Introdução
O presente trabalho busca refletir sobre a seguinte pergunta: quais são as possibilidades de oferecer cuidado em saúde mental a crianças e suas famílias mediante serviços que trabalham na perspectiva de atenção psicossocial, usando meios de contato remoto, em tempos de pandemia de covid-19? Para situar esta questão, será necessário recuperar brevemente o histórico sobre o campo das políticas de saúde mental infantil no Brasil e os desafios vinculados à pandemia do coronavírus, para depois apresentar a proposta do programa de saúde mental “Brincando em Família”, o espaço onde o presente estudo foi desenvolvido.
A saúde mental de crianças e adolescentes entrou tardiamente na pauta da Reforma Psiquiátrica brasileira, sendo discutida apenas em 2001, no III Congresso Brasileiro de Saúde Mental (Couto & Delgado, 2015). Pouco depois, em 2002, foi publicada a Portaria nº 336 contendo um capítulo específico sobre a criação dos Centros de Atenção Psicossocial para Crianças e Adolescentes (CAPSi). Esses equipamentos públicos têm como objetivo serem um serviço territorial, funcionarem como reguladores da porta de entrada da rede assistencial e, ao mesmo tempo, responsabilizarem-se pela organização da demanda e da rede de cuidados no território (Brasil, 2002).
O documento “Caminhos para uma Política de Saúde Mental Infanto-Juvenil” (Brasil, 2005), produzido pelo Ministério da Saúde, estabelece como princípios para uma política nacional de saúde mental infantojuvenil que: 1) Toda criança ou adolescente a cuidar é um sujeito; 2) Deve ser ofertado acolhimento universal para quem chega ao serviço, onde, após receber e ouvir a demanda, é preciso dar uma resposta; 3) O encaminhamento deve ser implicado; 4) A construção da rede deve ser permanente, e isso inclui o trabalho com os demais serviços e equipamentos do território; 5) O trabalho no território, entendido como o lugar psicossocial do sujeito, é central; 6) A intersetorialidade caracteriza as ações do cuidado.
Compreendemos saúde mental em diálogo com o referencial da clínica ampliada, “. . . uma clínica do cotidiano que nos convida a ampliar o foco de visão como estratégia para dar conta da multiplicidade que é a vida” (Onocko-Campos, 2012, p. 156). Assim como Campos (2016), entendemos que “saúde mental tem a ver com a liberdade e autonomia das pessoas, com a dificuldade do sujeito de lidar com a rede de dependência que toda existência engendra” (p. 33). Outrossim, que a saúde mental ampliada, como conjunto de práticas, deve ser tanto terapêutica quanto preventiva, indo muito além “de uma prática centrada no alívio de sintomas incômodos ou no treinamento de comportamentos adequados ao meio social.” (p. 33).
Corroboramos as ponderações de Campos (2016), no sentido de que atribuir a responsabilidade por cuidar de diversas “dificuldades de viver”, outras modalidades de sofrimento psíquico ou distúrbios intermediários, constitui um encargo demasiado grande para a atenção básica. Visto sob esse ângulo, o programa de saúde mental “Brincando em Família” se insere na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e busca preencher lacunas assistenciais relacionadas com necessidades de cuidado que extrapolam as possibilidades da atenção básica e que não possuem as características dos usuários dos Centros de Atenção Psicossocial Infantojuvenil (CAPSi). Esta é uma modalidade assistencial que tem sido bem-sucedida em incluir a família, uma tarefa de grande importância e ainda pouco desenvolvida na saúde mental (Bustamante, 2020).
O referido programa funciona em uma biblioteca pública infantojuvenil de Salvador, ofertando um espaço que pode ser livremente frequentado por crianças e suas famílias, que são convidadas ao brincar livre, assim como a participar de conversas em grupo e também escutas individuais.Trata-se de um espaço de promoção da saúde mental e desenvolvimento infantil e familiar, onde também é possível acolher, cuidar de diversas queixas e, quando necessário, articular o cuidado com outros serviços. O serviço permance disponível para que as famílias o utilizem quando for necessário. Nesse sentido, ele busca ser uma alternativa a propostas convencionais de clínicas/escolas de Psicologia, onde predominam ofertas de atendimento individual e de frequência semanal (Bustamante, 2020).
O programa “Brincando em Família” tem como embassamento teórico e técnico uma integração de aportes psicanalíticos e da atenção psicossocial. Entendemos que a transferência, aspecto central no trabalho psicanalítico (Freud, 1912/1980), possa se suceder na relação com o projeto, que se caracteriza por ter um alta rotatividade na sua equipe, porquanto é formada por estudantes de psicologia e psicólogas voluntárias. Ao mesmo tempo, a continuidade do espaço é garantida, pois o serviço funciona em dois turnos por semana, que são rigorosamente seguidos. Períodos de recesso acontecem duas vezes por ano e são anunciados com antecedência (Bustamante, 2020).
