista Interface, v. 12, n. 25, p. 377-386, abr.-jun. [ Links ]
Moura, S.G.M.; Ferreira Filha, M.O.; Carvalho, M.A.P. (2012). Evolução histórica da abordagem em saúde mental no Brasil: da reforma psiquiátrica aos dias atuais. Rev enferm UFPE on line. Mar;6(3):658-64. Disponível em: < https://periodicos.ufpe.br/revistas/ revistaenfermagem /article/viewFile/7146/26116>. Acesso em: 20 Maio 2019. [ Links ]
Quarentei, M. (1999). Criando lugar (es) para acolher a falta de lugar. Revista Interface - Comunicação, Saúde, Educação. v. 1, n. 5, p. 195-202. [ Links ]
Rolnik, S. (2005). Uma terapêutica para tempos desprovidos de poesia. 2005. Disponível em: <http://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade /Textos/SUELY/terapeutica.pdf>. Acesso em: 30 out. 2012. [ Links ]
_____. (2011). Cartografia sentimental: Transformações Comtemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulinas, Editora da UFRGS. [ Links ]
Souza, R. C; Santos, J. E. (2008). Diálogo entre saberes na construção do cuidado em saúde mental. Revista Baiana de Saúde Pública. v. 32, supl.1, p. 89-97. [ Links ]
Rotelli, F. (1990). A instituição inventada. In: NICÁCIO, F. (Org.). Desinstitucionalização. São Paulo. Hucitec. [ Links ]
Vasconcelos, E. M. (2008). Abordagens psicossociais: reforma psiquiátrica e saúde mental na ótica da cultura e das lutas populares. Vol. 2. São Paulo: Hucitec. [ Links ]
Wosien, B.(2000). Dança um caminho para a totalidade. São Paulo: Triom. [ Links ]
Notas sobre os autores:
Ingrid Bergma da Silva Oliveira - Doutora em Psicologia Clínica/PUC-SP; Docente da Universidade do Estado do Pará; Terapeuta Ocupacional do CAPS Renascer/SESPA; Formação em Danças Circulares/ EGPA; Líder do PRACTO - Grupo de Pesquisa em Práticas Clínicas na Terapia Ocupacional. CV:http://lattes.cnpq.br/1474974503465827 E-mail:luabergma@yahoo.com.br
Amélia Belisa Moutinho da Ponte - Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia/UFPA; Terapeuta Ocupacional do CAPS Grão-Pará/SESPA; Formação em Terapia Comunitária Integrativa/ UFCE; Especialista em Saúde Mental; Especialista em Transtorno do Espectro Autista (TEA). CV: http://lattes.cnpq.br/1409902506068789 E-mail: belisamout@bol.com.br.
Recebido: 15/08/2019
Aprovado: 21/10//2019
1 Fazemos referência aos bons encontros de inspiração Spinozista, os quais são encontros investidos de vontade de potência, que aumentam nossa força de existir, nossa potência de vida (Deleuze, 1992).
2 O corpo vibrátil envolve os corpos no encontro, em seu poder de afetar e serem afetados, atrair e repelir (Rolnik, 2011).