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Revista Psicologia e Saúde
versão On-line ISSN 2177-093X
Rev. Psicol. Saúde vol.4 no.2 Campo Grande dez. 2012
ARTIGOS
Com-partilhando inscrições: experiências de oficinas em curso
Sharing inscriptions: workshop experiences in course
Compartiendo inscripciones: experiencias de talleres en curso
Raquel Brondísia Panizzi Fernandes; Cleci Maraschin
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
RESUMO
Este artigo apresenta uma pesquisa-intervenção realizada no Bairro Lomba do Pinheiro em Porto Alegre/Brasil mediante o desenvolvimento de oficinas com usuários e trabalhadores do Programa de Saúde da Família (PSF). Buscou-se analisar como a produção de inscrições (gráficas, fotográficas e videográficas) é potente para explicitar redes de conversações e modular o conversar configurando novas distinções cognitivas e emocionais entre os participantes. As inscrições demarcam um espaço/tempo que visibiliza modos de viver/conviver no território. Delineado como um estudo de natureza qualitativa, a Oficina do Percurso viabilizou o encontro dos participantes com as inscrições. Seguindo o curso por caminhos fluidos, apresentamos por meio da experiência momentos de problematização coletiva resultando no compartilhamento de ações rumo à cognição inventiva. O recorte aqui apresentado faz parte da dissertação de mestrado, de autoria da primeira autora, orientada pela segunda, no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da UFRGS.
Palavra-chaves: Inscrições; Tecnologias da informação e comunicação; Oficina; Percepção.
ABSTRACT
This article presents an intervention research carried out in Lomba do Pinheiro, a neighborhood in the city of Porto Alegre, RS, Brazil. Workshops were proposed with users and personnel of Programa Saúde da Família - PSF (Family Health Program). Shaped as a qualitative study, the Oficina do Percurso (The Course Workshop) represented the method whereby it was possible to come into contact with the inscriptions. We aimed analyzing how the production of inscriptions (visual, photographic and on video) can show the conversation's networks and modulate talking, establishing new distinctions and emotions. Inscriptions delimit a space and a time which shape ways of living in a given territory or dominion. Following the course through fluid paths, we present moments of collective problematisation that, through experience, result in the sharing of actions toward inventive cognition. The text presented here is part of the master's dissertation, written by the first author and advised by the second, in the Graduate Program of Social Psychology at UFRGS.
Key-words: Inscription; Information and communication technologies; Workshop; Perception.
RESUMEN
Este artículo presenta una investigación-intervención llevada a cabo en el barrio Lomba do Pinheiro en Porto Alegre/Brasil a través del desarrollo de talleres con los usuarios y los trabajadores del Programa de Salud de la Familia (FHP). Analizamos cómo la producción de Inscripciones (gráficos, fotográficos y producciones de vídeo) es potente para aclarar las redes de conversaciones y modular el diálogo y configurar nuevas distinciones cognitivas y emocionales entre los participantes. Las inscripciones delimitan un espacio/tiempo que visibilice maneras de vivir/convivir en el territorio. Diseñado como un estudio de carácter cualitativo, el Taller de la Ruta ha realizado la reunión de los participantes con las Inscripciones. Siguiendo el curso por caminos fluidos, presentamos, a través de la experiencia colectiva de la problematización, momentos de compartir las acciones hacia la cognición inventiva. El recorte aquí presentado hace parte de la Disertación de Maestría, de autoría de la primera autora, orientada por la segunda, en el Programa de Posgrado en Psicología Social e Institucional de la UFRGS.
Palabras-clave: Inscripciones; Tecnologías de la información y la comunicación; Taller; Percepción.
Introdução
Apresenta-se neste artigo uma pesquisa-intervenção com a participação de usuários e trabalhadores de uma Unidade do Programa de Saúde da Família (PSF), do Bairro da Lomba do Pinheiro em Porto Alegre/Brasil. Propôs-se uma Oficina do Percurso (OP) que visou produzir e/ou reutilizar inscrições principalmente através do dispositivo fotográfico. A oficina aposta no caráter contingente e performático das inscrições que funcionam como operadores dos modos de conversar configurando novas distinções e emoções na relação entre adolescentes e os trabalhadores do serviço de saúde.
