Introdução
No início de dezembro de 2019, foi registrado em Wuhan, na China, o primeiro caso de infecção pelo novo coronavírus, como se chamou posteriormente a doença respiratória causada pelo vírus SARS-CoV-2 (Wang et al., 2020a). Desde então, o vírus se alastrou mundialmente e de forma rápida, fazendo com que, em março de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) decretasse estado de pandemia mundial (World Health Organization, 2020).
No Brasil, o primeiro caso de coronavírus foi notificado em fevereiro de 2020, e a primeira morte, registrada no mês seguinte, na cidade de São Paulo. O número de casos cresceu exponencialmente e, até fevereiro de 2021, somavam-se mais de nove milhões de casos confirmados (9.339.420) e 227.553 óbitos acumulados (Ministério da Saúde, 2020a). A imensa subnotificação de casos, devido principalmente à baixa testagem e à curva ascendente de novas mortes, chegou a posicionar a América do Sul, e especificamente o Brasil, como epicentro da pandemia (Fiocruz, 2020a). Nesse contexto, Juiz de Fora, cidade da zona da mata mineira, que, de acordo com a última estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2019), tem 568.873 habitantes, apresenta atualmente 17.834 casos confirmados, 56.268 notificados e 727 óbitos, registrando, no final de janeiro de 2021, taxa de letalidade maior (3,94%) do que aquelas da Macrorregião Sudeste (2,46%), de Minas (2,1%) e do Brasil (2,48%) (Prefeitura de Juiz de Fora, 2020a).
O aumento acelerado da contaminação e risco iminente do colapso no sistema de saúde, devido à demanda crescente, levaram à proposição de medidas para conter a rápida escalada da doença em todo o mundo (Walker et al., 2020), tais como restrições a viagens, escolas, eventos, isolamento de casos suspeitos e distanciamento social para toda a população (Wang et al., 2020a). Ao encontro destas propostas, o Brasil, por meio da Lei n. 13.979 (2020), e Juiz de Fora, por meio do Decreto n. 13.894 (2020), instituíram as medidas para enfrentamento da emergência - incluindo entre essas, principalmente, o distanciamento social.
Apesar de se mostrar efetivo, o distanciamento social pode gerar fortes impactos para a saúde mental. A necessidade de afastamento da rede socioafetiva, incerteza quanto ao tempo de isolamento, tédio, medo, rotinas alteradas, condições de moradia, relacionamentos familiares, situações de violência e solidão podem ser alguns dos estressores desencadeados pelas medidas de distanciamento, além do desenvolvimento de transtornos como ansiedade, depressão (Brooks et al., 2020; Barari et al., 2020; Lima et al., 2020) e indícios de aumento do comportamento suicida (Jung & Jun, 2020).
Corroborando, pesquisas realizadas com a população chinesa, primeiro país a adotar a quarentena e o isolamento social como medidas protetivas, indicam que há possíveis consequências psicológicas desse confinamento em massa. Em uma amostra de mais de mil chineses, os resultados mostraram maior índice de ansiedade, depressão, uso nocivo de álcool e menor bem-estar mental do que os índices populacionais usuais (Ahmed et al., 2020).
Somados a isso, temos os impactos psicológicos da pandemia propriamente dita, como medo de ser infectado ou infectar, perder os meios de subsistência, adoecer e morrer, perder pessoas queridas, dificuldade em acessar os serviços de saúde, excesso de informações falsas, entre outros (Fiocruz, 2020a). No atual contexto brasileiro, é válido destacar ainda a inabilidade de gestores públicos de reconhecer a gravidade da situação, o negacionismo científico e as graves desigualdades sociais como agravantes do impacto psicológico da pandemia na população (Fiocruz, 2020a; Caponi, 2020).
De acordo com a Fiocruz (2020a) e a Organização Pan-Americana de Saúde (2009), estima-se que entre um terço e metade da população em uma pandemia poderá vir a apresentar manifestação psicopatológica (em curto, médio e longo prazo) caso não receba suporte e cuidado específico. Visto isso, as implicações psicológicas desencadeadas pela covid-19 podem ser mais prevalentes e duradouras que o próprio acometimento pela doença (Ornell, et al., 2020). Isso sugere a importância de intervenções psicológicas e pesquisas sobre a temática, tanto durante quanto após a vigência da pandemia (Shojaei & Masoumi, 2020).
