Introdução
A mudança do perfil etário e demográfico populacional é discutido como uma das mais importantes mudanças ocorridas mundialmente e se deve à diminuição nas taxas de mortalidade e fecundidade, concomitante ao aumento da expectativa de vida, melhoria dos serviços de saúde, aumento e acesso à tecnologia, dentre outros (Barbosa et al., 2020; Castro et al., 2022).
No que se refere aos países desenvolvidos, observa-se que o envelhecimento sucedeu aos progressos na conjuntura geral da vida. Nesse sentido, o processo de envelhecimento nos países de primeiro mundo ocorreu de forma lenta e consolidada, o que permitiu que essas nações realizassem mudanças na estrutura socioeconômica e na infraestrutura, preparando o terreno para lidar com o envelhecimento da população (Martins et al., 2016; Camarano, 2017). Já nos demais países, esse processo aconteceu de forma acelerada, progressiva e dinâmica, sem tempo para uma restruturação social ou até uma reorganização na área da saúde que fosse adequada para receber as novas demandas que surgiam (Ministério da Saúde, 2006; Pereira et al., 2015; Ramos et al., 2016).
Uma das formas de se estudar o envelhecimento e os aspectos do desenvolvimento humano é pela perspectiva life-span. Ela traz o processo de envelhecimento como algo que acontece ao longo da vida, sendo um processo contínuo, multidimensional e multidirecional de mudanças, mesmo que na velhice aconteça a diminuição da plasticidade intraindividual (Baltes et al., 1999; Scoralick-Lempke & Barbosa, 2012; Barbosa et al., 2020). A perspectiva life-span tornou-se marco teórico no tocante ao envelhecimento, porquanto contribuiu para alterações no entendimento de que o ser envelhecido é passivo e adoecido, substituindo essa perspectiva pela possibilidade do desenvolvimento ocorrer durante todo o curso da vida, envolvendo processos adaptativos que regulam os ganhos e as perdas das pessoas ao longo de sua existência, além de enfatizar as potencialidades de cada etapa da vida (Barbosa et al., 2020; Mendes, 2021; Castro et al., 2022).
Dado o envelhecimento populacional acelerado, pessoas em situação de rua se encontram em uma situação de dupla vulnerabilidade, tanto por estarem nesta situação quanto por vivenciarem o processo de envelhecimento em condições desfavoráveis, o que pode contribuir para um envelhecimento mais acelerado e com maiores implicações biopsicossociais (Valério & Nascimento, 2017; Lima, 2021; Brito & Silva, 2022; Salgado, 2022).
As pessoas em situação de rua vivenciam um contexto de extrema vulnerabilidade social, entornadas de violência. São caracterizadas por serem um grupo heterogêneo, vivendo em condições de pobreza extrema, com vínculos familiares fragilizados ou interrompidos e sem moradia convencional regular (Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário, 2008). Além de tais denominações, existem ainda as representações pejorativas relacionadas a esse público, tais como: vagabundo, preguiçoso, bêbado, sujo, perigoso, coitado, mendigo, dentre -outros termos (Ferreira & Pereira, 2015; Gomes et al., 2020). Além disso, o espaço da rua vivenciado por essas pessoas apresenta aspectos relevantes ao sofrimento, como a invisibilidade social, exclusão, ausência de direitos e desigualdades, muitas vezes não sendo reconhecidos como cidadãos (Oliveira & Feitosa, 2016; Cavalcanti, 2019; Faria & Siqueira-Batista, 2022).
Em vista desse caráter, acredita-se que as representações sociais contemporâneas demonstram uma nova forma de visualizar a realidade que, de certa forma, inclui comunidades educativas, ecológicas, políticas, raciais, culturais, comerciais, dentre outras, de forma que se busca uma nova maneira de visualizar a vida cotidiana (Ávila & Ávila, 2020). Apesar disso, a população em situação de rua constitui por vezes uma ameaça à segurança individual e social, configurando reações adversas da população em geral, desde distanciamento até a discriminação, de forma que se tem essas reações como sendo consequências das representações hegemônicas construídas e designadas a essa população (Campos et al., 2020).