A Oficina do Percurso (OP) surgiu como desdobramento do Projeto de Pesquisa e Extensão "Oficinando em Rede", vinculado ao PPG em Psicologia Social e Institucional da UFRGS. Projeto este que há cerca de seis anos vem pesquisando diferentes temáticas concernentes ao encontro das Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) com a saúde mental. Os resultados de diferentes pesquisas apontam para o caráter inventivo e instituinte das TIC nos serviços de saúde mental para crianças e adolescentes (Scisleski, 2006; Diehl, 2007; Viana, 2008; Maurente, 2010, Tanikado, 2010; Maraschin, Francisco & Diehl, 2011).
A realização da OP no PSF-Vila Viçosa, nasce de um mútuo interesse. De um lado, há o desejo do grupo de pesquisa pela ampliação de seu campo de estudo, abrangendo programas de saúde básica; de outro, o interesse da Equipe de Matriciamento do Centro Escola de Saúde Murialdo (CESM), na Gerência Distrital de Saúde VI (Partenon e Lomba do Pinheiro) em buscar novos recursos para trabalhar com os jovens de seu território de abrangência.
Já nos primeiros encontros com o campo, efetivado através do deslocamento pelas ruas do Bairro da Lomba do Pinheiro, era possível perceber certas marcas que expunham modos de viver naquele território. Tomamos essas marcas como inscrições vivas e não somente como representações. Nesse artigo propomos a produção de inscrições como atos de linguagem, um linguajar, conforme Maturana e Varela (2004). Os autores transformam o substantivo - linguagem - em um verbo - linguajar. Para eles, o neologismo deixa evidente que não se trata de pensar a linguagem como um conjunto de símbolos que representam ações, mas sim, de coordenações de coordenações de ações, que ganham consensualidade na história que se compartilha. A partir dessa noção entendemos as inscrições, encontradas/produzidas no percurso, como interfaces dessas coordenações de ações. Desse modo, propomos que elas têm uma potência performática, pois podem conectar a ação atual às coordenações de ações que lhes foram consensualmente atribuídas.
Apostamos que retomar as inscrições em meio a um percurso realizado coletivamente permite ampliar sua potência performática uma vez que multiplica as coordenações de ações postas em ato. Como resultante, possibilita um olhar de estranhamento, distinguindo-se aquilo que não era mais percebido/distinguido, pois estava integrado à paisagem, ao fundo.
Percepção em curso na distinção de inscrições
Antes de adentrarmos a produção de inscrições realizadas pela OP, faz-se necessário retomar a própria noção de percepção.
Ao reportarmos à percepção de inscrições é importante deixar claro que não fazemos referência a um modo de captação de traços e marcas de um mundo exterior ao observador, por isso falamos na percepção como produção/distinção. Entendemos a percepção como uma ação e não uma recepção passiva de informações. Seguindo os pressupostos de Maturana (1999), abandonamos a ideia de percepção como "per-capiere" - captação de um objeto externo -, tomando-a como configuração condutual consensual entre um observador e elementos do mundo ao qual este se encontra acoplado estruturalmente:
O mundo cognitivo que vivemos, através da percepção, se assemelha a isso: produzimos um mundo de distinções através de mudanças de estados que experimentamos enquanto conservamos nosso acoplamento estrutural com os diferentes meios nos quais estamos imersos ao longo de nossas vidas, e, então, usando nossas mudanças de estado como distinções recorrentes em um domínio de coordenações de coordenações de condutas consensuais (linguagem), produzimos um mundo de objetos como coordenações de ações com as quais descrevemos nossas coordenações de ações. (Maturana, 1999, p.103).
No fenômeno da percepção de inscrições encontramos um observador implicado. Sob o entendimento de que o mundo não é dado a priori, mas configurado na interação entre sujeitos linguajantes em seus contextos de ação, pensamos a percepção como uma ação em um curso fluido no qual o emocionar encontra-se implicado.
