Introdução
A Promoção da Saúde (PS) é um conceito amplo, complexo e em constante construção (Mendes et al., 2016). Seu objetivo hegemônico é a indução de comportamentos saudáveis, por isso, pode ser compreendida como uma estratégia biopolítica, definida por Foucault (2008), de maneira bastante sintética, como o conjunto de ações operadas sobre a população para fazê-la viver. As práticas de PS se inscrevem, majoritariamente, na perspectiva da governamentalidade (Mattioni et al., 2021; Furtado & Szapiro, 2012), descrita como uma das estratégias para operar a biopolítica na contemporaneidade, que compreende um conjunto de ações, complexas e descontínuas, realizadas por diferentes atores em uma sociedade, a fim de conduzir as condutas de indivíduos e populações. Essa investida do poder ocorre com o uso de discursos, que, de acordo com condições de possibilidade (históricas, sociais, culturais, políticas, econômicas etc.), ganham legitimidade e passam a ser considerados como verdades por determinados grupos sociais (Foucault, 2008). As proveniências são justamente tais condições de possibilidade e as emergências são o momento em que surge determinado discurso ou prática (Foucault, 2014).
O conceito ampliado da Promoção da Saúde prevê que as medidas adotadas não se dirijam a uma doença específica, mas que sejam capazes de proporcionar a saúde e o bem-estar por meio de medidas relativas à moradia, educação, lazer, alimentação etc., as quais são entendidas como Determinantes Sociais da Saúde (DSS). Estes são definidos como as condições nas quais a vida transcorre, incluindo desde aspectos mais individuais até as macrocondições de um país (Buss et al., 2020).
A Promoção da Saúde e a Atenção Primária em Saúde (APS) têm uma relação intrínseca. Ambas aparecem associadas, desde as primeiras movimentações, para a reorganização dos sistemas nacionais de saúde no mundo. A Declaração de Alma-Ata (Organização Mundial da Saúde, 1978), proveniente da Primeira Conferência Internacional de APS, de 1978, e a Carta de Otawa (OMS, 1986), publicada a partir da Primeira Conferência Internacional de Promoção da Saúde, em 1986, inauguram essa relação, cujo objetivo era “saúde para todos” até o ano 2000. Embora tais documentos apresentem uma concepção ampliada de saúde, já neste período os sistemas nacionais de saúde passam a receber a influência dos organismos financeiros internacionais (principalmente do Banco Mundial), que tencionavam a necessidade de indivíduos e comunidades assumirem a responsabilidade pela sua saúde e o gerenciamento dos riscos de adoecimentos (Furtado & Szapiro, 2012). Essa influência demonstra a investida neoliberal no campo da Promoção da Saúde, que, ao longo das décadas, teve como estratégias prioritárias a mudança de comportamentos individuais e o controle de riscos em detrimento das ações voltadas aos DSS.
No Brasil, a Promoção da Saúde está presente na Constituição Federal de 1988 (Constituição da República Federativa do Brasil, 1988) e na legislação fundante do Sistema Único de Saúde (SUS) - Leis 8.080 (1990) e 8.142 (1990b). As Políticas de Saúde, estruturadas nos anos subsequentes à criação do SUS, com intensificação nos anos 2000, são sustentadas no tripé Promoção da Saúde - Prevenção de Doenças - Cuidados/Reabilitação da Saúde.
A Política Nacional da Atenção Básica (PNAB), publicada em 2006 (Portaria n. 648, 2006), com última atualização em 2017, orienta o desenvolvimento de ações intersetoriais, integrando projetos sociais voltados para a Promoção da Saúde como parte do processo de trabalho das equipes de APS. Além disso, a realização de práticas de Promoção da Saúde (Portaria nº 2.436, 2017) aparece como atribuição de todos os núcleos profissionais que integram as equipes de Estratégia Saúde da Família (ESF), Estratégia de Saúde Bucal (ESB) e Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF). Já a Política Nacional da Promoção da Saúde (PNPS), publicada em 2006 (Portaria nº 687, 2006) e atualizada em 2014 (Portaria nº 2.426, 2014), prevê, em seus eixos operacionais, a atuação em base territorial, de modo articulado e em rede, tendo a APS como cenário privilegiado para práticas de PS.
Por meio de revisão de literatura (Mattioni et al., 2022), foram identificadas as práticas de Promoção da Saúde realizadas na APS, nos últimos cinco anos. Esta revisão apontou a preponderância de práticas destinadas à mudança de comportamento e hábitos individuais. Esse mesmo estudo demonstrou a necessidade de ampliar o escopo das práticas de Promoção da Saúde na APS. Outro artigo de revisão (Mattioni et al., 2021) se destinou a identificar estudos sobre a Promoção da Saúde que utilizaram o referencial teórico foucaultiano em suas análises, no mundo. Esse estudo demonstrou que apenas 34 artigos, publicados entre 2006 e 2021, utilizaram tal referencial. Sendo assim, o artigo que propomos se justifica por apresentar análises sobre um tema amplamente pesquisado, porém não pela vertente epistemológica dos estudos pós-estruturalistas no qual se inserem os estudos foucaultianos. Tal perspectiva de análise pode ampliar as possibilidades de análises junto ao campo da Promoção da Saúde, subsidiando as discussões acerca das políticas e práticas de saúde na APS.