Para compreender a realidade das pessoas, bem como entender como transcorre o envelhecimento entre pessoas em situação de rua, o enfoque psicossocial é substancial. Sendo assim, o suporte teórico-metodológico utilizado na pesquisa será a teoria das Representações Sociais, com o intuito de explanar a percepção das pessoas em situação de rua acerca da realidade em que estão envolvidas.
As Representações Sociais (RS) compõem o pensamento social entre pessoas pertencentes a um grupo, como fenômenos sociais e dinâmicos, existentes na comunicação grupal, e com função de tornar familiar e prático o conhecimento de determinado objeto, em que se considera a pessoa em sua condição histórica e coletiva, além de suas interrelações para a construção social da realidade (Jodelet, 2001; Campos et al., 2020; Miranda et al., 2021; Passos & Araújo, 2021). Nesse intuito, diante da incidência e especulação social da covid-19, as RS mostram-se capazes de sintetizar as apreensões circunscritas ao contexto brasileiro, que corroboram sua relevância científica e social ao revelarem aspectos psicossociais da pandemia (Castro et al., 2020).
Neste ponto, para Moscovici (2010), são necessários dois processos para a elaboração das RS: a ancoragem e a objetivação. Assim, a ancoragem se apresenta como o primeiro processo para a elaboração das RS e possui como característica principal a inserção de determinado objeto em uma hierarquia de valores, dando significado a ele. Para Moscovici, a ancoragem auxilia o processo de envolvimento de juízo de valor, modifica o que era desconhecido, de forma que a ancoragem advém de quando a representação se enraíza no grupo e torna-se parte do pensamento preexistente, inserido, assim, no pensamento constituído (Moscovici, 2010; Santos & Dias, 2015; Bertoni & Galinkin, 2017; Nogueira & Grillo, 2020).
Já a objetivação tem como função duplicar um sentido por uma figura, transformar em objeto o que é representado. Esse processo é denominado como face figurativa, em que transforma o não conhecido em conhecido, torna comum o que era estranho, transforma algo abstrato em quase concreto. Tem ainda a função de objetivar a ancoragem, de forma a externalizar o conhecimento abstraído pelos indivíduos, transferindo o que está na mente de forma a existir no mundo físico (Moscovici, 2010; Santos & Dias, 2015; Bertoni & Galinkin, 2017; Nogueira & Grillo, 2020).
Nesse aspecto, estudos por meio das RS com escopo para o envelhecimento de pessoas em situação de rua podem contribuir para um maior conhecimento social acerca da -realidade em que vivem esses atores sociais, fomentando reflexões acerca do processo de envelhecimento humano nos mais diversos contextos, e possibilitando a ampliação acadêmica com subsídios para a (re)formulação de políticas públicas e a aplicação destas de forma mais assertiva. Sendo assim, objetiva-se, com este estudo, analisar as representações sociais das pessoas em situação de rua acerca do envelhecimento humano.
Método
Tipo de investigação
Trata-se de uma pesquisa descritiva, com metodologia qualitativa, exploratória, de corte transversal, com amostragem não probabilística e por conveniência, em uma instituição que atende pessoas em situação de rua.
Participantes
Participaram 45 pessoas em situação de rua usuários e usuárias de uma unidade do Centro POP (Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua) no município de Parnaíba, PI. A maioria foi de homens, com total de 39 (84,8%), e 6 (15,2%) mulheres, com média de idade de 36,15 anos (DP = 10). Declararam estar em situação de rua acerca de um ano (28,3%), possuem ensino fundamental incompleto (47,8%), e 47,8% se dizem solteiros(as). Vale citar que a escolha pelo tamanho amostral se deve ao fato de que, para o emprego da Classificação Hierárquica Descendente (CHD), uma das análises executadas pelo software IRaMuTeQ, a literatura recomenda 20 entrevistas (textos) ou mais para a execução da análise (Camargo & Justo, 2016). Os critérios de inclusão para o estudo: 1) ter 18 anos ou mais de idade; 2) ser usuário de um Centro POP localizado no município-sede da pesquisa; 3) aceitar participar voluntariamente da pesquisa mediante ao Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Os critérios de exclusão foram adotados conforme a não adequação aos critérios estabelecidos para participação do estudo.
