Introdução
Transtornos alimentares (TAs) constituem um grupo complexo e multifacetado de perturbações do comportamento alimentar, cujos tipos mais comuns são anorexia nervosa (AN), bulimia nervosa (BN) e transtorno da compulsão alimentar, entre outros, segundo o DSM-5 (American Psychiatric Association [APA], 2014). A AN afeta, principalmente, mulheres jovens e é caracterizada pela distorção da imagem corporal e dieta excessiva, que levam à perda de peso severa, concomitante a um medo patológico de engordar (Mitchell & Peterson, 2020). O principal critério para estabelecer esse diagnóstico é o paciente apresentar comportamentos de restringir a ingestão de calorias. Já a BN é caracterizada por episódios frequentes de compulsão alimentar, seguidos de comportamentos inadequados, tais como vômitos autoinduzidos para evitar ganho de peso; o principal critério para definir esse diagnóstico é o(a) paciente apresentar compulsão alimentar e comportamentos compensatórios pelo menos uma vez por semana (APA, 2014; Valdanha-Ornelas et al., 2021).
Atualmente, os TAs são compreendidos por meio do modelo multifatorial, com predisposição aumentada no sexo feminino, história do transtorno na família, autoestima rebaixada, insatisfação corporal, perfeccionismo acentuado e dificuldade em expressar emoções (Fortes et al., 2015; Leonidas & Santos, 2014, 2015). Pacientes situam o início dos sintomas logo após o rompimento de um relacionamento afetivo, perdas familiares e/ou exposição a comentários depreciativos sobre o peso (Oliveira & Santos, 2006; Valdanha-Ornelas & Santos, 2016).
Há evidências consistentes de que a intervenção psicoterapêutica com pacientes é um dos pilares que sustentam o tratamento dos TAs (Kreling & Santos, 2005; Scorsolini-Comin & Santos, 2012). A literatura considera que o modelo de tratamento mais efetivo para TAs é o que inclui psicoterapia combinada com psicofarmacoterapia (Mitrofan et al., 2019). De fato, a psicoterapia, em suas diferentes modalidades - individual, de grupo, familiar -, parece exercer papel crqolini-Comin et al., 2010). Considerando essa necessidade, formulamos a seguinte pergunta de pesquisa: “Como as intervenções em grupo podem contribuir para potencializar mudanças?”. Parte-se do princípio de que ampliar o conhecimento sobre o grupo terapêutico como potencial mediador de mudança permite aprimorar as práticas em saúde, de forma a responder às necessidades de cuidado das pessoas em sofrimento psíquico, incrementando as condições de melhora e adesão ao tratamento. Estudos que se propõem a analisar o não engajamento dos usuários nos dispositivos de cuidado dos serviços de saúde mental têm sido valorizados de forma crescente (Harris et al., 2021), assim como as experiências dos usuários dos serviços especializados em TAs (Johns et al., 2019). No entanto, ainda são escassas as pesquisas sobre a psicoterapia de grupo nesse contexto (Mitrofan et al., 2019). Considerando o exposto, este estudo tem como objetivo compreender o potencial terapêutico do grupo oferecido para pessoas com TAs no contexto de um serviço especializado.
Método
Trata-se de um estudo qualitativo exploratório, realizado em um serviço ambulatorial. O enfoque qualitativo privilegia a compreensão do problema de pesquisa a partir da perspectiva dos indivíduos que o vivenciam, utilizando-se de um aparato complexo de técnicas interpretativas para alcançar a significação do fenômeno investigado (Flick, 2019). A abordagem qualitativa foi escolhida porque é a que mais se ajusta ao fenômeno sob investigação, uma vez que a dinâmica dos vínculos é apreendida em condições naturais da psicoterapia de grupo implementada em um serviço de saúde especializado. Nessa perspectiva, o pesquisador trabalha com o universo de relações, processos, significados, crenças, valores, atitudes e motivações, permitindo aprofundar a compreensão de um grupo social (Flick, 2019).
Participantes
Participaram do estudo 12 pacientes do sexo feminino, com idades entre 18 e 29 anos, solteiras e sem filhos, com diagnóstico clínico de anorexia ou bulimia e que vinham sendo acompanhadas regularmente em um ambulatório especializado. A maioria não exercia atividades remuneradas. Foram definidos como critérios de inclusão: ser paciente com diagnóstico clínico de TA, estar em seguimento regular no serviço e ter participado do grupo nos dias da coleta de dados. Foram critérios de não inclusão: pacientes com contraindicação para participarem do grupo por apresentarem alterações cognitivas ou sintomas indicativos de estado psicótico agudo. O número de participantes foi definido com base no critério de saturação dos dados.