Diante do exposto, este artigo se propõe a analisar como se constituíram as práticas de Promoção da Saúde na APS, a partir de teorizações foucaultianas. Para isso, buscamos identificar e analisar o momento histórico em que surgiram as práticas de Promoção da Saúde (emergências), bem como as condições que possibilitaram que tais práticas fossem constituídas (proveniências) na APS.
Neste artigo, são apresentados os resultados parciais de uma pesquisa realizada para a construção de Tese de Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Métodos
Realizamos uma pesquisa de campo, descritiva e exploratória, de abordagem qualitativa e inspiração genealógica, no contexto da APS do município de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. Os dados da pesquisa foram produzidos por meio de entrevistas semiestruturadas com trabalhadores responsáveis por conduzir práticas de Promoção da Saúde em doze Unidades de Saúde (US), que correspondem a 39 equipes de ESF e cinco NASF. Estas US são responsáveis pelo atendimento de aproximadamente cem mil usuários. Os núcleos profissionais dos participantes foram: Serviço Social (6), Enfermagem (5), Psicologia (4), Agente Comunitário de Saúde (ACS) (3), Medicina (2), Odontologia (2), Nutrição (1), totalizando 23 participantes. Esse número de participantes foi definido por possibilitar a obtenção de relatos sobre a maior parte das práticas de Promoção da Saúde identificadas no serviço pesquisado, representando o ponto de saturação dos dados (Vinuto, 2014). A coleta dos dados ocorreu no período de fevereiro a maio de 2020. As entrevistas foram gravadas e transcritas. Além disso, foi utilizado um diário de campo, no qual foram anotadas as impressões da pesquisadora, primeira autora deste artigo.
Os dados foram analisados por meio de técnicas inspiradas na pesquisa genealógica, que possibilita que tensões, disputas, discursos, práticas e relações de poder, possam ser identificados. A genealogia é o estudo das formas de poder: “. . . na sua multiplicidade, nas suas diferenças, na sua especificidade, na sua reversibilidade: estudá-las, portanto, como relações de força que se entrecruzam, que remetem umas às outras, convergem ou, ao contrário se opõem. . .” (Foucault, 1997, p. 71). A tarefa do genealogista consiste em analisar os possíveis efeitos intrínsecos a uma prática discursiva, a fim de encontrar as condições de possibilidade que originaram as formações discursivas, bem como os poderes que estão em jogo nesse processo (Deleuze, 2005).
Na prática genealógica, são fundamentais as análises de proveniência (ou ascendência) e de emergência. As proveniências são as condições de possibilidade, por meio das quais discursos e práticas se formaram. A emergência é o ponto de surgimento, a localização histórica em que a correlação de forças das condições de possibilidade convergiu para o aparecimento de um discurso ou prática (Foucault, 2014).
A análise dos dados seguiu as seguintes etapas: leitura das entrevistas transcritas; leitura de documentos técnico-legais referentes à APS (Portaria nº 648, 2006; Portaria nº 2.488, 2011; Portaria nº 2.436, 2017) e à Promoção da Saúde no Brasil (Portaria nº 687, 2006; Portaria nº 2.426, 2014); descrição e análise das emergências e proveniências dos discursos e das práticas de Promoção da Saúde no cenário da pesquisa.
Cabe salientar que a pesquisa que originou este artigo não teve a pretensão de ser uma genealogia, mas sim de inspirar-se em algumas de suas estratégias analíticas. Assim, as falas dos participantes não são consideradas fontes de verdade, mas um ponto de vista acerca de como se constituíram as práticas de Promoção da Saúde no cenário pesquisado. Para construir as análises deste artigo, foram levados em consideração os relatos dos participantes, que resgatam a história das práticas de Promoção da Saúde, as Políticas Nacionais de Atenção Básica (Portaria nº 971, 2006; Portaria nº 2.488, 2011; Portaria nº 2.436, 2017) e de Promoção da Saúde (Portaria nº 687, 2006; Portaria nº 2.426, 2014) e o referencial teórico que se refere ao objeto de estudo, bem como o referencial foucaultiano. O resgate histórico obtido por meio das falas e os registros presentes nas políticas possibilitaram delinear as proveniências e emergências das práticas de Promoção da Saúde no cenário pesquisado.
Para preservar o anonimato, os participantes da pesquisa foram identificados com codinomes que remetem a expressões artísticas, escolhidos por eles mesmos. Durante toda a pesquisa, foram observados os procedimentos éticos exigidos para estudos com seres humanos no Brasil (Resolução nº 466, 2012). A pesquisa foi aprovada pelos Comitês de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e do Grupo Hospitalar Conceição, de acordo com os números de protocolo CAAE 16078319.7.0000.5347 e CAAE 16078319.7.3001.5530, respectivamente.