Instrumentos
Utilizou-se como instrumentos para a realização da pesquisa: 1) questionário sociodemográfico, contendo perguntas para a caracterização da amostra acerca de idade, sexo, estado civil, escolaridade, renda, atividade laboral, tempo em situação de rua, ser usuário de um/deste Centro POP e onde pernoita; 2) uma entrevista semiestruturada com 2 perguntas disparadoras, “I) Para você, o que significa envelhecer?” e “II) o que é o(a) senhor(a) entende por velhice”, a fim de captar as representações sociais entre os(as) participantes acerca da temática estudada.
Procedimentos
Inicialmente, o projeto de pesquisa foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Piauí (UFPI), o qual foi aprovado sob o parecer n. 4942080, no qual todos os critérios para pesquisas realizadas com seres humanos foram obedecidos, de acordo com o disposto nas Resoluções n. 466/12 e 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde.
Optou-se pela coleta no Centro POP, a fim de garantir um espaço onde as -pessoas em -situação de rua costumam frequentar diariamente e que funciona como suporte -socioassistencial para essa população. Antes da aplicação dos instrumentos, foi apresentado o TCLE ao(à) usuário(a) do serviço, sendo explicado pela equipe de pesquisadores o caráter da pesquisa, de forma que foi enfatizado ao(à) participante o caráter sigiloso e o anonimato em relação aos dados fornecidos, sendo garantido que as informações só serão utilizadas para fins científicos, bem como foram elucidados os riscos e benefícios da pesquisa, ficando à incumbência do(a) participante aceitar participar ou não, estando ciente de que, depois que aceitasse, poderia desistir a qualquer momento, sem prejuízos. A aplicação dos instrumentos apresentou a seguinte ordem: 1) a assinatura do TCLE; 2) aplicaram-se os questionários sociodemográficos; e 3) a entrevista semiestruturada.
Análises dos Dados
Os dados provenientes dos questionários sociodemográficos foram submetidos a estatísticas descritivas com auxílio do software IBM SPSS 25.0, a fim de caracterizar a amostra. Já as entrevistas semiestruturadas foram transcritas integralmente em um arquivo de texto (.txt). Em seguida, foram feitas linhas de comando com variáveis sociodemográficas, e analisadas pelo programa IRaMuTeQ, por meio da análise da CHD, que realiza uma verificação lexicográfica do texto das entrevistas por meio da frequência e Qui-Quadrado, formando classes de palavras correspondentes sobre uma determinada temática (Camargo & Justo, 2016).
Resultados e Discussão
O corpus geral foi constituído por 45 textos (entrevistas), separados em 76 segmentos de texto (ST), com aproveitamento de 64 STs (84,21%). Emergiram 2.023 ocorrências (palavras), sendo 410 palavras distintas, de modo que, destas, 339 foram mencionadas uma única vez. O conteúdo analisado foi categorizado em cinco classes, como pode ser percebido na Figura 1.
Uma partição principal do dendrograma (ver Figura 1) dividiu o corpus em dois sub-corpus, um composto pelas classes 4 e 3, o outro composto pelas classes 1 e 5, e o último pela classe 2. Camargo e Justo (2016) apontam que a CHD permite que sejam obtidas classes de aproximação semântica, apresentadas no dendrograma. Em uma primeira subdivisão, as classes 4 e 3 são as primeiras do dendrograma e, por esse motivo, são as primeiras a serem discutidas; em seguida, as classes 1 e 5; e, por último, a classe 2.
Classe 4 e 3
A classe 4, denominada “Crenças sobre o envelhecimento”, representou 17.19% do total de segmentos de texto retidos do corpus, sendo a classe constituída por termos que abrangem o intervalo entre acreditar (χ2=15.03) e vir (χ2=3.23). Essa classe é formada por palavras como: só; pensar; vida; querer; tudo; amanhã; esperar; vivo e filho.
Mediante as informações apresentadas dos(das) participantes, observa-se uma representação do envelhecimento ancorada às crenças desse processo, o que é caracterizado pela objetivação da atribuição do que se acredita que são os aspectos negativos (desgaste) e positivos (viver) do envelhecimento. Ademais, os/as partícipes destacam a qualidade de vida como ponto importante para um envelhecimento saudável, tendo em vista que possuem aspectos da qualidade de vida prejudicados por estarem em situação de rua. Como se pode observar nas interlocuções abaixo:
Querendo ou não se desgasta de tanto você se preocupar, você se desgasta. Desgasta a sua mente, seu corpo se desgasta, eu penso dessa forma, eu acredito nisso, eu tento não ter muita raiva (Participante 7, 32 anos, sexo masculino, solteiro).
