Introdução
A pandemia da covid-19, doença respiratória causada pelo vírus SARS-CoV-2, teve início em dezembro de 2019, na cidade de Wuhan, na China. Apresenta-se em quadros clínicos que variam desde infecções assintomáticas a quadros respiratórios graves. A ocorrência desta pandemia promoveu uma crise sanitária e humanitária (Lima et al., 2020), que engendrou transformações políticas, econômicas e sociais vividas de forma singular pelos países e pelas pessoas (Birman, 2020).
As precauções necessárias para o controle da transmissão da doença exigiram uma mudança repentina nas formas de vida, de relacionamento e de trabalho, produzindo o desdobramento de novos modos de subjetivação. Isso pôde ser evidenciado a partir da análise dos direcionamentos possíveis da experiência traumática nas formações sintomáticas, como no aparecimento de quadros de síndrome de pânico, hipocondria, alterações de humor, rituais obsessivos-compulsivos, exaustão mental, impotência psíquica. O trabalho de luto também sofreu interferências neste cenário, visto que os rituais tradicionais foram interditados, o que intensificou quadros melancólicos (Birman, 2020).
Apesar da alta suscetibilidade de toda a população à contaminação pelo vírus, as pessoas não foram afetadas da mesma forma nessa pandemia, o que revela o seu caráter eminentemente social e evidencia as múltiplas camadas de desigualdade. As mulheres foram o grupo mais afetado, sobretudo as negras que estão mais expostas ao trabalho informal, recebem menores salários (Silva et al., 2020; Strait et al., 2021) e têm maiores índices de violência doméstica (Pontes et al., 2021). São as mulheres também as mais atingidas pela necropolítica, conceito desenvolvido por Achille Mbembe (2018) que evidencia o poder do Estado em determinar, por meio de suas ações, quem pode permanecer vivo ou deve morrer. Nas análises, que discutem as iniquidades sociais presentes no contexto pandêmico, as pesquisas internacionais também reforçam que as mulheres receberam o maior impacto das consequências sociais e econômicas da pandemia (Burki, 2020). Isto faz com que o gênero, enquanto marcador social da diferença, seja uma categoria importante neste debate.
O distanciamento social e o consequente retorno ao lar, com as adaptações ao trabalho remoto associadas com outros papéis sociais, incluíram na vida dessas mulheres outras cenas e vulnerabilidades, exigindo uma resposta rápida às transformações desse momento (Streit et al., 2021). A emergência em responder às questões deste tempo que se impõem pode colocar o sujeito em urgência subjetiva, que se apresenta como um momento de crise em que este não consegue dar conta do seu sofrimento por meio do discurso, ficando sem palavras. Na urgência, responde-se à ocorrência ou à inserção de um traumatismo, e os recursos que se tem para sustentar a existência se desestabilizam (Seldes, 2019).
Urgência subjetiva é uma expressão utilizada na teoria psicanalítica para designar um momento em que um acontecimento externo causa uma ruptura na cadeia significante, produzindo um corte no tempo, que demarca um antes e um depois. Com isso, esse sujeito encontra-se em desamparo diante da perda de suas precárias certezas sobre a vida (Seldes, 2019). Em um tempo de pandemia marcado por um contexto de incertezas, emergiram os pedidos de acolhimento psicológico de sujeitos imersos em suas urgências. Para Lacan (2002), toda urgência engendra uma superação pela palavra, isto é, uma afirmação que sinaliza a importância da oferta da escuta para que o sujeito fale e construa saídas singulares para o seu mal-estar.
Diante da urgência subjetiva, faz-se necessário o cuidado imediato à saúde mental, e o plantão psicológico tem se mostrado, em momentos de emergência e desastres, como um dispositivo para essa finalidade (Scorsolini-Comin, 2015). O Serviço de Apoio Psicológico Remoto, vinculado à Prefeitura Municipal de Aracaju, surgiu na pandemia para atender pessoas em sofrimento psíquico. Na modalidade de plantão psicológico, buscava-se acolher o usuário no momento de sua angústia (Bezerra et al., 2021), auxiliando-o na identificação da sua demanda e no manejo dos recursos disponíveis para o enfrentamento da situação.
