Serviços Personalizados
Journal
artigo
Indicadores
Compartilhar
Revista Psicologia e Saúde
versão On-line ISSN 2177-093X
Rev. Psicol. Saúde vol.4 no.2 Campo Grande dez. 2012
ARTIGOS
Um estudo sobre conselheiros tutelares diante de práticas de violência sexual
A study on guardianship council about practices of sexual violence
Un estudio sobre concejales de tutela ante las prácticas de violencia sexual
Dayse Simone de Melo BatistaI; Elder Cerqueira-SantosII
ICREAS Saber Viver
IIUniversidade Federal de Sergipe
RESUMO
O objetivo deste estudo é entender as práticas de trabalho de um dos atores que compõem a Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente: Os Conselheiros Tutelares. O Conselho Tutelar representa uma organização pública inovadora, capaz de dar respostas efetivas às diferentes situações de omissão ou violência contra os direitos da criança e do adolescente. Tratou-se de um estudo qualitativo com os cinco conselheiros, através de entrevistas estruturadas realizadas por meio de oito encontros semanais, com um roteiro, contendo blocos pré-estabelecidos: Infraestrutura, Rede de Atendimento, Avaliação da Rede de Atendimento e dos Serviços Realizados, Funcionamento do Conselho e Outras Informações. Os resultados apontam para as más condições de operacionalização do trabalho e de entendimento real da função tanto pelos próprios conselheiros como pela comunidade em geral, baixa autonomia e políticas públicas municipais ineficazes ligadas à criança e ao adolescente.
Palavras-chave: Conselho tutelar; Crianças e adolescentes; Violência sexual; Trabalho.
ABSTRACT
The aim of this study is to understand the working practices of one of the actors that make up the Network for the Protection of Children and Adolescents: The Guardianship Council. The Guardianship Council is an innovative public organization capable of effective responses to different situations omission or violence against the rights of the child and adolescent. This research was a qualitative study involving five managing directors, through structured interviews conducted in eight weekly meetings, with a script containing five blocks: Infrastructure, Service Network, Assessment Network and Customer Services Performed, Operation and Other Information. The results point out the bad work and operation conditions, the difficulties of a real understanding about the function exercised by the directors and by the community in general, low autonomy and ineffective public policies on children and adolescents.
Key-words: Child protection council; Children and teens; Sexual violence; Labor.
RESUMEN
El objetivo de este estudio es conocer las prácticas de trabajo de uno de los actores que conforman la Red para la Protección de Niños, Niñas y Adolescentes: los Concejales de Tutela. El Consejo de Tutela es una organización pública innovadora capaz de dar respuestas eficaces a las situaciones de omisión y de violencia en contra de los derechos del niño y del adolescente. Se realizó un estudio cualitativo con cinco Concejales, a través de entrevistas estructuradas realizadas a través de ocho sesiones semanales, con un guión que contiene bloques temáticos predeterminados: Infraestructura, Red de Atención, Evaluación de la Red de Atención y de los Servicios Realizados, Funcionalidad del Consejo y Otras Informaciones. Los resultados apuntan a las malas condiciones de operacionalización del trabajo y de comprensión real de la función, tanto por parte de los Concejales como de la comunidad en general; poca autonomía y políticas públicas ineficaces para la infancia y la adolescencia por parte de la Alcaldía.
Palabras-clave: Consejo de tutela; Niños y adolescentes; Violencia sexual; Laboral.
No ano de 2012, o Estatuto da Criança e do Adolescente completou 22 anos (Brasil, 2002). Com os inúmeros avanços e benefícios que ele trouxe, esperava-se um país muito evoluído após considerável período de tempo. Isto, no entanto, é parcialmente constatado. Em pesquisa realizada pela ANDI (2010), foi revelada que existem hoje, pelo menos, 5.772 Conselhos Tutelares no país. Os que existem, em sua maioria, não oferecem condições mínimas aos conselheiros para desempenharem suas funções. Nessas condições, pode-se citar: baixas remunerações, inexistência de uma sede, de um telefone, automóvel, ou seja, uma infra-estrutura ínfima. Outro problema grave constatado nos Conselhos Tutelares pelo país é o despreparo técnico-jurídico dos membros que os compõem (Garagnani, 2005). Em virtude da não exigência legal de que se elabore uma prova de conhecimentos específicos sobre o ECA na maioria dos municípios, a escolha dos conselheiros fica a cargo apenas dos cidadãos, por um processo eletivo. Desta forma, candidatos que desconhecem os direitos das crianças e os adolescentes podem assumir a posição de protegê-los.
Diversos estudos têm analisado a atuação dos Conselhos Tutelares frente ao quadro da violência sexual contra criança e adolescente (Frizo & Sarriera, 2005; Polizelli & Amaral, 2008; Costa et al, 2007; Sêda, 2008; Digiácomo, 2003; Bazon, 2008; Weber, 2005), mas poucos evidenciam a percepção que esses trabalhadores têm de suas práticas, suas dificuldades frente ao Sistema de Garantias e Rede de Atendimento, como estar preparado para a atuação sem a mínima capacitação necessária, o que denota a importância de novos estudos acerca dessa situação.
Nesse sentido, um dos pressupostos que sustentam a pesquisa aqui relatada diz respeito à percepção que esses atores têm da rede de atendimento na qual tem importante contribuição e a como a falta de infraestrutura e desconhecimento das suas reais atribuições os impossibilitarão de exercer a garantia dos direitos das crianças e adolescentes.
O Conselho Tutelar é um órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, tem como atribuição o atendimento direto de denúncias, o diagnóstico da realidade de violação de direitos, o monitoramento do Sistema de Garantia de Direitos e o atendimento direto de serviços. Os Conselhos Tutelares foram criados no país a partir da implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) pela Lei nº 8069/90 (Brasil, 2002), já o Conselho da pesquisa versada foi implantado em 2005 com a Lei nº 090/05. Os Conselheiros (cidadãos/profissionais da comunidade) exercem mandato de três anos e são responsáveis pelos comunicados dos casos suspeitos ou confirmados de violências, determinando as medidas de proteção necessárias, solicitando serviços públicos nas áreas de saúde, educação, Assistência Social, previdência, trabalho e segurança, ou encaminhando as vítimas e famílias ao Ministério Público.
