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Revista do NUFEN

versão On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.16  Belém  2024  Epub 25-Nov-2024

https://doi.org/10.26823/rnufen.v16i01.25296 

ENSAIO/TEÓRICO

Meditações husserlianas relativas à Psicologia Fenomenológica, escritos de 1925, parágrafos 5 e 6: implicações para as abordagens psicoterápicas humanistas

Husserlian meditations on Phenomenological Psychology, writings from 1925, paragraphs 5 and 6 - implications for humanistic psychotherapeutic approaches

Meditaciones husserlianas sobre Psicología Fenomenológica, escritos de 1925, apartados 5 e 6 - implicaciones para los enfoques psicoterapéuticos humanistas

1Universidade Federal do Ceará


RESUMO

Este artigo pretende demonstrar a necessidade de aprofundamento da pesquisa em torno do que vem a ser uma Psicologia Fenomenológica, à luz das reflexões filosóficas de Edmund Husserl que no ano de 1925, proferindo suas lições de verão, apresentou as demandas históricas e as condições estruturantes para a construção de uma psicologia constituída sob o rigor de seu método, em superação à psicologia naturalista e positiva de então. Historicamente, os herdeiros das abordagens humanistas, em particular a Gestalt-Terapia de Fritz Perls e Abordagem Centrada na Pessoa de Carl Rogers aprofundam e atualizam seus legados sob o signo dos parâmetros fenomenológicos, em boa parte das vezes de modo precário, justo pela dificuldade de alcance desses escritos husserlianos que bem recentemente passaram a ser publicados em versão portuguesa para o Brasil. Utilizou-se como texto básico relativo às reflexões de Edmund Husserl, sua obra Psychologie Phénoménologique (1925-1928) em que consta os escritos do verão de 1925, além de diversas produções do movimentos humanista relativos à psicoterapia e suas aobrdagens. Ao longo dessas investigações e confrontos epistemológicos, espera-se que finalmente possamos delimitar com mais precisão quantos e quais são as aproximações e distanciamentos das abordagens psicoterápicas humanistas, relativamente ao método fenomenológico de Edmund Husserl.

Palavras-chave Psicologia Fenomenológica; Abordagem Humanista; Epistemologia

ABSTRACT

This article aims to demonstrate the need for in-depth research into what constitutes Phenomenological Psychology, in light of the philosophical reflections of Edmund Husserl who, in 1925, giving his summer lessons, presented the historical demands and structuring conditions for the construction of a psychology constituted under the rigor of its method, overcoming the naturalistic and positive psychology of the time. Historically, the heirs of humanist approaches, in particular Fritz Perls’ Gestalt-Therapy and Carl Rogers’ Person-Centered Approach, deepen and update their legacies under the sign of phenomenological parameters, most of the time in a precarious way, precisely due to the difficulty of reach of these Husserlian writings that recently began to be published in portuguese for Brazil. The basic text relating to the reflections of Edmund Husserl was his work Psychologie Phénoménologique (1925-1928), which contains writings from the summer of 1925, as well as various productions of the humanist movements relating to psychotherapy and its approaches. Throughout these investigations and epistemological confrontations, it is hoped that we will finally be able to define more precisely how many and what are the similarities and differences between humanistic psychotherapeutic approaches, in relation to Edmund Husserl’s phenomenological method.

Keyworks: Phenomenological Psychology; Humanistic Approach; Epistemology

RESUMEN

Este artículo pretende demostrar la necesidad de investigar en profundidad lo que constituye la Psicología Fenomenológica, a la luz de las reflexiones filosóficas de Edmund Husserl quien, en 1925, impartiendo sus lecciones de verano, presentó las demandas históricas y las condiciones estructurantes para la construcción de una psicología constituida bajo el rigor de su método, superando la psicología naturalista y positiva de la época. Históricamente, los herederos de los enfoques humanistas, en particular la Terapia Gestalt de Fritz Perls y el Enfoque Centrado en la Persona de Carl Rogers, profundizan y actualizan sus legados bajo el signo de parámetros fenomenológicos, la mayoría de las veces de forma precaria, precisamente debido a la dificultad de alcance de estos escritos husserlianos que recientemente comenzaron a publicarse en portugués para Brasil. Se utilizó el texto base relativo a las reflexiones de Edmund Husserl, su obra Psychologie Phénoménologique (1925-1928), que contiene escritos del verano de 1925, así como diversas producciones de los movimientos humanistas relacionadas con la psicoterapia y sus enfoques.A lo largo de estas investigaciones y confrontaciones epistemológicas, se espera que finalmente podamos definir con mayor precisión cuántas y cuáles son las similitudes y diferencias entre los enfoques psicoterapéuticos humanistas, en relación con el método fenomenológico de Edmund Husserl.

Palabras clave Psicología Fenomenológica; Enfoque Humanista; Epistemología

1. INTRODUÇÃO:

Desde a chegada ao Brasil, as abordagens psicoterápicas vivenciadas, fomentadas e estruturadas no âmbito do Movimento Humanista Americano, notadamente a Gestalt-Terapia e Abordagem Centrada na Pessoa, doravante denominadas GT e ACP, respectivamente, trouxeram em seu bojo a necessidade de que se estabelecesse uma reflexão epistemológica em torno de suas contexturas, de modo a dotá-las de fundamentos racionais, filosóficos, metodológicos e científicos, para além do âmbito experimental de onde provieram, no que concerne, sobretudo, a seus métodos e antropologia filosófica de base, garantindo-lhes a credibilidade de que necessitavam para o desejável acolhimento em meio acadêmico.

A título de embasamento para tal afirmação, constata-se nas declarações emitidas pelos próprios criadores destas abordagens psicoterápicas, do mesmo modo constatável nos escritos de seus comentadores, o quanto os caminhos de tessitura de suas obras se caracterizaram pela ausência de uma rigorosa construção aos moldes dos parâmetros constitutivos das ciências positivas, a ponto de nos depararmos em um dos seis artigos seminais escritos por Carl Rogers, por exemplo, aquele que trata dos Aspectos significativos da terapia centrada no cliente, em que ao final de seus argumentos que explicitavam os caminhos que o conduziriam na estruturação da ACP, esta enfática afirmação: “Também tenho dúvidas de que alguém que esteja profundamente preocupado com um novo desenvolvimento possa saber, com alguma exatidão, de onde suas ideias vieram”. (ROGERS, 2010. p. 28). Onde estariam situados em declarações desta ordem, os fundamentos necessários a qualquer ciência de rigor, se seu idealizador declara desconhecer tais embasamentos?!