Resultados e Discussão
A análise dos dados será apresentada a partir de três períodos históricos. Descreveremos a correlação de forças que possibilitou a emergência das práticas nos períodos, bem como as condições de possibilidade (proveniências) que permitiram e fizeram com que as práticas emergissem no cenário pesquisado.
As Décadas de 1980/1990: Redemocratização, Mobilização Popular, Construção do SUS e do Serviço de Saúde Pesquisado
De acordo com os dados coletados, as atividades que envolvem a participação comunitária, o controle social e o planejamento participativo são as mais antigas, coincidindo, muitas vezes, com a criação das próprias US integrantes da pesquisa. Estas foram criadas nas décadas de 1980 e 1990, a partir da intensa organização comunitária e reivindicação de serviços de saúde nas comunidades da zona norte de Porto Alegre, RS. A fala a seguir demonstra esse processo:
Iniciamos o planejamento participativo em 1994, no início não era esse o nome, mas era essa atividade, de planejar junto com a comunidade. Atualmente realizamos a cada dois anos. Geralmente é feito em um sábado. Nesse momento discutimos temas da saúde junto com a comunidade e elegemos as prioridades a serem trabalhadas nos próximos anos. (Teatro).
A partir da fala exposta, verificamos que, na década de 1990, existiam práticas que visavam estimular a participação da comunidade. Nesse período, o país vivia o momento da redemocratização, com a atuação maciça de movimentos sociais e populares, dentre eles, o Movimento Sanitário Brasileiro. Uma possível explicação para a emergência de muitas iniciativas e organizações de participação popular, que tomaram corpo na constituição de Conselhos Locais de Saúde e Planejamentos Participativos, foi a influência desse momento histórico, no qual muitos coletivos se mobilizaram para a construção de um sistema de saúde público e universal. Além disso, o engajamento de docentes/pesquisadores universitários, no processo de criação e legitimação do arcabouço técnico-político do SUS, influenciou e estimulou a criação de espaços participativos e democráticos em seu contexto (Paim, 2016). As primeiras US do serviço pesquisado foram criadas para serem campo da Residência de Medicina Geral Comunitária, atualmente chamada de Medicina de Família e Comunidade (Grupo Hospitalar Conceição, 2021), fato que demonstra a influência das estratégias educacionais no processo de constituição dos primeiros serviços de APS do país.
As condições de possibilidade (proveniências) que convergiram para a emergência das práticas descritas, de acordo com o relato dos participantes, dos registros presentes na legislação do próprio SUS (Lei nº 8.080, 1990; Lei nº 8.142, 1990) e da leitura do referencial teórico da área (Paim, 2016), foram: o cenário político, identificado no processo de redemocratização, em que o país ainda estava sob efeito da atuação dos movimentos sociais e populares; a recente aprovação da Constituição Federal Brasileira (1988); o engajamento de docentes e pesquisadores universitários no Movimento Sanitário Brasileiro; a estruturação dos primeiros programas de Residência em Medicina Geral Comunitária; e as ações ou programas de reorientação da formação profissional. Em nível local, as comunidades se organizavam para reivindicar serviços de saúde em seus territórios, considerando a criação do SUS em 1990 (Lei nº 8.080, 1990; Lei nº 8.142, 1990; Paim, 2016).
Outro conjunto de práticas de PS que têm bastante tempo de existência são os grupos de convivência. Estas atividades aparecem em quase todas as US pesquisadas e cumprem uma função importante como espaço de socialização entre os participantes. Dois aspectos apontam para a emergência dessas práticas. Primeiro, que o surgimento de tais atividades aconteceu já na implantação das US. Aquela mesma mobilização e organização comunitária, do final dos anos 1980 e início dos anos 1990, pode ter influenciado a criação de espaços de encontro e convivência, conforme verificamos na fala a seguir: Desde a sua criação, as Unidades eram reconhecidas como espaços pertencentes à comunidade. Um local não apenas de cura, mas também de compartilhar a vida. . . (Hortaliça).
A partir do que foi dito, é possível perceber que as US não são apenas consideradas espaços de cura, mas também espaço de encontro entre as pessoas. Isso é ilustrado no fato de algumas US integrarem centros comunitários que são sede para outras políticas, como a de Assistência Social, bem como espaços de lazer comunitários (quadra de esportes, pracinha para as crianças, piscina comunitária, cancha de bochas, salão da associação comunitária).
Além do surgimento de tais práticas, no contexto da redemocratização do país e da criação das US, outro ponto chama atenção. O que fez com que os grupos de convivência se mantivessem ativos por tantos anos e com tanta adesão? Um primeiro fator que pode ter influenciado se refere ao vínculo estabelecido entre a comunidade e as equipes de saúde. Os trabalhadores das US pesquisadas, por serem contratados via processo seletivo público e terem condições de trabalho minimamente satisfatórias, majoritariamente se mantêm no serviço por muitos anos (a média de tempo de serviço dos participantes da pesquisa é de 15 anos). Isso faz com que as equipes se vinculem com as comunidades. Além disso, as práticas de PS com tais características são conduzidas ou contam com a participação de ACS. Antes mesmo da criação do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (Portaria nº 1.886/GM, 1997), o serviço pesquisado já havia criado o cargo de Agente de Saúde Comunitária (Grupo Hospitalar Conceição, 2021). Estes trabalhadores, que também são moradores das comunidades, integram as US desde as suas criações, conforme é dito a seguir: Eu trabalho no serviço há 28 anos. Sempre me envolvi com os grupos. . . Grupo de convivência, de artesanato, de adolescentes, da horta. . . (Hortaliça).