Por se tratar de um serviço novo e predominantemente acessado por mulheres, foi essencial refletir sobre este dispositivo considerando o gênero como categoria central de pesquisa. Embora o tema do plantão psicológico durante a pandemia tenha sido abordado em outros trabalhos (Gontijo & Barcellos et al., 2020; Amorim-Ribeiro et al., 2021; Pimentel de-Medeiros et al., 2021), a demarcação das especificidades do manejo do sofrimento psíquico de mulheres em urgência subjetiva faz-se necessária e confere um caráter inédito para este estudo. O objetivo desse trabalho é descrever o acolhimento de mulheres em urgência subjetiva atendidas em um serviço de plantão psicológico na pandemia de covid-19.
Percursos Metodológicos
Trata-se de uma pesquisa exploratória de caráter qualitativo, retrospectiva, cujo método utilizado foi o estudo de caso. Este consiste em uma estratégia metodológica, que evidencia a experiência clínica e sua articulação com um contexto, permitindo o aprofundamento da análise e o desenvolvimento teórico (Gil, 2008). Sendo um estudo de caso em psicanálise, a sua construção abarca uma escrita da clínica analítica, associando a descrição da experiência clínica à teorização (Leitão, 2018).
A pesquisa foi realizada em um serviço de plantão psicológico remoto ofertado em Aracaju, Sergipe, para atender às demandas de sofrimento psíquico da população do município no contexto da pandemia de covid-19. O usuário acessava o serviço por meio de ligação telefônica, sendo direcionado ao acolhimento feito por uma psicóloga plantonista. Depois, era realizado o registro dos dados sociodemográficos, como gênero, idade, bairro, motivo da busca por atendimento e encaminhamento, quando necessário.
Observou-se, durante os acolhimentos, que o público atendido foi predominantemente feminino, na faixa etária de 18 a 65 anos. Inicialmente, foi comum o acesso de pessoas que se identificavam como portadoras de algum transtorno mental, com histórico de acompanhamento psicológico e/ou psiquiátrico. As principais queixas estavam relacionadas a sintomas corporais, ansiedade, luto, insônia, impotência diante dos papéis sociais e sentimento de vazio. Foi possível engendrar caminhos para a realização de um trabalho de acolhimento neste novo serviço, por meio de uma escuta orientada pela ética da psicanálise. Isso implica dizer que se tomou como parâmetro ético o desejo, tanto do analista quanto do sujeito do inconsciente. Assumir esta perspectiva ética, de acordo com Lacan (1959/1960), significa apostar no efeito operatório da palavra, na singularidade de cada caso, e no inconsciente, compreendido neste trabalho como a soma dos efeitos da fala sobre um sujeito, da linguagem (Lacan, 1998).
Os percursos desta pesquisa foram costurados mediante o acolhimento de mulheres em suas urgências e posterior registro em prontuário psicológico. O uso destes registros documentais, como dados que integram o estudo, justificou-se pelo seu caráter de transmissão das vivências profissionais por meio da escrita das intervenções. A partir da análise dos registros dos acolhimentos realizados e da discussão em supervisão, foram extraídas vinhetas clínicas de três casos já encerrados. Por fim, este trabalho considera que tanto a prática psicanalítica quanto as construções teórico-metodológicas desenvolvidas por Lacan compreendem uma prática de linguagem, o que permite falar em análise de discurso com orientação psicanalítica (Dunker, 2016). Dessa forma, é realizada uma análise discursiva, tendo como referência os conceitos de inconsciente, urgência subjetiva, devastação, feminino e sintoma, abordados ao longo do itinerário analítico traçado.
Esta pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética (CEP) da Prefeitura Municipal de Aracaju e aprovada sob o parecer n. 3.558.76. Para preservar o sigilo e a privacidade, nas vinhetas clínicas foram utilizados nomes fictícios e omitidas informações que pudessem identificar as mulheres atendidas.