Segundo Padilha (2007), alguns aspectos necessitam ser contemplados quando pensamos na atuação e nos entraves que permeiam a atuação dos Conselhos Tutelares. Tem-se que levar em consideração os normativos, presente nas legislações municipais e nos regimentos e procedimentos internos; os físicos, presentes na estrutura disponível para o exercício de suas funções; os humanos e técnicos, a ótica da formação, os valores e as motivações dos conselheiros para o exercício da atividade; e por fim, os relacionais, que dizem respeito à maneira como o Conselho interage com a criança e o adolescente, as famílias, a comunidade, os demais integrantes da rede de proteção e com a sociedade como um todo.
Segundo o Instituto de Estudos Especiais - IEE e Centro Brasileiro para a Infância e Adolescência - CBIA (1992)
O Conselho Tutelar não é uma estrutura que vem substituir aquelas que já existem e dão atenção à infância e adolescência. Ele é um órgão público com poderes para determinar este ou aquele procedimento a ser executado pelas entidades governamentais, não-governamentais, pais ou responsável, Estado e sociedade. (p.12)
A sobrecarga de trabalho e a escassez de infraestrutura dos Conselhos Tutelares têm sido obstáculos importantes à condução dos casos de violação de direitos (ANDI, 2010). O investimento intenso do trabalho dos Conselhos se dá sobre os casos de maior gravidade, o que é perfeitamente compreensível, se for considerado a necessidade de priorizar o investimento humano. Em decorrência, o impacto das notificações e da ação dos conselheiros têm sido pequeno nos casos de menor gravidade e risco. Mas há que se reconhecer que, ao tratar o fenômeno das violações, conceitos e condutas estão ainda em construção, e muitas dúvidas só encontrará respostas na discussão coletiva entre profissionais e as redes de proteção (Garagnani, 2005).
É preciso frisar que tomar o Conselho Tutelar como lócus de informação para o delineamento das formas de violência, se justifica, pois, levando-se em conta a Lei nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA), tal órgão se configura, ainda que potencialmente, em espaço de convergência de informações referentes a um rol variado de situações vividas pelas crianças e adolescentes, no âmbito de um município, considerando-se que todos os casos suspeitos e/ou comprovados de ameaça ou violação de direitos devem ser notificados nessa instância.
A infância e a garantia de direitos: um breve panorama
As diferentes concepções de infância e adolescência são construídas em um cenário de violência e desigualdades, e foram tecidas ao logo do processo histórico brasileiro. Para se entender tais situações assimétricas é necessário analisarmos as diferentes concepções no curso da história. Para tanto, apresenta-se, de forma panorâmica, as concepções hegemônicas sobre a infância e a adolescência dos séculos XVI, XIX e as primeiras décadas do século XX. A escolha desses séculos distintos não é aleatória, pois, foram marcos das transformações das concepções sobre infância e adolescência na história do Brasil (Santos, 2007).
Segundo Ariès (1981), no final do século XVI, a concepção do termo criança foi construída na Europa, quando ela deixa de ser um ente engraçado, cômico, cuja finalidade era alegrar os adultos, para ser um modelo de inocência e pureza. A criança passa a irradiar graça, meiguice, numa visão mitificada da ideologia cristã. Acreditavam que, nesse período de vida , "o espírito infantil estava apto a ser disciplinado para não perder a sua inocência e a sua pureza nata da puerícia. E foi a educação escolar que passou a ser o instrumento de aperfeiçoamento espiritual, moral e intelectual, para produzir homens intelectuais e cristãos" (Ariès, 1981: 267).
Ariès afirma também que, até o final do século XVII, considerava-se o término da primeira infância a idade de cinco a seis anos, quando as crianças deixavam os cuidados da mãe ou da ama ou de suas criadas. Quando completavam sete anos de idade, podiam ser iniciados no mundo da educação, porém, em alguns casos, a infância era prolongada para os dez anos de idade, período de ingresso na escola. A segunda infância (dez - catorze anos) não se distinguia da adolescência (quinze - dezoito anos) e nem da juventude (dezenove - vinte e cinco anos), eles frequentavam a mesma classe escolar. Essas categorias de idade só deixaram de ser confundidas no final do século XVIII.
A concepção de infância nesse período não era homogênea, existindo diferenças substanciais entre a criança escrava, a indígena e a branca, demarcadas pela situação étnica e de classe que cada uma ocupava na sociedade. A natureza de classe da sociedade colonial construiu a concepção de infância de acordo com as necessidades do dinamismo do sistema, ou seja, a criança escrava deveria trabalhar com o objetivo de dar retorno ao investimento do seu proprietário. Desse modo, não se buscava a meiguice e a pureza nas crianças negras escravizadas, como se fazia entre os filhos dos senhores, e sim, o trabalho. Por outro lado, várias crianças brancas, oriundas das classes empobrecidas, os chamados "enjeitados", eram abandonadas nas ruas, nas portas das casas e nas igrejas. Segundo Maria Marcílio (1997) muitas dessas crianças morriam de fome, frio ou eram comidas por animais. Os motivos do abandono eram resultantes de fatores econômicos e sociais. As condições de vida de boa parte da "população livre branca" eram precárias, o que dificultava a criação de vários filhos. Outro aspecto era a existência de crianças filhas de relacionamento fora do matrimônio. Geralmente, as pessoas envergonhadas, pressionadas pelos padrões sociais cristãos, lançavam essas crianças à fatalidade da rua. "Abandonar os filhos é tão antigo como a história da colonização brasileira" (Santos, 1997; p.15).