A participação das ACS, desde a criação das US, conforme exemplificado na fala acima, influencia a vinculação e adesão dos usuários nas atividades de convivência, fazendo com que elas sigam tendo a mesma força que no momento de sua criação (o grupo de convivência mais antigo foi criado há 27 anos).
Na contemporaneidade, é possível identificar que as pessoas, mesmo em tempos que antecederam a pandemia de covid-19, deflagrada no Brasil em março de 2020, encontravam-se em processos de isolamento e fragilidade de relações. Os espaços de convivência, de arte e de cultura, oferecidos pelas equipes de APS, representam uma possibilidade de socialização e produção de relações de apoio mútuo, demonstrando potência para a promoção da saúde mental e apoio comunitário.
Entendemos que a emergência, nas décadas de 1980/1990, de práticas de Promoção da Saúde, inerentes à participação popular e à convivência, estava vinculada à intensa mobilização social presente no processo de redemocratização do país, especialmente o Movimento Sanitário, no campo da saúde. Além disso, mais especificamente no cenário pesquisado, o surgimento da Residência em Medicina Geral Comunitária, a mobilização das próprias comunidades para a criação de Unidades de Saúde em seus territórios e a criação, ainda nessa época, do cargo de Agente de Saúde Comunitária foram as condições de possibilidade (proveniências) para o surgimento e a ampliação de tais práticas, nessa época.
Retomamos a noção de governamentalidade, palavra utilizada por Foucault (2008) para definir as estratégias de condução das condutas dos indivíduos (governo de si) e da população (governo dos outros), cujas características foram se modificando ao longo da história. O processo de redemocratização do país, com as lutas por direitos sociais, esteve ancorado em uma nova razão política, denominada governamentalidade democrática (Gallo, 2017). Foi um período histórico “centrado na afirmação e na promoção da cidadania, evidenciando uma governamentalidade democrática como maquinaria posta em curso no Brasil desde meados dos anos 80, azeitada pela constituição de cidadãos” (Gallo, 2017, p. 89). Para que um governo democrático seja possível, a cidadania é obrigatória, por isso, naquele momento histórico, a racionalidade do pensamento político, cultural, econômico e social passa a se sustentar na noção de democracia e na noção de sujeito de direito, como o fundamento da ação governamental (Gallo, 2017).
Identificamos a ação dessa racionalidade no campo pesquisado, nas décadas de 1980/90, período em que as comunidades lutavam por seus direitos e por sua condição de cidadãos. Ao mesmo tempo em que se construíam as bases que legitimaram o acesso à saúde como direito social, também era elaborada uma complexa estrutura técnico legal que permitiria a condução da conduta desses cidadãos de direitos, por meio da governamentalidade democrática. Esses mecanismos se ampliam e se modificam nos anos subsequentes, conforme veremos.
Os Anos 2000: Indução de Práticas de Promoção da Saúde por meio de Políticas Públicas de Saúde
Nos anos 2000, as práticas de participação popular seguiram existindo no campo pesquisado, mas demonstraram um recuo em relação às décadas anteriores. A organização comunitária perdeu a sua força. As assembleias comunitárias e o Planejamento Participativo passaram a ser realizados com menor frequência e por menos Unidades de Saúde. Os Conselhos Locais de Saúde ganharam características cada vez mais institucionais e vinculadas a procedimentos burocráticos, sem a capacidade de mobilização comunitária anteriormente identificada, conforme a fala a seguir:
A dificuldade é conseguir com que as pessoas [participem]. Tem gente que vai sempre, mas são poucos. A gente não dá o devido valor para os espaços de participação social. (Teatro).
Existe um grande questionamento por parte da gestão municipal em relação à legitimidade dos Conselhos Locais de Saúde, nós ficamos preocupados que o espaço fosse bem legitimado. . . . a participação social deixou de ser entendida como trabalho no SUS. Os próprios colegas não estimulam que os usuários participem das reuniões. (Capoeira).
As falas acima demonstram o processo de diminuição da participação dos usuários nos espaços destinados para tal, bem como a falta de legitimidade desta prática (participação) no contexto da gestão e do próprio processo de trabalho das equipes de saúde.
Esse processo coincidiu com a forte investida da racionalidade neoliberal, entendida como um desenho socioeconômico no qual as relações de mercado devem ocorrer com a maior liberdade possível, sendo a ação do Estado limitada a regular, em certa medida, tais relações. Além disso, deve investir o mínimo possível na área social, na medida em que seja possível manter o equilíbrio social, para que a população se mantenha produtiva e capaz de consumir os bens e serviços ofertados pelo mercado (Lockmann, 2020; Dardot & Laval, 2016). Merece destaque a implementação de ações do Banco Mundial sobre os sistemas de saúde de diferentes países, cujos relatórios e proposição de modelos de atenção específicos começaram a ser estruturados ainda nas décadas de 1990 e passaram a ser efetivamente implementados nos anos 2000 (Mendonça et al., 2018).