Em A client-centered/person centered, Carl Rogers afirma que a ACP tem suas origens puramente dentro da clínica psicológica (1985).

Na declaração sobre o que é a ACP, na obra denominada Abordagem Centrada na Pessoa, 2010, organizada por John Keith Wood et al., lê-se o seguinte sobre o quê da ACP:

... trata-se de um instrumento em prol da facilitação do crescimento pessoal e saúde psicológica numa psicoterapia de pessoa a pessoa. Uma forma singular de abordagem, organizadora da experiência bem-sucedida em diversas atividades. A ACP não é uma teoria, uma terapia, uma psicologia, uma tradição. Não é uma linha, como por exemplo, a linha Behaviorista... não é uma filosofia... Acima de tudo não é um movimento como por exemplo, o movimento trabalhista. É meramente uma abordagem; nada mais, nada menos. (ROGERS. 2010. p. 14).

“Mera abordagem” significa tão somente um ponto de vista, uma perspectiva, uma visão, uma interpretação, um enfoque, o que equivaleria dizer que tal não passaria de um constructo solipsista, completamente adverso à ideia de ciência, tomando-se em consideração que os autores das abordagens psicoterápicas humanistas e seus herdeiros resguardassem o desejo, em maior ou menor grau, de ver suas ideias alçadas àqueles parâmetros de saber. Faltar-lhes ia, por esta perspectiva, a necessária submissão de suas teorias, técnicas e procedimentos a um método que lhe garantisse rigorosa crítica e trilhas seguras.

Se este método deveria ser o fenomenológico, tal como reivindicado amiúde, precisaríamos minimamente ouvir o que tem a dizer a esse respeito, Edmund Husserl, seu criador. E nesta seara, são justamente os escritos do verão de 1925, aqueles que mais diretamente cuida da questão do que deveria ser uma Psicologia Fenomenológica, tanto de seu ponto de vista histórico, quanto de suas condições de possibilidades procedimentais, as fontes geradoras de respostas precisas para essa questão.

A maior parte dos textos contidos nesse lapso de tempo que perfaz os anos de 1925 a 1935 foram recentemente publicados pela Editora Vozes, com o título de Psicologia Fenomenológica e Fenomenologia Transcendental, (textos selecionados 1927 a 1935), 2022, em que não se contempla, justamente, os elementos contidos nas lições do semestre de verão de 1925, em que Edmund Husserl elabora uma belíssima introdução recheada de aspectos históricos e filosóficos que dariam ensejo à necessidade de fundação de uma Psicologia Fenomenológica, instigada pelas intuições geniais de Wilhelm Dilthey, seguida da parte sistemática em que esmiunça as ideias características do que pensa dever ser tal psicologia.

Somente de posse desses elementos nos seria possível distinguir, a partir de parâmetros precisos, o quanto haveria de fenomenológico não apenas na GT e ACP, mas em tantas quantas fossem as abordagens que hoje se reivindicam de filiação husserliana, sem os necessários esclarecimentos e fundamentos para tal.

Com o intuito de colaborar com a construção desses subsídios em língua portuguesa, foram tornados públicos os parágrafos 1 e 2 da Introdução da referida obra, publicada na revista PHS Phenomenology, Humanities and Sciences, (Vol. 4-3-2023, 205-214) com versão para o português por mim realizada e comentada, tendo sido considerado como texto de base, a tradução francesa editada pela Vrin, Paris, 2001, devidamente cotejados a partir do original alemão, sob a revisão técnica de Renato Kirchner.

Em prosseguimento a tal tarefa de valor inestimável para pesquisadores e epistemólogos da psicologia que se interessam em elucidar e desenvolver a filiação das abordagens humanistas aos preceitos do método fenomenológico, com ou sem paralela inspiração existencialista, é que se tem constatado esforços no sentido de fazer vir à tona, em português, tais ideais husserlianos, como aquele dos professores Jean Marlos Pinheiro Borba e Jailson Galvão Rocha que realizaram a tradução dos parágrafos 5 (Delimitação da Psicologia Fenomenológica: como ela se distingue das demais ciências do espírito e das ciências da natureza. Colocação em questão dos conceitos de natureza e de espírito) e 6 (Necessidade de retorno ao mundo da experiência pré-científica e a experiência em que é dada - concordância da experiência), pertencentes à parte sistemática, sob revisão técnica minha, a ser publicada neste mesmo volume da revista do NUFEN Phenomenology and Interdisciplinarity.

Como seria possível angariar a acolhida por parte do hermético universo científico - com suas exigências de fundamento, rigor, racionalidade - de instrumentos que prometiam intervir na promoção da saúde mental das pessoas, com repercussões sobre o destino de seu crescimento e desenvolvimento, tendo como característica fundamental, tratar-se, tal como sintetizara Carl Rogers, de “um jeito de ser” (ROGERS. 1983)? Nessas circunstâncias, fazia-se mais que urgente o valer-se de métodos adequados capazes de alçar tais arcabouços instrumentais da psicoterapia, à credibilidade e guarida acadêmicas.

Apesar de não haver a menor dúvida quanto à eficácia desses aparatos ou instrumentos de intervenção no âmbito da clínica psicoterápica individual ou de grupo, naquilo que se propõem alcançar, é inegável do mesmo modo que a construção desses aportes tenha sido forjada à luz de experimentações e vivências as mais variadas, em que se lançou mão de diversas fontes de saberes, sem o necessário rigor exigível para a construção de ciências, em seus aspectos metodológicos e epistemológicos.

Ainda que Carl Rogers (2017) tenha expressado o desejo e necessidade de submissão de sua obra aos princípios de cientificidade, aos moldes do que entendia ser a Psicologia Americana e suas bases positivas, resultou do ter lançado mão de toda sorte de estratégias metodológicas para permanecer próximo àqueles preceitos, denotando-se com facilidade o quanto a experimentação e vivências preponderaram sobre os procedimentos científicos de rigor, em sua construção de novos conhecimentos.