Diante da relevância de investigações sobre os impactos na saúde mental gerados pela pandemia e do número reduzido de estudos sobre esse cenário ainda novo, o presente trabalho objetiva avaliar a saúde mental no contexto da covid-19 de uma amostra local de Juiz de Fora. Especificamente, rastrear a presença de sintomas de ansiedade, depressão e transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), além de analisar os principais comportamentos apresentados por esse grupo diante da vivência da pandemia.
Método
Participantes
Participaram 897 sujeitos com idades entre 18 e 75 anos (M = 36,4; DP = 13,2), 77% mulheres, sendo todos residentes do município de Juiz de Fora, Minas Gerais. A amostra foi composta por 82,3% de indivíduos em distanciamento social, 16,5% que não estavam em isolamento social em função de realizar trabalho considerado essencial, oito (1%) que estavam em quarentena, pois tiveram contato com alguém infectado, e apenas dois sujeitos (0,2%) que estavam em isolamento porque testaram positivo para covid-19.
Instrumentos
Os instrumentos utilizados foram: questionário sociodemográfico e comportamental construído pelos pesquisadores para caracterização da amostra durante a pandemia; Escala Hospitalar de Ansiedade e Depressão (Marcolino et al., 2007), que é um instrumento para rastreio, composto por 14 itens, dos quais sete são voltados para a avaliação de sintomas ansiosos (HADS-A) e sete para sintomas de depressão (HADS-D); e a versão em português validada e denominada de Instrumento de Rastreio para Sintomas de Estresse Pós-Traumático (SPTSS) (Kristensen, 2005), que objetiva ser uma medida de triagem breve com 17 itens, de autorrelato, a qual busca rastrear os sintomas pós-traumáticos, por meio da identificação dos sintomas que compõem os critérios diagnósticos.
Procedimentos
Este artigo faz parte de um projeto de pesquisa nacional submetido à Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), sendo aprovado sob o número do CAAE 30686520.5.0000.5147 e Parecer 4.021.090. Os participantes concordaram em participar da pesquisa a partir do aceite a um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Os critérios de inclusão para participar deste estudo foram: a) Indivíduos maiores de 18 anos, que respondam aos instrumentos um mês após o início da pandemia no país (tempo mínimo para o desenvolvimento de sintomas de estresse pós-traumático); b) Residir em Juiz de Fora no momento do estudo. Sujeitos que não estavam cumprindo ações mínimas de distanciamento social e não realizavam trabalhos considerados essenciais foram excluídos deste estudo.
A coleta de dados foi realizada on-line, por meio de um formulário no Google Forms, a fim de atender às recomendações de distanciamento social. O questionário ficou disponível no período de 12 de maio a 24 de junho de 2020. Foi divulgado nas redes sociais, e, para o recrutamento, foi utilizada a técnica da “bola de neve” (snowball).
Análise de Dados
O presente estudo é de caráter transversal, quantitativo e exploratório. Foram realizadas análises descritivas dos grupos quanto à prevalência dos sintomas psiquiátricos, demais comportamentos investigados e dados sociodemográficos, utilizando frequência e porcentagem, bem como medidas de tendência central e de variabilidade dos dados.
Resultados
A amostra foi constituída por 897 participantes, sendo que 12% sinalizaram nenhuma renda; 10,1%, renda menor que um salário mínimo; 20,9%, entre um e dois salários mínimos; 37,1%, entre dois e seis salários; 12,8%, entre seis e doze salários; e 7,1%, acima de doze salários mínimos.
No que se refere à escolaridade, 0,8% dos entrevistados reportou ensino fundamental; 10,6%, ensino médio; 41,8%, ensino superior; e 46,8%, pós-graduação. Referente à profissão, 30% sinalizaram ser profissionais da saúde. Quanto aos aspectos familiares, 87,9% residem com a família ou amigos e 58% afirmaram não ter filhos.