Cenário do Estudo
O cenário do estudo é um grupo terapêutico oferecido no âmbito de um serviço de saúde mental localizado em um hospital público universitário vinculado ao Sistema Único de Saúde (SUS) e que oferece atendimento especializado em TAs em regime ambulatorial. A equipe multiprofissional do serviço é constituída por nutrólogos, nutricionistas, psicólogos, psiquiatras e terapeutas ocupacionais. O setting grupal investigado congrega os pacientes que frequentam o serviço e é coordenado por um psicólogo, com cocoordenação de uma psicóloga, ambos experientes e com especialização em coordenação de grupos. A condução das sessões, com frequência semanal e duração de 60 minutos, é amparada nos pressupostos teóricos e técnicos da grupoterapia psicodinâmica (Zimerman & Osório, 2000). O principal propósito do grupo é funcionar como espaço de reflexão e partilha de narrativas e experiências, visando o alívio do sofrimento psíquico e acolhimento das questões emocionais.
Procedimento de Coleta e Análise dos Dados
Foram convidadas a participar da pesquisa todas as pacientes presentes nos encontros grupais realizados no período delimitado para a coleta de dados, buscando-se apreender diferentes experiências, perspectivas e percepções sobre cada encontro. Para tanto, cinco encontros consecutivos foram audiogravados, mediante prévia concordância da totalidade das participantes presentes em cada sessão. A anuência foi formalizada por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), previamente ao início de cada encontro.
O estudo foi desenvolvido por meio da análise dos relatos obtidos nas sessões de psicoterapia de grupo, a partir dos registros audiogravados que foram, posteriormente, transcritos na íntegra e literalmente, constituindo o corpus de pesquisa. Os conteúdos foram analisados na perspectiva da análise temática indutiva e interpretados com base no referencial teórico da Psicoterapia das Configurações Vinculares (Santos et al., 2017), em diálogo com a literatura especializada de grupos aplicados no tratamento dos TAs.
A análise temática foi desenvolvida de acordo com os seguintes passos: familiarização com os dados, geração de códigos iniciais, busca de temas, revisão de temas, definição e nomeação dos temas e produção do relatório (Braun & Clarke, 2006). Foram realizadas leituras exaustivas do material transcrito, possibilitando a identificação de padrões recorrentes nas narrativas, que deram origem a categorias temáticas que subsidiaram a organização dos dados e a interpretação dos resultados. Desse modo, as categorias foram estabelecidas a posteriori, após a codificação dos relatos, caracterizando uma análise temática indutiva.
Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição à qual os pesquisadores estão vinculados, CAAE n. 35565414.7.0000.5407. O estudo seguiu as diretrizes da Resolução n. 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde, que regulamenta a pesquisa envolvendo seres humanos (Brasil, 2012). Os nomes atribuídos às pacientes são fictícios.
Resultados e Discussão
A análise do corpus, constituído pelo material transcrito a partir dos relatos captados no decorrer dos encontros de psicoterapia de grupo, permitiu identificar três categorias temáticas.
Sentindo-se Compreendida: “Isso Nunca Tinha Acontecido Comigo Antes”
Em uma das sessões analisadas, uma paciente compartilhou o quanto foi surpreendida pela experiência de se sentir acolhida ao ser atendida pela primeira vez por uma nutricionista recém-admitida no serviço especializado.
A gente começou a conversar e ela me entendeu, uma pessoa que achei que nunca ia me entender, que não tem a doença e, tipo, me entendeu. Isso nunca tinha acontecido comigo antes, foi a primeira vez, entenderam? Aí eu me senti mais à vontade conversando com ela. Eu me senti assim, tão bem, ela demonstrou tanto carinho, aí o Dr. X [psiquiatra]: “Nossa, preciso conversar com você também”, eu me senti assim num carinho tão grande que cheguei na minha casa e chorei, senti emoção, sabe, parecia que era um carinho tão grande que eles tinham comigo que eu senti necessidade de estar bem, de estar bem comigo mesma, e me senti bem comigo mesma, entendeu? Senti o carinho das pessoas comigo. Foi uma experiência muito boa (Teodora).