Mas uma percepção não se limita ao linguajar, mas se dá em um entrelaçamento com o emocionar. O emocionar é definido por Maturana (2001) como disposições corporais dinâmicas que configuram os diferentes domínios de ação em que nos movemos. Tal definição permite pensar que a percepção de uma inscrição, será vivida de formas diversas dependendo da emoção na qual nos encontramos. Assim, o emocionar participa da distinção/percepção de um objeto de um fundo.
Podemos distinguir inscrições, por exemplo, em fotografias, vídeos, em marcas deixadas na parede, em placas de trânsito. Sempre ressaltando, que as consideramos como interfaces, ou seja, sempre relacionadas ao fluir do linguajar e do emocionar nos quais emergiram.
Em nossa interação com o mundo, em nossas distinções/percepções podem acontecer momentos de breakdowns que implicam mudanças nas coordenações de coordenações consensuais de ação (linguajar) e, essas últimas, na predisposição à ação (emocionar). Descrito por Varela (2003) como uma quebra na continuidade cognitiva, os breakdowns referem-se aos momentos de rachaduras no modo como interagimos com o mundo promovendo a problematização. São esses breakdowns que se tornaram a principal fonte dos observáveis através dos quais foi possível flagrar a reconfiguração das inscrições percebidas pelo caminho, nos levando a pensar a OP como um potente operador à ocorrência de perturbações. Retomar as marcas em um caminho possibilita um estranhamento, constituindo "quebras" na história de acoplamentos anteriores, ou seja, rompendo o fluxo cognitivo habitual rumo à invenção, tanto de si como do mundo.
Perceber as inscrições se traduz em uma ação inventiva na qual participa a história das coordenações de ações, por isso dizemos que ela é sempre contingente e encarnada. O ato de perceber configura uma inscrição dando-lhe um corpo (pois distingue de um fundo) e um sentido que decorre da partilha de um domínio de coordenações de coordenações consensuais de ação. Por isso, falamos da função performática da percepção aliada à potência performática da inscrição como interface que liga domínios de coordenação de ações, atuais e consensuais.
O Percurso da Oficina com TIC
A OP foi desenvolvida durante nove encontros com duração aproximada de duas horas semanais. Os trabalhadores convidaram jovens do território de abrangência do PSF através de visitas domiciliares ou no contato direto com a Unidade de Saúde. Embora a participação fosse aberta, o elevado número de interessados fez com que a equipe optasse por escolher aqueles adolescentes que causavam maior preocupação devido ao seu envolvimento com a drogadição, prostituição e gravidez na adolescência.
Atravessada pela preocupação da Equipe de saúde em relação à condição de risco social dos jovens, salientamos, entretanto, que no desenvolvimento da OP desprivilegiou-se esse fator.
A OP constitui-se como mais uma ação na Rede na busca de ampliar os esforços dos trabalhadores de prevenção e promoção à saúde. Iniciada com a participação de 6 adolescentes na faixa etária entre 12 e 15 anos e duas trabalhadoras do PSF (uma agente comunitária de saúde e uma técnica de enfermagem), a Oficina contou ainda com a primeira autora desse trabalho e com uma estudante do Curso de Psicologia.
A proposta da Oficina era constituir um operador de fomento à problematização nas inscrições existentes no território de vida, para uma faixa etária com poucas atividades coletivas. Assim, ao lançarmos a questão aos integrantes da Oficina sobre o modo como vivem/convivem no território da Lomba do Pinheiro, nosso interesse focalizou-se no modo como as produções de inscrições que modulam e são moduladas na rede de conversação operam na comunicação entre os participantes.
Inspirada no método do Percurso Comentado apresentado por Thibaud e Saraiva et al (1998), a OP desenvolveu sua própria singularidade. O Percurso Comentado consiste em um convite feito pelos pesquisadores a passantes, utilizadores regulares e não regulares de determinado lugar, para realizar um percurso descrevendo suas percepções e sentimentos. O objetivo consiste em capturar a diversidade perceptiva de um mesmo local relacionando percurso e percepção.