No que concerne à religião, 41,5% dos respondentes se declararam católicos; 18,7%, espíritas; 8,4%, evangélicos; 23,4%, sem religião; e 8%, outras religiões. Referente à classificação étnico-racial, 75,8% se autodeclararam brancos, seguidos de 15,4% pardos e 6,9% pretos.
No que diz respeito à realização de algum tratamento de saúde, 0,1% referiu ser transplantado, 0,4% sinalizou estar em tratamento oncológico e 20,4% afirmaram estar em tratamento ambulatorial para doenças crônicas, sendo todos considerados grupo de risco, de acordo com as definições da OMS (World Health Organization, 2020).
Com relação a tratamento em saúde mental, 33,6% reportaram estar em acompanhamento psicológico atualmente, sendo que, destes, 2,1% o iniciaram durante a pandemia. Sobre tratamento psiquiátrico, 19,7% referiram estar em acompanhamento, sendo que 1% não o realizou antes da pandemia. Quanto ao uso de psicofármacos, 263 respondentes (29,4%) afirmaram fazer uso, e 2,2% destes o iniciaram durante a pandemia.
N | % | |
---|---|---|
Tratamento de Saúde | ||
Transplantado | 1 | 0,1 |
Oncológico (quimioterapia/radioterapia) | 4 | 0,4 |
Acompanhamento ambulatorial para hipertensão arterial e/ou cardiopatia | 74 | 8,2 |
Acompanhamento ambulatorial para diabetes | 29 | 3,2 |
Acompanhamento ambulatorial para obesidade | 22 | 2,5 |
Acompanhamento ambulatorial para doença autoimune e/ou reumática | 17 | 1,9 |
Acompanhamento ambulatorial para asma e/ou doença pulmonar obstrutiva crônica | 41 | 4,6 |
Acompanhamento Psicológico | ||
Não | 593 | 66,3 |
Sim, fazia antes da pandemia | 282 | 31,5 |
Sim, e não fazia antes da pandemia | 19 | 2,1 |
Acompanhamento Psiquiátrico | ||
Não | 717 | 80,3 |
Sim, fazia antes da pandemia | 167 | 18,7 |
Sim, e não fazia antes da pandemia | 9 | 1,0 |
Uso de Psicofármacos | ||
Não | 630 | 70,5 |
Sim, fazia antes da pandemia | 243 | 27,2 |
Sim, e não fazia antes da pandemia | 20 | 2,2 |
A maior parte da amostra (68,5%) declarou apresentar expectativas positivas com relação à superação da pandemia. No tocante às mudanças comportamentais durante este contexto, quase metade dos sujeitos (46,7%) relataram algum tipo de mudança. Destes, 147 (16,4%) sinalizaram maior uso de álcool do que o habitual; 52 (5,8%), maior consumo de cigarro; 18 (2%), maior uso de drogas; e 90 (10%), aumento do uso de psicofármacos. Além disso, 228 (25,4%) declararam que, em algum momento, acreditaram estar com o vírus, mesmo estando saudáveis, identificando em si sintomas da doença.
Sobre as mudanças de humor, quase o total da amostra (91%) relatou alguma alteração. As mais apontadas foram: ansiedade (65,7%), medo de perder os familiares (56,9%), irritabilidade (49,1%), medo do futuro (46,6%), tristeza (44,1%), medo de contrair o vírus (42,4%), sentimento de solidão (26,3%) e medo da morte (21,5%). Quase metade dos participantes (48%) notou mais de quatro mudanças de humor distintas nesse período.