Teodora reporta a experiência das primeiras consultas nas quais sentiu que estava na companhia de profissionais genuinamente interessados em sua pessoa. Essa comunicação foi acompanhada de forte conotação catártica. Sabemos que a autorrevelação de uma paciente do grupo tem efeitos potencialmente transformadores nas demais participantes (Vinogradov & Yalom, 2000), especialmente quando proporcionamos um clima grupal que favorece a rememoração de experiências de se sentir acolhida e em companhia do outro, formando um laço de intimidade psíquica que sustenta o tratamento. A comunicação de Teodora é potente porque, de forma clara, desmonta uma percepção generalizada entre os profissionais da saúde que cuidam de pessoas com TAs. Há uma tendência de que as pacientes sejam percebidas de forma enviesada, através de rótulos como “resistentes”, “oposicionistas”, “indóceis”, “rebeldes”, “insubordinadas” e “refratárias ao tratamento” (Mitchell & Peterson, 2020; Santos & Pessa, 2022).2 Essa percepção negativa influencia a relação profissional-paciente. Pode ter sido por isso que Teodora ficou surpresa com o tratamento respeitoso que recebeu ao ser admitida no serviço. A possibilidade de rememorar essa experiência e compartilhá-la no grupo é um fator auspicioso porque pode impulsionar insights nas demais participantes. Quando essas vivências são compartilhadas, podem ter um efeito vivificante, imprescindível para o crescimento pessoal tanto quanto o alimento concreto.
Para Alvarez (2020), o analista deve personificar uma “companhia viva” e um “coração pensante” junto aos seus pacientes. A autora propõe que, em sujeitos que sofreram sérias privações, mais do que formular interpretações, é importante preservar um espaço para que algo possa existir pela primeira vez (“Isso nunca tinha acontecido comigo antes”). Abrir espaço para a emergência do “novo” é importante para a evolução do processo terapêutico porque permite deter a repetição e redimensionar a cena grupal rumo à transformação. Isso exige que o coordenador do grupo desenvolva sua capacidade empática para entrar em sintonia fina com as necessidades das pacientes, mantendo um vínculo íntimo com sua vulnerabilidade psíquica.
Ao se mostrarem empáticos e sensíveis à dor do outro, os profissionais proporcionaram uma experiência de intimidade que sensibilizou a paciente. Podemos associar o sentimento de ser acolhido à ideia de cuidado materno que se incumbe de prover as necessidades primitivas do bebê. Pacientes com TAs apresentam histórias de trauma precoce no vínculo materno (Lawrence, 1991; Moura et al., 2015). Segundo Alvarez (2020), é difícil, para uma pessoa que um dia foi uma criança traumatizada, confiar que poderá ser cuidada por alguém. As falhas, negligências e violências, que por desventura a criança tenha sofrido por parte do ambiente, na fase da dependência absoluta são sentidas como sendo de sua inteira responsabilidade. Daí a importância de que, no contato com adultos traumatizados durante a infância, reconheçamos as situações reais de violências e abusos às quais eles de fato foram submetidos; caso contrário, corremos o risco de retraumatizá-los, reforçando a construção de uma autoimagem com base na culpabilização e autodestrutividade (Alvarez, 2020; Gaspar, 2010; Lawrence, 1991).
Ao mobilizar o contato com angústias decorrentes de perdas traumáticas, reais e simbólicas, a que pacientes com TAs foram expostas durante a vida, é preciso trabalhar com sensibilidade as questões relacionadas à impulsividade e ao manejo dos impulsos destrutivos, além de seus sentimentos de impotência e desamparo (Cintra & Figueiredo, 2010). A continuidade do tratamento é fundamental para sustentar o contato com tais angústias. Assim como o bebê necessita de uma mãe devotada que o alimente com amor, pacientes com TAs solicitam, na transferência com o psicoterapeuta, receber compreensão, apoio emocional e encorajamento na busca de novos significados para suas vidas (Leonidas & Santos, 2013).
Na psicoterapia de grupo, a transferência é um componente importante no processo de ressignificação das experiências traumáticas (Bechelli & Santos, 2002, 2005). O psicoterapeuta possibilita um ambiente de sustentação para a produção de novos significados, mas o grupo também exerce uma função importante nesse dispositivo que sustenta o processo de busca de novos vértices e significados para os traumas vividos. O ambiente permissivo, baseado na promoção de um clima grupal que enfatiza o acolhimento isento de crítica e julgamento, possibilita que o sofrimento do paciente possa ser colocado em palavras e transformado em experiência emocional.
