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Trivium - Estudos Interdisciplinares
versión On-line ISSN 2176-4891
Trivium vol.10 no.1 Rio de Janeiro enero/jun. 2018
https://doi.org/10.18379/2176-4891.2018v1p.35
ARTIGOS TEMÁTICOS
Os gêneros tradicionais e a sexuação: os impasses do sujeito entre o sentido e o furo
Traditional genders and sexuation: deadlocks of the subject between the sense and the hole
Los géneros tradicionales y la sexuación: los impases del sujeto entre el sentido y el agujero
Vinícius Moreira LimaI; Ângela Maria Resende VorcaroII
IGraduando em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (2015-2019). Bolsista de iniciação científica do PIBIC-CNPq. Endereço: Av. Pres. Antonio Carlos, 6627. CEP: 31270-901. Belo Horizonte, Minas Gerais. E-mail: vmlima6@gmail.com
IIPsicanalista. Professora Doutora do Departamento de Psicologia da FAFICH/UFMG. Endereço: Av. Pres. Antonio Carlos, 6627. CEP: 31270-901. Belo Horizonte, Minas Gerais. E-mail: angelavorcaro@uol.com.br
RESUMO
As tábuas da sexuação apresentam-se como uma tentativa de mostrar a lógica inconsciente de gozo, localizada no registro do Real. Encontramos, no entanto, uma proliferação de exemplos que se pautam em sentidos imaginários para explicar seus dois lados a partir da configuração atual dos semblantes sexuados (de gênero), situados entre Simbólico e Imaginário. Este artigo busca efetuar uma leitura das tábuas afinada com o projeto lacaniano de esvaziamento lógico do sentido, apontando para o todo e o não-todo fálicos como a tensão estrutural pela qual o sujeito avança entre, de um lado, o sentido e o universal e, de outro, o furo e o singular.
Palavras-chave: GÊNERO; SEXUAÇÃO; SUJEITO; MASCULINO; FEMININO.
ABSTRACT
The table of sexuation is an attempt to show the unconscious logic of enjoyment, located in the register of the Real. Nevertheless, we find a proliferation of examples based on imaginary meanings to explain its two sides recurring to the current configuration of sexuated semblants (of gender), situated between Symbolic and Imaginary. This article aims at a reading of sexuation that is attuned to the Lacanian project of a logical emptying of meaning, pointing to the whole and the not-whole phallic as the structural tension by which the subject insists, between meaning and the universal, on one side, and the hole and singular, on the other.
Keywords: GENDER; SEXUATION; SUBJECT; MASCULINE; FEMININE.
RESUMEN
Las tablas de la sexuación son un intento de mostrar la lógica inconsciente de goce ubicada en el registro de lo Real. Sin embargo, encontramos una proliferación de ejemplos basados en sentidos imaginarios para explicar sus dos lados recurriendo a la configuración actual de los semblantes sexuados (de género), XXXX situados (ubicados)entre lo Simbólico y lo Imaginario. Este artículo busca efectuar una lectura de las tablas afinada con el proyecto lacaniano de vaciamiento lógico del sentido, apuntando hacia el todo y el no-todo fálicos como la tensión estructural por la cual el sujeto avanza entre, por un lado, el sentido y el universal y, de otro, el agujero y el singular.
Palabras clave: GÉNERO; SEXUACIÓN; SUJETO; MASCULINO; FEMENINO.
Introdução
Na história da psicanálise, não são poucos os exemplos de mal-entendidos que foram gerados por suas formulações. Um dos principais veio da noção de sexuação, introduzida por Lacan na década de 1970. Em parte devido ao estilo lacaniano, em parte devido à complexidade do próprio objeto da psicanálise, a sexuação ainda é assunto de disputa entre os psicanalistas1. Isso a ponto de termos posicionamentos até mesmo opostos acerca da presença da biologia nas proposições psicanalíticas.
Esse tipo de conflito fica evidente quando cotejamos as duas afirmações seguintes, que tomaremos como exemplares de duas posturas diferentes acerca da sexuação: 1) "no Seminário XX, observamos um certo retorno... à formação de diferentes modalidades de gozo a partir da própria fisiologia. Vemos uma curiosa retomada de noções da biologia para explicar a diferença nas formas de gozo" (Ambra, 2014, p. 193); e 2) "Ainda nesse trabalho (no Seminário XX), Lacan desconecta completamente essas formas de gozo da realidade biológica" (Van Haute & Geyskens, 2016, p. 151, comentário nosso).
A comparação entre essas duas passagens permite-nos perceber que ainda há uma tensão sobre qual é o estatuto da sexuação na psicanálise, quais são seus limites e seus alcances conceituais. De um lado, há quem sustente que, com a sexuação, o psicanalista francês recaiu no biológico; de outro lado, há quem advogue que a sexuação marca o abandono completo da biologia na psicanálise. Goldenberg (2016) afirma que, ao empregar, na sexuação, os termos "homem" e "mulher", ou lado "masculino" e lado "feminino", Lacan "não pretendia jogar a nova lógica na vala do senso comum", mas, antes, "subverter os significados das palavras homem e mulher. Está claro que não conseguiu" (p. 7). Em outras palavras, a empreitada lacaniana não foi capaz de ressignificar o uso corriqueiro desses termos.
Mais ainda, a sexuação tem sido alvo de desusos entre os próprios psicanalistas, que, ao empregarem os dêiticos "homem" e "mulher", parecem se deixar confundir pelos semblantes sexuados, ligados ao campo dos gêneros tal como tradicionalmente construídos. O que significa que, em vez de atentarem para o Real, como desejado por Lacan, alguns psicanalistas têm se deixado levar pelo nível dos semblantes, situados entre Simbólico e Imaginário, mesmo que sirvam para operar com o Real. Nesse caso, parece-nos importante pontuar esse tipo de confusão e apontar para maneiras mais rigorosas de empregar as tábuas da sexuação, em uma leitura original inspirada nas contribuições de Van Haute e Geyskens (2016), Goldenberg (2016) e Santiago (2017a).