Com a efervescência do final do século XIX, a produção de novos saberes científicos (Medicina Pediátrica e Sanitária, Sociologia, Pedagogia, Psicologia, entre outras) e o dinamismo econômico, a sociedade brasileira cria uma nova visão sobre a infância. Rago (1997) afirma que a Medicina, com a noção de higienização, passa a intervir no cotidiano das famílias, orientando-as para a preservação da infância. Os recém- nascidos e as crianças passam a ser o alvo da intervenção médica na sociedade, com cuidados que estão incluídos nos "métodos científicos" de profilaxia. De acordo com essa visão, os médicos travaram uma guerra com saberes e práticas populares, chamadas por eles de primitivas e de supersticiosas.
A infância passa a ser considerada como possível de ser moldada dentro dos padrões sociais. Para isso, deve - se usar técnicas pedagógicas rígidas e disciplinares que impinjam nas crianças as condutas, as regras e os princípios morais burgueses para manutenção da ordem. Torres Londoño (1991) assinala que, no limiar do século XX, as classes dominantes, principalmente, o corpo jurídico e médico, possuíam a visão de que as crianças e adolescentes, oriundas das classes populares, seriam seres privados de senso moral, predispostos à criminalidade, à vingança e à cólera. Para evitar tal situação, o Estado deveria prover as condições educacionais para "corrigir", "disciplinar" e "controlar" esse grupo social. A "[...] criança abandonada, vadia e infratora, pelo menos no plano da lei, deixou de ser uma questão de polícia e passou a ser uma questão de assistência". (Saeta, 2004; p.23). A criança deveria ter cuidados higiênicos, de saúde, educação, disciplina e instrução garantidos, pelo menos no âmbito da lei, em vista da sua reintegração na sociedade, questionando-se a qualidade de tratamento dado pelas "rodas dos expostos" nas Santas Casas de Misericórdia e pelas "criadeiras".
Nessa perspectiva, surgiram os primeiros "ecos" na sociedade para a elaboração de leis que disciplinassem os "menores". Atendendo o anseio da população, em especial das classes dominantes, em 1921, o governo brasileiro assinou a Declaração da Criança na Conferência de Genebra. Tal tratado inspirou a elaboração e, posteriormente, o decreto do Código de Menores, do juiz Mello Mattos, a Lei de 12 de outubro de 1927, sendo o primeiro Código da América Latina (Motti & Silva, 2007).
Este código expressou a concepção autoritária e paternalista das classes dominantes, considerando o "menor abandonado" enquanto infrator, que necessitava ser disciplinado e controlado para ser inserido no processo econômico, que despontava no país. Encarregar a "questão social", no que se refere à situação da infância e da adolescência, aos cuidados dos agentes repressivos do Estado foi uma solução viável para essa elite. Em 1942, instituiu-se a Lei Brasileira de Assistência - LBA, entre cujos objetivos incluía-se o cuidado da família. Neste quadro, crianças e adolescentes eram concebidas mais como objetos do que sujeitos. As transformações sociais do século XX levaram à emergência de organismos internacionais que passaram a cobrar dos governos e da sociedade uma nova concepção da infância e da juventude. As políticas públicas foram influenciadas quer por essas exigências internacionais quer pelos reclamos da população. Entretanto, o Estado ainda mantém a política autoritária da Lei nº 4.513, de 1º de dezembro de 1964, introduzida pelo Governo Militar, a saber, a Política Nacional do Bem-Estar do Menor, para tratar dos desajustes do menor carente, abandonado e deliquente (Saeta, 2004).
Somente a partir do século XX, a sociedade brasileira reuniu as condições para incorporar as legislações internacionais de defesa dos direitos e transformá-las em políticas. Destacamos a Declaração dos Direitos Humanos de 1948, a Declaração de Genebra, de 1923, a Declaração dos Direitos da Criança e do Adolescente, de 1959 e as Convenções e Recomendações da Organização Internacional do Trabalho - OIT, de 1955. Dentro da dinâmica de construção de uma cultura dos direitos, ganharam voz os vários segmentos em defesa da infância e da juventude, em particular das crianças e adolescentes portadores de deficiência (Saeta, 2004).
Ainda referente ao Brasil, a concepção de direitos para a criança e adolescente é fundamentada como lei, em julho de 1990, com a promulgação do Estatuto da Criança e Adolescente (ECA). Segundo Padilha (2005), a legislação brasileira concernente à questão dos direitos de criança e adolescentes é uma das mais avançadas do mundo, tida como referência na construção de legislações similares em diversos países na América Latina e em outros continentes.
O Estatuto da Criança e do Adolescente instaurou profundas modificações nas políticas voltadas à infância. Mudanças no conteúdo, no método e na gestão da abordagem da problemática infanto-juvenil brasileira. Tendo como paradigma os recentes avanços da normativa internacional e possuindo como conteúdo o melhor da experiência acumulada pelo movimento social brasileiro, o Estatuto da Criança e do Adolescente é um instrumento que colabora decisivamente na identificação dos mecanismos e exigibilidade dos direitos constitucionais da população infanto-juvenil. Privilegia-se nele, um espaço para a denúncia e o ressarcimento de qualquer fato que viole os direitos das crianças e adolescentes, ainda que à revelia dos mesmos.
Essa nova lei privilegia a ação educativa a partir da família, diferentemente da lei anterior que, conforme afirma Oliveira (1995), "propugnava a positividade da instituição ressocializadora, supostamente capaz de suprir as falhas na sociabilidade primária, ocasionadas pela convivência com a chamada família desestruturada" (p.29). Surge como indicador de uma nova proposta de política social para a infância e a juventude, colocando lado a lado a família, a sociedade e o Estado como coresponsáveis pela dignidade e pelos direitos dessa parcela da população.
Outro aspecto considerado inovador que o Estatuto traz são os mecanismos de participação que permitem, em tese, o envolvimento da sociedade civil na elaboração e fiscalização das políticas para a infância e a juventude através dos conselhos de direito e Conselhos Tutelares. Os primeiros existem em três instâncias: nacional, estadual e municipal; são compostos de forma paritária entre governo e sociedade civil organizada, tendo como função a formulação de políticas, fiscalização das ações e gestão de fundos destinados à área. Os Conselhos Tutelares têm a função de zelar pelo cumprimento e garantia dos direitos das crianças e adolescentes, sendo de âmbito municipal e eleito pela população (Sandrini, 2009).
