Introdução
No transcurso da história e desenvolvimento das civilizações, múltiplos fatores contribuíram para o surgimento de doenças numa esfera global, as quais afetaram as pessoas de diferentes formas, levando ao óbito parcelas consideráveis da população (Honório, 2021). No século XXI, as primeiras epidemias virais foram provocadas por coronavírus: a Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars), em 2002, iniciada na China, atingindo 20 países; e a Síndrome Respiratória do Oriente Médio (Mers), em 2012, na Arábia Saudita, atingindo cerca de 25 países, estendendo-se ao continente americano em 2014 (Souza et al., 2021). Já em 2019, surgiu a Coronavirus Disease 2019 (covid-19), com elevado nível de contágio e letalidade em todos os continentes (Aquino et al., 2020; Hildebrand et al., 2022), inclusive no Brasil, que apresentou cerca de 711 mil óbitos e mais de 38 milhões de casos até abril de 2024 (Ministério da Saúde, [MS], 2024).
Estima-se que nesta pandemia a maioria dos países foi afetada em meses (Scorsolini-Comin et al., 2020), gerando uma crise global em diversos setores: saúde, política, economia, educação e segurança (Honório, 2021; Melo & Sena, 2021). As lacunas no conhecimento científico, aliadas à rápida disseminação da doença, ocasionaram preocupações e incertezas, pois não havia imunidade prévia ao vírus, vacinas ou tratamentos comprovadamente eficazes. Isso causou colapso nos sistemas de saúde - diante da falta de profissionais qualificados, equipamentos, medicamentos e leitos de Unidades de Terapia Intensiva (UTI) (Aquino et al., 2020; Hildebrand et al., 2022).
Para conter a propagação do vírus e mitigar o esgotamento dos sistemas de saúde, bem como potencializar as condições terapêuticas dos que necessitassem de internação e evitar mortes, a Organização Mundial da Saúde (OMS) estabeleceu inicialmente diversas estratégias não farmacológicas para lidar com a doença e preveni-la (Vasconcellos-Silva & Castiel, 2020). As principais estratégias adotadas incluíram regras de etiqueta e higiene pessoal, normas de isolamento, quarentena, distanciamento social e, em casos mais graves, lockdown (com o fechamento de serviços não essenciais) (Aquino et al., 2020; Hildebrand et al., 2022). Essas medidas foram implementadas gradualmente, e de maneira distinta, em cada país, dependendo de aspectos socioeconômicos, culturais, políticos e sanitários (Aquino et al., 2020).
O contexto sanitário desencadeado pela pandemia de covid-19 impactou aspectos físicos, psíquicos, sociais, econômicos e políticos. Foram impostas pela doença diversas mortes -simbólicas, com a perda da saúde e liberdade de ir e vir, que provocaram mudanças abruptas de rotinas, hábitos e experiências sociais (Casellato, 2020). Aliado a isto, houve mortes reais (físicas) de milhares de vítimas da covid-19, somadas a outras mortes não associadas ao vírus, que continuaram ocorrendo. Independentemente da causa da morte, na “era covid”, viveu-se uma experiência diferente, caracterizada por um contexto de interdições, advindas das medidas de prevenção, que modificaram a forma de morrer e as maneiras de viver a morte no primeiro ano da pandemia (Melo & Sena, 2021).
Os pacientes, em geral, morreram isolados e entubados em UTIs, sem ou com pouco contato com familiares e/ou rede de apoio socioafetiva - direito suprimido antes mesmo dos sintomas se agravarem, devido ao risco de contágio e transmissão. Isso contribuiu para sensações de solidão, desamparo e desproteção em pacientes internados (Casellato, 2020).