Dessa maneira, acreditamos ser possível recolocar nos trilhos o avanço teórico que Lacan alcança ao formular aquilo que diz respeito à lógica do gozo no ser falante, articulada discursivamente. Isso implica apontar, também, para o interesse político dessa ideia, mantendo como pano de fundo um debate com as teorias de Judith Butler (1990/2015). Assim, acreditamos ser possível utilizar as fórmulas da sexuação para apostar numa subversão das figuras atuais do humano, por meio de uma psicanálise que não naturalize formas normativas, determinadas e socialmente reificadas do que é ser homem ou ser mulher. Para tanto, duas perguntas centrais nos guiarão ao longo deste trabalho: o que a sexuação deve aos gêneros tradicionais? E o que os gêneros tradicionais têm a ver com a sexuação? Partindo dessa dupla questão, tentaremos extrair alguns dos desdobramentos teórico-clínicos advindos desse debate.
O que a sexuação deve aos gêneros?
Com a acalorada recepção das teorias de gênero de Judith Butler no Brasil, tem crescido a quantidade de debates acerca das relações (ou de sua suposta ausência) entre gênero e sexuação. A maior parte dos textos lacanianos é escrita no sentido de apontar as insuficiências teórico-clínicas das ideias de Butler, argumentando que a teoria da sexuação vai muito além da teoria queer. Em seguida, há uma exposição geral sobre o que significam as inscrições lógicas das tábuas lacanianas, mas sem alcançar seus desdobramentos práticos e/ou políticos. É nesse ponto lacunar que inserimos nosso trabalho, a fim de pensar esse diálogo de maneira mais rigorosa, visto que as abordagens se mostraram até então insuficientes para o debate.
Van Haute e Geyskens (2016, p. 179) notam que Lacan nos deu poucos detalhes concretos acerca da sexuação e do gozo feminino na cultura. De fato, isso torna mais delicado o trabalho de leitura e interpretação de sua teoria. Entretanto, em certos momentos, o psicanalista é categórico: "o sexo não define relação alguma no ser falante" (Lacan, 1971-72/2011, p. 13). Essa é a direção dada por ele a seu axioma de que "não existe relação sexual", pois, uma vez que há linguagem, a anatomia e a biologia não determinam nada nos seres falantes. Lacan (1972-73/2008b) afirma: "É claro que o que aparece nos corpos, com essas formas enigmáticas que são os caracteres sexuais - que são apenas secundários - faz o ser sexuado. Sem dúvida" (p. 14). Mas "não é desses traços que depende o gozo do corpo, no que ele simboliza o Outro" (p. 12). Dessa forma, os genitais, que compõem os caracteres sexuais primários no discurso biológico, são curiosamente rebaixados por Lacan a não serem senão secundários frente ao gozo do corpo.
A linguagem, portanto, vem assinalar uma desnaturalização radical do humano: o instinto é desbancado pela pulsão; o gozo é marcado pelo trabalho do significante. E, justamente por haver o significante, o falasser está instalado na mais radical dissimetria em suas relações com o Outro sexo. Pela interposição da linguagem, fica comprometida toda ilusão de um encontro natural, garantido, harmônico e complementar entre os sexos. É na esteira dessa concepção desnaturalizante da psicanálise, "que não passa pelo corpo, mas pelo que resulta de uma exigência lógica na fala" (Lacan, 1972-73/2008, p. 17), que tentaremos compreender a introdução das fórmulas da sexuação por Lacan, a fim de extrair daí alguns de seus desdobramentos teórico-clínicos e políticos.
Na década de 1970, o psicanalista francês estava preocupado com a formalização daquilo que entendia como a lógica de funcionamento discursivo do gozo, escrito no registro do Real, mais além do Simbólico e do Imaginário, mas não sem relação com eles. Isso significa que o campo dos semblantes sexuados - e, logo, o dos semblantes de gênero -, ainda que seja de valor fundamental para a constituição do sujeito, não dá conta da singularidade com a qual a psicanálise opera: a lógica inconsciente de gozo. Mesmo assim, e talvez pelos próprios exemplos trazidos por Lacan, os psicanalistas se deixam enganar por semblantes sexuados que dependem das figuras atuais do humano, de modos historicamente consolidados de determinação dos entes.
Esse tipo de uso da teoria é um engano comum e apresenta certo risco político, ao dar margem a naturalizações e usos normativos das proposições da psicanálise. Perigos assim podem ser vislumbrados, por exemplo, em formulações que enfatizam que, como o feminino traz o aspecto de um contorno artificialmente composto, por ser carente da estabilidade do índice fálico masculino, as mulheres precisariam servir-se do artifício cosmético como enquadre suplementar do seu ser. Ou ainda, conforme um exemplo que Jacques-Alain Miller toma de Lacan sobre a mulher burguesa (cf. Teixeira, 2007, p. 36), esta consegue um limite e uma orientação para seu ser ao casar-se com um homem, cujo índice fálico já lhe seria dado pela estrutura, ao contrário da mulher, que não teria um universal como o lado masculino.
Há aqui uma vizinhança arriscada com o terreno anatômico ou biológico, em que o órgão masculino, por algo de sua própria natureza, daria aos homens uma estabilidade estrutural que faltaria às mulheres, já que elas não teriam o índice fálico. Por causa disso, recorreriam a um marido ou aos artifícios cosméticos para buscarem alguma referência para si. Esse é um tipo de formulação que corre o risco de perder-se no nível dos semblantes, ao menos para o leitor desavisado, sem expor com clareza aquilo que é o principal da teoria lacaniana da sexuação: "uma oposição entre o Universal e algo que não se universaliza" (Teixeira, 2007, p. 37). Trata-se, então, de uma confusão que pode ser feita devido à leitura apressada de textos em que os termos "homem", "mulher" e até mesmo "sexo" são empregados dentro do vocabulário lacaniano.