Enfrentando Preconceitos e Estigmatização: “Minha Mãe Fala que Eu Estou Louca”
Conviver com um sofrimento psíquico persistente, que é decodificado por algumas pessoas do ambiente social como equivalente a uma “doença mental”, pode deixar marcas indeléveis, cicatrizes psíquicas que precisam ser acolhidas para que possam começar a “falar”.
É igual uma ferida, ela cicatriza, sara, mas você sempre a vê. Essa doença, eu acho que, se a gente sara dela, é igual ao diabetes. Uma pessoa que tem diabetes ou hipertensão, sempre tem que estar fazendo manutenção, não pode totalmente largar o tratamento e continuar vivendo como se não tivesse uma parte vulnerável (Amanda).
Para que haja transformação psíquica, o terapeuta e o grupo devem sustentar um ambiente que permita movimentar o trabalho psíquico, de modo que o acontecimento (adoecimento) que incide no corpo possa ser transformado em experiência emocional e ganhar uma inscrição psíquica pela via da simbolização. Em outras palavras, é preciso encontrar uma via representacional para que os elementos psíquicos brutos e sensoriais possam ser organizados, reconhecidos e nomeados, de modo a se converterem em palavras, assumindo um status de experiências pensáveis. Desse modo, a dor pode ganhar um sentido e se converter em sofrimento psíquico. Assim, o material inconsciente pode encontrar um caminho de expressão e inscrição simbólica. Uma situação vivenciada no grupo terapêutico ilustra essa situação. É quando as pacientes, no decorrer de uma sessão, começam a conversar sobre sua dependência emocional em relação às suas mães.
Vejo que ela [outra paciente] se casou, tem filho, tem tudo, mas depende de a mãe ir lá na casa dela quase todo dia. E tem assim aquela coisa de ter de cozinhar para os filhos, ela quis fazer tudo por conta própria e eles quase morreram de fome (Beatriz).
Minha mãe está se achando pouco importante, então eu acho que ela está numa fase tão down, acho que é ciúmes bobo. Eu não queria que minha mãe estivesse sentindo isso. Acho que uma das causas desse meu sentimento é que eu não quero ficar magoando a minha mãe (Lavínia).
Eu queria sair daqui e, sei lá, poder enxergar a minha mãe com carinho e queria que ela também tivesse um gesto de carinho como eu esperava, uma atitude, um estímulo que ela me desse E aqui hoje, no grupo, eu reparei que todo mundo conversou sobre questões de dependência, então eu vejo que não é só uma questão minha (Lenita).
Além disso, tomar contato com as experiências aflitivas dos demais membros mobiliza reflexões sobre os pontos de estagnação do próprio viver, o que permite pensar nos planos e projetos que foram interrompidos com a doença. Isso desencadeia uma série de associações nas pacientes sobre experiências adversas não elaboradas e que obstruem o curso do desenvolvimento.
Minha mãe também fala isso pra mim. O ano que vem quero fazer faculdade, então minha mãe fala que eu estou louca, que eu estou doente, que eu tinha que estar internada3 (Amarilis).
Minha mãe fala assim também, que eu tinha que me tratar primeiro pra depois fazer outras coisas, e aí eu falei pra ela que isso faz parte do meu tratamento (Lenita).
Eles acham que, porque a gente está doente, a gente está impossibilitada (Virginia).
Esses excertos mostram o efeito benéfico de compartilhar problemas semelhantes com outras pessoas que vivenciam dificuldades parecidas no grupo. Por exemplo, a necessidade de ter de resistir diariamente à estigmatização, ao rótulo da loucura4 ou do “incapacitismo”, com a paralisia que de fato pode se instalar caso a pessoa se identifique com o lugar de “incapaz” que lhe é outorgado pela família (Bruch, 1978). As autorrevelações em sequência indicam que, quando os membros do grupo se sentem ouvidos e legitimados em suas demandas subjetivas, podem fortalecer sua confiança nos vínculos e se tornar mais permeáveis ao apoio que lhes é oferecido. Isso cria um ambiente favorável para que se nutram dos insumos oferecidos pelo meio.