Na experiência aqui analisada foram feitas alterações em relação ao método original. A primeira delas é que os participantes eram jovens da área de cobertura do PSF e não passantes aleatórios. A segunda, é que o percurso foi realizado em grupo e não individualmente e a terceira, que houve a disponibilização de máquinas fotográficas digitais.
Segundo Thibaud e Saraiva (1998), o Percurso Comentado ao esclarecer as condições de surgimento de fenômenos percebidos através de observações propõe a narração da percepção sobre um determinado trajeto. A escolha pelo método apresentou-se como um modo interessante de flagrar as operações de distinções e breakdowns de observadores que em grupo conversavam com/sobre as inscrições que encontravam pelo caminho.
A inclusão da máquina fotográfica digital, como mais um componente da oficina, decorreu do fato de que a ação de fotografar pode ser compreendida também como uma modalidade de produção de outras inscrições. Tal ação, está acoplada a um objeto técnico que contém em si alguns parâmetros que se ajustam no próprio artefato, por exemplo, uma máquina digital automática permite a correção do foco. As ações embutidas nos aparatos técnicos fazem com que possam existir espaços inusitados entre a ação do observador e o resultado da mesma, uma vez que há a necessidade de se considerar o modo de operação do objeto técnico, o que pode dar lugar aos breakdowns.
A fotografia pode ser tomada como uma inscrição que não captura um "real", mas que produz realidades pelo enquadre, foco, enfim, pelas operações de um observador antes de acionar o obturador. A proposição que os participantes fotografassem cenas que pudessem contar o modo como vivem e convivem no território, transforma as fotografias em um linguajar. Dubois (1998) afirma que não é possível pensar a fotografia fora do ato que a constituiu, assim, os sentidos que a fotografia pode apresentar dependem do contexto, ou segundo as concepções de Maturana e Varela (2004), das redes de conversação nas quais são produzidas.
Além de sua característica de registro, o percurso fotográfico envolvia a produção de distinções pelos participantes em um processo de construção de sentido implicado ao linguajar e ao emocionar. Em sua característica pragmática, a relação entre o percurso e a fotografia encontra-se imbricada.
A seguir, apresentamos alguns dos encontros da Oficina destacando momentos de reconfiguração da experiência decorrentes das modulações provocadas pelas coordenações de ações e pelos breakdowns.
Oficina do Percurso Fotográfico
O primeiro encontro da OP ocorreu na Associação dos Moradores da Vila Viçosa devido à falta de espaço no PSF, somado ao interesse dos trabalhadores de contatar outros locais disponíveis na comunidade. Neste dia, apresentamos a proposta de trabalho e discutimos sobre a produção fotográfica.
Os jovens mostraram-se muito incentivados com a utilização da máquina fotográfica digital. Coube assim esclarecer que a oficina não envolvia o ensino de técnicas fotográficas, mas que a utilizaríamos para auxiliar na apresentação sobre como vivem no Bairro. No encontro seguinte realizamos uma experimentação fotográfica. Para isso, alem das máquinas, foram disponibilizadas revistas e livros para que fotografassem. Percebemos um cuidado dos participantes para que suas fotografias não parecessem imagens das revistas, buscando um novo enquadre, uma nova luminosidade, adicionando outros elementos a imagem dada.
Fotografando as imagens expostas em revistas, as produções soavam, como anuncia Susan Sontag (2004), uma aquisição. Repercutindo em indagações sobre de quem eram aquelas imagens, o grupo não hesitava em responder que eram suas afinal, segundo os participantes, tratavam-se de suas fotografias de uma fotografia da revista.