Violência sexual contra criança e adolescente
A violência sexual é tema de múltiplas investigações que se presta a inúmeras controvérsias e polêmicas. Existe uma realidade atual inegável: o aumento das diferentes formas de violência presentes na sociedade contemporânea.
No entendimento de diversos autores, como Silva (2007), Day et al.,(2003) e Caminha (1999), a violência intrafamiliar constitui em um alarmante problema de saúde pública. Conforme afirma Caravantes (2000, p.229), a violência intrafamiliar pode ser compreendida como qualquer ação ou omissão que resulte em dano físico, sexual, emocional, social ou patrimonial de um ser humano, onde exista vínculo familiar e íntimo entre a vítima e seu agressor.
Apesar do elevado índice de violência nas ruas, que amedronta e aprisiona as pessoas em suas casas, é justamente neste local que ocorrem eventos potencialmente traumáticos envolvendo inúmeras crianças e adolescentes - naquele ambiente que deveria ser o mais protetor. Ainda que seja dada maior visibilidade à violência urbana, o lar continua sendo a maior fonte de violência (Kristensen, Oliveira, & Flores, 1999; Roque & Ferriani, 2002). O abuso sexual, que pode ocorrer tanto fora quanto dentro de casa, tem ocorrido predominantemente dentro das famílias, caracterizando-se por longa duração, com um intervalo médio de um ano entre o primeiro abuso e a revelação (Habigzang, Koller, Azevedo & Machado, 2005).
O Estado de Sergipe tem notificado um número cada vez maior de denúncias de violência sexual infantil. No ano de 2010, foram registrados 537 casos de violência sexual contra crianças e adolescentes (SEIDES, 2009). É importante fazer uma ressalva que este número pode sofrer duplicidade ou grande alteração, já que a vítima pode sofrer vários tipos de violência. Além disso, mesmo com o aumento das denúncias, os números são apenas estimativas, já que muitos casos permanecem guardados em segredo pela complexa dinâmica do abuso sexual. Além disso, pensa-se que a epidemiologia desses casos é ainda atravessada por fatores socioeconômicos, já que as classes mais favorecidas tenderiam a evitar a denúncia e a exposição social que esta implica. (Fassler et al, 2005 citado por Pelisoli, 2008).
Método
Participantes
Foram convidados a participar do estudo, após as explicações dos objetivos e metodologia, os cinco conselheiros tutelares da gestão (2009-2012). Neste estudo, tivemos como fatores de inclusão: Conselheiros Tutelares do município do agreste sergipano; Conselheiros Tutelares do atual mandato; Estar em qualquer nível de escolaridade. Entre os Conselheiros entrevistados, há a predominância de mulheres e apenas um conselheiro com nível superior completo. Todos moram em casa própria e na região.
O contexto da pesquisa
O município presente neste artigo está situado no agreste do Estado de Sergipe, compõe uma região considerada um dos pólos em ascensão do Estado, caracterizada por significativa comercialização pecuarista e mais recentemente na atividade açucareira. Sua população estimada em 2010 era de 24.580 habitantes, sendo 6832 crianças e 2355 adolescentes (IBGE, 2012). A cidade possui apenas um Conselho Tutelar, instalado desde 1993.
Instrumento
Foi utilizado um questionário especialmente produzido para este estudo. Este instrumento constou de cinco blocos de sessenta e quatro questões que abordou temas: Infraestrutura, Rede de Atendimento, Avaliação da Rede de Atendimento e dos Serviços Realizados, Funcionamento do Conselho e Outras Informações.
Procedimento
O processo de coleta de dados se utilizou de visitas agendadas no próprio local de trabalho dos informantes a partir de sua disponibilidade e com prévia autorização da instituição. Foram realizadas oito visitas ao Conselho Tutelar para caracterização do mesmo, num período de uma hora e meia cada, com observação e entrevistas estruturadas como instrumento de coleta de dados.
A cidade escolhida foi por conveniência (local de trabalho de um dos autores) e o número de total de participantes entrevistados teve como base a própria formação de conselheiros tutelares estabelecida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), ou seja, cinco conselheiros.
Análise dos Dados
Para análise e tratamento dos dados foi utilizada a análise de conteúdo proposta por Bardin (1977), privilegiando-se a análise temática, com característica transversal, que "recorta o conjunto das entrevistas através de uma grelha de categorias projectada sobre os conteúdos" (Bardin, 1977, p.175). Assim, tivemos como categorias ou eixos temáticos para análise os seguintes itens: Infraestrutura, Rede de Atendimento, Avaliação da Rede de Atendimento e dos Serviços Realizados, Funcionamento do Conselho e Outras Informações, conforme já mencionado sobre as questões de abordagem de instrumento.
Resultados e Discussão
Infraestrutura
Com base nas entrevistas, os conselheiros tutelares mostraram insatisfação quanto aos recursos para o trabalho do Conselho Tutelar, as instalações físicas não são totalmente adequadas, salas pequenas, o espaço dividido com o programa federal PETI - Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, com acústica comprometida e sem oferecimento de material lúdico para uma melhor escuta à criança e ao adolescente, além da falta de suporte no que tange à segurança. Quanto aos recursos materiais, o Conselho Tutelar possui um carro (em notáveis más condições de uso), um telefone (há mais de 04 meses sem funcionamento), um computador, uma impressora (na mesma situação do telefone), móveis e material de escritório. Os recursos humanos, além dos próprios conselheiros, são constituídos de um serviços gerais e um motorista, não possuindo um assistente ou auxiliar administrativo. Perguntado sobre quais as principais dificuldades de infraestrutura, estes informaram que se houvesse suporte por parte da Prefeitura Municipal, o trabalho deles seria outro, "... há má assessoria do prefeito que não disponibiliza recursos para o nosso trabalho, estamos sem material há muito tempo e não é feito nada para que seja resolvido" (Conselheiro A).