Assim, nos movimentos feministas e no âmbito queer, trata-se de uma denúncia do campo dos semblantes e dos significados sociais que produzem, entre o Simbólico e o Imaginário, um tipo ideal ou uma norma identitária acerca do que é ser homem ou ser mulher, geradora da ilusão de uma natureza sexual pré-discursiva que seria determinante do sujeito. Na psicanálise, não é disso que se trata: a sexuação está no terreno do inconsciente, não podendo ser confundida com os semblantes sexuados. Confusão que, todavia, é recorrente em trabalhos que afirmam, por exemplo, numa generalização apressada, que o feminismo atual advoga pelo apagamento total das diferenças entre os sexos, sendo que, na verdade, seu debate é com o campo dos semblantes.
Se Butler (1990/2015) busca desconstruir os significados culturais de "homem" e "mulher" no nível dos semblantes, a psicanálise, em sua escuta clínica do um a um, trata do modo de gozo inconsciente. Portanto, há aí um desencontro de base: a teoria queer não está argumentando contra a teoria da sexuação. Em decorrência disso, julgamos fundamental desenvolver com mais profundidade qual é a direção a ser dada à contribuição de Lacan com as fórmulas da sexuação, indo mais além de seus possíveis desusos e advertindo os psicanalistas para esses perigos. Isso porque, a rigor, a novidade introduzida por Lacan a partir da sexualidade feminina na década de 1970 nos parece algo sem precedentes efetivos na psicanálise, como tentaremos apontar mais adiante.
Assim, é fundamental desprender a sexuação dos semblantes sexuados. Precisamos não confundir sexuação (enquanto lógica inconsciente de gozo) com formas socialmente reificadas de semblantes sexuados. Isso significa compreender a sexuação para além das formas generificadas ainda atuais ou mesmo já anacrônicas de conceber o que é (e como deve ser) um homem ou uma mulher. Afinal, o próprio Lacan (1971-72/2011) afirma que, no sentido corriqueiro dos termos, "o homem e a mulher, não sabemos do que se trata" (p. 38); mas a psicanálise lacaniana faz bastante uso de analogias para apresentar suas proposições, tal como o exemplo da mulher burguesa casada que foi utilizado por Miller (cf. Teixeira, 2007, p. 36). É importante, então, não tomar o exemplo ilustrativo, de caráter analógico, como se fosse o fim em si mesmo da ideia em questão.
Ao longo de toda a sua obra, Lacan elabora exemplos ou situações para realizar sua transmissão. Quando se tratava do estádio do espelho, não era necessariamente um espelho literal que estava em jogo, mas, centralmente, algo do olhar do Outro. Quando se tratava da voz no Seminário 10, não era do instrumento chofar que se falava, em última instância. Ali, o chofar é tomado para fazer uma analogia com a castração e com a função fálica. Não se trata de provar ou descobrir algo sobre o chofar em si mesmo. Ele só serve para ilustrar algo acerca da castração simbólica. Da mesma forma, a sexuação é ilustrada a partir de modelos sociais que correm o risco de serem reificados se sua aplicação se voltar para os próprios personagens de onde o exemplo é extraído. É importante, então, localizar esse tipo de referência para evitar um desserviço à teoria lacaniana. De outro modo, podemos recair na anatomia de maneira indesejável, quando o assunto é a sexuação.
Dessa forma, se tomarmos o exemplo da mulher burguesa (Lacan, 1972-73/2008, p. 79) ou das formas atuais de determinação das mulheres para dizer do feminino na tábua da sexuação, há o risco de nos deixarmos enganar pelos semblantes. Quando Lacan diz, por exemplo, que as mulheres só existem uma a uma, não estão necessariamente em questão as mulheres no sentido comum do termo, algo que também é comumente empregado numa cola apressada entre o nível dos semblantes e o nível do termo lacaniano.
É certo que Lacan deve aos gêneros tradicionais boa parte do modelo com que ele ilustra a sexuação2. A construção do lugar da mulher como enigma, do feminino como continente negro, ou mesmo da mulher burguesa casada é algo que a modernidade ocidental produziu e sedimentou, por exemplo, sob o mito do eterno feminino (cf. Arán, 2003, p. 323). No entanto, quando o psicanalista está tratando do que se passa com o gozo a partir dos dêiticos "homem" e "mulher", ele deixa claro referir-se a algo mais: "entre o que abreviarei chamando-os homem e mulher" (Lacan, 1972-73/2008, p. 70). Lacan toma dessa tradição ocidental uma imagem que lhe permitirá articular uma lógica que não seria do semblante: a lógica inconsciente de gozo que atravessa o significante. Cumpre trazer à luz o valor de uma teoria da sexuação mais além dos semblantes sexuados e daí extrair algumas de suas implicações teórico-clínicas e políticas.
O que os gêneros têm a ver com a sexuação?
Até aqui, sustentamos que Lacan retira algo do social para tentar subverter as noções tradicionais do que são o masculino e o feminino. Isto é, tratava-se de empregar termos corriqueiros para dar-lhes um uso que alterasse radicalmente sua valência corrente. Sabemos que essa tentativa não foi de todo bem-sucedida, já que o mal-entendido ainda hoje tem bastante lugar nos diferentes empregos da sexuação. Com isso em mente, tentaremos explorar uma leitura da teoria lacaniana que não se apoie no biológico, no anatômico ou na reificação de figuras sociais que dependem das formas atuais do humano. Isso porque a imagem de uma mulher burguesa casada ou de um homem viril dotado do órgão fálico são modelos identitários historicamente constituídos, demasiado comprometidos com o nível dos semblantes.