O cuidado é compreendido a partir da metapsicologia do cuidado formulada por Figueiredo (2009), para quem “tarefas de cuidar fazem parte das obrigações e tarefas específicas de todos os profissionais das áreas de saúde e da educação, bem como em geral do que nos cabe a todos na condição de seres humanos vivendo em sociedade” (p. 131), em que, ao mesmo tempo, os saberes e práticas psicanalíticas podem contribuir para uma “. . . compreensão rigorosa do que está envolvido nos cuidados” (p. 131). Para o referido autor, o cuidado envolve a possibilidade da criação de sentidos humanos, no qual o agente de cuidados reveza momentos de presença implicada - em que se mostra comprometido e atuante - com momentos de presença em reserva, permanecendo disponível e, ao mesmo tempo, “deixando ser” o sujeito que recebe o cuidado . Nessa visada, a presença reservada envolve renunciar à própria onipotência, oferecendo um espaço vital não saturado pela presença e pelas atividades do cuidador.
Acolher no mesmo espaço a criança e sua família ‒ a maioria das vezes a mãe ou outra figura feminina ‒ possibilita o fortalecimento de vínculos, o que pode trazer melhoras em relação às queixas trazidas pela família (Bustamante et al., 2017). Tais “queixas” são compreendidas como expressão da dinâmica familiar, não como uma dificuldade exclusiva da criança. O funcionamento habitual do programa ficou impossibilitado com a pandemia de covid-19, iniciada na China em dezembro de 2019, chegando ao Brasil em fevereiro de 2020. Desde então, e até setembro de 2022, foram registradas mais de 685 mil mortes no país (Brasil, 2022). A ONU (2020) alertou sobre a intensa magnitude dos aspectos psicossociais da pandemia, em que as medidas de distanciamento social necessárias para o seu enfrentamento poderiam intensificar o sofrimento de crianças e adolescentes. Nesse cenário, o apoio psicossocial foi considerado parte fundamental das respostas governamentais à covid-19, inclusive por meio da ampliação de serviços territorias que considerem as peculiaridades de crianças, adolescentes e suas famílias (Surjus, 2020).
Em diálogo com recomendações sanitárias e psicossociais do contexto pandêmico, aderimos à orientação direcionda às equipes de atenção psicosocial, no sentido de evitar a interrupção de atendimentos psicológicos em andamento, devendo-se buscar a manutenção de tratamentos por via remota, ou mesmo presencial, seguindo os protocolos e cuidados necessários (Nola et al., 2020).
Estivemos atentas às indicações e diretrizes das instituições reguladoras do exercício profissional. A partir da Resolução nº 4, de 26 de março de 2020, do Conselho Federal de Psicologia (CFP, 2020), que dispõe sobre a regulamentação de serviços psicológicos prestados por meio de Tecnologia da Informação e da Comunicação durante a pandemia do covid-19, começamos a pensar sobre opções remotas de acompanhamento e cuidado às famílias. Nessa resolução, foram suspensos alguns artigos da Resolução CFP nº 11, de 11 de maio de 2018, nos quais se estabelecia que grupos e pessoas em situações de vulnerabilidade (como se encontravam a maioria das famílias do programa) só poderiam ser atendidos de forma presencial. Atendendo à exigência do Conselho Federal de Psicologia (2020), as psicólogas do programa realizaram o cadastro na plataforma e-Psi, no Conselho Regional de Psicologia.
A construção de ofertas de cuidado na modalidade remota envolveu ofertar espaços de escuta em grupo e individualmente, a adultos e crianças, assim como oferecer informações sobre cuidados durante a pandemia e materiais socioeducativos, mantendo a proposta de pensar de maneira singular a cada criança e sua família.
Em abril de 2020, foi criado um grupo de conversas no aplicativo WhatsApp, convidando as famílias das 190 crianças que frequentaram o serviço, entre 2019 e 2020, para participarem. O grupo funcionou diariamente - entre abril de 2020 e dezembro de 2021 - constituindo-se em um espaço que incluiu adultos e crianças, com momentos de brincadeiras, compartilhamento de informações e experiências.
No dia a dia, eram feitas algumas escutas individuais com crianças e adultos. Essas escutas se deram de formas diversas e, às vezes, pouco convencionais, como é o caso a ser apresentado. Adicionalmente, adotamos como rotina a realização de um contato mensal com todas as famílias. O trabalho foi pensado em diálogo com a clínica da continência, formulada por Bion (1962/1980) e recuperada por Figueiredo (2014), e com a psicanálise dos vínculos sociais, proposta por Benghozi (2005, 2010). Ambos aportes serão brevemente evidenciados a seguir.