Tomamos o fotografar como um ato performático, segundo a ideia da linguagem como realização proposta por John Austin (1990) que, ao interferir sobre os fatos é capaz de promover transformações. Compreendendo a inscrição como ação performática, nos mantemos distantes da mera descrição dos fatos, reiterando o entendimento de que tudo o que fazemos/conhecemos/fotografamos ocorre na linguagem. A operação com a tecnologia resultou em um exercício inventivo no qual se produziram novos modos de operar com as inscrições, ao fotografá-las. Podemos pensar em sua re-invenção, pela autoria.
No fazer daquela Oficina as ações de descoberta da máquina fotográfica digital eram evidentes. Embora a maioria dos participantes demonstrasse alguma experiência anterior, a busca por novidades despertava o interesse de todos e impulsionava a troca de experiências no grupo. Como numa caminhada onde se descobre novos caminhos e novos conversares, o manuseio do equipamento permitia novos usos. Explorando a possibilidade advinda das fotografias em preto e branco, coloridas, com o uso do zoom e do flash, realizavam efeitos inusitados. O uso de máquinas fotográficas em oficinas teve como suporte outras pesquisas desenvolvidas no grupo Oficinando em Rede (Diehl, 2007 e Maurente, 2010).
A descoberta do recurso "smile" de uma das máquinas fotográficas, por exemplo, despertou o interesse do grupo. Perguntavam-se como poderia a máquina reconhecer um sorriso e fotografá-lo? Como poderia a máquina saber se estavam ou não sorrindo? A afirmação de um dos integrantes dizendo: "Não sabia que existia uma máquina que sabe quando estamos rindo, é uma máquina inteligente, tipo um computador" - suscitou questionamentos sobre a própria distinção da ideia de máquina e de máquina inteligente. A possibilidade de interação com objetos técnicos abriu um novo campo de experiências e lugares de criação. O fato de um aparato técnico conter coordenações de ações que seriam humanas, como o reconhecimento de um sorriso, trouxe à conversa a problematização. Curiosos e interessados em saber como a máquina poderia "ver" (fala de alguns dos integrantes), uma expressão facial provocou a discussão sobe as possibilidades e limitações da máquina. Nas indagações "Como ela sabe que estamos rindo?" ou "Ela vê de verdade?" geraram-se momentos de breakdowns.
No segundo encontro da Oficina produzimos um mapa, sugerido por um dos participantes. A proposta tinha como objetivo mapear as áreas a serem percorridas pelo grupo no percurso a ser realizado. O mapa foi desenhado de forma a conter os caminhos que compunham a área de abrangência do PSF Vila Viçosa e oportunizou conversações específicas. O desenho do mapa levantou muitas indagações, tais como a acuidade da correspondência entre as ruas, suas dimensões e distâncias. As ruas, avenidas, travessas, becos e, por vezes a inclusão de alguns locais específicos, como a casa de algum morador, a Associação dos Moradores, a Escola, O PSF, exprimiam determinado domínio de existência e a forma como se relacionavam àquela realidade.
Em uma construção em processo, o mapa apresentava-se como inscrição. Dizendo respeito aos espaços vivenciados cotidianamente. O mapa foi desenvolvido pelos integrantes no chão da Associação dos Moradores, conforme imagem a seguir:
Criado como um modo de apresentar o território para a realização posterior do percurso fotográfico, a produção do mapa sinalizava um processo inventivo e dependente da ação do observador interligado à experiência no campo. Podemos pensar nesse processo como um processo inventivo (Kastrup, 1999) que ultrapassa o modelo da representação, passando a ser entendido como um processo de invenção do território. Constituído sobre uma superfície plana, o mapa surgiu como uma produção em uma rede de conversação especifica que consolidou-se a partir de observadores implicados à experiência.