Na Pesquisa Nacional Conhecendo a Realidade (2007), realizada por iniciativa do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente - CONANDA já mostrara a baixa prioridade atribuída pelas prefeituras aos conselhos tutelares. Os recursos orçamentários são contingenciáveis e sem transparência. Não há discussão entre os próprios conselheiros como também, com os conselheiros de direitos sobre as políticas públicas a serem construídas durante o ano.
O conselho tutelar tem como atribuição assessorar o executivo na elaboração da proposta orçamentária que deverá ser enviada ao legislativo para aprovação. O papel do Conselho Tutelar vai no sentido de garantir que a política deliberada pelo Conselho de Direitos terá os recursos públicos necessários para a sua implementação, mas por não ser considerado um órgão importante dentro do município, o Conselho Tutelar não entra na dotação orçamentária.
As atividades citadas pelos entrevistados indicaram uniformidade em relação aos procedimentos de abordagem à violência sexual contra a criança e o adolescente (atendimentos, averiguações, encaminhamentos, acompanhamentos, abertura de representações públicas, se necessário; entre outras). Isto ocorre em grande medida, em função da implantação da proposta de padronização dos procedimentos com base no Sistema de Informação para a Infância e Adolescência - SIPIA, onde é definida a necessidade de diagnóstico do tipo de violação de direitos sofridos pela criança e adolescente, indicando as ações a serem realizadas pelos conselheiros tutelares.
Existem também conselheiros que não são comprometidos com a causa e entram no Conselho para fazer deste um trampolim político ou mesmo pelo fator remunerativo, o que contribui para a falta de preparação dos mesmos para a abordagem das situações que se apresentam no cotidiano. Nas observações das práticas de trabalho, em muitos momentos foi percebido despreparo na condução dos casos, conselheiros apáticos, sem preparo legal e psicológico para orientar as famílias em como proceder nas situações de violência sexual. Como demonstrou o estudo de Garagnani (2005), vários conselheiros só tomaram conhecimento do ECA no exercício de sua função. Estas características desconfiguram a identidade institucional dos Conselhos Tutelares na medida em que os mesmos não têm reconhecimento de sua representatividade por parte da população, fato demonstrado pela baixa afluência, pelas manifestações nas eleições (Ribeiro, 2005), pela deslegitimação de suas competências, dadas as características de qualificação dos Conselheiros e a baixa resolutividade de suas ações.
Segundo Digiácomo (2003), o Conselho Tutelar não deve limitar sua atuação ao simples atendimento de casos individuais de crianças e adolescentes que já foram vítimas de violência sexual, com a simples aplicação de medidas que estão fadadas ao fracasso por não promoverem mudanças sociais efetivas e pela absoluta falta de estrutura do poder público, mas deve agir de forma preventiva, e com uma preocupação coletiva, visando a implementação de programas específicos de atendimento e de serviços públicos especializados que permitam enfrentar as causas do problema e encontrar soluções efetivas e definitivas, tanto em proveito da criança ou adolescente, quanto de sua família.
Para tal situação acontecer, deve o Conselho Tutelar, usando de seus deveres e prerrogativas legais, dentre as quais se encontra, a de assessorar o poder executivo local na elaboração da proposta orçamentária para planos e programas de atendimento dos direitos da criança e do adolescente (ECA, 1990, art. 136, inciso IX), buscar junto ao Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (ao governo e órgãos públicos municipais que o integram), a elaboração e implementação de uma política pública específica, voltada à prevenção e ao atendimento especializado a essa clientela.
Rede de Atendimento
Foi observada a falta de conhecimento social sobre a existência e o papel do conselho tutelar no município estudado. Foi mencionado por todos os conselheiros, que tanto a população, como os equipamentos sociais os veem como o solucionador de todos os problemas da comunidade, como uma mini "delegacia", uma prisão para as crianças tidas como desobedientes ou os pais tidos como agressores. Os conselheiros acabam sendo vistos como carrascos ao invés de representantes da comunidade. Essa relação fica evidente no que se refere às escolas, quando os entrevistados citam que elas não conhecem nem reconhecem as funções dos conselheiros e esperam dos Conselhos Tutelares ações e atitudes que não seriam de sua responsabilidade. ... "As Escolas têm que entender que a nossa função não é disciplinar aluno desobediente, essa função é da Coordenação e Direção Escolar". Conselheiro B - "as crianças vêem a gente como delegados que vão prendê-los num quarto escuro". Conselheiro A. Esse contexto acaba por auxiliar na construção de um sentimento de impotência e de menos valia nos Conselhos Tutelares, em relação ao seu trabalho.
Nesse sentido, os Conselhos Tutelares não consolidam uma identidade clara, sendo percebido ora como um lugar de proteção, ora como um lugar de repressão. A palavra "tutelar" adjetivada a este tipo de conselho expressa muito bem essa tensão, que se vê reforçada pela transformação dos Conselhos Tutelares em organismos que deslocam para a sociedade civil, as obrigações do Estado (Ribeiro, 2005).
Se há falta de reconhecimento por parte da comunidade sobre o Conselho Tutelar, isso se deve a atuação fragilizada do Conselho Tutelar analisado. Assim que tomam posse, os Conselhos Tutelares distribuídos no país têm como plano de ação, fornecer à sociedade maiores informações sobre a estrutura e o seu modo de funcionamento, o que não foi verificado nesses dois anos de atuação, na pesquisa local.
O Conselho Tutelar precisa participar do processo de conscientização e de mobilização dos pais ou responsáveis e da sociedade em geral, zelando para que os profissionais que atuam nas escolas e nos órgãos de atenção à saúde estejam atentos aos sinais de vitimização que a criança ou adolescente apresenta e, diante da mera suspeita de sua ocorrência, efetuem as comunicações a que estão obrigados (ECA, 1990, arts. 13 e 56, inciso I c/c art. 245), que deverão ser repassadas de imediato ao Ministério Público (ECA, 1990, art. 136, inciso IV) e à polícia judiciária para que sejam devidamente apurados, de preferência, com o auxílio de uma equipe interprofissional habilitada (Digiácomo, 2003).