Em síntese, os métodos e técnicas de intervenção que visavam mitigar o sofrimento psíquico humano, em sua maioria daqueles que constituem as abordagens humanistas, provieram de experimentações geniais de seus criadores, por mais iluminados que pudessem ter sido em suas intuições, mas que sequer, em alguns casos particulares, se deram conta da premissa irrecusável quando à necessidade de mais sólida fundamentação, unidade, utilidade e abrangência de suas abordagens.

Quanto a Fritz Perls, a miríades de referências por ele declaradas que integrariam o arcabouço da abordagem gestáltica vão da Psicanálise ao Empiricismo Positivista e Funcionalista, da Filosofia Oriental à Psicologia da Forma, além da experimentação vivencial proveniente de sessões psicoterápicas, em caráter didático. Ao final, recolhidas as fontes de inspiração de tantas vertentes, juntadas às observações oriundas dos experimentos, parecia não perceberem o fato de que em certas alturas, já haviam constituído uma abordagem psicoterápica em todo seu esplendor e potência. Numa breve síntese conceitual, Fritz Perls na obra Gestalt-Terapia se refere à GT como sendo decorrente do comportamentalismo e fenomenologia, sem maiores justificativas para seu posicionamento. (1997)

Além de toda essa gênese por si conturbada, a ponto de parecer tratar-se de um saco de gatos, a GT já aportou ao contexto brasileiro, dividida em duas grandes vertentes: a tendência californiana comandada por Firtz Perls, cuja preponderância epistêmica recaía sobre a exploração experimental dos momentos vividos nas sessões de workshops, com surpreendente rejeição aos preceitos de cientificidade, quanto às elaborações racionalistas de conceitos, à excessiva valorização de normas procedimentais engessadas, segundo orientações prescritas. Por outro lado, concorreu com esta, a vertente novaiorquina, comandada por Laura Perls, com significativa preocupação em promover profícuo diálogo da abordagem com métodos e doutrinas filosóficos afins, em particular a Fenomenologia, o Existencialismo, o Pragmatismo, o Positivismo em sua versão Funcionalista. Até nossos dias, aquela divisão presente no gestaltismo perdura nos institutos de formação e nas clínicas particulares ou privadas de psicólogos filiados a tais princípios.

Nos Estados Unidos a Gestalt-terapia, quase desde seus primórdios, teve duas fortes correntes: a primeira, muito bem representada por Perls em seus workshops de demonstração nos anos 1960 e 1970; a segunda, mais restrita a Nova York - tendo se espalhado de lá para a Europa -, que se preocupava em aprofundar as bases teóricas e filosóficas da abordagem. Seus principais representantes foram Laura, que dirigia o Instituto de Gestalt de Nova York, Isadore From e Paul Goodman, responsável pelo eixo teórico do Instituto até sua morte, em 1972. (FRAZÃO. 2013. p. 19)

A ACP, a considerar tais parâmetros de cientificidade e fundamentos, chegou de forma mais delimitada, com clara identificação metodológica, com perspectiva antropológica nitidamente submissa ao Zeitgeist1 do humanismo americano, o que em consequência veio a contemplar, indiretamente, elementos existencialistas, pragmatistas, funcionalistas, a ponto de seus herdeiros se arvorarem em afirmar, em reivindicações desprovidas de maiores fundamentos, ora se tratarem de abordagem de cunho fenomenológico, ora pragmático, ora existencialistas, etc., através do manuseio, em boa parte equivocada, de autores da filosofia, com mera aplicação de conceitos dali provenientes, em meio aos procedimentos de intervenção psicoterápicas.

2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA E HISTÓRICA:

Em reflexões filosóficas elaboradas ao longo de quatro anos, Edmund Husserl explicitou seu entendimento do quê e do como deveria ser uma psicologia fenomenológica, tornadas públicas com o título de Phänomenologische Psychologie (1925-1928) in Husserliana Bd IX, Kluwer Academic Publichers, em 1968, traduzidas posteriormente para o francês por Philippe Cabestan, Natalie Depraz e Antonino Mazzú pela Librairie Philosophique J. Vrin, em 2001, sob o título de Psychologie Phénoménologique (1925-1928), e revisadas por Françoise Dastur. Esta obra de fundamental importância para a elucidação do significado, método, estrutura e propósito do que deveria ser uma psicologia fenomenológica teve o apoio em sua versão francesa do Goethe-Institut Inter Nationes no âmbito do programa franco-alemão de cooperação com a Maison des sciences de l’homme2.

A totalidade dos textos contidos neste rico período de construção metodológica e epistemológica com vistas às condições de possiblidade para o inadiável advento de ciências do espírito com fundamentos rigorosos e estrita prescrição científica, de caráter compreensivo, e não mais explicativo, tal como o caso da psicologia, a princípio fora publicado por Walter Biemel no tomo IX das Husserliana, Edmund Husserl, Gesammelte Werke, sob o título Phänomenologische psychologie, Vorlesungen Sommersemester 1925 (Den Haag, Martinus Nijhoff, 1968). Além dos escritos relativos às lições do semestre do verão de 1925 que constituiu o epônimo do volume em pauta, consta ali, do mesmo modo, a quarta e última versão do artigo destinado à Enciclopédia Britânica, as conferências de Amsterdam, e os apêndices XVIII, XXI, XXVIII, XXXI e XXXII que resguardam particularmente em seu bojo, a relação que há entre psicologia fenomenológica e fenomenologia transcendental.

Conforme assinalam Cabestan e Depraz, em sua apresentação da obra vertida para o francês:

A relevância da psicologia fenomenológica nas primeiras investidas da filosofia de Edmund Husserl aparece de modo extremamente confusa, ainda que se leve em conta a crítica ao psicologismo abordada no período das Investigações lógicas, a temática das duas versões da via da psicologia na Philosophie première e depois em Krisis, ou ainda a atenção atribuída aos vividos de consciência como tema mesmo da fenomenologia. Fora difícil distinguir naquela instância, um sentido unívoco à ideia de psicologia fenomenológica.3 (DEPRAZ. CABESTAN. 2001. p. 7, 8).