A partir de Santiago (2017b), podemos dizer, de partida, que "aquilo que se escreve da diferença sexual é, sobretudo, o todo-fálico e o não-todo fálico, ou seja, o sentido e o furo no âmbito do real do gozo" (p. 102). Com Van Haute e Geyskens (2016), aprendemos também que as fórmulas da sexuação, mais do que apontarem para uma relação entre dois tipos diferentes de sujeito, "expressam um campo de tensão no qual todo sujeito falante (homem ou mulher [no sentido corriqueiro]) inevitavelmente opera" (p. 166). Com Goldenberg (2016, p. 6), enfim, entendemos que o lado masculino é uma tentativa falhada de se inserir no discurso sustentando-se num universal, no universal de um sentido. Isso ao passo que o lado feminino é uma tentativa (também falhada, mas de outra maneira) de descompletar, fazer furar, tornar incompleto esse universal, apontando para a singularidade de seu arranjo. Nossa proposta é articular essas proposições, a fim de construir uma leitura da teoria da sexuação de Lacan mais rigorosa e afinada com a direção de seu ensino.
Em "O aturdito", Lacan (1972/2003) escreve que a fórmula Vx .Φx, traduzida "no discurso analítico, cuja prática é fazer sentido, 'quer dizer' que todo sujeito como tal ... inscreve-se na função fálica para obviar a ausência da relação sexual (a prática de fazer sentido está justamente no referir-se a esse ab-senso)" (p. 458). Assim, todo sujeito se inscreve no lado masculino por se situar na linguagem, isto é, na castração, na função fálica, que torna inadequada, no limite, toda escolha de objeto sexual: não existe um x tal que satisfaça a função Φx (Lacan, 1971/2009, p. 137). Isso significa que a linguagem introduz um furo, a inexistência da relação sexual, demarcando a opacidade do gozo para o ser falante.
A prática de fazer sentido, então, apresenta uma articulação com o furo, pois o sentido não dá conta de totalizar a experiência, no que, sendo articulado como gozo fálico, ele é parcial, limitado. Afinal, o sentido mesmo "indica a direção na qual ele fracassa" (Lacan, 1972-73/2008, p. 85). Para Lacan (1972/2003, p. 457), as vias a que Freud aderiu eram justamente as vias daquilo que supre a relação sexual. Isto é, por meio do complexo de Édipo e do complexo de castração, com suas modalidades imaginárias de ter ou não ter o falo e com as angústias neuróticas relacionadas à castração, Freud tinha um alcance restrito:
foi preciso vir à luz a distinção entre o simbólico, o imaginário e o real para que a identificação com a metade homem e a metade mulher, na qual acabo de lembrar que predomina o que é assunto do eu [moi], não fosse confundida com a relação deles (Lacan, 1972/2003, p. 457).
Essa passagem indica que a distinção entre simbólico, imaginário e real serviu para diferenciar a "relação" entre "homem" e "mulher" (que Lacan chamaria de sexuação) dos assuntos imaginários "do eu" e das identificações, envolvendo o sentido e os modos atuais de determinação dos seres falantes. Lacan nos adverte para não confundir a (não) relação entre "homem" e "mulher" com a identificação a essas figuras, na medida em que a identificação diz respeito à esfera dos semblantes sexuados e dos gêneros, no Simbólico e no Imaginário, ao passo que a não relação sexual está no campo do Real, fora do sentido. Então, o campo dos gêneros, enquanto tentativa de fazer um sentido, de construir um saber sobre o sexual, só pode partir do lado masculino da tábua. Pois tanto homens quanto mulheres (neuróticos), no sentido corriqueiro, estarão do lado "homem" da tábua, apresentando, ambos, alguma forma de articulação com o lado "mulher", o lado do furo, enquanto aquilo que não se deixa captar sob a roupagem de um saber, estando reservado, portanto, à ordem do inominável.
Afinal, "é justamente nessa lógica (masculina) que se resume tudo o que acontece com o complexo de Édipo" (Lacan, 1972/2003, p. 458, comentário nosso), complexo ao qual Freud se limitou por não prescindir do pai. E tal função, a masculina, dos semblantes sexuados, dos gêneros, "só se sustenta por ali ser semblante" (p. 459), sendo necessária para "fixar o limite em que esse semblante já não é senão des-senso" (p. 459). É por causa disso que Lacan considera não haver "nenhum exagero, no que concerne ao que a experiência nos oferece, em situar na questão central do ser ou do ter o falo ... a função que supre a relação sexual" (p. 457). Assim, o ser ou ter o falo, prenunciado por Freud e delimitado por Lacan, não passa de uma tentativa de dar sentido ao sexual, escamoteando o ponto de furo pelo qual o próprio falo é uma espécie de "logro" (p. 456) que tenta tamponar a inexistência da relação sexual.
Então, o falo, por um lado, faz-se significante e, por outro, como órgão, funciona como logro, derivando daí "uma inscrição possível ... dessa função como Φx, à qual os seres responderão segundo sua maneira de ali fazer um argumento" (Lacan, 1972/2003, p. 457). Ou seja, trata-se de uma fundação contingente de sentido, de significação fálica, pois o sentido do sentido é o enigma, fazendo sinal para o ponto de opacidade que insiste como seu avesso furado, mas um avesso que lhe é constitutivo, como os dois lados de uma banda de Moebius. Lacan (1972/2003) prossegue: "Há, pois, duas diz-mensões do paratodothomem [pourtouthomme], a do discurso com que ele se paratodiza [pourtoute] (que é o que Lacan isola com a lógica do Real) e a dos lugares pelos quais isso é thomem [thomme] (os lugares simbólicos e imaginários dos semblantes sexuados)" (p. 460, comentários nossos).