O Ser Mulher e suas Urgências no Plantão Psicológico Remoto
O primeiro caso elencado para discussão é o de América, que chegou ao serviço apresentando-se pela via do diagnóstico: depressiva, bipolar e com transtorno de pânico, relatando o uso de diferentes psicofármacos. Falou sobre uma tentativa de suicídio no passado, contando sua história a partir da identificação com figuras da família pela via da doença e do suicídio. Após sua tentativa de sair de cena, América diz ter reorganizado sua vida por meio da contação de histórias. A pandemia, além da perturbação no laço social, impediu a realização de uma homenagem que receberia pela prática da contação. Contar histórias, por ser um ato endereçado a alguém, comporta uma relação com o outro. Com o distanciamento social, o envolvimento de América com essa prática ficou comprometido.
A expressão “de repente um tsunami” foi utilizada por América quando foi acolhida e marcava a perda daquilo que havia investido e firmado seus ideais. Chamou atenção quando utilizou esse arranjo de palavras para nomear sua angústia. O “de repente”, repetido diversas vezes em sua fala, evidenciou o encontro súbito com o advento do real da pandemia, que causou rupturas naquilo que constituía a sua verdade. Este encontro com o real pode apresentar-se como traumático, destituindo o sujeito do inconsciente de suas verdades imutáveis e o colocando em estado de urgência subjetiva (Seldes, 2019).
A urgência subjetiva é um conceito que se refere a uma interrupção na linha do tempo do sujeito, retirando-o dos eixos que antes norteavam a sua vida e exigindo que este construa uma nova relação com o real (Seldes, 2019). É uma urgência diferente da emergência médica, que, embora não circunscreva um risco de vida, necessita de uma intervenção o mais próximo do momento em que aparece, para que não haja maiores agravos e para que, diante da desorganização apresentada, o sujeito possa ter espaço para emergir (Almeida & Aires, 2023).
O conceito de real é mais bem compreendido por meio de sua relação com o simbólico e o imaginário (Lacan, 1974/1975). São os três registros pelos quais o sujeito, na condição de ser falante, circula durante uma análise. Os registros estão permeados, então, pelos ditos de cada sujeito. O imaginário constitui a instância de construção da realidade psíquica, onde está localizado o campo das identificações. O simbólico é da ordem do duplo sentido, consciente e inconsciente, no qual está localizado o sujeito. É constituído por significantes, em que este se utiliza para mediar a sua relação com o real. O real, por sua vez, é aquilo que não tem inscrição simbólica, o impossível de dizer. Sua irrupção coloca o sujeito em um estado de vazio de sentido, atravessado pelo afeto da angústia e sem saídas previamente estabelecidas. Lacan elegeu a angústia como afeto padrão de todo acontecimento de real (Soler, 2018).
As mulheres buscavam o serviço diante da angústia, sinal da destituição subjetiva de seus ancoramentos significantes, demandando uma abordagem em um tempo que há urgência. A angústia é o afeto da certeza, sua presença mobiliza o sujeito a fazer algo para livrar-se dela por meio da ação, interditando as palavras. A proposta do analista nesse instante de urgência é promover uma pausa, um espaço para as palavras, para que o sujeito se interrogue sobre sua angústia. Para que isso aconteça, um tempo lógico se torna imprescindível (Sette, 2018).
Essa noção de tempo lógico remete à temporalidade no tratamento psicanalítico proposta por Lacan (1998). Consiste no instante de ver, tempo de compreender e momento de concluir. O instante de ver é demarcado por esse encontro com o real, que abala as estruturas fantasmáticas da realidade psíquica, não encontrando coordenadas no imaginário ou no simbólico. O tempo de compreender é a tentativa do sujeito de se inscrever no simbólico, construindo sentidos para o acontecimento do real, contornando essa realidade. E o momento de concluir seria a saída encontrada por esse sujeito a partir daquilo que ele conseguiu compreender na instância anterior. O sujeito na urgência tende a suprimir o tempo de compreender, partindo diretamente do instante de ver e precipitando conclusões desesperadas. Diante da pressa do sujeito, o analista introduz a escansão do tempo, escutando o que reverbera do seu encontro com o traumático, realizando um trabalho de localização da questão que aparece (Berta, 2015). No caso de América, essa escansão se deu à medida que remontava sua história e como a pandemia invadiu a sua vida, ficando presa no “tsunami”. A convocação para falar sobre o que a afligia naquele momento, juntamente à escansão do tempo, permitiu a elaboração de outras cenas diante das perdas decorrentes da pandemia.