A percepção de baixo suporte social é uma das características mais salientes da dinâmica psíquica dos TAs (Leonidas & Santos, 2013, 2014; Santos et al., 2023). No ambiente acolhedor e inclusivo proporcionado pelo grupo, abre-se a possibilidade tanto de receber como oferecer apoio, vendo seus esforços validados por outros integrantes, como, por exemplo, o conselho que uma paciente ofereceu a outra: “Tenta o ENEM também, Lavínia. Pela bagagem que você já tem, se você pegar uns 80%, sei lá, já ajuda” (Amarilis).
Estudo conduzido por Scorsolini-Comin et al. (2010) buscou compreender a construção de si mesmo a partir das narrativas produzidas em um grupo para pessoas diagnosticadas com anorexia e bulimia. Os resultados obtidos permitiram inferir que os sentidos produzidos socialmente sobre os TAs, devido à opacidade dos sintomas, sedimentam estereótipos e incompreensões no entorno das pacientes. De fato, na presente pesquisa, tais discursos são evocados nas falas das participantes e, ao circularem, encontram no grupo um espaço de contestação, negociação ou aceitação, o que pode ter como consequência a desconstrução dos sentidos socialmente construídos sobre a enfermidade. No referido estudo, foi possível confirmar a efetividade do grupo como ferramenta terapêutica significativa para a produção de novas vias de significação, que potencializam sentidos não patologizantes - e, portanto, mais acolhedores, inclusivos e não estigmatizantes - em relação aos TAs.
Os excertos apresentados mostram a relevância de compartilhar problemas com outras pessoas que vivenciam dificuldades semelhantes (por exemplo, a luta contra o estigma social da loucura e do “incapacitismo” que comumente é associado ao diagnóstico psiquiátrico). Essas dificuldades cristalizam processos obstrutivos que impedem a diferenciação e o crescimento psíquico, caso a pessoa se deixe capturar pelo lugar de “incompetente” no qual é colocada. Quando uma paciente, ávida por compreensão, se sente ouvida e legitimada em suas demandas subjetivas, sente aumentar sua confiança nos vínculos, o que fortalece a percepção de que existem alternativas e caminhos saudáveis para seus conflitos.
A qualidade do engajamento dos membros de um grupo terapêutico depende de uma série de circunscritores que devem ser ponderados pelos coordenadores, dentre eles, a necessidade de se dispor de um local seguro e protegido de interrupções, a importância de informar e pactuar com os integrantes os objetivos do grupo, a responsabilidade com o sigilo, o modus operandi dos encontros e a oferta de um espaço particular para que cada uma se expresse o mais livremente possível (Bechelli & Santos, 2002).
Um grupo pouco coeso, com integrantes que não se sentem seguros e que não recebem orientações suficientes ou uma comunicação clara por parte da equipe de saúde, pode favorecer o aparecimento de comportamentos disruptivos, como evasão, desorganização das defesas, erosão da confiança e estranhamento entre os participantes, além da possibilidade de que revivam seus traumas de rompimentos anteriores de vínculos (Harris et al., 2021).
Quando predomina o senso colaborativo, o vínculo é fortalecido pelos laços de identificação entre os membros do grupo, o que fortalece a coesão grupal e o senso de pertencimento. As falas e sugestões dos demais integrantes são valorizadas, e isso prepara o terreno para possíveis insights - por exemplo, as pacientes podem aprender o quanto elas também contribuem para manter seu isolamento social. Se prevalece o espírito de cooperação, graças à trama vincular fortalecida, o altruísmo pode ser favorecido. Os estímulos à mudança (em falas como “tente o ENEM”, “tente esse outro caminho”) são atitudes que podem elevar a autoestima da paciente na medida em que fomentam o sentimento de poder ajudar e ser útil aos demais (Talbott et al., 2012).
Para uma paciente com sérias dificuldades de se instalar subjetivamente no próprio corpo, integrando-o ao self, deve-se manter sempre na mira do horizonte a possibilidade de rotação de perspectivas (diferentes modos de olhar e de se relacionar com determinados aspectos da realidade). Isso leva à mudança do lugar a partir do qual se olha para suas relações com o outro e consigo mesma.