Todo o interesse advindo destas reflexões situadas no curto período aludido, reside na apresentação sistemática com que Husserl nos brinda, sobretudo aos que valorizam a ideia da possiblidade de construção de uma ciência do espírito que não poderia prescindir do rigor, da racionalidade, do caráter apriorístico, de um viés eidético, constituída a partir da delimitação da relação que a psicologia estabelece com as outras ciências e com a fenomenologia transcendental. Nesta seara, a naturalização da psicologia é correlacionada com sua transcendentalização, o que redundaria na ideia da constituição da disciplina nomeada psicologia fenomenológica.

A pergunta que reside em tal investigação sobre as condições que levariam à determinação de uma psicologia fenomenológica, levou Husserl à conclusão de que o necessário critério da intencionalidade não seria suficiente. A redução requerida na atitude transcendental fora sem dúvida exigida, mas o filósofo ali tematizou uma redução psicológica que não se constituiu como transcendental. A clássica bifurcação entre o estático e o genético deveu ser explicitada, sobretudo em tempos vividos naqueles anos 20 tão ávidos por tais critérios basilares de cientificidade.

Todos esses campos de investigação levantados, enfim, puderam ser sistematicamente ordenados naqueles escritos da husserliana IX, o que se perfila na condição de farol ou bússola para os que pretendem ver constituída uma psicologia fenomenológica em sua acepção radical, tal como intencionada por Edmund Husserl, além de vir a subsidiar os pesquisadores das abordagens psicoterápicas humanistas em particular, quanto à sanha de filiar os legados daqueles seus criadores a perspectivas filosóficas de cunho fenomenológico e/ou existencialista, amiúde carentes de razoável justificativa, o que facilmente se constata quando da análise crítica relativa à contextura de seus métodos de intervenção, da elucidação de suas antropologias filosóficas explicitadas nos discursos subjacentes, e da falta de bases epistemológicas que lhes confira o necessário rigor científico.

Nessas tentativas de filiação, para além ou aquém de um necessário e profícuo diálogo com as filosofias, aplicam-se diretamente os conceitos filosóficos no âmbito das ciências, em sua dimensão interventiva, distorcem-se perspectivas antropológicas claramente definidas por suas abordagens de origem, substituemse métodos que justamente propiciaram a seus autores, as condições de possibilidade para a construção de suas abordagens, o que finda por provocar em um dos dois polos de saber, uma situação em que se faz necessário precarizar a filosofia para justificar suas ciências, ou vice-versa.

Nesse sentido, considerando que a maior parte das abordagens psicoterápicas humanistas foi constituída a partir de inspirações e experimentações geniais de seus criadores, aqui e ali subsidiados por princípios gerais, precariamente refletidas à luz de um método científico, ou de uma crítica epistemológica pertinente, com o vir a público das reflexões de Edmund Husserl sobre sua concepção de psicologia fenomenológica ainda não traduzidas para o português na sua totalidade, finalmente teremos com a posse desses textos, a oportunidade de nos responder à pergunta que insiste em querer saber, por exemplo, em que medida poderíamos considerar as abordagens psicoterápicas humanistas, comumente também denominadas fenomenológicas-existencialistas, sem mais, como possuindo ou não, alguma aproximação com aqueles preceitos concernentes ao âmbito filosófico em questão?

Em que medida haveria aproximações e distanciamentos das abordagens humanistas tais como Gestalt-Terapia, Logoterapia, Bioenergética, Abordagem Centrada na Pessoa, Psicodrama, do método fenomenológico e suas concepções gerais de rigor científico, a considerar suas declaradas antropologias filosóficas, suas estruturações metodológicas, seus modos de produções de conhecimento dos afetos, sua visão de existência?

A tarefa de responder a tão fundamentais questionamentos de caráter epistemológico, evidentemente, não será elaborada nesse escrito, cujo objetivo é tão somente o de compor uma concepção do que anunciou o fenomenólogo sobre a necessidade de estruturação de uma psicologia fenomenológica, contidas no parágrafo quinto e sexto de suas lições de verão de 1925, em que se definem ao longo das preleções, suas condições de existência, suas características fundamentais, seus objetivos e as repercussões da consecução de tal empreitada tanto para a história da filosofia, quanto para a ciência psicológica. No entanto, resta ressaltada desde agora a gigantesca oportunidade decorrente do vir a público da Husserliana IX em seus elementos fundamentais, justo onde se encontram o contexto histórico que lhe subjaz, e a sistematização dos passos a serem percorridos com vistas a tal construção, em seus aspectos estruturantes, para que nesse contexto, pesquisadores da psicologia se enveredem na busca de fundamentação sobre tais princípios.

Realizada tal tarefa, mais do que legítimo e lícito, caso pareça razoável, que finalmente se intensifique o diálogo entre abordagens psicoterápicas e fenomenologia, com vistas à possibilidade de que essas novas pesquisas venham a subsidiar uma consistente atualização daquelas abordagens aos tempos e temas atuais, com o primoroso aporte não apenas do método fenomenológico, mas também da doutrina existencialista pelo que ela traz de princípios tão caros às concepções fundamentais do movimento que deu origem a toda essa plêiade de instrumentos de intervenção para a clínica psicoterápica. O que definitivamente não poderíamos mais conceber, seria a nomeação daquelas abordagens humanistas como tendo filiações filosóficas as mais variadas, ou mais inadequadamente, como se tivessem sido constituídas à luz de tais parâmetros epistemológicos e paradigmáticos.

Houve no movimento humanista americano uma confluências de diversas perspectivas que resguardavam em comum o desejo de mitigar o sofrimento psíquico humano, partindo dos mais variados nichos políticos, filosóficos, científicos, éticos, morais, religiosos, epistemológicos, na direção da constituição de abordagens que propiciassem um arcabouço teórico-metodológico capaz de suprir o fazer psicoterápico em suas demandas de intervenção na cotidianidade vivida, em que os processos de conscientização e saber do vivido tiveram preponderância sobre todos os demais elementos possíveis de investigação.