A luta pela constituição legítima de um Estado cidadão já não ocupava espaço de centralidade na arena política nesse período. A ordem do dia passou a ser a construção e operacionalização de políticas públicas capazes de garantir direitos e, ao mesmo tempo, por meio da inclusão que proporcionam, de governar os cidadãos que integram a sociedade democrática, já legitimamente constituída nas décadas anteriores. Nesse período, a governamentalidade neoliberal democrática ganhou espaço no Estado brasileiro (Gallo, 2017), cuja racionalidade pode ser identificada nas muitas políticas públicas de saúde, criadas/promulgadas nos anos 2000. Não conseguiríamos citar todas elas, mas podemos dizer que, no cenário estudado, é possível identificar a indução de práticas de Promoção da Saúde, de acordo com tais políticas.
No ano de 2011, o número de equipes de APS foi ampliado sobremaneira no serviço pesquisado (Grupo Hospitalar Conceição, 2021). Tal ampliação foi possível com a publicação da PNAB em 2011 (Portaria nº 2.488, 2011), que considerava novos arranjos para as equipes de ESF. Esse foi o período em que as equipes de APS receberam os maiores aportes de incentivos financeiros dos governos federal e estadual, com vistas à ampliação e qualificação do trabalho (Mendonça et al., 2018).
Como práticas de PS, produto da indução de políticas públicas de saúde, emergiram no serviço pesquisado: o Programa Saúde na Escola (PSE) (Portaria Interministerial nº 1.055, 2017b); os grupos/consultas coletivas de Hipertensão Arterial Sistêmica e Diabetes Mellitus; o grupo Saúde no Prato (alimentação saudável); Grupos de Saúde Mental; atividades coletivas do Programa Bolsa Família (programa de redistribuição de renda do governo federal, criado em 2003, cujas condicionalidades incluem o acompanhamento sistemático de saúde das famílias beneficiadas (Lei nº 10.836, 2004); Grupo de Tabagismo; Grupo de Caminhada. Todas elas vinculadas a alguma política de saúde ou programa governamental. Destaca-se a vinculação de muitas delas com os eixos operacionais da Política Nacional de Promoção da Saúde (Portaria nº 2.426, 2014), conforme exemplificado pela fala a seguir:
A atividade começou demandada por parte da coordenação [da equipe]. O PSE [Programa Saúde na Escola] é uma diretriz ministerial. . . Elaboramos um projeto que contemplava ações de Promoção da Saúde e exames diagnósticos, realizados na escola, conforme prevê o manual do PSE. (Cinema).
De acordo com o que foi dito, a partir de um programa estruturado pelo Ministério da Saúde, as equipes foram convocadas pela gestão do serviço pesquisado a organizar as práticas de Promoção da Saúde em seus territórios, conforme o previsto no referido programa (PSE).
As outras práticas relatadas na pesquisa, neste período histórico, também emergiam a partir da demanda pela sua criação, por parte dos gestores da instituição de saúde, que, por sua vez, recebiam-na dos governos estaduais e federal. A partir da solicitação, eram criados grupos de trabalho que organizavam as práticas no contexto das Unidades de Saúde.
Outro conjunto de práticas que emergiram nesse período se referem às atividades culturais, conforme descreve a fala a seguir:
. . . uma iniciativa de estímulo e valorização da cultura foi a criação dos Pontos de Cultura no território das Unidades a partir de 2007. Nestes locais, eram ofertadas às comunidades atividades de arte, envolvendo a cultura local. Existia um espaço centralizado, chamado Chalé da Cultura onde era feito o empréstimo de livros, atividades artísticas, saraus literários, apresentações musicais e de dança, feira de artesanato produzido nas comunidades. . . servia também como local de integração das diferentes comunidades. (Flor).
O que foi dito acima exemplifica o fato de os Pontos de Cultura terem sido uma prática expressiva de Promoção da Saúde, ancorada na perspectiva da intersetorialidade (envolvia diretamente os Ministérios da Saúde e o Ministério da Cultura), da participação comunitária e do respeito e da valorização da cultura e dos saberes locais. Embora as condições de possibilidade que fizeram emergir os Pontos de Cultura nessa época também contemplem a participação do Estado, por meio de editais e incentivos financeiros para as atividades, a correlação de forças não permitiu que esta prática de saúde - vinculada à cultura - se tornasse uma política pública de saúde. Por isso, sua existência permaneceu condicionada à gestão (temporária) da instituição a qual estavam vinculados. Com a crescente precarização dos serviços de saúde, acentuada a partir de 2016, tais práticas foram sendo fragilizadas de modo que os Pontos e o Chalé da Cultura foram extintos nesses territórios. Isso denota uma derrota diante da adoção do conceito ampliado de saúde e do alcance das práticas de Promoção da Saúde. A cultura é uma dimensão importante da vida, capaz de proporcionar saúde mental e bem-estar. Para muitas pessoas, das comunidades nos quais estavam inseridos, os Pontos de Cultura representavam a possibilidade de acesso a práticas culturais.