Além da dificuldade da comunidade e dos equipamentos sociais reconhecerem o verdadeiro papel do Conselho Tutelar analisado, uma outra realidade também é imposta a estes: a falta de equipamentos sociais no município que também possam dar suporte a criança e ao adolescente. Há falta de creches na comunidade, o que possibilita que muitas crianças fiquem a mercê de pessoas desqualificadas para assisti-las. O Conselho Tutelar não pode fazer encaminhamentos diretamente ao IML para exames de corpo delito, sem antes expor toda a situação na delegacia, já que o município também não possui delegacias especializadas.
Avaliação da Rede de Atendimento e dos Serviços Realizados
Na comunidade pesquisada, a atuação do Conselho Municipal dos Direitos da Criança - CMDCA é bastante comprometida. Não há reuniões frequentes, não há um espaço de discussão entre Conselhos, e os Conselheiros Tutelares, em suas falas, verbalizaram que se sentem constantemente vigiados pelos poucos Conselheiros de Direitos que atuam, se nas suas práticas de trabalho estão ou não executando os procedimentos . "O nosso Conselho Tutelar só teve contato com o Conselho Municipal na nossa posse, e eles acham que podem mandar na gente" Conselheiro C. "Na verdade nem sei se existe o Conselho Municipal, pois a nossa Secretária não nos informa os membros que o compõe" Conselheiro A.
Em pesquisa sobre os Conselhos Tutelares no Brasil (ANCED, 1997), envolvendo 401 Conselhos em 1996, é indicado que a relação do Conselho Tutelar com o CMDCA se apresenta dilemática em todo o país, sendo de apoio mútuo, limitada à extrema necessidade ou então marcada por conflitos.
É importante ressaltar que quando o Conselho Tutelar detectar inércia ou omissão do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, lhe cabe comunicar os fatos ao Ministério Público (ECA, 1990, art. 220), que poderá tomar medidas administrativas e mesmo judiciais para compelir o órgão a cumprir as atribuições básicas de sua missão institucional (Digiácomo, 2003).
As relações do Conselho Tutelar com o Poder Judiciário, Ministério Público e Segurança Pública mostraram-se satisfatórias, no que tange à responsabilidade que cada equipamento tem sobre o seu papel, mas que eles não deixaram de salientar a morosidade dos procedimentos e processos de alguns. "Ás vezes a gente manda um caso para o promotor e tem que ficar no "pé" pra ver se a coisa anda, porque senão ele coloca outro caso na frente" Conselheiro E.
Em outro ponto se verificou que as decisões individuais são frequentes entre os conselheiros tutelares entrevistados. Muitos atendimentos são feitos sem a presença de no mínimo dois conselheiros. Alguns exercem maior procura por parte da comunidade que outros, o que acaba gerando conflitos entre eles. O colegiado costuma se reunir sempre que necessário, segundo a opinião da maioria dos entrevistados. Eles não executam medidas, apenas deliberam e requisitam, e, dessa forma, o sucesso das medidas adotadas pelos Conselhos Tutelares depende das condições de funcionamento dos conselhos e da contrapartida do órgão para o qual a medida foi encaminhada, que, supostamente, deve cumprir ou dar andamento às decisões deste.
Há seis meses a falta de padronização dos registros das violações atendidas por eles vem comprometendo o funcionamento do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente - SGDCA. O Sistema de Informação para a Infância e Adolescência (SIPIA) tem como objetivo monitorar as violações e orientar os encaminhamentos feitos pelos Conselhos Tutelares. Houve treinamento para todos, mas até o momento, eles não utilizam o Sistema, em função do não funcionamento do computador, internet e impressora, sob alegação de problemas financeiros na Prefeitura.
A implantação do SIPIA (atualmente SIPIA Web) nos conselhos tutelares permite formar um banco de dados e um histórico das violações no município. Isso representa um salto qualitativo no diagnóstico das violações de direitos, podendo contribuir para a elaboração das prioridades de ação e para orientar a alocação de recursos orçamentários. A ausência do SIPIA acaba enfraquecendo a atuação dos Conselhos Tutelares e o diálogo entre os atores do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente - SGDCA (Digiácomo, 2003).
Funcionamento do Conselho
O conselho tutelar realiza os seus atendimentos nos turnos matutino e vespertino e em sistema de plantões, mas que nestes, eles permanecem em suas residências. O conselho não funciona 24 horas e nem aos fins de semana. A lei municipal que rege o funcionamento do Conselho (Lei nº90/05) não exige dedicação exclusiva para o exercício da atividade, então o que ocorre é a prevalência de muitos conselheiros exercendo uma atividade paralela, tendo em vista também que a remuneração recebida é limitada para as necessidades de sobrevivência apontada por eles.
Em seus discursos, os Conselheiros também informaram que todos os casos são sempre registrados, há para cada processo, um prontuário com a documentação e relato de todos os procedimentos adotados, mas o que pode ser percebido através da observação de suas práticas de trabalho foi a desorganização dos prontuários, não sistematizados de modo a serem acessados com rapidez; prontuários incompletos, fichas sem a realização de visitas iniciais, casos sem conclusão ou encaminhamentos à Rede, não monitoração dos casos quando enviados aos equipamentos (CREAS, CRAS, Centro de Saúde, Escolas, etc).
No que diz respeito à dinâmica de funcionamento, alguns elementos são comuns a todos os Conselhos do país. Há um regimento interno que regulamenta o seu funcionamento, discutido e construído pelos Conselheiros na época da pesquisa.
Outras Informações
O Conselho Tutelar Municipal está em funcionamento desde 1993. Está ligado, administrativamente à Prefeitura Municipal, que deve fornecer as condições materiais e físicas para o seu funcionamento. A remuneração destes, na época das entrevistas, era de R$ 510,00 (quinhentos e dez reais), por aproximadamente, quarenta horas de trabalhos semanais.