A clínica da continência parte da ampliação da compreensão kleiniana sobre identificação projetiva. Conforme Figueiredo (2014), Bion descobriu que a identificação projetiva é um meio normal e necessário de comunicação não verbal e pré-verbal nas relações iniciais mãe-bebê. Trata-se de uma comunicação também presente na relação entre paciente e analista e entre os indivíduos e as formas da cultura e instituições. Nesse sentido, a partir de Bion, compreende-se que nenhuma subjetividade se constitui ou reconstitui, na análise ou em outras situações importantes da vida, sem que um outro contenha nossas experiências mais intensas e perturbadoras. Isso confere uma dimensão intersubjetiva fundamental à subjetividade: nascemos e crescemos nos contextos de operação de uma estrutura continente-conteúdo que, inicialmente, é intersubjetiva e, aos poucos, torna-se intrapsíquica (Figueiredo, 2014).
A função de continência ativa ‒ denominada por Bion como reverie ‒ é uma modalidade de sonho acordado que o agente de continência exerce a favor do outro sujeito; sonha-se por ele de forma a metabolizar e simbolizar as suas experiências emocionais mais intensas e perturbadoras (Bion, 1962/1980). A reverie possibilita a transformação de elementos beta em elementos alfa. Elementos beta são conteúdos protomentais, impulsos, afetos, sensações intensas, que provêm e incidem diretamente no corpo, sem possibilidade de ligação e simbolização, produzindo angústias muito primitivas, desconfortos somáticos, pavores e terrores. Elementos alfa são conteúdos psíquicos aptos a serem simbolizados, sonhados, pensados, registrados na memória (Figueiredo, 2014).
O referido autor chama atenção sobre a dupla dimensão da continência: a continência ativa - relacionada com a reverie ‒, que implica elaboração, interpretação e devolução dos elementos projetados, pressupondo a “. . . ‘continência passiva’, a simples mas segura e essencial, sustentação” (Figueiredo, 2014, p. 131) - o holding de Winnicott. Assim, o modelo da clínica da continência inclui “a sustentação e contenção, o acolhimento, a elaboração, a simbolização, a compreensão, o reconhecimento e o espelhamento” (Figueiredo, 2014, p. 132).
Inicialmente, é o analista quem realiza todo esse trabalho psíquico para, posteriormente, realizar a devolução do projetado. O processo se completa quando todo esse material é introjetado pelo paciente. Ao mesmo tempo, ainda na perspectiva de Figueiredo, é preciso considerar que existem alguns riscos ‒ autoritários, maternantes, infantilizantes ‒ que uma clínica de pura continência pode implicar. São riscos que não reduzem o valor da clínica da continência; apenas sugerem a necessidade de ela não ser exclusiva, e que ela possa se articular com os outros dois vértices formulados por Bion: a clínica do confronto e a clínica da ausência.
Trata-se de conceitos construídos, inicialmente, no âmbito de processos psicanalíticos convencionais, mas que vêm sendo incluídos na fundamentação teórica de clínicas psicanalíticas públicas no Brasil (Ab’Sáber, 2021) e com diversas adaptações técnicas que ampliam o alcance da psicanálise, inclusive no diálogo com outros saberes (Rousillon, 2019). Nesse sentido, esperamos mostrar, ao longo deste trabalho, que tais conceitos também podem ser alicerces na clínica desenvolvida no programa “Brincando em Família”.
Nossa proposta também dialoga com os aportes de Benghozi (2005, 2010), que desenvolve uma psicanálise dos vínculos sociais e familiares, articulada ao modelo continente-conteúdo de Bion. Ao mesmo tempo, o citado autor aponta a importância da transgeracionalidade para compreender a vida familiar, diferenciando entre transmissão transgeracional e transmissão intergeracional. Na transmissão intergeracional, o patrimônio psíquico familiar é recebido por uma geração, memorizado, historicizado, elaborado e transmitido à nova geração. Já na transmissão transgeracional, os conteúdos são disseminados em estado bruto, sem metabolização ou elaboração.
Na concepção benghoziana, “a família não se resumiria às heranças transmitidas ao nascer, mas incluiria os processos de transformações dessa malha inicial” (Scorsolini-Comin & Santos, 2016, p. 153), na qual o continente grupal familiar permanece aberto a novas configurações. O autor usa a metáfora da rede para explicar como ocorre o processo de transmissão psíquica de uma geração a outra. A malhagem é o trabalho psíquico de construção-desconstrução e de organização dos vínculos de filiação e de afiliação. O vínculo de filiação está apoiado na base do real biológico de filiação envolvendo ascendentes e descendentes. O vínculo de afiliação envolve o laço conjugal, assim como outros vínculos que impliquem pertencer a um grupo, uma instituição ou comunidade (Benghozi, 2010).