Nos parágrafos iniciais da parte sistemática da Psicologia Fenomenológica, Edmund Husserl enfatiza dois importantes momentos, aquele que define a delimitação de tal nova (no contexto de rigor, em sentido apriorístico e eidético) e necessária psicologia, e da necessidade que ela possui de voltar-se para o mundo da experiência, como uma espécie de retorno às coisas mesmas, tal como propugnam os preceitos mais caros à fenomenologia. A seguir, em síntese, apresentam-se seus elementos fundamentais, o que propiciará o vislumbre do quanto imprescindível se faz conhecer as veredas destes caminhos para que finalmente tenhamos uma psicologia de fato fenomenológica.

2.1. SOBRE A DELIMITAÇÃO DA PSICOLOGIA

Para dar início à parte sistemática de sua empreitada, Edmund Husserl declara ter completado a análise histórica da psicologia fenomenológica, sendo necessária a próxima etapa, constituída por seu desenvolvimento sistemático, o que implica a anunciação de sua delimitação temática e de seu objeto de investigação, já devidamente compreendidos como inapreensíveis aos ditames metodológicos e epistemológicos dos fazeres científicos por onde se enveredara a primeira das psicologias científicas de caráter comportamentalista, naturalista e experimental.

O advento das ciências exige, a princípio, que se estabeleçam os limites de seu alcance e se explicite o objeto de suas investigações. Em outras palavras, que se anuncie sua delimitação para que em respeito às suas bordas, pela via do método que se adeque à sua investigação, possa desenvolver-se e prosperar a partir de pesquisas subsequentes, sempre tendo como garantia o rigor esperado ao fazer científico. Exige, em consequência, que se identifique entre as infinitas possibilidades de busca de construção do conhecimento, a partir do objeto afeito à ciência em nascedouro, que se classifiquem aqueles objetos próprios à pesquisa positiva, e aqueles outros que só poderiam ser compreendidos à luz dos preceitos voltados para a compreensão das questões espirituais, para a devida distinção entre ciência de fatos naturais e ciências do espírito. Não é possível, e esta se trata de constatação aventada desde as intuições diltheyanas, que se empreenda a construção de conhecimentos em torno das questões espirituais, seguindo as mesmas vias que se seguiram quando do estudo das questões da natureza, mediante ciências compreensivas e não mais explicativas.

Com vistas à integralização desses pressupostos, Edmund Husserl prossegue suas preleções contidas no quinto parágrafo e primeira da parte sistemática do que veio a ser anunciado sob o título de Psicologia Fenomenológica. Havendo concluído o estudo dos elementos históricos que deram ensejo a tamanho desafio, o filósofo se volta finalmente para seu desenvolvimento sistemático. É mister ressaltar que o ideal de um conhecimento sistemático deve possuir uma forma definitiva, ou a forma de um método de justificação por evidência absoluta para qualquer que fosse tal pretensa ciência. É evidente, no entanto, para Dilthey e para a escola fenomenológica que a psicologia, aquela criada sob o signo do positivismo reinante à sua época histórica, não possuísse nenhum caráter definitivo em seu objetivo, tampouco nos seus métodos.

Fez-se imperativo, pois, se lançar a pergunta em torno de, com o que tal ciência está lidando, e qual sua esfera temática? Certamente não se trata das coisas materiais, cujo domínio se restringe às ciências da natureza, mas daquelas cujo objeto é vivido (inter)subjetivamente, na esfera espiritual das subjetividades dele constitutivos. Sua lida se deixa vislumbrar como sendo a instância do espírito, e seu tema, o homem e os animais.

Ela trata dos fatos espirituais, dos homens e dos animais, na medida que são seres espirituais e na medida em que são lugares de acontecimentos espirituais e psíquicos; como psicologia geral trata do que é comum e em toda parte válido, como antropologia psicológica e psicologia do animal, é correspondente limitada ao domínio humano e ao domínio animal.4 (HUSSERL, 2001. p. 54).

Relativamente à psicologia, deve-se sempre levar em conta que ela se constitui como uma ciência das formas e das leis mais gerais dos fatos espirituais, em oposição àquelas ciências que pesquisam as coisas em sua concretude. O natural e o espiritual se confundem, quando bastaria a indicação de que isto pertence a uma esfera, e aquilo pertence a outra esfera. O que é natural e o que é espiritual não nos aparecem claramente separados. Feita essa separação, passamos então a vislumbrar o lugar de acontecimento científico da psicologia, não mais ali onde se fizera em parâmetros naturalistas, agora apta a perfazer-se a partir e em decorrência do método fenomenológico.

No procedimento científico vigente, tratou-se de eliminar toda a esfera subjetiva, o que equivale dizer, sua dimensão espiritual, instalando-se um completo desinteresse por tudo que estivesse afeito ao espiritual, voltando-se o olhar, na melhor das hipóteses, tão somente ao que seu método compreendia como resíduo, em sua dimensão puramente física ou material. Tematizou-se tão somente o material e esqueceu-se do ou negligenciou-se o espiritual, tido como impureza a ser excluída do campo científico. Logo, o subjetivo em si não foi compreendido, delimitado cientificamente.

As ciências do espírito, sobretudo a psicologia que deveria estar voltada para o que é radical e geral na espiritualidade, não conseguiu cuidar daquilo que se fazia premente, desconhecendo a universalidade do que é universal, não iluminou o mundo concreto ali onde habita a sequência unitária do espiritual. Husserl se refere a esse ato com a expressão “membros desmembrados da espiritualidade”5 (HUSSERL. 2001. p. 55), amputados pelas ciências da natureza, com o intuito de alcançar a sua ideia de natureza.

Até o significado originário da ideia de natureza foi esquecido como tema da filosofia e ciências, reconhecendo-a somente como aquilo que imediatamente era intuído em sua concretude. Em consequência de tais escolhas malogradas, de submissões indevidas de certos objetos a métodos inadequados ou insuficientes, tanto o mundo espiritual quanto o mundo da natureza permaneceram incompreensíveis.