Para o psicanalista francês, Freud prosseguiu pela segunda via, limitando-se aos campos dos semblantes, do Pai, do Édipo, do Simbólico e do Imaginário, isto é, os lugares pelos quais "isso é thomem"; ele tentava cernir a feminilidade com o mesmo "côvado", a mesma unidade de medida (fálica) da masculinidade (Lacan, 1972/2003, p. 463). Isso foi feito ao "partir daqueles a quem a herança biológica é generosa quanto ao semblante" (p. 460), ou seja, Freud parte de um modo específico de determinação dos seres falantes, de uma série de normatividades que pareciam dividir a espécie, irmãmente, em macho e fêmea, dando uma aparência de naturalidade a essa divisão. Assim, o acaso se formularia "pela sex ratio da espécie, estável, ao que parece, sem que se possa saber por quê: eles (os semblantes) equivalem, pois, a uma metade, masculina acaso meu" (p. 460, comentário nosso). A divisão binária da espécie entre "homens" e "mulheres" no sentido corrente diz respeito, portanto, à metade masculina, no nível dos semblantes. Por isso, os
lugares dessa thomenagem [thommage] demarcam-se por dar sentido ao semblante (com o lado masculino equivalendo ao sentido dos semblantes sexuados) - através dele, o da verdade de que não há relação (os gêneros tentam construir performativamente uma relação sexual que é apenas ilusória) -, por dar sentido a um gozo (o fálico) que vem supri-la" (Lacan, 1972/2003, p. 460, comentários nossos).
A nosso ver, nessa passagem, Lacan descreve que a "thomenagem", isto é, o lado masculino da tábua, dá sentido ao semblante, constitui o semblante enquanto sexuado, enquanto dentro de um campo de inteligibilidade dos gêneros. Por sua vez, os gêneros tradicionais fazem semblante de relação sexual, ao formarem a aparência de um encontro natural, garantido, complementar, especialmente entre parceiros heterossexuais. Essa divisão da sex ratio, se modificada de maneira "mais razoável" para que não parecesse 50%-50%, "agravaria a situação" de não haver relação sexual (Lacan, 1972/2003, p. 460), isto é, de não haver uma proporção que permitisse um padrão de medida para o encontro entre os seres falantes. O que vem denunciar como semblante a própria esperança numa divisão 50%-50%. Ou seja, desconstruir o modelo ainda atual dos gêneros, que fazem semblante de relação, colocaria em maior evidência a confusão inevitável entre os sexos, que nunca encontram proporção alguma.
Após explicitar sua leitura do lado "homem" da tábua, Lacan (1972/2003) assinala: "Neste ponto, baixo minhas cartas para expor o modo quântico pelo qual a outra metade, a metade do sujeito, produz-se por uma função que a satisfaz, isto é, que a completa com seu argumento" (p. 465). Assim, trata-se agora da outra metade do sujeito, metade responsável não tanto por uma complementaridade, mas muito mais por uma desarmonia, como se o furo, o mais além do falo, da castração e da linguagem, perseguisse o sujeito como seu avesso moebiano. Sobre o dizer dos quantificadores femininos, Lacan (1972/2003) escreve que
para se introduzir como metade a se dizer das mulheres, o sujeito se determina a partir de que, não existindo suspensão na função fálica, tudo possa dizer-se dela, mesmo que provenha do sem-razão (referência ao S(Ⱥ): não há Outro do Outro, não há metalinguagem, não há garantias para a linguagem nem para a verdade). Mas trata-se de um todo fora de universo (fora do sentido, do universal), que se lê de chofre a partir do quantificador, como nãotodo (Lacan, 1972/2003, p. 466, comentários nossos).
Dessa maneira, o lado feminino da tábua aponta para a ausência de garantias do sentido e da própria estrutura da linguagem, pois o sujeito, "na metade (feminina) ..., vem de que nada existente constitui um limite da função, que não pode certificar-se de coisa alguma que seja de um universo. Assim, por se fundarem nessa metade, 'elas' são nãotodas" (Lacan, 1972/2003, p. 466). Interessante notar as aspas do autor no termo "elas", pois apontam justamente para o seu uso específico dessa palavra, não biológico, não corriqueiro, mas dizendo respeito a essa "metade" sem garantias do sujeito. É nisso que o recurso lacaniano a uma outra leitura do feminino ganha seu valor:
Recorrer ao nãotodo, ao ahomenosum [hommoinsun], isto é, aos impasses da lógica, é, ao mostrar a saída das ficções da Mundanidade, produzir uma outra fixão [fixion] do real, ou seja, do impossível que o fixa pela estrutura da linguagem. É também traçar o caminho pelo qual se encontra, em cada discurso, o real com que ele se enrosca, e despachar os mitos de que ele ordinariamente se supre (Lacan, 1972/2003, p. 480).
Em nossa leitura, essa passagem aponta para o fato de que a Mundanidade, isto é, o campo masculino, do sentido, dos gêneros e dos semblantes sexuados, tenta produzir Um todo fálico cuja contrapartida é um furo, não-todo fálico, inscrito nos impasses da lógica. O lado "homem", portanto, tenta fazer uma fixão do Real que, necessariamente, acaba por ser falhada. O objetivo, portanto, de investigar o registro do Real é poder despachar os mitos com os quais o discurso supre a inexistência da relação sexual, ou seja, apontar para o fracasso de toda determinação imaginária de sentido. Pois "o normal, dizem que ele é mais uma norma masculina [norme male]", escreve Lacan (1972/2003, p. 480), justamente em um jogo linguístico, em francês, com o normal e com a norma masculina (norme mâle), que podemos compreender em articulação com os processos de constituição dos gêneros e seus semblantes sexuados no lado masculino da sexuação.
Desdobramentos
Após essa exposição acompanhando a letra do texto lacaniano, avançaremos agora para um delineamento das consequências dessa novidade radical que Lacan inaugura com suas fórmulas quânticas da sexuação. Novidade que muitos autores acabam por apagar, ao lerem a sexuação sob um pano de fundo anatômico, algo que amenizaria a radicalidade do que Lacan promove com o seu ensino do Real. De outra maneira, a sexuação se tornaria quase uma repetição da obra lacaniana da década de 1950, que era um pouco mais próxima dos trabalhos freudianos sobre Édipo e castração. Diferentemente, o projeto da década de 1970 comparece como sendo o de um esvaziamento lógico do sentido: formalizar logicamente para evitar a proliferação imaginária de sentido, contornar a captação pelo imaginário e a reprodução dos modos de determinação atuais, comprometidos com todo um regime de normatividades.