N | % | |
---|---|---|
Mudanças Comportamentais | ||
Não | 478 | 53,3 |
Sim | 419 | 46,7 |
Maior uso de álcool do que o habitual | 147 | 16,4 |
Maior uso de cigarro do que o habitual | 52 | 5,8 |
Maior uso de drogas do que o habitual | 18 | 2,0 |
Maior uso de psicofármacos do que o habitual | 90 | 10,0 |
Identificação com os sintomas da covid-19, mesmo estando saudável | 228 | 25,4 |
Mudanças de Humor | ||
Não | 815 | 91,0 |
Sim | 82 | 9,0 |
Ansiedade | 589 | 65,7 |
Tristeza | 396 | 44,1 |
Irritabilidade | 440 | 49,1 |
Sentimento de solidão | 236 | 26,3 |
Medo da morte | 193 | 21,5 |
Medo do futuro | 418 | 46,6 |
Medo de perder familiares | 510 | 56,9 |
Medo de contrair o vírus | 380 | 42,4 |
Os resultados da Escala Hospitalar de Ansiedade e Depressão (HADS) mostraram que mais da metade dos participantes (53,4%) apresentaram sintomas de ansiedade e quase toda a amostra (93,9%) apresentou sintomas de depressão durante os primeiros meses da pandemia. Dentre os itens referentes aos sintomas ansiosos, 40,5% dos respondentes referiram sensação de medo, como se algo ruim fosse acontecer. Os itens com maior pontuação relacionados aos sintomas depressivos foram a ausência de prazer nas atividades (47,2%) e a dificuldade de dar risadas e se divertir diante de coisas engraçadas (54,9%).
Quanto ao rastreio para SPTSS, os escores médios totais variaram de 0 a 167 (M = 77,6; DP = 33). Sendo assim, utilizando como ponto de corte o escore total do SPTSS ≥ 5 (sensibilidade = 0,85; especificidade = 0,73), identificou-se que 43,15% dos sujeitos nessa amostra apresentaram sintomas compatíveis com o diagnóstico de TEPT. Entre os agrupamentos de sintomas, aquele que apresentou escore médio mais elevado foi o agrupamento de excitabilidade aumentada (M = 4,9; DP = 1), seguindo-se pelo agrupamento de evitação e entorpecimento da responsividade geral (M = 4,9; DP = 0,8), e, com escore médio mais baixo, o agrupamento de revivência (M = 3,7; DP = 0,9).
N | % | |
---|---|---|
HADS | ||
Ansiedade (HADS-A) | ||
Com ansiedade | 479 | 53,4 |
Sem ansiedade | 418 | 46,6 |
Depressão (HADS-D) | ||
Com depressão | 838 | 93,4 |
Sem depressão | 59 | 6,6 |
Estresse Pós-Traumático (SPTSS) | ||
Presença de Sintomas Compatíveis com TEPT | ||
Sim | 387 | 43,1 |
Não | 510 | 56,9 |
Agrupamento de sintomas | M | DP |
Excitabilidade aumentada | 4,9 | 1,0 |
Evitação e entorpecimento | 4,9 | 0,8 |
Revivência | 3,7 | 0,9 |
Escore Total SPTSS | 77,6 | 33,0 |
Discussão
Os resultados obtidos no presente trabalho evidenciam impactos significativos da pandemia de covid-19 nos comportamentos e na saúde mental da amostra estudada. O período em que os dados foram coletados deve ser considerado, visto que alguns estudos apontam que há reações esperadas de acordo com cada fase da pandemia (Fiocruz, 2020a; Faro et al., 2020). A coleta de dados desta pesquisa foi realizada no final do primeiro trimestre, no qual as reações são tidas como pós-imediatas, sendo consideradas como um estresse agudo; passado esse período, são denominadas crônicas, com potencial para trauma. Sendo assim, é importante que ocorra o rastreamento dessas reações nos primeiros meses, para que não haja maiores complicações em longo prazo.
Sobre a amostra utilizada, foi observada uma alta taxa de escolarização, fato semelhante ao encontrado no estudo de Bezerra et al. (2020), que investigou fatores associados ao comportamento da população durante o isolamento social. Esta questão, no presente trabalho, parece estar relacionada aos métodos empregados, visto a técnica de recrutamento adotada, “bola de neve”, e a utilização das pesquisadoras responsáveis como disparadoras dos questionários, o que poderia restringir inicialmente a coleta no contexto dessas. Além disso, é razoável considerar que sujeitos que estão inseridos no ambiente acadêmico estariam mais propensos a entender e valorizar a participação em uma pesquisa científica, estando assim mais motivados a responder ao questionário.