Aí é viver bem acima de tudo pra poder chegar a esse tempo [velhice], porque eu acredito assim, se você não tiver qualidade de vida, você não chega a esse tempo, e junto com a qualidade de vida, vem a saúde (Participante 7, 32 anos, sexo masculino, solteiro).
A classe 3, nomeada como “Jeito de viver e envelhecer”, apresentou uma retenção de 17.19% do total de STs analisados, constituída de 11 STs. A presente classe compreendeu as palavras entre o intervalo de χ2=20.56 (jeito) e χ2=3.23 (sentir, velhice e desgosto). Além destas, a classe foi constituída pelas definidoras muito; envelhecimento; novo; chegar; Deus; mesmo; cara; hoje e velhice.
Ao se levar em consideração a classe 4, evidencia-se que o jeito de viver e as crenças trazidas dos(das) participantes trazem aspectos relevantes acerca do envelhecimento e das representações sociais trazidas entre as pessoas em situação de rua. Consoante aos dados mencionados, foi evidenciado que o envelhecimento está relacionado com a forma de viver, com os desgastes trazidos pelo próprio processo de envelhecer ao longo da vida e pelas crenças enraizadas em cada pessoa. As falas abaixo demonstram estes aspectos:
Envelhecimento é que o tempo está passando e, do jeito que eu vivo [nas ruas], não estou fazendo nada, não estou lucrando nada (Participante 1, 26 anos, sexo masculino, solteiro).
Querendo ou não vai guardando, acumulando, vai chegar a hora que começa a pesar sua mente, aí você fica de um jeito desgastado, muitas outras coisas vão acontecendo a respeito disso, de preocupação, de desgosto (Participante 7, 32 anos, sexo masculino, solteiro).
Eu tenho que me virar, que eu tô envelhecendo, já estou com muito tempo na rua, a rua envelhece o cara, o cara cansa, trabalha de um jeito, trabalha de outro, sempre na rua (Participante 8, 21 anos, sexo masculino, solteiro).
Analisando os dados apresentados nas classes supracitadas, percebe-se que as representações apresentadas pelos participantes sugerem uma visão de declínio e estigmas com relação ao processo de envelhecimento, bem como a exclusão e segregação de pessoas em processo de envelhecimento. Contudo, apesar do desenvolvimento humano ser considerado um processo contínuo, ao longo da vida acontecem mudanças físicas/biológicas associadas à idade cronológica, como: enrugar da pele, diminuição da rapidez mental, perda de flexibilidade e de força (Costa & Detmering, 2021).
A velhice e o envelhecimento, como fases do desenvolvimento, possuem aspectos positivos e negativos, que são vivenciados a partir das particularidades de cada pessoa. Sob outro ponto de vista, os estigmas atribuídos socialmente acabam por potencializar aspectos mais relacionados com os declínios experimentados nesta fase da vida. Por sua vez, as pessoas em situação de rua, por vivenciarem diversas vulnerabilidades, dentre elas a de envelhecer na rua, podem percorrer um caminho mais árduo, visto que essas pessoas lidam com o preconceito e a discriminação oriundos do envelhecimento e do próprio processo de viver sem ter uma moradia, além de viver um possível duplo processo de estigmas e violências (Salgado, 2020; 2022).
Por conseguinte, a análise dos dados aponta que a experiência do envelhecimento para estas pessoas em situação de rua entrevistadas tem uma ligação com a qualidade de vida. Ou seja, desgastes possivelmente vivenciados no processo de envelhecer possuem reverberações e participação contínua nas questões sociais, econômicas, culturais, civis e espirituais, algo que reflete nesta experiência de qualidade de vida. No tocante ao envelhecimento dito saudável e à qualidade de vida, tem-se a considerar aspectos como bem-estar físico, social e mental, o que não é possível encontrar muitas vezes na população estudada diante das diversas vulnerabilidades que são apresentadas a ela (Silva G. et al., 2020; Mendes, 2021).