América trouxe também suas questões com relação ao laço social, tanto a partir da interrupção da sua prática de contar histórias quanto ao afirmar que não era compreendida por seus familiares e vizinhos, já que, para eles, “ela tinha tudo”. Diante desse “ter tudo”, a mulher demarca a presença de suas faltas e sua singularidade. Ao contatar o serviço, demanda o reconhecimento da sua dor e o restabelecimento desse laço por meio do acolhimento do seu discurso.
Ao falar de laço social, referimo-nos à relação que os seres humanos estabelecem e que são sustentadas no discurso. É possível perceber que o plantão psicológico se colocava para essas mulheres também como forma de fazer laço social em um momento que se encontravam fora do discurso. Colette Soler (2016) atesta a necessidade do laço no Um-dizer do sujeito, que só pode ser a partir de um outro que lhe reconheça enquanto o Um que ele afirma ser. É nesse movimento que surge uma demanda de saber e reconhecimento dirigida ao analista, que deve acolher a dupla aspiração do sujeito de ser reconhecido em sua singularidade e, ao mesmo tempo, “ser igual a todo mundo”.
Algo que também apareceu no acolhimento de América foi a identificação com os diagnósticos de transtorno mental. Na experiência do plantão, muitas mulheres, assim como América, nomeavam-se por meio dos seus diagnósticos, vinculando-se à taxonomia médica. Safatle (2016) chama atenção para esses atos de nomeação que ampliam impossibilidades e restrições, concebendo o sintoma como algo meramente patológico e determinante do sujeito. Para o autor, o trabalho analítico consistiria então em dissolver o vínculo do sujeito com a identidade produzida pela doença, abrindo-se a possibilidade de novos arranjos discursivos. A psicóloga, praticante da psicanálise, localizando no discurso de América a identificação com os seus diagnósticos, construiu intervenções que lhe possibilitaram elaborar uma narrativa sobre seu sofrimento e criar saídas singulares diante dos impasses que lhe pareciam insuportáveis. De acordo com Dunker (2016), todo sofrimento tem uma demanda de reconhecimento e pode ser atravessado se uma narrativa, uma história sobre ele puder ser contada.
A direção do tratamento no acolhimento às urgências subjetivas se dá em reconhecer que cada urgência tem seu traço singular, e é por meio do afeto da angústia que a questão que se coloca para o sujeito é demarcada (Berta, 2015). Portanto, a conduta diante do ponto de angústia não é tamponá-la, mas convocar o sujeito a falar sobre ela, apostando na construção de uma nova rede de significantes, que possa dar um contorno para o real que lhe atravessou (Azevedo, 2016). Ao localizar a trajetória da urgência no discurso, há uma implicação do sujeito que constrói um sentido provisório ao que lhe acontece (Sotelo, 2015). Nesse sentido, o plantão psicológico funcionou como um dispositivo de escuta e incentivo à fala, possibilitando a cada mulher inventar um saber-fazer para atravessar a angústia.
Devastação e Feminilidade
Durante a experiência no plantão psicológico, foi possível escutar mulheres em suas urgências que construíram defesas psíquicas diante da angústia e dos lutos. Os seus sofrimentos eram colocados em segundo plano diante dos imperativos de cuidado à família e dos afazeres domésticos, produzindo um efeito de silenciamento. A ligação para o plantão psicológico em busca de amparo e o convite para que falassem sobre suas vidas por meio de suas perspectivas deslocavam-nas para um lugar de cuidado e de protagonistas de suas histórias. As queixas eram traduzidas por sintomas no corpo e sinais de esgotamento, e a partir da oferta da escuta podiam historicizar seus sintomas e localizar suas angústias.
Nesse momento de conexão com suas histórias e associações, o tema da devastação feminina tornou-se essencial para o embasamento teórico do acolhimento às mulheres. A devastação é uma forma de se referir ao mal-estar ocasionado pela perda dos semblantes que poderiam sustentar a feminilidade (Souza & Vidal, 2017). Esse conceito foi introduzido por Lacan (1993) para nomear os embaraços que a mulher atravessa na construção do feminino. Para a psicanálise, não existe um significante que descreva de forma absoluta o que é uma mulher. Nesse sentido, ao passar pelo complexo de Édipo, a menina vivenciaria um processo de alienação com a mãe, esperando que ela lhe transmita uma substância que possa dar conta do feminino (Lacan, 1993). Essa relação sempre será permeada pela falta, visto que não existe registro simbólico que responda a essa pergunta. A menina precisa diferenciar-se da mãe para emergir enquanto sujeito, o que pode provocar também sofrimento nesse processo de separação. Na clínica, essa dor psíquica pode aparecer como um afeto de não ser, como momento de ausência de si mesmo.