2.2. NECESSIDADE DE RETORNO AO MUNDO DA EXPERIÊNCIA PRÉ-CIENTÍFICA E À EXPERIÊNCIA EM QUE ELA É DADA

Em respeito ao lema do retorno às coisas mesas, Edmund Husserl enxergou na necessidade de retorno ao que é, que se encontra antes de qualquer experimentação científica, o caminho para se tentar compreender o lócus da gênese e ponto de partida para o advento da psicologia fenomenológica sob o signo de seu método filosófico, considerando que nem a natureza nem as questões do espírito existem previamente como tema científico. “Sua formação só se realiza dentro de um interesse teórico e de um trabalho teórico orientado por esse interesse, sobre o embasamento de uma experiência natural préteórica”6. (HUSSERL. 2001. p. 56). Todo o caminho deverá ser iniciado a partir da unidade concreta intuitiva do mundo da experiência pré-científica. Nessa seara, natureza e espírito podem se tornar temas unitários universais, de modo indissociável, seguindo uma trajetória de elucidações em que ambas as dimensões permaneçam interimplicadas. O mundo concretamente intuitivo foi deliberadamente esquecido, aquele que experienciamos cotidianamente em sua apreensão ingênua. A esse respeito, lamenta Husserl ao dizer:

Se tivéssemos retornado à plena concretização original do mundo, tal como o experimentamos a cada momento em sua originalidade ingênua e se, completando as abstrações metódicas, nunca tivéssemos esquecido esse mundo concretamente intuitivo como campo original, os erros da psicologia e da ciência do espírito naturalista nunca teriam sido possíveis, nunca poderíamos ter assumido a responsabilidade de interpretar a mente como um simples anexo causal de corpos materiais ou como uma série causal paralela à da materialidade física. Nunca poderíamos ter considerado homens e animais como máquinas psicofísicas ou mesmo como máquinas duplas paralelas.7 (HUSSERL. 2001. p. 56).

A ideia é a de que devemos tomar tudo o que for vivido, experienciado tal como se dá em seu nascedouro, e nos atemos a esse começo contraditório de onde emerge aquilo que se dá a nós tal como apropriado e imediatamente percebido, o que de fato se constitui como nossa vivência plena, que nos basta em si como algo a contemplar e apreender em nossa subjetividade vivida, e, por outro lado, os pensamentos que ali aparecem e se formam, todos sujeitos aos ditamos dessas coisas primeiras.

Nosso farol para organização no e percepção do mundo é iluminado por esses primeiros conceitos fomentados na experimentação do vivido, constituídos como experiência individual, elaborados em vista de uma primeira reflexão. Há sempre que se experimentar um mundo, e ainda que as variações desse apreender sejam múltiplas e infinitas, o mundo que experimentamos é sempre o mesmo, o que nos conduz a produzir saberes sobre ele, sempre almejando o verdadeiro. Não há qualquer pretensão de verdade, no entanto, que não passe pelo mundo experimentado como tal, ainda que sempre mutável em suas apreensões. “O mundo verdadeiro designa assim um produto de conhecimento mais elevado, que encontra seu material original de moldagem no universo fluido do que é dado a cada vez na experiência”8. (HUSSERL, 2001. p. 58). Isso implica o fato de que a primeira realidade vivenciada se constitui enquanto campo originário a partir do que a pesquisa científica prospera, com condições de possibilidade de anúncio do mundo verdadeiro.

Há a princípio, anterior a qualquer saber do vivido, uma experimentação do mundo que eclode em todas as suas formas subjetivas, sucessivamente modificada pela própria vida e ações fomentadas no âmago dessas subjetividades entrelaçada com outras subjetividades, na configuração do mundo circundante que lhes dá entorno. Constitui-se assim uma espécie de estrutura geral que não possui um caráter contingente, mas necessário em sua aprioricidade, agora que já fomos fenomenologicamente orientados por Edmund Husserl a nos deixar reconduzir ao lugar de origem de todas as nossas representações.

O mundo único ao qual todas elas (as ciências da natureza ou do espírito9) se reportam é originariamente dado como o simples mundo da experiência, isto é, como o mundo que percebemos direta e imediatamente em seu presente e como o mundo que foi percebido e rememorado em relação a seu passado10. (HUSSERL. 2001. p. 58).

Os saberes decorrentes do contato mais ontológico com o mundo são ao mesmo tempo múltiplo e científico, mas não há como deixar os processos de reflexão sobre ele entrarem em ação, sem antes nos conduzirmos às coisas e processos constitutivos do mundo, possibilitando, assim, o desenvolvimento do saber sobre as coisas, em uma dimensão altamente científica, compreendida como a idealidade da verdade. Não há nada do conhecido, elaborado na esfera do espiritual, que já não se encontrasse no mundo da experiência.

Na tentativa de compreender a percepção, a Fenomenologia anuncia que o percebido é dado como já existindo sem qualquer mediação, no aqui e agora, presente ali diante de nós, vindo a nós, em pessoa. Correlativamente, logo que tal percepção é revivida pela memória, nesse instante ela já se dá como estando presente em si mesma. Mesmo que não mais estejamos lá, os objetos são deslocados para os domínios que nos interessa resguardá-los, ainda que possam estar ali sem que prestemos atenção neles.

Na sua explicitação do que significa a experiência, Edmundo Husserl nos conduz a concebê-la como recheada de certas atividades através do que a percepção se transforma em uma percepção atenta, até alcançar a seguir, o momento de uma percepção que considera as coisas mais de perto, o que vem a ser a percepção ativa, numa produção de saber da experiência que se dá progressivamente. “Eu dizia, de modo geral, tudo se junta na unidade de uma percepção e de uma experiência e na unidade de um mundo da experiência”11. (HUSSERL. 2001. p. 60) Ainda que a princípio tudo parecesse estar em perfeito acordo entre vivenciado e vivido, percebido e conceituado, na unidade de uma realidade global, aquilo que a princípio fora tomado como um objeto de experiência real pode aparecer posteriormente de forma discordante, constituindo as ilusões, as aparências que precisariam ser reconhecidas e redefinidas num processo de caminhar na direção de si e de seus afetos. O que não estava lá a princípio, desde que o olhemos mais de perto, com a atenção voltada em sua direção, no prosseguimento da experiência, pode nos conduzir à constatação de que no lugar disso, surge outra coisa.