Dentre as metas dos grupos aplicados nos diferentes contextos da saúde, podem ser destacadas: promover a aquisição de melhores defesas, desenvolver habilidades de manejo de ansiedades, exercitar o pensar em busca de novas formas de resolução de conflitos, incentivar a ajuda mútua por meio da partilha de problemas semelhantes que emergem em situações cotidianas e ecoam no espaço grupal, auxiliar a pessoa acometida a lidar com o temor da dependência - especialmente, o medo da perda de autonomia e a projeção de uma expectativa negativa quanto ao futuro, movimentos que abalam a autoconfiança e obstruem o crescimento (Gazignato et al., 2008). Assim, o grupo pode ajudar as pacientes a encontrarem desfechos mais satisfatórios para suas histórias de dor e sofrimento.
Transformando Dor em Potência: “Eu Acho que o Grupo me Ajudou Bastante”
Profissionais que atuam em serviços de TAs comumente reconhecem a dificuldade das pacientes de formar e manter vínculos, o que se traduz, como é de se esperar, em eventuais dificuldades de vinculação com a equipe de saúde e, por conseguinte, de adesão ao plano terapêutico instituído5. Todo o percurso de tratamento tende a ser permeado por essa questão (Scorsolini-Comin & Santos, 2012). Na fase inicial, é comum prevalecer uma atitude negativista, favorecida pela não percepção da própria necessidade de ajuda; mesmo quando essa relutância inicial é, pouco a pouco, abrandada, no decorrer do itinerário terapêutico pode predominar uma postura questionadora e ambivalente, marcada por hesitações, ceticismo, instabilidade e flutuações no nível de motivação para dar continuidade aos atendimentos. Isso pode resultar, eventualmente, em descontinuidade e precipitar o abandono do tratamento. A resistência em nomear conflitos também se deve, em parte, ao receio de entrar em contato com as dificuldades de controlar a impulsividade e os temores que o crescimento inspira. De acordo com a literatura, a violência psíquica latente e camuflada é característica prevalente na AN (Gaspar, 2010) e na BN (Miranda, 2004).
Trabalhar com grupalidade na clínica dos TAs leva o psicoterapeuta a se deparar, constantemente, com pacientes traumatizadas por histórias de dor decorrentes de experiências precoces de falhas ambientais duradouras, privações de contato, inconstância e imprevisibilidade dos vínculos, negligências de cuidados e relações abusivas, que vão produzindo fissuras na estrutura mental, fragilizando a constituição do espaço psíquico. As experiências precoces de desamparo, relacionadas ao vínculo materno e aos significados atribuídos à alimentação (Manochio et al., 2020; Moura et al., 2015; Valdanha-Ornelas et al., 2021), podem resultar em profunda desconfiança nas relações humanas, o que faz com que as pacientes testem repetidamente o psicoterapeuta para se certificarem de que ele é forte o suficiente para tolerar e conter sua carga de destrutividade e emoções turbulentas (Miranda, 2004).
Desencontros, faltas e cancelamentos recorrentes de consultas, quebras de contrato terapêutico, descrédito e desesperança, entre outras situações de rupturas, podem irromper com o decorrer do tempo, à medida que o vínculo se aprofunda. A partir da reedição das experiências traumáticas no setting clínico sustentado pelo vínculo terapêutico, poderemos construir novas possibilidades de produzir cuidado. Para tanto, é preciso que tenhamos real disponibilidade para compreender e acolher o padecimento que, na relação terapêutica, necessita ganhar novas formas de expressão (Kreling & Santos, 2005).
Se as diferentes manifestações de resistência puderem ser escrutinadas e trabalhadas apropriadamente e com a devida paciência, na medida em que aparecem no setting grupal, as perspectivas de bom prognóstico podem ser fortalecidas (Moraes et al., 2021). A fala de uma paciente ilustra bem esse processo, mostrando como as resistências podem ser aos poucos atenuadas e transformadas em potência, graças à combinação de estratégias de intervenção que caracterizam o trabalho multidisciplinar, contribuindo para o fortalecimento progressivo do vínculo terapêutico e a nomeação das angústias (Johns et al., 2019).
Quando eu comecei a fazer tratamento aqui, foi muito difícil, mas depois, quando eu comecei a fazer tratamento com o psicólogo, com a nutricionista, parece que eu fui tratando tanto do psicológico quanto das crenças que eu tinha com a alimentação, então umas coisas foram se relacionando com as outras, e parece que eu fui desligando do problema, entendeu? Sei lá, parece que eu fui melhorando (Teodora).