Os familiares não podiam acompanhar o doente no hospital, recebendo notícias e atualizações da equipe de saúde por ligações telefônicas e/ou videochamadas (Casellato, 2020). Também lhes eram negados os direitos às últimas despedidas e conversas no final da vida (Melo & Sena, 2021). Esses interditos, aplicados ao processo de morte e à impossibilidade de oferecer apoio ao paciente desde o momento do diagnóstico até os últimos dias de vida, desencadearam sofrimento e sentimentos de incerteza, insegurança, medo, angústia, culpa e raiva nos familiares (Cardoso et al., 2020; Casellato, 2020), comprometendo os mecanismos de apoio social, benéficos para pacientes e suas famílias (Mayland et al., 2020).
Nesse cenário, complementando a tríade hospitalar, os profissionais de saúde da primeira linha de cuidados aos pacientes com covid-19 também foram afetados pelas interdições. Eles conviveram diariamente com a morte em excesso e sentiram ansiedade, exaustão (física e mental), medo de contaminação e sensação de impotência diante das complicações clínicas e perdas de pacientes, colegas laborais e familiares (Melo & Sena, 2021).
Nesse contexto de interrupção e interdição do processo de morte imposto pelo covid-19, as práticas de cuidado e os protocolos foram ressignificados, sendo elaboradas alternativas. Telefonemas, mensagens de texto, áudio ou videoconferências por meio de recursos mediados pelas tecnologias da informação e comunicação (TICs), entre eles celulares e computadores, foram ferramentas incluídas na rotina das UTIs, possibilitando a manutenção de contato entre o paciente, os familiares e profissionais, viabilizando os rituais de despedidas (Crepaldi et al., 2020; Melo & Sena, 2021).
Apesar das tentativas de ressignificação de estratégias de contato e de despedidas nas unidades hospitalares, em um segundo momento, após o óbito, o contexto de interdição da morte permaneceu durante a pandemia de covid-19. Para evitar aglomerações, os governos federal e locais declararam medidas administrativas excepcionais para o serviço funerário de supressão dos rituais fúnebres (Cardoso et al., 2020; Giamattey et al., 2022). Os velórios foram desencorajados, e os enterros eram rápidos e com caixão lacrado (Casellato, 2020). Os familiares viveram a dor de não poderem acompanhar, cuidar, despedir-se e enterrar seus entes queridos (Crepaldi et al., 2020).
Esse contexto opõe-se às tradições culturais ao redor do mundo, pois todos os povos realizam cerimônias e rituais para seus mortos (Bonanno et al., 2002; Giamattey et al., 2022). Na cultura brasileira, por exemplo, os rituais fúnebres se concentram na presença e no significado evocado pelo corpo, o qual se comtempla pela última vez (Dantas et al., 2020), com a finalidade comunitária de homenagear e honrar a pessoa perdida, superar a morte e dar um sentido de continuidade para os enlutados (Fontes et al., 2020). Ademais, esses rituais podem ser atravessados por um sistema de crenças religiosas e espirituais, que, em geral, promovem resiliência e proteção ao enfrentamento da morte e vivência do luto (Franco, 2021). Geralmente, os rituais no Brasil são fortemente atravessados pela tradição cristã, na qual, para homenagear os mortos, as pessoas decoram os túmulos com flores, queimam velas, fazem orações e vestem roupas pretas e/ou brancas no momento das cerimônias, velórios e missas. Esse enlutamento é relembrado todos os anos, durante o Dia de Finados (Oliveira et al., 2020).
Em contrastante a essas necessidades culturais, a supressão dos rituais fúnebres durante a pandemia de covid-19 inviabilizou o fluxo natural dos hábitos e costumes tanatológicos, causando mais tristeza, dor e desolação nos enlutados. Isso contribuiu para o surgimento de quadros de estresse, reverberações físicas e emocionais e desorganização nos mecanismos psicossociais dos enlutados, levando a uma alteração subjetiva e cultural do rito fúnebre e da vivência do luto (Oliveira et al., 2020; Silva et al., 2020).