Sob a ótica de Benghozi (2010), é fundamental a possibilidade sempre aberta de remalhagem dos vínculos, que é uma expressão de resiliência familiar, na qual: “. . . as rupturas do vínculo filiativo podem sempre ser remalhadas pelo vínculo afiliativo” (p. 20), e o sintoma pode ser compreendido como “uma forma particular de remalhagem de continentes genealógicos enfraquecidos” (p. 19). Nessa acepção:
. . . a construção do vínculo terapêutico é, em si, uma malhagem afiliativa. Um novo continente psiquíco grupal associando família e terapeutas se coconstrói em terapia. Esse novo continente alternativo pode, então, acolher um processo de transformação psíquica que antes se encontrava em pane. Isso supõe uma disponibilidade para a criatividade livre de toda tentativa de controle, por parte do terapeuta, do processo de mudança (Benghozi, 2010, p. 20).
Método
Trata-se de uma pesquisa qualitativa e de orientação psicanalítica. Nessa perspectiva, Safra (2001), ao defender a utilização do método psicanalítico na produção de conhecimento dentro da Universidade, destaca o princípio fundamental da investigação em psicanálise: é um processo investigativo não conclusivo, porquanto desvela-se a partir de um procedimento processual especificamente referente às peculiaridades da subjetividade humana.
Franke e Silva (2012, p. 43) destacam que “os princípios norteadores da pesquisa em psicanálise não diferem daqueles que estabelecem seu exercício clínico, ou seja, são os mesmos que sustentam a prática”. Para os citados autores, o trabalho com o caso único permanece como marca distintiva do método psicanalítico, em que é necessário colocar um enigma, uma interrogação à qual o analista buscará responder, sempre em diálogo com a teoria psicanalítica.
As rotinas de organização, estudos e supervisão desenvolvidas no programa vão ao encontro das reflexões de Zanetti e Kupfer (2006), que, ao compararem um caso atendido em uma instituição e outro atendido em consultório individual, enfatizam o dever dos profissionais da instituição de cuidarem para que o acompanhamento de cada caso seja sistemático e, de tal modo, que se possa construir o caso clínico.
No “Brincando em Família”, isso é realizado com a produção de relatos escritos sobre todos os atendimentos e a discussão sobre cada uma das famílias que chega ao programa, em reuniões semanais de estudo e supervisão. Ao longo dos encontros, vamos construindo o caso, inclusive por meio da produção escrita de um psicodiagnóstico interventivo, realizada por um membro da equipe. A produção de tal documento favorece também a elaboração e construção de uma devolutiva a cada família, assim como a identificação de eventuais necessidades de articulação com outros serviços para o cuidado no caso a caso. Esses materiais podem também constituir os dados de pesquisa quando as famílias concordam em participar e, inclusive, assinam o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Para o presente artigo, escolhemos um único caso que consideramos emblemático, pelas possibilidades e pelos desafios do acompanhamento por vias remotas em tempos de pandemia. Trabalhamos com os relatos escritos e elaborados por meio dos contatos com a família, incluindo o primeiro encontro presencial em 2019, e os contatos mediante do aplicativo WhatsApp entre os meses de março e setembro de 2020, assim como os registros das supervisões.
Salientamos que o projeto de pesquisa ao qual este artigo está vinculado foi aprovado por um Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), sob o parecer nº 120.687 e que Eliane, nome fictício da participante adulta, assinou o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) no primeiro dia em que foi acolhida presencialmente no Programa. O projeto de pesquisa não preveu assinatura do Termo de Assentimento Livre e Esclarecido (TALE) pelas crianças, pois procuramos não introduzir elementos que pudessem afetar a espontaneidade delas num momento delicado de chegada a um espaço de cuidado. Foram feitas diversas alterações nos dados do caso, inclusive alterando a referência a lugares e atividades realizadas, visando preservar a identidade das participantes.
Resultados e Discussão
A Chegada ao Projeto: Não Entendo Maiane
Trata-se de uma família de pessoas negras. Maiane, de 9 anos, é a segunda de quatro irmãos, que moram junto com sua mãe em um bairro periférico de Salvador. Maiane chega ao programa em novembro de 2019, acompanhada por sua mãe, Eliane, e seu irmão de 1 ano. Esta foi a única vez que participaram em forma presencial, encaminhadas por uma assistente social de um serviço que oferece assistência a famílias em situação de risco psicossocial.