Para a manutenção de uma atmosfera acolhedora e permissiva no setting grupal, é essencial promover uma apreciação positiva das percepções, ideias e opiniões de todos os membros, acolhendo os conteúdos emergentes sem juízo valorativo e sem valorizar uns em detrimento de outros (Bechelli & Santos, 2002). É preciso que o psicoterapeuta saiba tirar proveito da multivocalidade dos grupos e da força intrínseca das transferências cruzadas. Para tanto, os coordenadores precisam desenvolver habilidades que permitam aproveitar a presença da diversidade dos membros para explorar novas perspectivas de ver e atribuir significações aos “fatos” vividos, de modo que se possa redimensionar e fomentar novos sentidos e reconfigurações (Scorsolini-Comin et al., 2010).
É preciso criar aberturas, encorajando olhares a partir de outras perspectivas, que possibilitam que novas versões e significados atribuídos aos acontecimentos da vida coexistam e se fecundem mutuamente, quebrando as estereotipias paralisantes para que se possam superar visões fixas e dogmáticas. Isso pode ser exemplificado no momento em que Teodora compartilha que conseguiu superar as inibições que sentia no início do tratamento. O terapeuta pontua o significante “a primeira vez”:
Uma parte sua aceitou aquela primeira vez em que você se sentiu compreendida. E vamos pensar que isso é apenas o início de um processo de mudanças e que elas são muito graduais e lentas. Não é fácil “pegar estrada” [expressão que havia sido usada por outra paciente, residente em uma cidade distante, que se referiu ao esforço que tinha de fazer para comparecer aos retornos no ambulatório, viajando de madrugada com a ambulância da prefeitura], mas cada uma aqui, à sua maneira, está tentando, buscando um caminho. Aliás, estou me lembrando que a Camila está praticamente de alta. Camila, você gostaria de compartilhar isso com a gente?
Ato contínuo, ouvem-se manifestações efusivas de outras integrantes do grupo: “Ai, que legal”, “Esse ano eu vou de alta, se Deus quiser”. Camila se anima e começa a contar como está vivenciando o momento em que se prepara para a perspectiva de se despedir do serviço em breve. Tomar contato com alguém que está em acompanhamento há anos, e saber que essa pessoa está prestes a receber alta, aguça nos demais membros do grupo a consciência de que é possível mudar e de que vale a pena se esforçar para um dia poder colher esse resultado. Progressos compartilhados, como conseguir controlar melhor seus sintomas alimentares ou ter planos de prestar vestibular no fim do ano, são indícios de investimentos na capacidade de retomar o crescimento a partir do ponto em que o processo ficou interrompido com a irrupção do transtorno (Lawrence, 1991).
Quando podemos contar com a feliz circunstância de termos um dos membros do grupo em condições de receber alta, é preciso saber aproveitar a oportunidade para potencializar seus impactos na experiência emocional dos outros integrantes, levando-os a vislumbrarem perspectivas de também desfrutarem de progressos no tratamento. No serviço em questão, a alta é um evento relativamente raro, uma vez que se exige a melhora substancial não apenas dos indicadores clínicos e antropométricos, como também da condição psíquica, para além de uma mera estabilização sintomática. Ademais, vivenciar a melhora, ou mesmo a remissão dos sintomas, é oportunidade incomum em condições psicopatológicas crônicas como anorexia e bulimia, assim como ocorre em outros grupos vulnerabilizados por sofrimento psíquico grave e persistente. Portanto, presentificar um desfecho exitoso do tratamento pode ter profundo impacto nas demais participantes do grupo (Bechelli & Santos, 2005; Santos et al., 2014).
O fato de testemunharem a situação de uma paciente cujo estágio do tratamento chegou ao ponto de a equipe considerar a possibilidade de deixá-la seguir em frente, sem necessidade de acompanhamento regular no serviço, traz alento às demais, que podem ter sua esperança aguçada, fortalecendo a ideia de que um dia também poderão alcançar esse benefício, caso tenham persistência na busca das metas de recuperação. O fenômeno de “contágio” positivo é intrínseco aos grupos, e a instilação de esperança estimula outras pessoas a compartilharem seus avanços, por mínimos que pareçam ser.
Eu acho que a equipe me ajudou bastante. Eu acho que ver as outras pessoas também. O grupo me ajudou bastante e minha mãe também, minha família me ajuda bastante. Acho que foram essas coisas que me ajudaram em todos esses anos (Teodora).