No plantão psicológico, o acolhimento de Bruna ilustra a devastação. Buscou o serviço angustiada e chorosa. Havia entrado em contato com um objeto pessoal que lhe fez recordar a perda da mãe. Em um processo de luto que se estendia, descrevia a sua relação conflituosa com a genitora que “sempre a rejeitou”. Durante a doença da mãe, dedicou-se aos cuidados desta familiar na tentativa de mostrar que “podia contar com ela”, endereçando a sua demanda de reconhecimento. O sentimento de rejeição também se repetia na relação com o marido, que não a escutava e tampouco legitimava seu sofrimento. Bruna apresentava-se devastada, e a saída encontrada para expressão da angústia foi por meio da automutilação e de tentativas de suicídio, as quais ela relatou, mas afirmava não recordar das cenas. Sua narrativa, portanto, baseava-se apenas nas cicatrizes e no que foi lhe contado por outras pessoas.
Bruna reproduzia em seu discurso a ausência do lugar de inscrição no desejo da mãe, que “nunca gostou” dela, e não conseguia sustentar o seu lugar no desejo do Outro. Tentou de todas as formas inscrever-se no desejo materno, mesmo com os eventos traumáticos dessa relação, cuidando da mãe até sua morte. Freud (1931/1996a) chama atenção para esse retorno do inelutável da relação com a mãe enquanto uma problemática feminina. Diante disso, é possível observar, com o caso de Bruna, o quanto as marcas do discurso materno repercutiam em seu modo de se conceber e em sua vida afetiva, anulando-se enquanto sujeito.
Bruna verbalizava também seus conflitos com o marido, repetindo situações em que se via silenciada assim como em sua relação materna. A mulher, afirmava Freud (1996b), ao casar-se, pode conceber o marido como um herdeiro dos seus conflitos com a mãe. Mais do que isso, completa Lacan (1993, p. 70), um homem pode entrar na função de um parceiro-devastação para a mulher, “a ponto de não haver limites para as concessões que cada uma delas faz a um homem: seu corpo, sua alma, seus bens”.
Sobre a automutilação e as tentativas de suicídio, as últimas na presença do marido, Bruna tinha lapsos no discurso ao falar destes atos, com os quais marcava a angústia no corpo. O esquecimento tinha uma dimensão reveladora, pois assinalava que era pela via do ato que expressava a dificuldade de simbolização. Para a psicanálise, esses lapsos de memória são fatos psíquicos que evidenciam a possibilidade de que determinados acontecimentos tenham origens inconscientes (Costa, 2019). No atendimento em urgência subjetiva, deve-se estar atento ao lapso, enquanto formação do inconsciente, que se presentifica no discurso. Ao pontuar na fala do sujeito o lapso, ele pode ganhar o estatuto de questão a ser interpretada.
Assim como Bruna, outras mulheres acessaram o serviço em seus estados de devastação, que ganharam mais relevo na pandemia. A experiência de devastação coloca a mulher em um lugar vazio de sentido, submetida ao desejo materno e aderida ao ideal de feminilidade imposta. Para a condução de cada caso, é fundamental que o desejo do analista esteja presente para barrar esse Outro indestrutível, o Outro materno. É necessário identificar o ponto de devastação da relação da menina com a sua mãe, para que esta possa emergir enquanto sujeito e realizar a construção da sua feminilidade, diferentemente do enredo materno (Ferreira, 2015). Na relação com a psicóloga, Bruna pôde dizer de seu luto, de suas frustrações, de seu sofrimento. Foi questionada sobre suas construções e seus desejos, sendo feitas intervenções que a auxiliassem na separação do dito materno.