No que concerne à renda dos respondentes, houve uma parcela da amostra que declarou estar sem nenhuma no momento, achado semelhante ao do levantamento realizado em âmbito nacional (Fiocruz, 2020b) e que corrobora os impactos significativos da pandemia nas condições socioeconômicas da população, além de reforçar a importância do poder público na implementação de medidas de combate a esses efeitos (Bezerra et al., 2020). Para além, escancara um dos problemas mais graves e crônicos da população brasileira, a desigualdade social. Considerando como os determinantes de saúde impactam diretamente na saúde da população, é necessário que se leve em conta essas variáveis, posto a necessidade de condições mínimas de sobrevivência para preservar a saúde mental (Shojaei & Masoumi, 2020). Ao encontro dessas questões, estudos anteriores apontaram que ter suprimentos básicos inadequados durante a quarentena é uma fonte de frustração e continua associado à ansiedade e à raiva quatro a seis meses após o fim do isolamento (Wilken et al., 2017).
A moradia é uma variável a ser considerada, dado que pode ser um ambiente protetor - estar com outras pessoas e minimizar o impacto do distanciamento social - ou ser fator de risco, visto o aumento dos casos de violência doméstica notificados (Peterman et al., 2020), o surgimento ou aumento dos conflitos familiares e a dificuldade em realizar o home office. Em consonância, o estudo de Bezerra et al. (2020) apresentou uma correlação significativa entre a maior percepção de estresse familiar e a quantidade de pessoas na residência, além de associar a qualidade da habitação com a expectativa em relação ao tempo de permanência em isolamento.
É fundamental destacar também alguns grupos que, de acordo com a literatura, são mais vulneráveis em pandemias - profissionais de saúde, idosos, imunodeprimidos, pacientes com condições clínicas e psiquiátricas prévias, familiares de pacientes infectados e residentes em áreas de alta incidência (Ornell et al., 2020). Esses grupos costumam experienciar estressores adicionais à população geral no contexto de pandemia.
Os profissionais de saúde lidam com o risco aumentado de serem infectados, adoecerem e morrerem; possibilidade de infectarem outras pessoas; sobrecarga e fadiga; exposição a mortes; frustração por não conseguirem salvar vidas, apesar dos esforços; e afastamento da família e dos amigos (Taylor, 2019). Especificamente sobre a covid-19, estudos chineses apontam que os desafios enfrentados pelos profissionais da saúde podem desencadear ou intensificar sintomas de ansiedade, depressão e estresse (Bao et al., 2020).
Sobre as pessoas que realizam algum tratamento de saúde, estas podem sofrer com a estigmatização de serem tidas como “grupo de risco”, além do adiamento e do cancelamento de consultas médicas, os quais podem agravar as condições clínicas. Alguns autores apontam maior vulnerabilidade dos idosos a problemas emocionais durante crises e epidemias (Yang et al., 2020; Lima et al., 2020), no entanto, um estudo nacional recente constatou maior prevalência de sintomas negativos de saúde mental em adultos jovens (Barros et al., 2020).
O gênero também deve ser levado em conta, visto que as mulheres estão mais propensas ao sofrimento mental decorrente da pandemia, como evidenciado em um estudo com a população adulta brasileira (Barros et al., 2020) e em estudos internacionais (Wang et al., 2020b). A intensificação de suas rotinas diárias, o papel de cuidadora e os serviços domésticos que geralmente recaem sobre elas, além do crescimento da violência doméstica, parecem ser alguns dos fatores ligados a essa maior propensão (Marques et al., 2020).
No tocante às mudanças comportamentais, destaca-se o maior uso de álcool que o habitual. Uma pesquisa realizada pela Associação Brasileira de Estudos do Álcool e Outras Drogas (ABEAD) revelou que o consumo de bebidas alcoólicas aumentou em 18% durante a pandemia, percentual próximo ao encontrado neste estudo (Lima, 2020). Em consonância com esses achados, os dados do inquérito ConVid evidenciam a mesma porcentagem e ainda associam o uso de bebida alcoólica à frequência de sentimentos como tristeza e depressão: quanto maior a frequência, maior o aumento do uso de bebidas alcoólicas (Malta et al., 2020). Estudos internacionais (Ahmed et al., 2020) também apontam a utilização do álcool como estratégia negativa de enfrentamento à pandemia.