Assim, as RS elencadas entre os partícipes do estudo nesta classe corroboram com outras evidenciadas, como no estudo de Silva et al. (2022), que também investigou RS sobre o envelhecimento em uma população em vulnerabilidade, por ocasião, pessoas em privação de liberdade, e no qual apontam que este processo é invariavelmente associado às condições de vida existentes, de modo que o envelhecimento deva ser analisado também em uma ótica interseccional e com afinco às especificidades do grupo estudado.
Classe 1 e 5
A classe 1 foi nomeada como “Envelhecimento na rua”, representando 21.88% do total, sendo constituída pelas formas: “rua”, “situação”, “envelhecer”, “viver”, “gente”, “passar”, “dia”, “tristeza”, “triste” e “vez”, de modo que a primeira palavra - rua - foi a que apresentou maior força dentro da classe, χ2=26.19 e - vez - a menor força, com χ2=3.12.
A partir da análise realizada, verificou-se que, entre os/as participantes, ao serem questionados(as) sobre o que entendem por envelhecimento na rua, representaram este como um processo, de forma que, com o passar dos anos, as pessoas tornam-se mais envelhecidas. Ainda sob a ótica do envelhecimento, entendem que envelhecer na rua tem suas -idiossincrasias, desde o ter que se superar a cada dia, até a vivência de desamparo e da invisibilidade. Como se observa nas falas:
Eu não quero envelhecer na rua, isso é o que mais penso. O tempo está passando, estou a cada dia envelhecendo mais e estou na mesma situação [rua] (Participante 1, 26 anos, solteiro, sexo masculino).
Envelhecimento é conhecimento, morador de rua é discriminado, morador de rua, na maioria das vezes, uns aceitam os outros, só a gente que vive na rua é que entende o que a gente passa. Não tenho acolhimento dos meus pais, pra viver nas ruas as pessoas têm que se superar todos os dias, viver um dia de cada vez (Participante 12, 20 anos, solteiro, sexo masculino).
Não sei se vou chegar a envelhecer, a vida de drogas, de viver na rua, tudo vai acabando com a vida da gente (Participante 15, 34 anos, união estável, sexo feminino).
Esse pessoal que vive na rua vive um dia após o outro, dorme em cima de papelão, perca de tempo da vida (Participante 43, 20 anos, solteiro, sexo masculino).
É triste envelhecer na rua, não tem sossego, uma hora está em um lugar, depois muda (Participante 18, 33 anos, união estável, sexo feminino).
Não sei se vou envelhecer, envelhecer é bom na saúde, não na situação em que eu estou vivendo, usando drogas. Tristeza envelhecer na rua, você nunca vai passar de um lixo ambulante, não importa onde você está, com quem está ou o que está fazendo (Participante 22, 32 anos, união estável, sexo masculino).
Envelhecer na rua é uma tristeza. Muito triste, a pessoa tem risco de envelhecer rápido, de pegar uma doença, de ser assassinado (Participante 44, 37 anos, solteiro, sexo masculino).
As desavenças na rua, discussão, me faz pensar se eu vou morrer na rua antes de envelhecer mais ainda, se eu vou morrer logo (Participante 9, 25 anos, solteiro, sexo masculino).
A classe 5, denominada “Sono e Envelhecimento”, obteve 20.31% do total de STs dessa classe. Compreendeu os termos entre o intervalo de χ2=30.83 (sono) e χ2=2.1 (envelhecer). Além desses, a classe consistiu das formas: noite; dormir; mãe; tudo; perder; hora e rápido. Em face disso, o contexto apresentado para a formação da classe, de acordo com os(as) participantes do estudo, relaciona-se com a incapacidade de ter um sono de qualidade tendo a rua como espaço de moradia. As falas seguintes demonstram estas apreensões:
E quem perde sono a noite envelhece mais rápido (Participante 39, 56 anos, separado, sexo masculino).
Mas amanhã não sei se estou, o sono é o amigo da morte, pode vir um e matar, é tudo de ruim envelhecer na rua (Participante 6, 20 anos, solteiro, sexo masculino).
Imagino que é o avanço do tempo, cigarro e álcool atrapalham o envelhecimento, falta de bom sono, mas a alimentação ajuda bastante, com a mãe é melhor devido à atenção (Participante 24, 40 anos, solteiro, sexo masculino).