E o mais importante a se levar em conta a partir das reflexões que Edmund Husserl nos presenteia, a nós sobretudo que pesquisamos o âmago das abordagens psicoterápicas, com vistas a lhes imprimir uma referência/inspiração fenomenológica, presente em suas lições do verão de 1925: entanto a realidade vivida em constante movimento, a verdade da experiência é sempre algo relativo, uma vez que a cada nova experiência havida em sucessões contínuas o ser pode se transformar em aparência, instalando-nos na alienação de nosso estar imerso nos afetos circundantes, tecidos a posteriori e alhures, ou ainda, nos proporcionar clarões reveladores de nossas próprias verdades. “O mundo não é dado por meio do viés de uma simples experiência, mas mediante um pensamento que está ligado a ele”12 (HUSSERL. 2001. p. 61). Se por um lado há a experiência do mundo, por outro lado há o mundo no qual fazemos a experiência.

Instigado por tais elaborações, o próprio filósofo se pergunta se de fato é possível designar como percebido algo subjetivamente vivido, uma vez que o percebido é sempre mais do que aquilo que pode ser percebido verdadeiramente. Seria dado à experiência humana, a capacidade de se apropriar, na sua totalidade, dessa coisa em si e seu a mais que sempre escapa e ao mesmo tempo sempre se revela em seu vir de novo?

Portanto, a percepção, a memória, a experiência global que fornece uma visão de conjunto designam para nós este modo de pré-doação imediata das coisas, dos encadeamentos de coisas, e até de um mundo em que este “pré-dado” se dá a nós como realidade que existe de uma forma imediatamente presente, como existindo originaliter, em carne e osso, ou como tendo sido13. (HUSSERL. 2001. p. 61)

Ao perceber algo tão evidente e presente como uma casa numa determinada rua, no entanto, apenas parte de suas determinações são percebidas nesse ‘nos darmos conta’. No entanto, imerso no círculo de experiência, eu posso me aproximar desta casa, contornando-a, ampliando assim os espaços de vivência, o que me levaria a considerações particulares sempre novas. Essa casa pertence a um “como” de meus dados subjetivos, uma vez que permanece sempre a mesma, frente a um horizonte de possibilidades de experimentações possíveis, “nas quais o que surgiu nela sem cessar como momento pertencente à própria casa é ou seria objeto de experiência”14 (HUSSERL. 2001. p. 62). Logo, para além de experimentarmos certas realidades mundanas concretas, o que de fato experimentamos é a totalidade do mundo a partir de cada campo óptico, cada momento de visada daquele horizonte externo aberto que jamais poderia estar separado da experiência. “Mas nós podemos ir mais longe, olhar constantemente ao nosso redor de uma nova maneira e, portanto, in infinitum. E mesmo se nós não formos mais longe sobre um modo ativo, a experiência se alarga e acolhe algo novo em sua unidade”15 (HUSSER. 2001. p 62).

Ao tratar de verdade, Edmund Husserl evidentemente não toma esse conceito com a conotação de correspondência das coisas a seus conceitos, nem algo previamente ordenado, esperando ser descoberto. Ao contrário, entende verdade como indubitabilidade, que é uma espécie de certeza ininterrupta, pertencendo, ela mesma, a cada percepção. (Atente-se para o quanto essa precisão argumentativa poderia designar o continuum de awareness descrito por Fritz Perls na Gestalt-Terapia, com sua imprescindibilidade para o processo de tornar-se quem se é!). Trata-se, portanto, de certezas ontológicas emergidas do apreendido ou do poder-ser-apreendido, diretamente intuído, exatamente do modo como apareceu na percepção, ou tal como se o pode questionar na vivência da experiência subjetiva, através do desvelamento esclarecedor de seu próprio sentido.

Aquilo que rompe as certezas, na instauração da dúvida tem como tarefa proporcionar a transição para novas certezas, que por sua vez será novamente interrompida, dentro de uma totalidade que se almeja unitária. A verdade, portanto, não passa de um julgamento verdadeiro, produzido a partir da subjetividade de quem percebe o que precisa conhecer, entrelaçada com a objetividade dos fatos e as subjetividades do entorno, em círculos intersubjetivos. O que se alcança é a resolução de questões suscitadas naquele movimento existencial. Da experiência à dúvida, que em seu ser, demanda resoluções e sínteses até o advento de novas dúvidas que o olhar circundante e atento provoca.

Como arremate ao sexto parágrafo da parte sistemática dos escritos de 1925 a respeito da Psicologia Fenomenológica, quando trata da necessidade de retorno ao mundo da experiência e à experiência em que ela é dada, Edmund Husserl nos afirma:

A nossa ideia comum é que este mundo de experiência cujos conteúdos se modificam sem cessar permita procurar e encontrar uma verdade do mundo; em outras palavras, que um pensamento teórico universal tendo por propósito a verdade objetiva e definitiva deva ser estabelecida sobre a base de nossa experiência universal, e que tal objetivo tenha um sentido prático racional. É a pressuposição de todas as ciências objetivas.16 (HUSSERL. 2001. p. 63).

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A considerar os escritos tornados público pelos autores das abordagens humanistas, notadamente aquelas denominadas Gestalt-terapia e Abordagem Centrada na Pessoa, conclui-se sem maiores esforços, até por declarações diretas e/ou indiretas de seus próprios criadores, que suas perspectivas de intervenção psicoterápica, todas carregando em seu bojo o desejo de mitigar o sofrimento humano, foram constituídas preponderantemente a partir de observações de vivências, ao longo de todo o processo psicoterapêutico. Evidente que diversas fontes de saberes foram consideradas no momento destas edificações, tanto no âmbito científico, quanto filosófico, teológico, ético, moral, histórico. As influências foram aportadas de todos os lados, tendo sempre como premissa, a consideração da totalidade do ser humano, seu ser livre, sua reponsabilidade para com o processo de tornar-se quem se é, mediante escolhas conscientes, auridas de horizontes de possibilidades que perfazem seus entornos existenciais.

Historicamente, os herdeiros dessas abordagens, desejosos em subsidiar metodológica e epistemologicamente tais instrumentos de intervenção prática, empreenderam os mais variados diálogos com a Filosofia, notadamente aquelas que se apresentaram enquanto método, em especial Edmund Husserl com a Fenomenologia, os pragmatistas William James, John Dewey Richard Rorty, para construção de ciência de rigor, bem como doutrinas filosóficas constituídas por reflexões a respeito da condição existencial humana, tais como Jena-Paul Sartre, Merleau-Ponty, Martin Buber, Paul Tillich, Martin Heidegger (sobretudo em decorrência de sua analítica existencial do Dasein empreendida em Ser e Tempo). Nessas aproximações e busca de fundamentos, ocorrem desde meras aplicações de conceitos filosóficos aportados para a dimensão instrumental da psicoterapia, a importante instigações provocativas ao desenvolvimento e pesquisa das abordagens em seu contexto histórico atual.