De uma Clínica Prescritiva para uma Clínica da Escuta Orientada pela Psicanálise
Além da devastação, na prática clínica em um serviço de urgência subjetiva, outras questões surgiram como embaraços. As mulheres acolhidas demandavam uma resposta rápida, uma solução para o sofrimento vivenciado. A psicóloga frequentemente era colocada no lugar de mestria, aquela que tinha o saber sobre o mal-estar dos sujeitos e as fórmulas para suprimir os seus sintomas. Algumas mulheres endereçavam os seus questionamentos sobre o uso de medicamentos em uma tentativa desesperada de contornar seus sintomas e tamponar as questões que lhe mobilizavam.
Clara foi uma dessas mulheres. Ligou para o serviço descrevendo-se como alguém que possuía um diagnóstico: transtorno bipolar. Fazia acompanhamento psiquiátrico e psicológico - suspenso durante a pandemia - e atualmente vivenciava muitas crises. O que ela nomeou de “crises” eram mudanças repentinas de humor e pensamentos de morte. Dizia que parou o uso de antidepressivo, referindo que o remédio a deixava mais propensa a cometer suicídio. Então dirigiu essa questão à psicóloga: ela deveria ou não tomar o medicamento? Era a terceira vez consecutiva que ligava, tendo feito a mesma pergunta anteriormente a outras profissionais do serviço. Sua pergunta se fez enigma. Diante da repetição, foi convocada a falar.
O ponto central desta discussão foi escutar o que Clara podia dizer sobre esta pergunta. Esse sujeito que chega imerso em angústia não consegue dar sentido àquilo que está sendo experienciado por ele, e por isso lança mão de estratégias que poderiam fazer calar o que necessita emergir. Clara trazia nas entrelinhas de seu questionamento a ideia de morte, algo que precisaria ser escutado. Ao falar sobre seu sofrimento, o sintoma se revelava.
O sintoma para a psicanálise porta em si uma mensagem-invenção de formação inconsciente, elaborado pelo sujeito para dar conta do real (Maia, Medeiros & Fontes, 2012). No início da teoria freudiana, a solução para a formação sintomática apresentada pelo sujeito seria tornar consciente aquilo que havia sido recalcado, o conteúdo traumático que estava por trás do sofrimento (Freud, 1996c). O trabalho de escuta permitiu a Clara elaborar que havia um elemento de satisfação no sintoma apresentado, que atendia não apenas a um princípio de prazer, mas também a uma pulsão de morte (Freud, 1996d). Essa satisfação pulsional é o que resiste ao tratamento, está diretamente relacionado às repetições e carrega algo do insuportável.
Cada sujeito convive com suas formações sintomáticas que respondem bem em determinados contextos, mas que dependem de um conjunto de condições imaginárias, simbólicas e reais. A partir do momento que existe uma mudança no equilíbrio desses fatores que estão intrinsecamente relacionados, como a provocada pela covid-19, esse sujeito pode ser lançado, então, a uma situação de sofrimento que, em alguns casos, impulsiona-o a buscar auxílio.
É importante ficar atento a essa função do sintoma na vida de cada um. A simples eliminação deste elemento, sem um trabalho adequado de simbolização ou elaboração, deixa o sujeito exposto à angústia, aquilo que não cessa de não se inscrever. O trabalho com o inconsciente estruturado como uma linguagem envolve reconhecer que cada sintoma está diretamente relacionado com as construções do sujeito. Collet Soler (2018) destaca a necessidade do trabalho de associação para conectar o fora de sentido com outros significantes que possam lhe dar um sentido possível, sendo este sempre particular.
Na perspectiva lacaniana, que concebe o sintoma como modo de tratar o real, a conduta analítica é a de ajudar o sujeito a encontrar uma nova forma de lidar com aquilo que o constitui (Maia et al., 2012). Na experiência que tomamos como objeto de estudo neste trabalho, as mulheres chegavam ao serviço com dificuldade de narrativizar o seu sofrimento, de conectar os sintomas apresentados com a sua história e suas relações. Em seus discursos, o sintoma tomava o lugar de exterioridade, totalmente desvinculado de sua vida (Rodrigues & Munhõz, 2020), algo que lhes parecia alheio e poderia ser suprimido por este outro para quem lançavam a sua demanda. Esse é um movimento que se expressa na contemporaneidade, cujas intervenções no campo da saúde estão focadas na eliminação dos sintomas e na centralidade do uso de medicamentos, havendo pouco interesse pelo que o sujeito tem a dizer sobre o seu sofrimento. Delimita-se aí uma distinção fundamental entre a clínica prescritiva e a clínica da escuta proposta pela psicanálise: nesta última, há um saber suposto ao sujeito que está implicado na formação do seu sintoma e pode dizer sobre sua angústia. Clara, assim como as outras mulheres, não era o seu sintoma, mas o seu sintoma era um modo de se expressar, uma formação do inconsciente.