Em grupos vigorosos e bem entrosados, pacientes se convertem em agentes indutores de mudança (Bechelli & Santos, 2002). As intervenções terapêuticas contribuem para melhorar a condição do paciente e o alívio obtido com o melhor controle da ansiedade e da impulsividade pode favorecer a aquisição de possíveis novos insights. Esses ganhos terapêuticos podem ser catalisados tanto por intervenções diretas do psicoterapeuta quanto por ações dos próprios membros do grupo (Bechelli & Santos, 2002, 2005). Mas o grupo só adquire um status mutativo quando promove um ambiente estimulador de mudança. Ou seja, o grupo constitui-se como espaço terapêutico à medida que a vincularidade possibilita a ativação de recursos psíquicos que auxiliam o integrante em seu processo de apropriação e tomada de consciência de si mesmo como ser biopsicossocial dotado de potencialidades e capacidade de agência (Bechelli & Santos, 2002, 2005; Fernandes & Svartman, 2003; Vinogradov & Yallom, 2000).
Considerações Finais
Compartilhamos, neste estudo, os resultados obtidos por uma investigação psicanalítica desenvolvida no cenário de um grupo psicoterapêutico realizado em um serviço clínico especializado no acompanhamento de adolescentes e jovens em situação de extrema vulnerabilidade. O contexto da prática assistencial é um campo potencialmente fértil de questões abertas à investigação científica, por isso a aliança entre pesquisa e assistência se mostra tão promissora. Neste estudo, tiramos proveito da convergência entre concepções teóricas e práticas de saúde em um contexto específico de cuidados que envolve desafios clínicos complexos, com base na experiência acumulada em um serviço multiprofissional oferecido há quatro décadas.
Os resultados obtidos mostram que o grupo terapêutico desempenha um papel crucial no cuidado, suporte e reabilitação de pessoas que vivem com um diagnóstico de TA. Mais do que um ambiente fomentador do compartilhamento de informações, a psicoterapia de grupo torna-se uma ferramenta interessante quando é significada pelas participantes como espaço para potencializar recursos e fortalecer sua rede pessoal. O cuidado dos aspectos emocionais é o carro-chefe da grupoterapia. Nesse contexto, a meta terapêutica estabelecida é bem diferente do escopo tradicional das psicoterapias de grupo (eliminar, modificar ou retardar sintomas existentes para promover condições de desenvolvimento positivo da personalidade). O foco não é colocado na remoção dos sintomas. O trabalho se concentra no esforço para considerar e trabalhar as dificuldades de formação de vínculos, promovendo transformação psíquica a partir da identificação e dissolução dos impasses relacionais. A aposta é transformar o sofrimento em experiência compartilhada, baseada na escuta das trilhas associativas das pacientes e do modo como eles se vinculam no grupo, daí o investimento terapêutico na construção da vincularidade. A remissão dos sintomas virá como consequência natural desses esforços, e não como objetivo traçado previamente.
O trabalho psíquico é focado nas interações entre os membros do grupo, abrindo espaços de expressão até então desconhecidos pelas pacientes, com ênfase no acolhimento de narrativas subjetivas e na humanização do cuidado nos sistemas de atendimento. Sabemos que a voz do paciente com frequência é negligenciada nos padrões correntes de tratamento. Assim, uma das contribuições potenciais deste estudo - e que pode ser entendida como uma de suas implicações para a prática clínica - é mostrar a necessidade de valorizar a escuta sensível da experiência das pacientes pelos profissionais. Outra contribuição evocada pela análise dos relatos é evidenciar o valor de investir em uma rede coletiva de apoio para o exercício de uma autêntica ética do cuidado, centrada nas necessidades emocionais das pessoas em sofrimento psíquico, posicionando-as como agentes da própria mudança e contribuintes da mudança do outro.
Dentre as limitações deste estudo, pode ser destacado o fato de que os dados foram coletados em um único serviço clínico. Portanto, a interpretação precisa levar em consideração as particularidades do contexto no qual os fenômenos foram produzidos e observados. Isso não deve ser visto como algo que reduz o potencial heurístico das conclusões obtidas, uma vez que o respeito às especificidades de cada realidade é inerente à abordagem de pesquisa qualitativa, que se preocupa com a construção de significados pelas pessoas em seu viver e em seus contextos de vida. De fato, no paradigma compreensivo de pesquisa, devemos evitar generalizações que possam aniquilar singularidades.