Nessa direção, a ideia de formalizar teria como objetivo apontar mais além das configurações normativas atuais dos seres falantes, na medida em que há sempre um risco de os exemplos e as analogias da teoria contaminarem normativamente uma prática clínica. Atenta a esse mesmo risco, Butler diz, numa entrevista, explorando seu conceito da abjeção, que queria proporcionar a ele "uma espécie de autonomia relativa, de até mesmo um vazio, uma falta de conteúdo - exatamente para não poder ser captada através de seus exemplos, de modo que seus exemplos não pudessem se tornar normativos do queremos significar por abjeto" (Prins & Meijer, 2002, p. 162). A nosso ver, essa mesma questão está presente na temática da sexuação, pois, como tentamos mostrar, "os exemplos se tornam normativos de todo o resto. O processo se torna paradigmático e acaba por produzir suas próprias exclusões. Torna-se fixo e normativo no sentido de rigidez" (p. 162). É justamente o que tem acontecido com Lacan (1973/2003), num processo que, de certa forma, ele mesmo percebeu: "Não sou pródigo em exemplos, mas, quando meto meu nariz, elevo-os ao paradigma" (p. 554).
Assim, a temática da sexuação tem se deixado levar, muitas vezes, pelos semblantes, tal como o exemplo dado por Miller (2016) sobre a "taxista ao volante", que ele toma para introduzir a noção lacaniana de mulher. Para evitar esse tipo de armadilha, convém partir de que todo sujeito avança numa tensão estrutural entre o lado masculino (sentido) e o lado feminino (furo). O sujeito é tensionado entre o todo fálico e o não-todo fálico: aquilo que tenta se universalizar e aquilo que lhe faz objeção. O sentido é o campo dos semblantes, da realidade, das identidades, das narrativas - e, portanto, do universal, do Um, como suplemento fantasmático que tenta dar consistência ao todo, a essa falsa totalidade. Já o furo é o ponto de opacidade que habita todo sujeito como seu avesso não-todo, negando essa falsa totalidade. Ele é a direção na qual o sentido aponta: o de seu próprio fracasso, pois o cúmulo do sentido é o enigma (Lacan, 1973/2003, p. 550); é o ponto em que o significante e o sentido não são suficientes, pois resta um indizível mais além das determinações atuais dos seres falantes. Mais além da linguagem, do falo, da castração.
A constituição do sentido e do furo corresponde a um só movimento lógico, que franqueia a um sujeito operar como uma banda de Moebius, em que há uma continuidade paradoxal entre o direito e seu avesso. No entanto, em nossas formas de vida excessivamente identitárias, tentamos escamotear o furo por meio do sentido. Para isso, é necessário suspirar pelo Um, tentar apoiar-se nele, no suplemento fantasmático do ao-menos-um que teria escapado à castração, que teria alcançado um gozo total. É a imagem mítica do pai da horda em Totem e tabu, que Lacan lê como efeito impossível da linguagem (Lacan, 1969-70/1992, p. 135). Esse mito, lido em sua estrutura lógica, sinaliza que o sujeito não dá conta do gozo todo, tem de inventar sentidos que façam suplência à ausência - e sustentem a esperança - desse gozo fantasiado. O resultado, muitas vezes, é sofrimento, violência e segregação, pela tentativa de afirmar esse Um a qualquer custo, implicando uma recusa do feminino (no sentido do furo na sexuação).
Nossa leitura nos permite perguntar, a título de hipótese, se não é esse furo estrutural que acaba por ser convertido, historicamente, na feminilidade em seu sentido corriqueiro, que é de onde vem o termo usado por Lacan. Tal estratégia produziria o dito "enigma do feminino", o "continente negro" incognoscível, de onde recuperamos a ideia do furo como estrutural, mais além das determinações normativas atuais. Assim, de certa forma, parece-nos que o furo se aloja no feminino, devido às contingências histórico-corporais que tornaram as mulheres em portadoras privilegiadas desse enigma; tanto é assim que até mesmo as/os analistas tentaram localizá-lo no corpo feminino: "a gente o chama como pode, esse gozo, vaginal, fala-se do polo posterior do bico do útero e outras babaquices, é o caso de dizer" (Lacan, 1972-73/2008, p. 81).
No entanto, conforme Lacan, essa localização é insuficiente, pois trata-se de um Outro gozo, do lado do não-todo, que é refratário à linguagem, ao campo do saber; por isso, "as damas analistas, sobre a sexualidade feminina, elas nos dizem algo, mas... não-tudo" (Lacan, 1972-73/2008, p. 64). Há algo de inominável no gozo feminino que o torna impossível de ser todo dizível, por uma razão interna, "ligada à estrutura do aparelho do gozo" (p. 64). Um gozo que não se pode saber, apenas experimentar. Nessa esteira, sustentamos a leitura de que a grande subversão que Lacan tenta promover em relação à dita sexualidade feminina é considerar que, se a vagina, o bico do útero etc. são insuficientes para localizar esse gozo no corpo da mulher, é porque não se trata aí de um elemento que brotaria da anatomia, e sim, de um efeito sofrido pelo ser falante a partir da incidência da linguagem.
Na proposta lacaniana, o gozo feminino não é algo restrito àqueles seres falantes que têm vagina (ou que não têm falo); diferentemente, como coloca Santiago (2017a), "um corpo pode transitar tanto para o lado feminino quanto para o lado masculino da sexuação" (p. 18). Dessa forma, há "homens que lá estão tanto quanto as mulheres" (Lacan, 1972-73/2008, p. 82), indicando que a "vertente opaca do gozo feminino ... concerne, igualmente, ao sujeito masculino" (Santiago, 2017a, p. 19). Essa dimensão do inominável, do não-todo, não foi suficientemente localizada por Freud (1937/1996), que se limitou a pensar as mulheres pela lógica fálica, ao colocar a frigidez (ou a insatisfação), o complexo de masculinidade e a maternidade como únicas saídas possíveis para o feminino, a partir do impasse da inveja ou reivindicação do pênis.