Semelhante a esse aumento, porém menos expressivo, é o uso de psicofármacos e cigarro. A pandemia, associada ao crescente aparecimento de transtornos mentais, é um fator preditor (Tonin & Melo, 2020). No entanto, a prescrição desses medicamentos para pacientes que não faziam uso antes da pandemia é desencorajada nos primeiros meses, visto que se entende como uma reação aguda esperada neste contexto (Fiocruz, 2020c), sendo necessária atenção a riscos associados e ações de promoção do uso racional desses medicamentos.
Em relação ao aumento do uso do cigarro, ainda que não existam evidências sobre tabagismo e sua recaída, associados a epidemias, aponta-se que fumantes expostos a desastres naturais fumam mais do que fumantes não expostos, além de tal situação afetar também a recaída de ex-fumantes (Huh, & Timberlake, 2009). É válido ressaltar que, na pandemia de covid-19, o tabagismo é um dos principais fatores de risco não somente para contrair a doença, mas também na piora da sintomatologia pulmonar e do agravamento do paciente (Volkow, 2020).
Outra mudança comportamental se refere à crença de infecção pelo coronavírus mesmo estando saudável, fato também recorrente na pandemia de influenza H1N1, em 2009, conforme apontam Asmundson e Taylor (2020). Os autores destacam que a ansiedade pode provocar interpretação equivocada das sensações corporais, de forma que a pessoa as confunda com sinais da doença e se dirija desnecessariamente a serviços hospitalares.
Acerca das mudanças de humor, observa-se uma acentuada notificação de reações de medo e solidão. A presença recorrente do medo neste cenário levou à identificação da “pandemia do medo” ou “coronafobia” (Ornell et al., 2020; Asmundson & Taylor, 2020). No entanto, essa constatação não é exclusiva. Segundo Shultz et al. (2016), durante o surto de ebola, comportamentos relacionados ao medo tiveram impacto epidemiológico individual e coletivo durante todas as fases, aumentando as taxas de sofrimento e sintomas psiquiátricos da população, o que contribuiu para o aumento da mortalidade indireta por outras causas. Ainda que o medo aumente os níveis de ansiedade e estresse (Ornell et al., 2020), também deve ser considerado uma estratégia adaptativa, visto sua correlação com a adesão ao isolamento (Bezerra et al., 2020; Brooks, 2020).
Relacionado ainda às medidas de isolamento social, encontra-se o sentimento de solidão, sobre o qual autores apontam necessidade de trabalhar estratégias que evitem a associação da solidão com percepção de abandono e estimulem o fortalecimento da rede de apoio por meio de dispositivos digitais (Oliveira et al., 2020). Mais recorrente que essas reações foram os sinais de irritabilidade, ansiedade e tristeza apontados pelo instrumento TEPT. Esses dados corroboram o que foi evidenciado em estudos em diferentes países (Duan & Zhu, 2020; Wang et al., 2020b; Yang et al., 2020),
No contexto nacional, o inquérito ConVid (Barros et al., 2020) mostrou que, de 45.161 brasileiros respondentes, 40,4% se sentiram frequentemente tristes ou deprimidos, e 52,6% frequentemente ansiosos ou nervosos durante a pandemia. Já em outra pesquisa realizada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ, 2020), entre os meses de março e abril desse ano, verificou-se que os casos de depressão aumentaram 90%, e o número de pessoas que relataram sintomas como crise de ansiedade e estresse agudo mais que dobrou. Estes dados nacionais, apesar das diferenças metodológicas, estão em consonância com os achados do presente trabalho e a realidade encontrada na cidade de Juiz de Fora.
É válido destacar, ainda, que se pode vislumbrar um impacto psicológico maior na população brasileira, tendo em vista dados de uma pesquisa chinesa que apontou que, dentre 1.210 participantes, 53% apresentaram sequelas psicológicas moderadas ou severas, incluindo sintomas depressivos (16,5%), ansiosos (28,8%) e estresse moderado a grave (8,1%) (Wang et al., 2020b). No entanto, são necessárias mais pesquisas para que se comprove essa diferença.