Mais do que legítimo, é imprescindível que as abordagens humanistas busquem aporte metodológico, epistemológico, ético, estético junto às grandes escolas filosóficas, mas para tal, é absolutamente necessário se compreender que este diálogo não pode ser empreendido na condição de aplicações mecânicas de conceitos, em que ao final, filosofias e ciências são descaracterizadas em suas essências, dando lugar a procedimentos enxertados, ao modo de cochas de retalho com pouca ou nenhuma sustentação de rigor. Tal diálogo precisa ser compreendido como de mútua instigação, em que as filosofias possam desestabilizar as certezas científicas, e estas possam desafiar as filosofias a mais rigorosas e amplas reflexões. Se ao final chegaremos à conclusão de que se há, havendo, quantas e quais são as aproximações fenomenológicas e existencialistas, pragmatistas ou estruturalistas para com o legado dos psicólogos humanistas, precisaremos submeter tal pesquisa a uma ampla gama de discussões, tendo como base os textos originais em suas fontes.

Permanecem suspensas as seguintes perguntas: GT e ACP podem ser consideradas abordagens fenomenológicas, em que medida, em que aspectos? Possuem elas inspirações existencialistas, e se há, que elementos poderiam ser apontados como constitutivos dessa filiação?

No que concerne a busca de resposta a essas perguntas relativamente à fenomenologia husserliana, é imprescindível que tenhamos acesso a seus escritos que tratam justamente do modo como deveria ser constituída uma psicologia fenomenológica, partindo das concepções dos diversos vieses de apreensão do mundo, da compreensão de experiência, da vivência, de busca da verdade do ser, em seus aspectos metodológicos. Para contemplar esse intuito é que aos poucos, tal como descrito no início deste artigo, tem sido lançado aos leitores de língua portuguesa as lições de verão de 1925, em suas partes introdutória e sistemática, o que certamente ensejará trabalhos de apresentação de cada de seus parágrafos, além de subsidiar de forma inconteste, a pesquisa epistemológica sobre a contextura das abordagens humanistas. Somente após o enfrentamento de tal desafio é que poderemos denominar esses instrumentos de intervenção para o crescimento e desenvolvimento humano, se for o caso, como de inspiração ou fundação fenomenológica.

1Espírito do tempo.

2Casa das ciências do homem.

3Le statut de la psychologie dans l’économie de la démarche phénoménologique apparaît au premier abord extrêmement embrouillé: que l’on considère la critique du psychologisme à l’époque des Recherches logiques, la thématisation des deux versions de la voie de la psychologie dans Philosophie première puis dans la Krisis, ou encore l’attention portée aux vecus de conscience comme thème même de la phénoménologie, il est difficile de conférer um sens univoque à l’idée de “psychologie phénoménologique”.

4Elle a affaire aux faits spirituels, aux hommes et aux animaux, dans la mesure où ce sont des êtres spirituels et dans la mesure où ils sont le lieu d’événements spirituel et psychiques; en tant que psychologie générale, elle a affaire à ce qui vaut communément et partout, en tant qu’antropologie psychologique et psychologie de l’animal, elle est limitée de façon correspondante au domaine humain et au domaine animal.

5Les membra disjecta de la spiritulité.

6... leur formation n’a lieu qu’au sein d’un intérêt théorique et d’un travail téorique guidé par cet intérêt, sur le soubassement d’une expérience naturelle pré-téorique.

7Si l’on était revenu à la pleine concrétion originaire du monde, telle qu’on en fait l’experience à chaque instant dans une origninarité naïve et si, em complissant les abstractions méthodiques, on avait jamais oublié ce monde concrètement intuitif en tant que champ originaire, les erreurs de la psychologie et de la science de l’esprit naturalistes n’auraient jamais été possibles, on aurait jamais pu s’aviser d’interpréter l’esprit comme une annexe simplement causale des corps matériels ou comme une série causale parallèle à celle de la matérialité physique. On n’aurait jamais pu considérer les hommes et les animaux comme des machines psycho-physiques ou même comme des machines doubles parallèles.

8Le monde vrai designe ainsi um produit de connaissance plus élevé, qui trouve son matériau originaire de façonnement dans l’univers fluant de ce qui est à chaque fois donné dans l’expérience.

9Acréscimo, por parte do autor do artigo, em razão da necessidade de precisão argumentativa.

10Le monde unique auquel elles se rapportent toutes est originairement donné comme le simple monde de l’experience, c’est-à-dire comme le monde que nous percevons directement et imediatement dans son présent et comme monde qui a été perçu et remémoré sous le rapport de son passé.

11Je disais que, de façon générale, tout s’assemble en unité d’une perception et d’une expérience et en l’unité d’un monde de l’expérience.

12Le monde n’est pas donné par le biais d’une semple expérience, mais moyennant une pensée que lui est liée.

13Pourtant, la perception, le souvenir, l’expérience globale qui procurent une vision d’ensemble désignent pour nous ce monde de pré donation immédiate des choses, des enchaînements des choses et même d’un monde dans lequel de “pré donné” se donne á nous en tant que réalité qui existe de façon immédiatement présente en tant qu’existant originaliter, em chair-et-en-os ou en tant qu’ayant été.

14… dans lequelles ce qui y surgit sans cesse comme moment appartenant à la maison elle-même est ou serait objet d’éxperiénce.

15Mais nous pouvons aller plus loin, regarder sans cesse autour de nous de façon nouvelle et ainsi in infinitum. Et même si nous n’allons pas plus loin sur un monde actif, l’experience s’élargit et accueille du nouveau dans son unité.

16Notre idée a tous ext que ce monde de l’experience dont les contenus se modifient sans cesse permet de chercher et de trouver une vérité du monde, en dautres termes, qu’une pensée universelle téorique ayant pour dessein la vérité objective et definitive doive être établie sur la base de notre expérience universelle elle-même. C’est la présupposition de toutes les sciences objectives.

Referências

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Recebido: Outubro de 2023; Aceito: Março de 2024

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