Foi a partir das atividades desenvolvidas nos Pontos de Cultura e no Chalé da Cultura que surgiram as primeiras iniciativas em relação à implantação de Práticas Integrativas e Complementares, nas US pesquisadas, de acordo com a fala a seguir:
Um grupo de trabalhadores e residentes. . . realizaram um seminário para discutir a temática. Constituíram um grupo de pessoas com formação em Reiki, que passou a realizar aplicações no próprio Chalé da Cultura. Então outras práticas foram incluídas e foram se estendendo para as demais Unidades. (Flor).
Conforme o que foi dito, é possível identificar a importância do Chalé da Cultura para que as práticas Integrativas e Complementares passassem a ser incluídas no serviço de saúde pesquisado.
Em nível macro, destacamos o esforço da Rede de Educação Popular em Saúde em fomentar a Educação Permanente sobre práticas tradicionais e a construção da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) (Portaria nº 971, 2006). Em nível local, as atividades dos Pontos de Cultura construíram as condições de possibilidade (proveniências) para a emergência das Práticas Integrativas e Complementares (PICS) no serviço pesquisado.
Algumas práticas identificadas no cenário da pesquisa, que surgiram nos anos 2000, escapam à indução realizada por meio de políticas de saúde, incentivos financeiros e orientações de documentos técnico-legais. São elas: grupo de dança na escola; grupo de escrita criativa; grupo da horta; grupo de artesanato; grupo de visitas da alegria com palhaços. As falas a seguir demonstram isso:
O grupo surgiu a partir de um projeto de extensão da universidade. . . . O objetivo [da prática] é poder se expressar através da escrita. . . . Tem um objetivo de ser um espaço lúdico, de ser um espaço criativo. (Criatividade).
A prática surgiu da associação da minha trajetória pessoal com a dança, com os resultados da minha tese de doutorado. Não queria fazer algo de educação em saúde tradicional na escola. Queria olhar para o corpo de outro jeito. No serviço de saúde, se olha para o corpo orgânico. [Nessa prática, o objetivo] É olhar para um corpo que dança. (Dança).
A partir desses exemplos, é possível identificar práticas de Promoção da Saúde que não são induzidas pelas políticas de saúde, mas por outros fatores, como a participação da Universidade e o percurso/experiência pessoal do trabalhador.
A emergência dessas práticas, as quais, em certa medida, escapam ao escopo do que ditam as (tradicionais) políticas públicas da área da Saúde, destinadas principalmente a modular comportamentos e controlar riscos, tem como condições de possibilidade para seu surgimento a trajetória e experiência pessoal dos trabalhadores que as conduzem; a presença de projetos de extensão de universidades; e a presença e atuação de residentes dos Programas de Residência Multiprofissional em Saúde e de Medicina de Família e Comunidade.
As práticas induzidas pelas políticas públicas de Saúde podem ser entendidas como a expressão da governamentalidade neoliberal democrática (Gallo, 2017), pois visam, majoritariamente, induzir comportamentos saudáveis, inscritos em uma normatização estabelecida no campo da saúde. A Promoção da Saúde, posta em ação desta forma, pode ser compreendida como uma estratégia biopolítica operada para manter corpos saudáveis, produtivos e aptos ao consumo. Já as práticas que escapam ao que ditam as políticas públicas majoritárias desse momento histórico podem ser compreendidas como contracondutas, que Foucault definiu como a “luta contra os procedimentos postos em prática para conduzir os outros” (Foucault, 2008, p. 266); ou seja, a adoção de uma conduta diferente da esperada, diante de um conjunto de políticas públicas que visam induzir determinadas práticas de Promoção da Saúde, inscritas na lógica da governamentalidade neoliberal democrática. São práticas que vão buscar a produção de saúde de acordo com as singularidades dos participantes, sem um modelo único do que seria saúde e sem ter, unicamente, como objetivo final, um corpo apto ao trabalho e ao consumo.
Podemos exemplificar práticas que se constituem como contraconduta, como a descrita na fala que segue:
No grupo de convivência ninguém deve ficar fiscalizando. Ah, se come bolo e tem diabetes. Lá cada um sabe da sua vida e o objetivo não é ficar controlando a comida. É um espaço de convivência, que tem comida e as pessoas podem comer, sem ser cerceadas. (Viagem).
Observamos, assim, com esse relato, que se trata de uma atividade que se constitui como prática diferente do que é majoritariamente ditado nas políticas de saúde, que se destinam ao controle de comportamentos e mudanças de hábitos. Uma revisão de literatura (Mattioni et al., 2022), sobre as práticas de Promoção da Saúde na APS revelou que as atividades realizadas são majoritariamente destinadas à modulação dos comportamentos individuais. Sendo assim, práticas cujo objetivo escapam a esta perspectiva podem ser entendidas como uma contraconduta ao que está previsto nas políticas de saúde, que, em sua maioria, voltam-se às abordagens comportamentais.