Uma das cenas que pode ser explicada como um movimento inventivo na elaboração do mapa ocorreu quando da inclusão no mesmo da rua conhecida como a "Rua da Boca do Tráfico". Um dos participantes, ao desenhar sua casa no mapa iniciou um movimento criativo provocador de uma nova distinção. Ao finalizar o desenho, questionou a oficineira se ela já havia passado por sua rua (rua que era conhecida como "Rua da Boca do Tráfico"). Logo a descreveu como um lugar muito bonito com uma paisagem onde é possível ver grande parte da cidade. Sua descrição tensionou as percepções anteriores de outros participantes, alterando a emoção num movimento de reconstituição daquele território, uma vez que para os demais aquela rua não poderia ter nada de bonito. Identificamos como um momento de breakdown, de "quebra" na continuidade cognitiva. Assim, em encontro propiciando novos conheceres, fenômeno que, de acordo com Maturana (1999, 2002), está em nossa vida cotidiana, surgia um mapa descrito na efetividade operacional dos participantes da Oficina em domínio de existência que participa de tantas realidades quantos modos de reformulação da experiência existirem, tantas realidades quantos domínios explicativos existirem.
Como uma construção no fluir do viver em interação com os demais participantes a construção do mapa potencializou novos modos de conhecer/fazer o território. Na relação circular entre viver, fazer e conhecer (Maturana e Varela, 2004).
No encontro posterior à Oficina de elaboração do mapa, surgiram outras direções. Embora houvéssemos acordado que realizaríamos a caminhada seguindo as trajetórias delimitadas pelo mapa, optou-se pela sua não utilização. Tal desprendimento em relação ao mapa reforça a ideia de que o mesmo não significou uma mera representação do território, mas sim uma construção aberta a novas criações, uma interface. Assim, em um percurso pela chamada "parte baixa" do Bairro (que é constituída por moradores com melhores condições econômicas), foram realizadas inúmeras fotografias/inscrições produzindo uma discussão sobre as desigualdades sociais que convivem.
O interesse inicial dos participantes era mostrar os lugares com melhores recursos, os lugares "mais bonitos", provocando a oficineira indagar sobre o porquê daquela escolha. A resposta de uma das participantes foi: -"Queremos poder mostrar como a gente vive aqui com a parte pobre e rica". Tal fala deixa claro o interesse por mostrar as desigualdades socioeconômicas com as quais convivem, trazendo uma implicação política à rede de conversação. Como havia a proposta das fotografias serem apresentadas em outros espaços, os participantes buscavam marcar as desigualdades de modos de viver naquele território.
Através de comentários como: "Olha esta casa, não é linda? Um dia terei uma igual, inclusive com um destes carros", "bah, isso que é carro, esses vivem bem", exibia o interesse de apontar diferenças, muitas vezes, sustentada pelo desejo do consumo, que pode ser pensado como uma posição recognitiva aderida ao status quo vigente. Interessados em fotografar casas e carros "bonitos", paralizavam-se na idealização de consumo sem problematização.
Buscando apresentar como viviam no território, segundo a proposição da pesquisadora, constituíam um conversar atravessado pelas desigualdades sociais que, embora os incomodassem, eram entendidas como uma condição consolidada sem possibilidade de mudança. A fala da agente comunitária de saúde "somos uma comunidade esquecida", justifica as diferenças em relação à infraestrutura entre a parte baixa (com melhores recursos) e a alta (caracterizada por dificuldades econômicas). Ao mesmo tempo em que reconheciam a necessidade de melhores condições de vida, concentravam-se em ações coordenadas pela queixa que impede a problematização potencializadora de uma cognição inventiva.
A OP foi iniciada pelas casas com melhores construções, em terrenos com ruas asfaltadas e sem a exposição de esgoto a céu aberto (cenas que são minorias na região), apresentava-se como possibilidade de um conversar guiado pela emoção de partilha do modo como vivem/convivem no território. O uso da máquina fotográfica digital apresentava-se como uma ferramenta que, ao produzir inscrições (fotografias), como um modo de operar na linguagem, possibilitava modular o conversar, incluindo como um dos interlocutores a própria universidade.
Os encontros da Oficina apresentavam uma característica peculiar. Numa dosagem entre a velocidade imposta às cidades contemporâneas e um movimento lento capaz de recortar objetos de um fundo, os diferentes ângulos que eram registrados nas fotografias pareciam tecer novos encontros com o território. Aos integrantes da Oficina do Percurso ao exibirem os modos como vivem no local, eram frequentes as cenas em que encontravam no recurso fotográfico um dispositivo à invenção da vida.