Da mesma maneira, o rochedo da castração também foi o limite intransponível para Freud (1937/1996, p. 270) na análise dos homens, os quais não aceitavam se submeter à posição de "passividade", especialmente na relação a outros homens, uma posição que pode estar atrelada a algo do feminino que lhes aparece como insuportável, numa tentativa neurótica de localizar, à distância, o inominável do furo, do S(Ⱥ). Se o vienense parou na castração, Lacan nos permite vislumbrar um gozo além do falo, produzindo um giro na forma como a psicanálise concebe o ser falante. Sua principal subversão é, a nosso ver, indicar que a opacidade do furo, o inominável do gozo, que até então parecia ser restrito às mulheres em seu sentido corriqueiro, é uma dimensão que concerne ao avesso de todo ser falante e que o final de uma análise pode desvelar como tal, bem como atestam os testemunhos de passe de Jésus Santiago (2017a).
Por causa disso, sustentamos que esta é a verdadeira subversão feita por Lacan a partir da sexualidade feminina, mas sem se restringir a ela: a descoberta do caráter moebiano do gozo no ser falante, em que todo sujeito é assombrado pelo seu avesso não-todo, mais além dos limites da linguagem. Mesmo que não tenha chegado ao mesmo ponto que Lacan, Freud (1937/1996) já estava avisado de que a neurose se configura como um "repúdio à feminilidade" (p. 268), ainda que ele recorra à esperança num sentido biológico que um dia explicaria esse enigma. Diferentemente, avançando nessa direção pela via lógica, Lacan permite conceber que a neurose, enquanto tentativa de ancorar-se num sentido fálico a serviço da castração, não passa de uma estratégia para defender-se do não-todo, do ponto de furo que assombra todo ser falante.
Desse modo, na neurose, a orientação pelo ao-menos-um da exceção mítica como suplemento fantasmático permite que o sujeito aspire a um gozo que, na sua fantasia, teria sido perdido. Essa ilusão lança as bases para que se instale um regime identitário que permite tanto o semblante de relação sexual dos gêneros tradicionais, quanto a crença em uma parceria qualquer que fosse permitir um encontro harmonioso, garantido, sem falta. O traço excluído para a fundação do universal é sempre fictício, contemporâneo de sua fundação, e corresponde ao traço mítico de um gozo total. A estratégia dos gêneros tradicionais é fazer semblante de que é possível alcançar novamente o Um. Isso porque esses gêneros binários, no lado masculino da sexuação, são organizados em torno de uma ficção do instinto reprodutivo, gerando uma ilusão de complementaridade, de um encontro que seria natural e garantido. Citamos nominalmente o encontro heterossexual pela centralidade que ele adquire na modernidade ocidental, mas vale ressaltar que esse fracasso estará colocado para todos os tipos de encontro, na medida em que a opacidade do furo sempre assombra o sentido.
Nesse caso, se o suplemento fantasmático do ao-menos-um instaura essa busca pelo mais-de-gozar, podemos encontrar aí um dos fundamentos da violência e da segregação que o Um dos gêneros engendra. Isso na medida em que "o poder segregativo do Um ... somente prescreve, em seu Universo, quem dele faz parte como unidade do Mesmo (do masculino, do sentido), na medida em que proscreve quem dele se exclui como alteridade que não cabe em sua coleção" (Teixeira, 2007, p. 41, comentário nosso). Portanto, trata-se de perceber que o Um, longe de ser naturalmente dado, só aparece como efeito contingente de uma produção linguageira. Insistir na imposição do Um só poderá ser, então, uma forma de impostura, por fazer ver como natural algo que tenta ocultar seu devir histórico.
Assim, o "feminino" no nível dos semblantes nos parece funcionar como uma estratégia para localizar o furo, uma tentativa de significantizá-lo, o que é impossível, pois, havendo significante, o furo já se perdeu. Daí a importância, num processo de análise, de abrir espaço para o feminino: consentir com o fato de que o sentido não dá conta de tudo, dar margem ao indizível, numa abertura ao não-todo fálico (Santiago, 2017b, p. 104). A opacidade do furo é o que vem fazer objeção aos arranjos binários de gênero, ao indicar que a sexualidade aponta para além do sentido que os gêneros tradicionais tentam delimitar para o sexual. Isso na medida em que o gozo apresenta um ponto radical de ab-senso que a fixão de um sentido tenta contornar. Portanto, a descrença contemporânea nos gêneros binários tradicionais pode ser vista como uma denúncia do caráter contingente do sentido do lado masculino das tábuas. Pois desconstruir os arranjos tradicionais de gênero tem como consequência que cada sujeito tenha que lidar mais diretamente com a angústia da sua própria indeterminação. Nesse caso, os gêneros tradicionais buscam escamotear o furo, a faceta não-todo fálica do sexual, pela via do sentido, que se coloca para todos, qualquer que seja seu gênero ou sua orientação sexual.
Mas um problema se instala quando um sujeito, na montagem do sentido que orienta seu gozo, se põe a serviço de uma norma identitária heterossexual para tentar fixar o Real e tamponar o enigma, enredando-se numa norma que alimenta a ilusão do encontro bem-sucedido, ao pretender uma linha de coerência e unidade para cada identidade socialmente proposta. Algo que fracassa miseravelmente pelas descontinuidades e furos que cada sujeito carrega consigo. Isso porque os gêneros tradicionais estão no campo do saber, do sentido, entre Simbólico e Imaginário, ao passo que o furo, não-todo, é da ordem do sem sentido, do que é refratário ao saber, no campo do Real. Assim, o sentido dos gêneros não dá conta de tudo; resta um furo, mesmo com essa montagem generificada que faz semblante de completude, de relação sexual. Essa falha fica patente na tradicional comédia dos sexos, em que os "homens" buscam "ter o falo", e as "mulheres", "ser o falo", sempre de forma falhada.