De 2016 até Agora: Precarização do SUS, Refluxo das Práticas de Promoção da Saúde e Novas (Im)Possibilidades
A partir de 2016, não foi relatada, pelos participantes da pesquisa, a emergência de novas práticas de Promoção da Saúde a partir da indução de políticas públicas de saúde. Esse resultado acompanha o cenário de precarização dos serviços de saúde integrantes do SUS. Tal precarização se inscreve na adoção de medidas de austeridade fiscal, ocorrida nos últimos anos, cuja legitimação se deu com a aprovação da Emenda Constitucional (EC) 95 (Emenda Constitucional nº 95, 2016). Com isso, os gastos sociais públicos passam a ser ainda mais limitados e, no caso da Saúde e Educação, os governos federais, estaduais e municipais não são mais obrigados a investir percentuais mínimos de sua arrecadação nestas áreas (Rego Menezes et al., 2020).
Além da limitação dos investimentos na área da saúde, nos últimos anos, o ritmo de elaboração e publicação de políticas públicas de saúde diminuiu consideravelmente, assim como mudaram os discursos presentes na sua composição, fato que remete ao visível recuo do Estado brasileiro nessa área, demonstrando a investida da racionalidade neoliberal conservadora (ou autoritária). Autores (Gallo, 2017; Lockmann, 2020) sustentam que, desde meados dos anos 1980 até pelo menos 2016, funcionava, no Brasil, uma governamentalidade neoliberal democrática sustentada na “inclusão como imperativo de Estado, garantindo direitos aos cidadãos, mas ao mesmo tempo produzindo desigualdades” (Lockmann, 2020, p. 71). Como produto de um processo que se intensificou de 2016 até a atualidade, emergiu um cenário no qual determinados grupos populacionais parecem não estar incluídos no escopo das políticas de governo. Essa nova roupagem do neoliberalismo brasileiro passou a ser chamada de governamentalidade neoliberal conservadora ou autoritária, em que certos grupos populacionais seguem sendo incluídos, mas não todos (Lockmann, 2020). Admite-se que, ao serem abandonados pelo Estado, determinados grupos populacionais podem (ou devem) morrer. Ao contrário da estratégia biopolítica de fazer viver e deixar morrer, essa configuração remete à perspectiva necropolítica de fazer morrer (Mbembe, 2018).
Também foram identificadas mudanças nas políticas públicas de Saúde. Com relação ao objeto deste artigo, destacamos as alterações com a publicação da PNAB em 2017 (Portaria nº 2.436, 2017), especialmente no que se refere à diminuição do número de ACS nas equipes, a flexibilização da adscrição dos territórios às equipes de ESF e as mudanças no financiamento das equipes de APS (Pinto, 2018). Esses aspectos impactam diretamente as práticas de Promoção da Saúde realizadas na APS. De acordo com os resultados desta pesquisa, os ACS participam de quase todas as práticas relatadas, sendo que foram os criadores e coordenam muitas delas. Diminuir o número de ACS nas equipes significa diminuir a possibilidade de manter e estimular a execução de práticas de Promoção da Saúde vinculadas ao conceito ampliado de saúde.
A flexibilização da adscrição territorial, por sua vez, significa que as equipes podem não estar vinculadas a comunidades específicas, fato que fragiliza a compreensão do território como um espaço produtor de saúde ou de adoecimentos, bem como as possibilidades de problematizar tais situações junto às comunidades e fomentar a organização para reivindicar melhores condições de vida nos territórios, junto ao Estado (Pinto, 2018).
Considerando a presença de práticas de Promoção da Saúde na APS, ainda como produto da indução operada por políticas públicas de saúde, e, ao mesmo tempo, a fragilização do SUS, como resultado das medidas de austeridade fiscal, podemos dizer que está em curso algo que pode ser chamado de bionecropolítica em relação ao campo da saúde (Dall’alba et al., 2021). A Promoção da Saúde, desde sua criação, ao que parece, assumiu um caráter biopolítico, visando à manutenção da vida, mesmo que com a finalidade de garantir uma população produtiva e consumidora. Já a ausência de políticas públicas e de práticas de Promoção da Saúde, em determinados territórios, significa que o Estado assume que certos grupos populacionais não necessitam ser cuidados ou expostos a ações de promoção da vida e, portanto, podem morrer, caracterizando, assim, uma estratégia necropolítica.
Junto ao processo de precarização das políticas de Saúde, a pandemia de covid-19, cujos primeiros casos no Brasil datam de março de 2020, também impactou sobremaneira as práticas de Promoção da Saúde, no cenário pesquisado. A maior parte das práticas foram suspensas nesse período, não sendo retomadas até o momento da escrita deste artigo (abril de 2021). A característica do encontro entre as pessoas, presente na maior parte das práticas, inviabiliza sua realização. Por outro lado, as medidas de distanciamento social, utilizadas para prevenir o contágio da doença, estimulou as equipes de saúde a utilizarem as mídias digitais para a comunicação com os usuários. Diferentes plataformas digitais e aplicativos de mensagens passaram a ser utilizados com o objetivo de comunicar e informar as comunidades a respeito das ações de saúde no território. As tecnologias digitais são utilizadas para informar sobre o funcionamento dos serviços, para veicular mensagens de educação em saúde (sobre a covid-19 e outros temas da saúde) e para convidar a comunidade para participar de reuniões do Conselho Local de Saúde e assembleias comunitárias, conforme descrito a seguir: Nosso Conselho está ativo, com reuniões quinzenais. Este mês faremos a segunda Assembleia com os moradores. Tudo on-line. Observo que as pessoas estão participando bem mais. (Viagem).