Sobre o rastreio de TEPT, ainda não existem trabalhos nacionais que investiguem especificamente os sinais desse transtorno na população geral diante desse contexto. Os estudos internacionais analisaram a presença em profissionais de saúde na China (Wang et al., 2020a; Kang et al., 2020). Diante disso, a presente pesquisa traz um rastreamento precursor e alarmante, visto que quase metade da amostra apresentou sintomas característicos do quadro. Logo, é fundamental uma maior avaliação e rastreio psicológico em nível nacional, posto que o desenvolvimento desse transtorno é incapacitante e, muitas vezes, crônico.
Diante de todo esse panorama preocupante, observa-se uma discreta procura por tratamento em saúde mental na amostra pesquisada, diferenciando-se do contexto nacional. Segundo a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP, 2020) e o aplicativo GetNinjas (L’Hotellier, 2020), a busca por atendimentos psiquiátricos e psicológicos aumentou, respectivamente, 48% e 49% após o início da pandemia.
Para além dos atendimentos individuais privados, deve-se destacar a urgência de ações governamentais e não governamentais que estão sendo realizadas. A Comissão Nacional de Saúde da China promulgou princípios básicos para atendimento psicológico durante a pandemia, estabelecendo serviços de apoio psicológico on-line e de assistência psicológica, a serem prestados por profissionais da saúde mental em instituições médicas e acadêmicas nas 24 horas do dia (Lei et al., 2020).
No Brasil, algumas iniciativas têm sido implementadas para dar apoio aos profissionais de saúde, por exemplo, o Projeto TelePSI, desenvolvido pelo Ministério da Saúde e Hospital de Clínicas de Porto Alegre (Ministério da Saúde, 2020b). Somado a isso, em 31 de março de 2020, foi publicada a Portaria n. 639, do Ministério da Saúde, que dispõe sobre a ação estratégica “O Brasil Conta Comigo - Profissionais da Saúde”, sobre a capacitação e o cadastramento de profissionais da saúde para o enfrentamento à covid-19, incluindo psicólogos (Ministério da Saúde, 2020c).
Em Juiz de Fora, o Departamento de Vigilância em Saúde do Trabalhador (DVISAT) da Secretaria de Saúde (SS) disponibilizou atendimento psicológico aos colaboradores que atuam no enfrentamento à covid-19 (PJF, 2020b). Outras iniciativas de cuidado implementadas na cidade foram: a plataforma “Calma Nessa Hora”, uma ação voluntária de amparo à saúde mental na quarentena, desenvolvida por meio de uma parceria nacional da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF, 2020); o plantão psicológico on-line, realizado por residentes de Psicologia inseridos nas residências multiprofissionais do Hospital Universitário (HU) da UFJF para acolhimento das demandas em saúde mental dos servidores que atuam no enfrentamento da covid no HU (PJF, 2020b); e o “Apoiar Saúde”, que oferece atendimento psicológico on-line ou via telefone a profissionais de saúde em todo o território nacional, contando, na equipe, com psicólogos de Juiz de Fora (G1 Zona da Mata, 2020).
Considerações Finais
O impacto psicológico da pandemia de covid-19 e das medidas adotadas para contê-la é notável, e não há mais como ignorá-lo. Este impacto, muitas vezes, acaba se tornando mais uma limitação para que o próprio país supere uma crise sanitária de tamanha proporção (Cullen et al., 2020; Ho et al., 2020). Diante disso, é imprescindível que o poder público garanta à população assistência adequada em saúde mental, englobando ações distintas e em diferentes setores da sociedade. Para além, é fundamental investir em ciência para que futuras ações sejam baseadas nas melhores evidências possíveis.
Por fim, espera-se que o presente trabalho auxilie na compreensão do impacto psicológico da pandemia no contexto da cidade de Juiz de Fora, dado que o Brasil é um país geograficamente e culturalmente diverso, o que gera diferentes experiências e vivências pandêmicas. Cabe salientar que o objetivo deste estudo foi rastrear as principais reações e comportamentos desta amostra nos primeiros meses da pandemia, sendo necessários, ainda, estudos futuros que englobem metodologias longitudinais e amostras em âmbito nacional.