Durante o acolhimento, enquanto Maiane opta por brincar, mostrando-se criativa e interagindo com outras crianças, Eliane faz o relato do que as trouxe até o serviço. Relata que a filha fugiu de casa após ela ter-lhe ameaçado de bater por ter pegado tesoura, estilete, e outros materiais e deixado-os em lugar acessível para os irmãos de 1 e 3 anos. Maiane foi achada na rua e levada por uma viatura a um orfanato. Posteriormente, foi encaminhada à Promotoria, ao Conselho Tutelar e, finalmente, ao serviço que as encaminhou ao “Brincando em Família”. No dia seguinte à fuga, Eliane foi procurar pela filha no Juizado de Menores. Menciona ter sido muito mal tratada, sendo “julgada” por ter procurado a filha só no dia depois de ter fugido. Eliane achou Maiane em outro juizado e a levou para casa após assinar um termo de responsabilidade.
Eliane relata que a gravidez de Maiane foi “bem difícil”, pois o compaheiro era muito ciumento e queria controlá-la. O casal se separou antes do nascimento da menina, voltando a conviver quando Maiane nasceu e, poucos meses depois, separaram-se definitivamente. Eliane comenta que “não entende” a filha. Diz que ela é muito manipuladora, mente e se vitimiza. Relata que até os 4 anos, Maiane foi uma criança “ótima”, e ela considerava que seria a filha que lhe daria mais orgulho.
A “mudança” de Maiane se inicia no momento em que a mãe começa um novo relacionamento. A menina passa a manifestar muito ciúme e, tempo depois, denuncia ter sido abusada sexualmente pelo padrasto. Eliane os confronta e cada um mantém sua posição. Ela opta por acreditar na filha e se separa do companheiro, mas menciona que, até o dia de hoje, tem dúvidas sobre o que realmente aconteceu. No final da entrevista de acolhimento, Eliane expressa que, se tivesse alguém para ficar com a filha, dava-a imediatamente, pois não aguenta mais as mentiras e o jeito dela de se fazer de vítima.
Acompanhamento Familiar Remoto: A Senhora me Entende
Em março de 2020, Eliane, como todas as famílias que participaram do programa “Brincando em Família”, nos anos 2019 e 2020, é convidada a participar do grupo de WhatsApp “Brincando On”. Ela responde que vai ingressar no grupo e colocar Maiane para falar, já que a filha tem manifestado interesse em retornar ao projeto, mas informa que ela não participará, pois não se sente bem de estar em meio a muitas pessoas.
Ao perguntar como está passando o isolamento, expressa dificuldades financeiras, a ponto de não ter o suficiente para providenciar a alimentação dos filhos. A situação da família preocupou muito a equipe, que se mobilizou para obter informações a respeito de benefícios aos quais eles poderiam ter acesso. As comunicações iniciais com Eliane estiveram centradas nesse tema.
A partir desse momento, inicia-se um acompanhamento familiar remoto, por meio da troca de mensagens de áudio. O canal de comunicação foi esse, pois o telefone de Eliane não recebia ligações e nem sempre tinha acesso à internet. O acompanhamento foi realizado fundamentalmente com Eliane. Só conseguimos fazer algumas breves chamadas de vídeo com Maiane, devido a dificuldades na conexão de internet.
Eliane se apresenta como uma pessoa impulsiva, fala o que pensa e sente, sem considerar previamente o impacto que pode trazer suas palavras. Paulatinamente, começam a surgir comentários que sinalizam que está conseguindo esperar e pensar a partir da troca de mensagens: “Vou falar por partes. de X lhe falo em outro momento”, “Doutora, sei que a senhora irá responder, mesmo que demore um pouco”, “Não pude responder antes, mas muito pensei no que a senhora falou”.
Desse modo, o “timing” dado pela sequência de gravar mensagens, que serão escutadas mais tarde e respondidas em outro momento, parece ter sido benéfico, pois possibilitou-lhe um tempo para refletir e processar os pensamentos antes de responder. Trata-se de um manejo que dialoga com a compreensão winnicotiana sobre a importância da experiência da continuidade de “ser” para a constituição da subjetividade. Para Winnicott, tal experiência se constrói no espaço transicional, que é vivenciado sob uma lógica mais temporal do que espacial e onde o ambiente pode funcionar como facilitador ou dificultador. Mais especificamente, a maior necessidade de tempo foi encontrada em pacientes que apresentavam sofrimentos relacionados com traumas muito precoces (Gondar, 2006). Nesse sentido, a contingência, de escutar em um tempo e responder em outro, pode ter contribuído para criar um “ambiente facilitador” no processo desenvolvido por Eliane.
Desde o primeiro contato, é possível visualizar uma relação conflitiva entre mãe e filha. Eliane só enumera queixas e manifesta uma forte rejeição pela filha, expressada em frases como: “Ela se aproxima querendo me abraçar, beijar, e eu sinto nojo, não gosto”, “Quando Maiane sai de casa, sinto paz”, “É uma coisa difícil de explicar, mas eu acho que a senhora me entende”. Essas palavras produzem angústia na acolhedora, que procura “entender” as demandas de mãe e filha: as manifestações de Maiane e a necessidade-pedido de Eliane de ser escutada.