Como consequência das limitações nos processos de terminalidade e luto vividos no contexto de isolamento social durante a pandemia, as pessoas tornaram-se mais vulneráveis ao luto complicado, que é caracterizado por pensamentos negativos, ruminativos, invasivos, recorrentes e persistentes, associados a pessoa que morreu e ao sentimento de descrença e incapacidade de aceitação da morte desse ente querido (Fontes et al., 2020). Outros tipos de luto também ocorreram durante a pandemia, como o luto antecipatório (durante o processo de hospitalização); o luto não reconhecido ou não franqueado (pela censura sobre o direito e a liberdade de viver o luto); e o luto coletivo (vivido pela população ou grupos sociais que compartilhavam as perdas) (Franco, 2021; Fontes et al., 2020).
Considerando o exposto, torna-se evidente que, para além do ponto de vista epidemiológico, a pandemia de covid-19 tornou-se uma problemática de importante magnitude nas perspectivas psicológica e social (Melo & Sena, 2021), devido às alterações cognitivas, emocionais e comportamentais experienciadas (Crepaldi et al., 2020). Portanto, é fundamental compreender os impactos a curto e longo prazo nos processos de terminalidade e morte, como dos lutos concretos e intangíveis, vividos de forma privada e coletiva no período pós-pandemia (Casellato, 2020), que se apresentam como potenciais problemas de saúde pública (Fontes et al., 2020).
Em atendimento a essa necessidade, o presente estudo tem por objetivo descrever as experiências de perdas e do luto de brasileiros que perderam entes queridos durante a pandemia de covid-19. Como objetivo específico, realizou-se uma comparação dos discursos dos participantes com distintas experiências no processo de luto (vínculo familiar, tempo de luto e religião). Este estudo é relevante, pois permite quebrar o silêncio, com cuidado ético e moral, para amplificar a voz dos enlutados, compreendendo suas experiências a partir de seus próprios relatos. Ao oferecer uma análise detalhada das experiências de luto vividas durante a pandemia, amplia-se o entendimento sobre os impactos psicológicos e sociais dessa crise global. Com esses dados, torna-se possível oferecer subsídios para criação e implementação de medidas eficazes, baseadas em dados científicos, de prevenção e assistência aos enlutados nessa e em futuras pandemias. Assim, foi dada a oportunidade aos familiares enlutados de expressassem seus sentimentos e conflitos, e, para os profissionais e pesquisadores, garantiu-se avanços na discussão de elaboração de protocolos de acolhimento e apoio, tanto para os pacientes quanto para seus familiares.
Método
Delineamento do estudo
Uma pesquisa exploratória, descritiva, transversal e de abordagem qualitativa foi conduzida, com o propósito de aprofundar o conhecimento sobre um tema emergente e ainda pouco investigado na literatura nacional.
Participantes
Participaram do estudo um total de 23 familiares enlutados, que perderam algum ente querido para o covid-19, residentes de diferentes estados brasileiros. Em sua maioria, eram do sexo feminino, com menos de 50 anos, pertencentes a religiões cristãs, com ensino superior completo, renda familiar entre 4 e 10 salários mínimos, filhas das vítimas, não apresentavam diagnósticos para depressão e ansiedade prévios e não tomavam medicações; haviam perdido o familiar há menos de 6 meses e conseguiram participar do ritual de sepultamento, dentro das regras estabelecidas no momento.
Para determinar o número de participantes, foi adotado o critério de saturação em pesquisa qualitativa (Minayo, 2017). Assim, quando as respostas se repetiram, as entrevistas foram encerradas. Os critérios de inclusão foram: ser familiar próximo (pai, mãe, irmão (a), cônjuge, filho (a), sogro (a), neto (a) ou familiar morador da mesma residência) de pacientes que foram a óbito por covid-19, e ser maior de 18 anos. Caracterizaram-se como critérios de exclusão: pessoas distantes do (a) falecido (a), sem acesso à internet e/ou impossibilitados de participação da entrevista.