A presença da angústia sinaliza o momento do encontro com o traumático. As construções fantasiosas daquele sujeito para atender ao desejo do Outro se rompem, assim como as respostas utilizadas para dar conta das imposições desse Outro. A angústia, quando não consegue ser traduzida em palavras, transforma-se em ato. Em psicanálise, o termo acting out nomeia os impasses e conflitos psíquicos que os sujeitos, por não recordarem pela palavra, repetem em ato. Estes episódios carregam em si uma mensagem que é sempre endereçada a alguém (Rodrigues & Munhõz, 2020). Este é mais um ponto em que se deve estar atento em um serviço de urgência: colocar o sujeito novamente no circuito das palavras para que este possa formular uma demanda de saber no lugar das suas atuações. Clar a, que havia chegado ao plantão apresentando ideação suicida, pôde então nomear o seu sofrimento e elaborar os lutos que a mantinham em um lugar de identificação com a morte.
O que Pode uma Praticante da Psicanálise em um Plantão Psicológico Remoto?
A irrupção da pandemia não foi sem consequências também para a prática psicanalítica. Foi necessário rever o setting terapêutico que ganhou novas formas na modalidade on-line. A análise realizada por meio de dispositivos de tecnologia já era uma prática feita por alguns psicanalistas, porém se encontrava restrita à excepcionalidade de cada caso (Melo, 2020). Os encontros remotos tornaram-se regra diante das medidas sanitárias estabelecidas e aos analistas cabia a ética de estar junto ao sujeito que sofre, nas condições de escuta que eram possíveis no momento. A reconfiguração do setting terapêutico não o inviabilizou, cabendo ao psicanalista a sustentação do novo enquadre, favorecendo a associação livre e o manejo da transferência. Para isso, é necessário que haja um desejo do analista em utilizar essas ferramentas (Belo, 2020). Para Melo (2020), é possível observar resultados positivos no atendimento on-line, não devendo o psicanalista recuar diante da angústia do sujeito e das suas demandas.
No encontro entre aquele que sofre e o psicanalista, mesmo que em ambiente on-line, há algo que marca a presença do analista: sua voz e seu olhar (Quinet, 2020). Na experiência em questão, o olhar não se fez presente por ser um atendimento via telefone. Porém, a presença da pulsão invocante revelou um convite a falar e desvelar segredos que poderiam ser interditados pelo olhar desse grande Outro. A atenção flutuante permitiu escutar por meio das palavras, das narrativas desencadeadas, aquilo que se repetia, os equívocos e até mesmo os sonhos que se faziam enigma durante aquele atendimento. A função do analista é questionar os sentidos antes estabelecidos com tanta convicção e trazer à tona as interpretações do próprio sujeito (Quinet, 2020). Foi o que se buscou em todos os atendimentos: permitir a fala, fazer a palavra circular para favorecer a elaboração das perdas provenientes da pandemia e das rupturas nas cadeias significantes previamente constituídas.
Neste novo setting que circunscreveu os atendimentos on-line, algo que deve ser manejado com atenção é a transferência. A transferência para Lacan é a reprodução da realidade inconsciente, aquilo que já é conhecido pelo analisante e que vai se repetir na relação com o analista (Torres, 2016). Na experiência do plantão, algumas mulheres chegavam ao serviço e, ao longo dos acolhimentos, supunham um saber à psicóloga, praticante de psicanálise, sobre os seus sintomas. Ao deslocar este lugar de saber para o sujeito, construía-se um manejo para que o desejo de saber pudesse surgir para cada mulher. Nesse sentido, o sujeito é colocado como responsável pelos seus desejos, reposicionando-se em relação ao seu sofrimento e buscando caminhos possíveis diante das suas queixas (Silveira, 2020).