Quanto ao aprimoramento profissional, após dois anos de gestão, os Conselheiros receberam apenas duas capacitações. Assim que tomaram posse, receberam a informação de que haveria um treinamento, já que a maioria não conhecia a política ligada à criança e ao adolescente, mas segundo o próprio relato, só vieram a recebê-lo muitos meses depois. "Passamos muitas vezes na Secretaria, enviamos vários ofícios solicitando a capacitação com os Conselheiros Estaduais, mas chega uma hora que cansa e paramos de perguntar" Conselheiro C. Uma outra capacitação fornecida se referia à implantação do SIPIA WEB, que mesmo com a realização, não foi suficiente implementá-la, porque coincidiu com a retirada do computador e impressora, só chegando a serem registrados três casos.
Além dos critérios previstos pelo ECA - Art.133: I, reconhecida idoneidade moral; II, idade superior a 21 anos e III, residir no município - não há outras exigências para candidatura ao Conselho Tutelar deste município, o que possibilita o descompromisso e trampolim político que muitos almejam.
Considerações Finais
Este trabalho procurou entender a dinâmica de funcionamento de um dos atores que compõem a Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente: Os Conselheiros Tutelares. Boa parte dos estudos sobre os Conselhos Tutelares privilegia, na análise, a problemática da violência sexual contra a criança e o adolescente, definindo e caracterizando seu modus operandi. Este trabalho procurou observar o olhar que estes servidores públicos, principais atores dessa complexa instituição têm do fenômeno e como se inter-relacionam com outros equipamentos sociais.
O estudo foi conduzido a partir de observações e entrevistas estruturadas presenciais, com os cinco conselheiros tutelares da gestão (2009-2012), tendo como referência um município do agreste sergipano. As observações e conclusões a partir deste estudo não são, portanto, generalizáveis.
As dificuldades encontradas na pesquisa analisada apresentaram similaridade com os outros Conselheiros distribuídos no país conforme também apontada na pesquisa Conhecendo a Realidade (2007). A dificuldade em encaminhar os casos à Rede de Atendimento revela que as políticas sociais que compõem o SGDCA ainda precisam ser prioridades pelo Gestor Municipal. Um município com aproximadamente vinte e quatro mil habitantes que não possui creches, escolas que estão sendo fechadas, programas federais sendo executados sem a mínima infraestrutura não podem garantir que o direito violado seja restabelecido. Os depoimentos dos conselheiros denotam falta de espaço para que eles participem da formulação de políticas públicas e do orçamento municipal, o que reforça o entendimento de que os lugares que contam com a participação da sociedade civil são relegados a um segundo plano.
Segundo Digiácomo (2003), é prática comum de governantes relegarem a execução de políticas públicas na área social para segundo plano, e até mesmo, contingenciar recursos orçamentários a elas destinados. Isto não pode ocorrer em se tratando de políticas e programas de atendimento destinados a crianças e adolescentes que, como visto, na forma da lei e da Constituição Federal,tem direito à preferência na execução das políticas públicas e à destinação privilegiada (ou seja, também preferencial) de recursos públicos provenientes do orçamento.
O Conselho Tutelar, portanto, não apenas deve participar do processo de elaboração da proposta orçamentária, como também deve acompanhar a execução do orçamento aprovado, certificando-se que a mesma privilegie as ações na área da infância e da adolescência que foram deliberadas pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, tal qual previsto no ordenamento jurídico vigente.
Outra dificuldade percebida é que as práticas e entendimento acerca do fenômeno violência doméstica e da violência em geral, por parte dos conselheiros são várias. Alguns não percebem a real complexidade da situação e muitas vezes se sentem despreparados para assumirem postura mais ativa e crítica diante das demandas recebidas e dos outros atores que compõem a Rede; outros percorrem à prática assistencialista e a possibilidade de que, com isso, possam colher votos para futuras eleições.
Ainda segundo Digiácomo (2003), a busca de soluções efetivas e definitivas para os casos de violência sexual contra crianças e adolescentes não é uma tarefa fácil. É por esta razão que o Conselho Tutelar, longe de agir de forma isolada e improvisada em postura submissa e conformista, diante do descaso e da omissão para com a área da infância e da adolescência encontradas em boa parte dos municípios brasileiros, deve assumir uma posição de vanguarda na luta pela transformação dessa mesma realidade, atuando em conjunto com outros órgãos, autoridades e profissionais que integram o Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente, no sentido da articulação de uma verdadeira rede de proteção, que não pode prescindir da elaboração e da implementação de uma política pública específica, destinada ao atendimento de tão grave e complexa demanda.
Seu principal foco de atuação deve ser junto ao Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, que precisa ser chamado a intervir, quer no sentido da articulação da referida rede de proteção, quer na definição das referidas estratégias de atuação intersetorial e interdisciplinar, bem como na definição das ações, serviços e programas de atendimento que devem ser implementados e/ou adequados, com vista à prevenção e ao atendimento eficiente e resolutivo dos problemas detectados, tanto no plano individual quanto coletivo.