Essa comédia só poderia se passar em referência ao lado masculino da tábua, que envolve tanto o "masculino" quanto o "feminino" socialmente reificados, a partir do primado universal do falo. O lado masculino, enquanto todo fálico, engloba ambos os gêneros, como semblantes fálicos sexuados, já que se trata de seres falantes imersos em campos de sentido referidos ao simbólico; por isso, os gêneros criam um binário pretensamente relacional: o "masculino" e o "feminino" - que só aqui seriam relacionais, ao contrário das duas lógicas de gozo. Já o lado feminino da tábua é o não-todo fálico, indicando o furo no sentido, no âmbito do real do gozo, com que todo falante está estruturalmente comprometido. Assim, se não há o significante d'A mulher, é porque não há significante para o furo; a complementaridade é impossível para todo sujeito que fala, pois não existe A mulher que seria a parceira de todo homem, do ser falante tomado como universal. É isso que leva Lacan a afirmar que "A mulher não existe": há um ponto de furo que o significante não alcança e que se coloca para todo ser falante, mesmo que para cada um de maneira singular, produzindo a rata, a falha, o fracasso.
Por sua vez, o correlato desse axioma é o de que não existe relação sexual. A nosso ver, ele indica que sentido e furo não são harmônicos, não operam como yin-yang. Por isso, a diferença sexual se torna aqui, de certa maneira, "interna" ao próprio sujeito, não mais concebida como uma diferença simbólico-imaginária entre macho e fêmea, fálico e castrado, pênis e vagina. Trata-se de uma desarmonia que atravessa a própria sexualidade, na medida em que a diferença sexual é o impasse do sujeito mesmo, dividido no real de seu gozo por estar na linguagem de forma sexuada. Devido à intrusão do Outro para sua constituição, o sujeito já é estruturalmente não harmônico e, por isso, seus encontros são marcados pelo fracasso, causado pela falha estrutural do gozo com a qual o sujeito terá de se haver especialmente frente ao despertar da primavera, no real da puberdade.
Em decorrência disso, torna-se fundamental que, na adolescência, o sujeito, ao levantar o véu do saber sobre o sexo, encontre-se com o nada (Lacan, 1974/2003, p. 558), isto é, com o fato de que a ficção dos gêneros não totaliza o gozo; que o lado masculino não é tudo, que há um ponto de furo na sexualidade que não pode ser escamoteado. Ou seja, no encontro com o Real do Outro sexo, é preciso que o saber dos gêneros não dê conta do pulsional, para que o sujeito possa se haver com o singular do seu furo. É por isso que todo sujeito avança numa tensão estrutural entre o lado masculino (sentido) e o lado feminino (furo).
Antônio Teixeira (2015) pode nos ajudar a pensar essa questão quando escreve que há uma fundação violenta do universal, que só se afirma pela exclusão de alguma coisa, de um traço mítico, para formar esse universal mediante um gesto performativo. Pois, de forma correlata à exclusão mítica de um traço, ocorre a inoculação de um furo na sua estrutura. Um furo que faz objeção ao todo, que nega essa falsa totalidade. Assim, é pela incapacidade de consentir com a presença silenciosa do furo que se produz a violência do Um-niversal: um saudosismo iludido de que se poderia alcançar um gozo pleno, fruto da imaginarização neurótica.
Considerações finais
Nessa esteira, torna-se possível localizar a lógica de funcionamento discursivo de sujeitos com identificações demasiado rígidas, por exemplo, a normas identitárias de gênero, ligadas ao lado masculino da tábua, produzindo com isso sofrimento, violência e segregação. Algo a que o feminino faz objeção, na medida em que o furo é a verdade do sentido e a falha é a verdade da repetição normativa de performativos de gênero. Em uma psicanálise, trata-se, portanto, de um movimento de abertura ao não-todo fálico, ao furo no sentido, de modo que o analisante possa ver como contingência o que antes lhe parecia ter que ser repetido sob o peso do universal e do necessário, às custas do próprio sujeito. Pois, por mais que os gêneros tradicionais tentem totalizar o gozo do lado masculino, há sempre um ponto de falha na repetição que denuncia a insuficiência dos semblantes sexuados no campo do sentido.
Se o masculino é uma tentativa sempre falhada de se inscrever num universal e essa tentativa tem, muitas vezes, provocado sofrimento, violência e segregação, então, trata-se aí de uma aspiração ao Um da qual o sujeito pode vir a se desenganar no percurso de uma análise. Por isso, é preciso abrir espaço para uma forma de funcionamento discursivo que não se deixe enganar pelos semblantes sexuados, um funcionamento avisado dos riscos envolvidos no desconhecimento do furo que habita o sujeito. Isso implica parar de suspirar pelo Um, por meio de uma abertura ao não-todo fálico, ao ponto de opacidade que assombra o avesso de toda identidade. Assim, os desdobramentos da teoria da sexuação podem ajudar a lançar as bases para uma psicanálise que não reifique as configurações atuais dos seres falantes, abrindo-se a outros modos de (in)determinação dos sujeitos, de maneira a acolher as subversões contemporâneas das formas de reconhecimento do humano.
Notas
(1) Neste trabalho, não decodificaremos as inscrições lógicas encontradas nas tábuas da sexuação, trabalho que já foi exaustivamente realizado por diversos autores lacanianos. Para uma explicação detalhada das tábuas, ver, por exemplo, Van Haute e Geyskens (2016).
(2) Vale ressaltar, ainda assim, que um dos exemplos com que Lacan ilustra o lado dito mulher da sexuação é o místico São João da Cruz, o qual, no sentido corriqueiro do termo, seria provavelmente reconhecido como um homem. Esse uso nos parece interessante por apontar para uma forma contraintuitiva de se servir das referências "homem" e "mulher"; uso que, entretanto, não é o que mais encontramos nos textos de analistas lacanianas/os. Dessa forma, o potencial subversivo da invenção de Lacan parece ser deixado em segundo plano, quando uma grande parte das ilustrações da tábua tende a se servir de homens e mulheres no nível dos semblantes para indicar, respectivamente, o todo e o não-todo fálicos.
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Recebido em: 06/05/2017
Aprovado em: 30/08/2017