O real avassalador da pandemia e suas ameaças deslocou os sujeitos de suas certezas e do inevitável encontro com a morte. A angústia, tão presente nos discursos e muitas vezes nomeada como sintoma que atravessava o corpo, mobilizava as mulheres a buscar no serviço do plantão um lugar de fala, de tentar circunscrever com palavras aquilo que o real colocava enquanto da ordem do insuportável. É essa aposta na palavra que deve ser sustentada pelo praticante de psicanálise, construindo junto a cada sujeito as possibilidades de vida diante das investidas da pulsão de morte, o que Lia Silveira (2020) nomeia de “abertura para a vida”.
Como estratégia de cuidado alinhada a esse movimento de abertura para a vida, é importante destacar que o serviço também foi ponte de encaminhamentos qualificados para outros dispositivos da rede de saúde, sobretudo da atenção psicossocial, e até mesmo da assistência social. De forma corresponsabilizada, os casos foram discutidos com equipes de outros serviços, buscando garantir o acesso e o atendimento integral às mulheres. Desse modo, a abordagem desenvolvida no plantão psicológico, ao dirigir a centralidade das intervenções clínicas às mulheres, produziu um deslocamento de uma assistência em saúde mental focada apenas na doença para o cuidado ao sujeito. Isso nos permite considerar que os acolhimentos funcionaram então como uma ferramenta para a construção de uma clínica ampliada, pautada na experiência do sujeito e nas suas tramas de vida (Campos et al., 2014).
Considerações Finais
O dispositivo do plantão psicológico apresentou-se como uma importante estratégia de acolhimento das urgências subjetivas na pandemia da covid-19. Em um cenário em que os sujeitos se encontravam imersos em suas angústias, com dificuldade de localizar o mal-estar que insurgia, a oferta de um espaço de escuta tornou-se uma possibilidade de inserir um tempo de pausa, de compreender e de formular uma narrativa sobre o que lhes acontecia. As mulheres, grupo social vulnerável que vivenciou impactos intensos neste processo, ao acessarem o plantão, tiveram um lugar de reconhecimento de seus sofrimentos e apareceram como protagonistas de suas histórias, abrindo espaço para elaboração de suas perdas e questionando seus posicionamentos na relação com os outros.
Com o advento da pandemia, os serviços da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) passaram por algumas modificações em suas dinâmicas de funcionamento. Alguns acompanhamentos foram interrompidos, o que repercutiu na sustentação do laço social dessas mulheres. O serviço de plantão psicológico tornou-se então um espaço de restabelecimento do laço social perdido, reassegurando a sua importância como um dispositivo de cuidado na composição da RAPS.
Este trabalho apresenta a sua relevância por se tratar de uma experiência nova e pouco difundida no que tange ao acolhimento remoto mediado por ligação telefônica, promovendo ainda uma reflexão sobre as contribuições da psicanálise para a construção deste fazer. Em um cenário de distanciamento social, foi possível viabilizar a necessária escuta de mulheres em suas urgências subjetivas com o apoio das tecnologias de comunicação. Por se tratar de um contexto inédito e de um serviço novo, o percurso foi sendo construído conforme a escuta dos sujeitos acontecia. Esta pesquisa não pretende generalizar a experiência do plantão ou encerrar a discussão, visto tratar-se de uma vivência singular, articulada ao contexto de sua época. É preciso estar atento às mudanças de cenário, às formas de subjetivação e às maneiras de apresentação do sujeito em suas urgências subjetivas, visto que elas fazem parte da vida cotidiana e acompanham os sujeitos em suas relações com o mundo, o que aponta a necessidade de mais trabalhos que abordem essa temática.
Algumas limitações do estudo relacionam-se com a ausência de informações sobre o quesito raça/cor das mulheres acolhidas, bem como de dados sobre suas condições econômico-sociais, levando-se em conta que esses marcadores sociais da diferença refletem nas afetações promovidas pela pandemia na vida desses sujeitos. Torna-se relevante ainda a realização de novos estudos sobre o manejo da urgência subjetiva, articulado com as intervenções em equipe multiprofissional, na rede de atenção psicossocial.