Referências bibliográficas
Ariès, Philippe. (1981). História Social da Criança e da Família. 2. ed. Rio de Janeiro: Guanabara. [ Links ]
Azevedo, M.A., Guerra, V.N.A. (1989). Crianças Vitimizadas. A Síndrome do Pequeno Poder. Iglu Editora. São Paulo. [ Links ]
Bardin, L. (1977). Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70. [ Links ]
Bazon, M.R. (2008). Violências contra crianças e adolescentes: análise de quatro anos de notificações feitas ao Conselho Tutelar na cidade de Ribeirão Preto. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 24(2):323-332. http://www.scielo.br/pdf/csp/v24n2/10.pdf [ Links ]
Brasil. Lei Federal nº 8.069 de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Ministério da Justiça. [ Links ]
Brasil. Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH/ANDI/PR); (2007). Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA). Pesquisa Conhecendo a Realidade. Brasília. [ Links ]
Camargo, C. L. E Buralli, K. O.(1980). Violência familiar: Contra crianças e adolescentes. Salvador: Ultragraph. [ Links ]
Costa, L.F., Penso, M.A., Rufini, B.R., Mendes, J.A.A., Borba, N.F. (2007). Família e abuso sexual: silêncio e sofrimento entre a denúncia e a intervenção terapêutica. Arquivos Brasileiros de Psicologia, v. 59, n. 2, 245-255. http://www.psicologia.ufrj.br/abp/255.pdf [ Links ]
Day, V.P.; L.E.B. Telles; P.H. Zoratto; Azambuja, M.R.F.; D.A. Machado; M.B. Silveira; Debiaggi, M.; M.G. Reis; R.G. Cardoso; P. Blank. (2003) Revista de Psiquiatria. RS, 25'(suplemento 1):9-21. http://www.scielo.br/pdf/rprs/v25s1/a03v25s1 [ Links ]
Digiácomo, M.J. (2003). Limites e obstáculos para o cumprimento do papel dos Conselhos Tutelares na garantia de direitos de crianças e de adolescentes em situação de violência sexual. Criança e Adolescente Direitos, Sexualidades e Reprodução. (Org). Maria América Ungaretti. Associação Brasileira de Magistrados, Promotores de Justiça e Defensores Públicos da Infância e da Juventude - ABMP. Ed.1ª. São Paulo. [ Links ]
Fassler, I. R., Amodeo, M., Griffin, M. L., Clay, C. M., & Ellis, M. A. (2005). Predicting long-term outcomes for women sexually abused in childhood: contributions of abuse severity versus family. [ Links ]
Frizzo, K. R., & Sarriera, J. C. (2005). O Conselho Tutelar e a rede social na infância. Psicologia USP, 16(4), 198-209. [ Links ]
Garagnani, E. (2005). Conselho Tutelar: efetivação de direitos e controle social. Dissertação de Mestrado, Ciências Sociais Aplicadas, UNISINOS - Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo. [ Links ]
Habigzang, L. F., Koller, S. H., Azevedo, G. A., & Machado, P. X. (2005). Abuso sexual infantil e dinâmica familiar: Aspectos observados em processos jurídicos. Recuperado em 10 de Janeiro de 2011, de Psicologia: Teoria e Pesquisa, 21(3), 341-348. http://www.scielo.br/pdf/ptp/v21n3/a11v21n3.pdf [ Links ]
IEE - Instituto de Estudos Especiais da PUC-SP e CBIA - Centro Brasileiro para a Infância e Adolescência. (1992). Cadernos de Ação nº 2: Trabalhando Conselheiros Tutelares. São Paulo. [ Links ]
Londoño, Fernando Torres. A origem do conceito "menor". In: PRIORE, Mary Del (Org.). História da Criança no Brasil. SP: Ed. Contexto CEDHAL, [ Links ] 1991.
Marcilio, M. L. (1997). "A Roda dos Expostos e a Criança Abandonada na História do Brasil. 1726-1950". In: Marcos Cesar de Freitas (Org). História Social da Infância no Brasil. São Paulo: Cortez/USF-IFAN. [ Links ]
Motti, A. S.; & Silva, E. (2001). Uma Década de Direitos: Estatuto da Criança e do Adolescente - Avaliando Resultados e Projetando Futuro. Campo Grande: Editora UFMS. [ Links ]
Oliveira, Francisco de. "Vulnerabilidade Social e Carência de Direitos". In: Cadernos ABONG, 8 de junho de 1995. [ Links ]
Pelisoli, C.L. (2008). Entre o público e o privado: Abuso sexual, família e rede de atendimento. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Instituto de Psicologia. Curso de Pós-Graduação em Psicologia. [ Links ]
Rago, M. (1997). Do cabaré ao Lar: A Utopia da cidade disciplinar. Rio de Janeiro: Paz e Terra. [ Links ]
Ribeiro, Roberto. Eleição dos Conselhos Tutelares. Diário Popular Via Internet - Pelotas, RS, segunda, 11.04.2005. Disponível em: http://www.diariopopular.com.br/11.04.05/rr100405.html. Acesso em: 11 abr. 2005. [ Links ]
Roque, E. M. S. T., & Ferriani, M. G. C. (2002). Desvendando a violência doméstica contra crianças e adolescentes sob a ótica dos operadores do direito na comarca de Jardinópolis - SP. Revista Latino-Americana de Enfermagem, 10(3),334-344. Recuperado em 10 de janeiro de 2011 de http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-11692002000300008&script=sci_abstract&tlng=pt [ Links ]
Saeta, B.R.P. (2004). História da criança e do adolescente no Brasil. Anais do VII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais. Coimbra. [ Links ]
Sandrini, P. R. (2009). O controle social da adolescência brasileira: gênese e sentidos do estatuto da criança e do adolescente. Florianópolis: UFSC. 164p. (Dissertação de Doutorado). [ Links ]
Santos, J. D. F. (2007). As diferentes concepções de infância e adolescência na trajetória histórica do Brasil. Revista HISTEDBR Online, Campinas, n.28, p.224 -238, dez. Recuperado em 10 de janeiro de 2011 de http://www.histedbr.fae.unicamp.br/revista/edicoes/28/art15_28.pdf [ Links ]
Seides. Secretaria de Estado da Inclusão, Assistência e do Desenvolvimento Social. (2009). Atendimentos Realizados em 2009 pelos CREAS do Estado de Sergipe. Aracaju. [ Links ]
Weber, M.A.L. (2005). Violência Doméstica e Rede de Proteção: Dificuldades, responsabilidades e compromissos. (Dissertação de Mestrado). Universidade Federal de Campinas. 124p. [ Links ]
SILVA, L.L. ET AL. Violência silenciosa: violência psicológica como condição da violência física doméstica. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.11, n.21, p.93-103, jan/abr 2007. [ Links ]
Recebido: 19/07/2012
Última revisão: 13/09/2012
Aceite final: 23/10/2012
Sobre os autores:
Dayse Simone de Melo Batista - Psicóloga, Coordenadora do CREAS Saber Viver.
E-mail: daysemel@hotmail.com
Elder Cerqueira-Santos - Psicólogo, Doutor em Psicologia e Coordenador do Mestrado em Psicologia, UFS - Universidade Federal de Sergipe.
E-mail: eldercerqueira@yahoo.com.br