Distante da compreensão de uma percepção alicerçada pela captação de objetos externos nos aproximamos, ao que propõe Cardoso (1998), concebendo a mesma como distinções efetivadas na convivência e, portanto, capazes de produzir momentos de breakdowns. Na caminhada pelo bairro, as árvores com flores coloridas em local frequentado cotidianamente pelos participantes da Oficina surgiam como novidade: "Passo por aqui todo dia, acredita que nunca tinha visto esta árvore?", dizia uma das participantes.
Em outros encontros da OP percorremos a parte alta do Bairro. Trata-se de um território com escassez de recursos financeiros e precárias condições de vida - como esgoto a céu aberto, lixo em via pública e falta de calçamento adequado. Constituíamos um percurso com inscrições que apresentavam, em um meio de vida precário, uma configuração ao mesmo tempo urbana e rural.
As fotografias realizadas durante esse percurso suscitaram reconfigurações quanto aos modos de perceber, produzir distinções, olhar. As fotografias que exibiam o lixo em vias públicas, por exemplo, apresentavam-se para os participantes como uma prova de uma condição que solicitava mudanças. O lixo, ao ser inscrito em uma fotografia também produzia mudanças no conversar. Assim, se anteriormente o lixo não era objeto de distinção, não passava por uma cognição inventiva problematizadora, o uso da fotografia o inscrevia nesse campo perceptivo. Se, de acordo com o relato anterior, a Lomba do Pinheiro era considerada um local esquecido, nas fotografias poderia ser problematizada, reinventada.
Na Oficina da semana seguinte, nossa caminhada despertou curiosidade em alguns moradores. Alguns deles, imaginando que estivéssemos realizando um trabalho para o jornal em função do destelhamento de inúmeras casas devido a forte chuva de dias anteriores, solicitavam o registro fotográfico. Tal vivência, provocadora de uma forte preocupação social, permitiu o compartilhamento daquela experiência, numa coordenação de ações no sentido da constituição de uma preocupação em comum, operando na dissolução de particularidades, um movimento de inicial de empatia que possibilitou um diálogo político.
A interlocução entre moradores e participantes da oficina delineava modificações na própria oficina. Se anteriormente a preocupação era a de mostrar um Bairro "bonito" à pesquisadora, o interesse a partir daquela experiência dirigia-se a contar a vida como ela se produz. Questionados pelos moradores sobre o que fazíamos, passávamos a um exercício de protagonismo utilizando a oficina como uma ferramenta para uma ação coletiva, participativa.
A emergência de questionamentos: "Como podemos viver assim? Onde ele vai morar?" seguidos das afirmações: "Temos que mostrar essas fotos para que todos possam ver o que acontece por aqui", são algumas indagações que o exercício fotográfico foi promovendo na oficina, corroborando na característica de forte posicionamento político que faz parte da historicidade da Lomba do Pinheiro.
Ao final daquele percurso, no retorno ao local onde sempre se iniciava e terminava a caminhada, a Associação dos Moradores da Vila Viçosa, uma das participantes fotografou o sinal de trânsito "PARE" despertando a curiosidade do grupo resultando em diversos questionamentos.
Tal imagem provocou perturbações e uma quebra de fluxo ocasionando consequências ao andamento da oficina. Ao indagar: "Já pararam pra pensar sobre ela? E agora, na fotografia, param também?" Trouxe questões importantes sobre aquele conversar disparando um repensar sobre o modo como articulam suas ações: "É, acho que não precisamos ficar parados". "Vamos mostrar estas imagens e fazer mudanças". Não podemos aceitar tudo que nos dizem."
Modulando emoções a fotografia suscitava problematizações. Nas diversas inscrições (fotografias) produzidas apresentava-se um modo de operar não mais no campo da recognição, mas no da invenção, dando pistas sobre a problemática que envolve o conversar em uma proposta inventiva.