Parece que algo na história familiar, referente ao vínculo mãe-filha, vem se repetindo através de uma transmissão transgeracional (Benghozi, 2005), visto que, em contatos posteriores, Eliane relata a relação problemática que tem com a própria mãe, e confidencia: “Sempre senti ela como uma madrasta e não uma mãe”. Menciona que sempre foi o pai que falou com ela das coisas importantes, que a mãe tinha uma marcada “preferência” pela irmã. A mãe sempre a criticava e achava que o que ela fazia não prestava. Eliane respondia enfrentando a mãe. Uma vez, sendo adolescente, falou para a mãe que gostaria de colocar uma das suas colegas em frente ao pai para que o pai gostasse dela e largasse a mãe. Até o dia de hoje, a mãe diz que escutar isso da filha a matou.
Ao mesmo tempo, a mãe se vinga dela, relatando coisas que não aconteceram. Por exemplo, que Eliane tinha abandonado uma das filhas no hospital, com poucos dias de nascida, e foi ela (a avó) que a foi buscar.
Aos poucos, percebemos o vínculo transferencial instalando-se. É como se a acolhedora tivesse sido “testada” por Eliane, avaliando se teria capacidade de acolher as palavras fortes referidas em relação ao vínculo com a filha. A presença da acolhedora, por meio da troca de mensagens de áudio ‒ em alguns momentos três ou quatro vezes por semana ‒, constituiu-se em alguém real e confiável; confiança que se expressava na frase: “Eu acho que a senhora me entende”, na qual “entender” implica ser acolhida e compreendida do modo como ela é: uma mulher impulsiva, que utiliza palavras fortes etc.
Contratransferencialmente, a acolhedora sente algo caótico - ao modo dos elementos beta de Bion ‒, produto da multiplicidade de conteúdos “em bruto” com forte carga afetiva trazidos por Eliane.
Benghozi (2010) menciona que é em nível transferencial que somos mobilizados, no qual a capacidade de acolher e conter conteúdos carregados, sombrios, pesados, provoca a sensação de que a nossa capacidade de pensar está alterada. A acolhedora sente a necessidade de se dar um tempo para “ordenar, organizar” o que Eliane fala, e decidir o que, como, e quando reponder. Sob esse ponto de vista, a dinâmica da comunicação, via troca de mensagens, permitiu utilizar esse tempo para exercer a função de reverie: acolher os conteúdos fortes e caóticos trazidos por Eliane, compreendê-los e devolvê-los transformados, pré-digeridos, de modo que possam ser incorporados, favorecendo assim um outro olhar sobre a filha.
De fato, aos poucos, o vínculo com Maiane vai sendo remalhado (Benghozi, 2010). Para isso, a acolhedora, em vários momentos, colocou-se em presença implicada (Figueiredo, 2009), sendo diretiva, interrogando sobre os aspectos positivos presentes em Maiane e encorajando Eliane a se aproximar da filha.
Eliane logra visualizar e reconhecer aspectos positivos da filha, comentando que tem um “dom” para desenhar, e enviando fotos de vários desenhos feitos por ela. Também começa a relatar momentos denominados por ela como de “empatia” com Maiane: fazerem faxina juntas, cantando e dançando; participarem juntas de um desafio no grupo “Brincando On” - muito divertidos.
Um momento marcante no processo de acompanhamento é quando Eliane solicita a opinião da acolhedora sobre uma série de mensagens de áudio que Maiane tinha enviado a um vizinho de quem Eliane estava se aproximando. Eliane desabafa: “Não entendo Maiane, não sei que é que acontece na cabeça dela, escute esses áudios, por favor, e me diga”. Nas mensagens de áudio, Maiane pede à pessoa para adotá-la, pois a “questão” é que ela não recebe carinho de ninguém na casa. Essa fala de Maiane pode ser relacionada com o momento em que Eliane declara que, se tivesse opção, entregaria a filha para ser criada por outra pessoa.
Exercendo a função de reverie, a acolhedora “metabolizou” os conteúdos “expulsados”, processou-os e os devolveu à Eliane. A resposta à Eliane foi a de que, ao que parece, através dessas mensagens, Maiane estava fazendo um pedido de atenção, carinho. A reação de Eliane foi muito positiva; ela conseguiu “escutar-incorporar”, com muita angústia, a mensagem da filha. Eliane chorou, fez silêncios prolongados. Percebemos que a mensagem chegou ao destino e produziu seus efeitos. A raiva inicial se transforma em angústia, e Eliane começa a “entender” a filha.