Envelhecer na rua é perder sono, não dormir direito. Tem vezes que eu vou dormir três horas da manhã [...]. Perder sono envelhece, você não se alimentar direito envelhece, se você perde uma noite de sono, vai dormir, você não recupera (Participante 8, 21 anos, solteiro, sexo masculino).
Na rua a gente vive de tudo, quem vive na rua se desgasta mais do que quem tem casa, perde o sono, envelhece mais rápido quem está na rua, é o dia todo vagando, a noite às vezes, perde o sono (Participante 39, 42 anos, separado, sexo masculino).
Consoante ao que foi apresentado entre as falas do estudo, a rua não oferece segurança, local e contexto para uma noite de descanso e sono, de forma que, para se ter uma “boa noite” de sono, espera-se que exista um local adequado, com o mínimo de conforto para que o sono possa exercer sua função: recuperação de débito energético e restauração mental e física. Por outro lado, os perigos vivenciados pela população em situação de rua, como a violência, insegurança alimentar, indisponibilidade de água potável, preconceito, a falta de moradia, falta de segurança, a exposição, dentre outros, são agravos para a privação do sono (Oliveira et al., 2017; Oliveira et al., 2018; Carvalho et al., 2019; Silva et al., 2021).
Vale destacar que, para a população estudada, sono e envelhecimento estão interligados. Carvalho e colaboradores (2019) consideram que, para a higiene do sono, fazem-se necessárias condutas que perpassam a alimentação, redução de estímulos sonoros, visuais e luminosos, uma rotina preestabelecida, comportamentos difíceis para colocar-se em prática na população em situação de rua. Não obstante, elas externalizam que a condição de morar na rua traz consequências que afetam seu envelhecimento, bem como sua qualidade de vida. Por esse lado, encontram-se em dificuldade para conseguir alimentação, local adequado até mesmo para fazer suas necessidades fisiológicas, para repousar e para ter qualidade no sono. Além disso, pessoas em situação de rua estão mais propensas a fazerem uso de drogas, com foco muitas vezes na diminuição das experiências dolorosas do viver nas ruas (dor, fome, frio), trazendo consequências diretas à saúde física e mental destes (Oliveira et al., 2018; Esmeraldo & Ximenes, 2021; Mendes et al., 2021).
Tais aspectos se alinham ao abordado no estudo de Campos et al. (2020), no qual são apontadas representações associadas às drogas entre PSR como produtoras de emoções e sentimentos ambíguos, quando as utilizam como forma de interação grupal e para dirimir a percepção da realidade vivida, no entanto, decorrendo-se também tristeza, arrependimento e sensação de abandono, além de representarem demandas associadas a elementos sociodemográficos, como raça/cor e condição econômica, de forma que a atenção à saúde física e mental entre PSR deva considerar estes atravessamentos.
Classe 2
Seguindo a subdivisão, a classe 2, nomeada “Perdas do envelhecimento”, apresenta-se com 23.44% do total de segmentos retidos pelo corpus geral, sendo constituída pelas palavras entre velho (χ2=25.67) e doença (χ2=3.28). Além das palavras supracitadas, a presente classe é composta por vocábulos como: ficar; mais; coisa; achar; força e quando. A presente classe retomou aspectos negativos, como também evidenciados na classe 4. Entretanto, a classe atual atravessa aspectos físicos e debilitantes possivelmente experienciados na velhice, como a solidão, a continuação na rua mesmo nesta fase da vida, apresentando a experiência na rua como uma condição irreversível, sem possibilidade de mudanças. Seguem as falas demonstrativas:
Ficar caminhando, o dia passa, ficar mais velho, vai sentindo mais dores, aparecendo mais doenças (Participante 38, 20 anos, solteiro, sexo masculino).
Saber o que vai fazer e o que não vai fazer quando estiver mais velho, eu já estou chegando lá [velhice] (Participante 40, 26 anos, casada, sexo feminino).
O ser humano nasce, cresce, fica velho e depois morre, o destino é envelhecer (Participante 45, 31 anos, solteiro, sexo masculino).
Envelhecer não é uma coisa muito boa para uma pessoa sozinha, eu vou ficar velho, vou precisar ter alguém para andar comigo, vai me faltar força (Participante 29, 36 anos, solteiro, sexo masculino).