No sexto encontro continuamos o percurso pela parte alta do Bairro. Em meio à conversa surgiu a ideia de produção de um vídeo. Interessados por uma narrativa em movimento e no compartilhamento das inscrições fotográficas, a sugestão de realização de um vídeo com as fotografias, proposta por uma das participantes, foi aceita pelo grupo. Como um processo performático de modo não a descrever a realidade, mas constitutiva desta, o desenvolvimento do vídeo operava na construção de um novo espaço de compartilhamento, no qual as fotografias de cada um poderiam ser articuladas em uma narrativa em comum.
Do simples toque que fez girar o botão da máquina fotográfica digital, passando da fotografia ao vídeo, a oficina sofria atualizações. A partir de então, nosso percurso passou a compreender o laboratório de informática de uma escola pública do bairro.
Do sétimo ao nono encontro os participantes dedicaram-se a produção de um vídeo. Como programa de edição escolhemos o Windows Movie Maker. Trabalhamos com as fotografias produzidas e com músicas que foram por eles escolhidas. Além disso, idealizaram e produziram máscaras que foram utilizadas nos momentos das gravações. Assim, as máscaras ajudavam a trazer dramaticidade às filmagens. Por exemplo, a máscara de uma orelha feita pela técnica de enfermagem foi acompanhadas da fala: "Eu escuto muitas coisas". A máscara de uma borboleta, idealizada pela agente comunitária de saúde que anunciava as metamorfoses intrínsecas ao trabalho.
Numa operação que oportunizava compartilhar experiências, o vídeo apresenta-se como uma narrativa política compondo as marcas do percurso com canções da música popular brasileira, entre as quais a "Que país é esse?". O vídeo inicia e finaliza com imagens da bandeira nacional.
Considerações sobre a Oficina
A OP, ao operar por caminhos não lineares, mas por trajetos que se bifurcaram rumo à invenção da vida, emergiu como abertura ao compartilhamento de problematizações e emoções. Seguindo cursos que no encontro do olhar com as TIC redesenharam os modos de "ver" de distintos observadores permitiu o encontro com outras realidades.
Em uma fazer que repercutiu em muitos questionamentos, a oficina apresentou-se como dispositivo ao conversar por um percurso de reconfigurações com/no campo. Fomentando as indagações da pesquisa, a realização da trajetória fotográfica possibilitou uma interface o com um campo político, problematizador de realidades naturalizadas.
Na realização da pesquisa, assumimos um modo de pesquisar na experimentação e produção de diferentes e plurais domínios de existência. A inclusão do recurso fotográfico na OP suscitou reconfigurações quanto aos modos de perceber, produzir distinções, olhar os modos de vida no território da Lomba do Pinheiro.
A proposta de contar como viviam fez surgir problematizações que não somente descreviam uma realidade como também a constituíam. Afetados pelas problematizações e novas configurações que puderam emergir no território, as Oficinas com TIC tem continuidade como prática efetiva no PSF. Assim, logo após o desenvolvimento da OP, outras duas surgiram: a Oficina de realização do "JORNAL CCJ" (Comunidade Comunicante Jovem) e a "Oficina Linguagem da Cidadania". A primeira com a utilização de máquinas fotográficas digitais e computador, tem promovido novas coordenações consensuais de ações e emoções na confecção de um jornal. A "Oficina Linguagem da Cidadania" objetiva fomentar o exercício da cidadania, o protagonismo, a invenção e promoção de saúde. Essa última é desenvolvida em parceria com a universidade.
O método da OP produziu momentos de deslocamentos e de invenção da vida. As inscrições fotográficas possibilitaram a emergência de breakdowns, chave para uma cognição inventiva.
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Recebido: 21/08/2012
Última revisão: 16/11/2012
Aceite final: 21/11/2012
Sobre os autores:
Raquel Brondísia Panizzi Fernandes - UFRGS (Mestre em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS)
Cleci Maraschin - UFRGS (Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) - Professora associada, Instituto de Psicologia, Departamento de Psicologia Social e Institucional da UFRGS)