Identificamos, com o relato acima, intensificação do uso de tecnologias digitais, desencadeada pela situação de crise sanitária. Destacamos o alcance que as mensagens disparadas, tanto por meio de plataformas digitais quanto por meio de aplicativos de mensagens, podem ter, disseminando discursos sobre saúde, que podem tanto se alinhar a uma lógica da Promoção da Saúde mais conservadora, focada unicamente no controle de riscos e na responsabilização/culpabilização individual, como pode reforçar a difusão do conceito ampliado de saúde e desta como um direito social.
Outro aspecto positivo foi a ampliação da participação das comunidades com a utilização das ferramentas virtuais, algo que não ocorria quando os encontros eram presenciais, conforme já relatado neste artigo. Essa pode ser uma alternativa para que as pessoas se inteirem sobre os assuntos das Unidades de Saúde e seus respectivos territórios, participando das decisões e se mobilizando diante das necessidades identificadas. A utilização do meio virtual foi uma alternativa imposta pela pandemia, porém pode vir a ser um elemento de aproximação com as comunidades e potencializar a participação popular.
Tais aspectos representam possibilidades para a disputa do conceito de saúde junto à população, algo inerente aos rumos da Promoção da Saúde, pois, se a população assume o discurso de que saúde é apenas controlar riscos, fazer exames preventivos (muitos deles desnecessários) e utilizar medicações e suplementos alimentares, ganha a indústria da saúde, que garante cada vez mais pessoas dispostas a comprar seus produtos. Por outro lado, se a saúde é vista em perspectiva ampliada, como produto de diferentes Determinantes Sociais, a população pode reconhecer a importância do fortalecimento dos serviços públicos de saúde e da necessidade de ampliação de políticas públicas intersetoriais, capazes de promover ambientes que favoreçam uma vida saudável nas comunidades (Akerman & Germani, 2020).
Considerações Finais
Apresentamos a análise das emergências e proveniências das práticas de Promoção da Saúde realizadas em um Serviço de APS. Ao longo de quatro décadas, emergiram práticas de Promoção da Saúde que, de um modo geral, acompanham os arranjos socioeconômicos, políticos e culturais da sociedade brasileira. Aspectos locais, no entanto, garantem características singulares a algumas práticas relatadas no cenário pesquisado.
Os resultados desta pesquisa ratificam o argumento de que as práticas de Promoção da Saúde se configuram, majoritariamente, como estratégias biopolíticas, destinadas à modulação de comportamentos, controle de riscos e produção de corpos saudáveis, aptos ao trabalho e ao consumo, induzidas por meio de políticas públicas. Existem, no entanto, práticas que se constituem com características que escapam ao escopo de tais políticas, colocando-se como contracondutas às práticas de Promoção da Saúde inscritas na lógica da governamentalidade neoliberal democrática, ou seja, seu objetivo é produzir bem-estar e felicidade, mesmo que isso signifique fugir das normas dos (tradicionais) protocolos sanitários.
Destacamos que as análises realizadas neste artigo não devem ser entendidas como afirmações de verdade. Por se tratar de uma pesquisa inspirada no método genealógico, os resultados e suas análises devem ser considerados tão somente como uma possibilidade de entendimento do objeto de estudo em questão. Sua maior potencialidade está na utilização do referencial teórico pós-estruturalista (foucaultiano) para uma temática pouco explorada sob essa perspectiva epistemológica. A partir das entrevistas, da pesquisa documental realizada sobre políticas de saúde e da utilização do referencial teórico escolhido, oferecemos, por meio deste artigo, pistas sobre como se constituíram as práticas de Promoção da Saúde em um cenário e em um período histórico delimitado. Por isso, tais resultados não são passíveis de generalizações, mas podem sugerir possibilidades analíticas e de compreensão das realidades, em outros contextos e cenários.
Salientamos, ainda, que o teor da crítica aqui realizada buscou tão somente analisar (sem juízos de valores) que a condução de condutas que operam como estratégias biopolíticas parece contribuir sobremaneira a uma concepção de Saúde bastante diferente daquela vivenciada na atualidade, em que a racionalidade neoliberal conservadora (ou autoritária) admite que determinados grupos populacionais podem (ou devem) ser excluídos e abandonados pelo Estado, a sua própria sorte. Certamente, este é um tema que remete a estudos futuros, no sentido de aprofundar essas outras formas de atuação do Estado brasileiro, que não mais se inscreve unicamente na categoria da biopolítica.