Não tem nem mais para onde ir quando estiver velho, não pode mais fazer nada, a única coisa é tentar se arrepender antes de morrer, pensar na família, nas doenças da rua (Participante 9, 25 anos, solteiro, sexo masculino).
Nas representações sociais apreendidas, o envelhecimento está imbuído nas diversas perdas, como corroborado entre os(as) participantes da pesquisa: perdas da autonomia, limitações físicas, doenças, incapacidade de andar sozinho. Além disso, tal visão estereotipada do envelhecimento traz implicações até mesmo na forma como estes envelhecem e praticam o autocuidado, possivelmente trazendo consequências negativas para esta etapa do ciclo do desenvolvimento (Mendoza-Núñez et al., 2018; Castro et al., 2022).
Os dados apreendidos com relação às representações sociais das pessoas em situação de rua aqui estudadas apontam uma relação ao que é encontrado na literatura atual, em que a experiência posta a estas vivências está carregada - na maioria das vezes - de uma sobreposição de estigmas e vulnerabilidades. Neste sentido, percebe-se que as próprias pessoas em situação de rua assinalam questões físicas e suas reverberações diretas no processo de envelhecer.
O fato de estar na rua carrega consigo aspectos limitantes para se pensar na qualidade de vida destas pessoas. A percepção de um envelhecimento mais rápido, com mais obstáculos e dificuldades, é a realidade apresentada e representada socialmente pela presente população. Além disso, fica clara a falta de um enfoque específico que atenda de forma funcional às vulnerabilidades impostas pela vivência e pelo envelhecimento no contexto das ruas. Além disso, analisa-se a falta de políticas socioassistenciais que promovam tanto a qualidade de vida como a dignidade humana desta população, que muitas vezes não goza de direitos básicos, como a alimentação, acesso à saúde, educação, lazer, higiene, dentre outros.
Nesse sentido, o estudo de Silva et al. (2020), que traz RS concebidas entre PSR, coaduna que estes anseiam por melhores condições de vida e as concebem envoltas em elementos que deveriam ser básicos do cotidiano social de todos e todas, como alimentação, habitação, trabalho e cuidados pessoais, que ultrapassam ações higienistas e que deveriam ser garantias elementares para a permanência plena da pessoa na sociedade.
Conclusões
Em face dos dados apresentados no decorrer do estudo, conclui-se que as representações sociais apreendidas do envelhecimento para a PSR são ancoradas em questões majoritariamente negativas, considerando-se as particularidades de se viver na rua. Além disso, os partícipes destacam condições de iniquidades em saúde, falta de assistência, desigualdades sociais e ausência de vínculos familiares, aspectos estes determinantes para uma menor qualidade de vida nesta população e que afetam o processo de envelhecimento na rua.
A realização do presente estudo possibilita então um maior entendimento das representações sociais do envelhecimento na rua por parte dessa população, sendo possível conferir significados a estas. Além disso, espera-se que o presente escrito possa servir como uma ampliação da visão sobre as particularidades da experiência de vida e envelhecimento entre PSR.
Como limitações, cabe salientar o contexto pontual da realização da pesquisa, proporcionadas pela pandemia de covid-19, afetando principalmente o número de participantes acessados, ao passo que a coleta era permissível em pouco tempo e hábil apenas nos horários estabelecidos pelo Centro POP de funcionamento para refeições (almoço e janta), ao mesmo tempo, atentando-se ao controle profilático entre funcionários, usuários e pesquisadores, de modo que, neste cenário pós-pandêmico, estratégias de coleta de dados nos espaços do/com Centro POP podem ser mais bem elaboradas, podendo-se traçar tempo, instrumentos e intervenções mais amplas.
Em suma, entende-se que conhecer o que representam as pessoas em situação de rua sobre envelhecimento foi relevante para compreender como estes aderem práticas de saúde e como se comportam diante do próprio envelhecimento, sendo este considerado fenômeno de natureza biopsicossocial, por manifestar uma realidade social que carece de notórias reflexões por parte de profissionais de saúde, assistência, familiares, governantes e da sociedade de forma geral. Esperam-se replicações em futuras pesquisas tanto para o desenvolvimento de políticas públicas socioassistenciais como para ampliar o entendimento acerca das especificidades do envelhecimento e velhice nesta população.