Esse episódio é ilustrativo do vínculo construído com o projeto. Há coisas que Maiane está “dizendo” e que Eliane não compreende. Sua confiança na equipe a leva a compartilhar e pedir “ajuda” para compreender-entender o que está “comunicando” Maiane. Podemos dizer que ela está pedindo ajuda para poder ela mesma exercer a função de reverie com Maiane: escutá-la, sem reagir de maneira impulsiva, e procurar compreender antes de responder. Nesse momento, Eliane solicita ajuda da acolhedora para entender e se aproximar da filha, diferentemente do que acontecia e de como se sentia na relação com a própria mãe, e de um modo distinto a como lidou das outras vezes com Maiane.
A partir desse episódio, vamos começando a perceber uma série de “transformações” nos vínculos familiares: maior frequência de momentos de “empatia” entre mãe e filha, diminuição das queixas sobre Maiane junto do surgimento de questões referentes aos outros filhos. Eliane consegue exercer um maior controle dos impulsos, mudança que se evidencia nas suas verbalizacões: “Vou contar por partes”, “Hoje não vou falar, outro dia falo para a senhora”.
Em diálogo com a compreensão de Benghozi (2005, 2010) sobre transgeracionalidade e remalhagem dos laços, constatamos que o vínculo de Eliane com Maiane vai se remalhando. O programa “Brincando em Família” poderia ser pensado como um vínculo de afiliação familiar. O vínculo de Eliane com o programa se constrói a partir do “entender”. O único dia de atendimento presencial relata uma experiência de ser muito mal atendida e mal compreendida, no Juizado de Menores. Posteriormente, e desde o início do trabalho remoto, Eliane expressa se sentir entendida pela acolhedora, diferentemente do que acontece na relação com a própria mãe. À medida que se sente “entendida” pela acolhedora, expressa as dificuldades no vínculo com Maiane: “Não entendo o que passa na cabeça dela”.
Acolhemos o que ela “não consegue entender”, exercendo a função de reverie, e devolvemos o conteúdo dos áudios - transformando-os em elementos alfa ‒, quando então surge uma intensa angústia em Eliane. A angústia marca o início de começar a “entender” o que acontece com a filha. O “entender” instalado no vínculo familiar vai possibilitando o surgimento de novas escutas e olhares sobre Maiane e os outros filhos.
A Gente Pode se Entender: Remalhagem dos Vínculos de Afiliação
Eliane demonstra ser uma pessoa solidária, procurando ajudar pessoas próximas que passam por dificuldades. Isso chega à equipe por meio de pedidos de ajuda direcionados ao programa “Brincando em Família”: ela solicita acompanhamento para uma amiga que sofre assédio no trabalho; pede orientação sobre serviços para encaminhar duas amigas que têm filhos com “suspeita de autismo”. Assim, Eliane “entende outras pessoas” e, nesse processo, tece malhas com essas pessoas. É preciso acentuar o pensamento de Benghozi (2010) sobre os vínculos de filiação (de Eliane com os filhos) que se entrelaçam com vínculos de afiliação (vínculos com amigas, com o programa “Brincando em Família”), produzindo-se, assim, a remalhagem da malha familiar.
No processo de acompanhamento à família, nossa intervenção foi, por momentos, adotando uma presença implicada (atuando ativamente, enviando mensagens, fazendo perguntas etc.) e, em outras ocasiões, optamos por uma presença em reserva (estando disponível, observando e deixando o processo familiar acontecer). O desafio foi confiar e respeitar o tempo da família; tempo necessário para que a malha familiar continuasse a se fortalecer, sem perder a “flexibilidade” que possibilitasse futuras remalhagens para sustentar as contingências que irão surgir no devenir da vida familiar. Um tempo que pode ser de silêncios e, em seguida, de surpresas emocionantes.
Um dia, após seis meses de acompanhamento remoto, Eliane relata que a data do aniversário de Maiane está se aproximando; ela está organizando uma comemoração surpresa. Dias depois, enviou fotos da comemoração realizada em casa. Nas fotos, é possível perceber o ambiente físico decorado especialmente para o aniversário, assim como a presença de alimentos muito apreciados nos aniversários: doces, salgados, bolo decorado e enfeitado com capricho. Mãe e filha aparecem juntas em uma foto. Essa foi a primeira vez que Eliane compartilhou uma foto de si mesma.
O aniversário de Maiane pode ser pensado como um trabalho de ritualização, que simboliza também o nascimento de um vínculo novo entre mãe e filha, um momento que nos surpreende e emociona muito. Essa leitura vai ao encontro da ênfase que Bengozi (2005) dá aos momentos de ritualização na vida familiar, assim como aos mitos. O autor conceitua o trabalho de ritualização como uma forma paradigmática de resiliência que permite sobreviver ao traumatismo. Acreditamos que esta pode ser também a recriação de alguns mitos familiares ‒ que não há o que comemorar, nem como comemorar a vida nessa família - mas, para nós nos aprofundarmos sobre essa questão, será preciso maior tempo de remalhagem.
Considerações Finais
A nossa experiência na construção de um cuidado adaptado às limitações e possibilidades dos tempos atuais nos conecta com a sensação de que “Nunca sabemos ao certo de que se trata, e precisamos caminhar no escuro, de olhos mais ou menos fechados, com todas as antenas ligadas, e mesmo assim. . .” (Figueiredo, 2014, p. 149).
A pandemia e o isolamento social “pegaram todos de surpresa”. Passamos por um momento de “não entender” o que acontecia. Tentamos aventurar hipóteses - “em um mês ou dois, retomamos ao atendimento presencial”. Mas nossas hipóteses não se confirmaram, e os meses foram passando. O que podíamos fazer? Nosso compromisso com as famílias não nos permitiu interromper os atendimentos e esperar voltar “ao normal”.
Sem “entender”, sem ter certezas, começamos a reconstruir (remalhar) nossa modalidade de intervenção, integrando o que tínhamos disponível: famílias isoladas em casa, acolhedoras comprometidas com seu trabalho, bagagem teórica, smartphones, internet. Começamos, então, a construir vínculos com as famílias por meio de mensagens de WhatsApp, áudios, fotos, vídeos. Procuramos sempre ser rigorosos e cuidadosos na nossa abordagem, avaliando e discutindo em supervisão o que poderia ser feito e as modalidades de cuidado. Hoje, podemos “entender” que algo benéfico foi feito, que remalhagens estão sendo tecidas na família de Eliane e em nossa equipe do “Brincando em Família”.
Essa experiência evidencia o potencial de “dispositivos que permitem trabalhar a capacidade da família”, entendida esta em um sentido bastante amplo, que pode trazer efeitos mais fortes do que uma psicoterapia unicamente individual (Benghozi, 2005, p. 101). Conforme ressaltado por Benghozi (2010), o vínculo afiliativo vem ganhando espaço em relação ao vínculo filiativo, de maneira que a transmissão psíquica: “. . . não deveria ser olhada tanto a partir dos vínculos de filiação pais e filhos (as) e mães e filhos(as), mas também a partir dos laços conjugais estabelecidos e das transformações a partir das instituições das quais fazemos parte no espaço social” (Scorsolini-Comin & Santos, 2016, p. 152).
Os aportes de Benghozi (2005, 2010) são convergentes com as dinâmicas de parentesco predominantes no Brasil, especialmente entre as chamadas classes populares nas quais os laços de “consideração” são muito presentes (Fonseca, 2002; Bustamante, 2013). Ao mesmo tempo, a aposta em construir cuidado fortalecendo os vínculos familiares vai ao encontro da atenção psicossocial, porém sem compactuar com uma lógica familista das políticas públicas. Sob esse prisma, cabe aqui lembrar a problematização feita por Mioto (2010) sobre a tendência, predominante em países como o Brasil, de considerar que a família deve ser capaz de atender às necessidades de seus membros e que o Estado deve incentivar essa tendência sem necessariamente garantir a proteção social de seus membros.
Defendemos que toda família precisa ter acesso a políticas públicas para se fortalecer, algo que na família aqui abordada, inclusive, parece estar fragilizado. Eliane se sentiu julgada e maltratada em contatos institucionais anteriores; porém, no contato com o programa “Brincando em Família”, um lugar onde Eliane se sente compreendida, de algum modo a malha familiar pode ser remalhada.
Esta foi uma construção de um caso clínico pouco convencional, que mostrou possibilidades de cuidado em tempos de pandemia. Trata-se de um trabalho que vai ao encontro de outros estudos sobre possibilidades e desafios do acompanhamento psicológico on-line em tempos de pandemia. Tal como o encontrado por Ferracioli et al. (2023), em revisão sistemática de literatura, foram empreendidos grandes esforços por profissionais de psicologia, posto que consideram tratar-se de um recurso válido e benéfico, mas que requer importantes cuidados na sua implementação. Certamente não se trata de propormos receitas sobre modos de cuidar que devem ser praticados. Contudo, esperamos que este trabalho possa incentivar a confiança e criatividade de profissionais de saúde e suas equipes, nos mais diversos contextos.
Enfatizamos ainda a necessidade de realizar novos estudos que possam refletir sobre as possibilidades de oferta de cuidado on-line no período pós-pandêmico. A integração entre contribuições psicanalíticas, dos referenciais da clínica ampliada e da atenção psicossocial para o cuidado a crianças e suas famílias requer maior aprofundamento em pesquisas, incluindo um número maior de participantes.