Instrumentos
Um questionário sociodemográfico e um roteiro de entrevista semiestruturada foram empregados para a coleta de dados. O primeiro abordou aspectos como idade, sexo, religião, escolaridade, renda familiar, vínculo familiar, teste positivo para covid-19, diagnóstico de transtornos psiquiátricos, uso de medicações, entre outros. O segundo era composto por 18 questões, distribuídas em cinco categorias: (1) a experiência de adoecimento e morte do familiar; (2) o luto de familiares de vítimas da covid-19; (3) dificuldades enfrentadas no processo de elaboração do luto durante a pandemia; (4) tecnologia e outras estratégias de comunicação utilizadas pelos profissionais da linha de frente; e (5) estratégias de enfrentamento dos familiares durante o processo de luto.
Procedimentos Éticos e de Coleta de Dados
O projeto recebeu aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa, sob parecer n. 4.460.534, e foi conduzido consoante com as Resoluções n. 466/12 e n. 510/16 do Conselho Nacional de Saúde, assegurando o devido consentimento livre e esclarecido dos participantes. A coleta de dados ocorreu entre os meses de janeiro e março de 2021, durante a segunda onda da pandemia de covid-19 no Brasil. Nesse período, houve um expressivo aumento do índice de mortalidade (cerca de 21.141 óbitos semanais) e uma situação crítica da ocupação dos leitos de unidades de terapia intensivas (Moura et al., 2022).
Para recrutamento dos participantes, foi utilizada a técnica da bola de neve, na qual o contato inicial com uma primeira pessoa é indicado ao pesquisador e, em cada entrevista, são indicadas outras que atendam aos critérios de inclusão da pesquisa (Diehll & Tatim, 2004). As entrevistas foram conduzidas de maneira virtual, individualmente, utilizando um gravador para registrar as sessões, com uma média de duração de 40 minutos. Estas ocorreram de modo descontraído, sendo dialogadas e guiadas pelo roteiro construído, mas abertas a perguntas que o discurso do participante evocasse, sempre em respeito ao momento, ao desejo e às limitações emocionais dos respondentes.
Procedimentos de Análise dos dados
As entrevistas foram analisadas utilizando o programa IRaMuTeQ (Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires) (Camargo & Justo, 2013), por meio de três análises textuais. A partir as Análises Lexicográficas Clássicas, verificou-se a estatística de quantidade de evocações, formas e segmentos textuais (ST) - recortes de frases de cerca de três linhas.
Posteriormente, obteve-se a classificação hierárquica descendente (CHD), para identificar o dendrograma contendo as classes criadas automaticamente pelo software. Nesse processo, quanto maior o valor de χ2, maior a associação da palavra com a classe, sendo que palavras com χ2 < 3,80 (p < 0,05) foram excluídas da análise. Posteriormente, todo texto emergido em cada uma das classes geradas pelo IRaMuTeQ foi submetido à Análise de Conteúdo de Bardin (2016), um método de análise de texto que, em etapas - pré-análise, análise do material e tratamento das informações, e interpretação - possibilita a descrição do conteúdo e o tratamento da informação das falas dos participantes de forma a interpretar as memórias, os sentimentos, os planos e os significados. Essa análise manual dentro de cada classe permitiu maior apreensão e interpretação dos dados, atribuição de subcategorias, quando pertinente, e nomeação das classes. Essa análise dos dados requer experiência, visão e fundamentação teórica do pesquisador sobre as experiências dos participantes, sendo realizada por dois juízes experts no tema, inicialmente de forma separada, e depois por meio de equiparação e diálogo para tomada de decisão sobre possíveis divergências na organização das categorias.
Por fim, a partir da Análise Fatorial por Correspondência (AFC), verificou-se as disparidades nas evocações (frequência de incidência de palavras e seus índices hipergeométricos/ χ2) entre participantes de diferentes grupos, com diversas experiências no processo de luto, em função das seguintes variáveis: religião, vínculo familiar e tempo de luto.
Resultados
Análises Lexicográficas Clássicas e Classificação Hierárquica Descendente
O corpus geral constituiu-se por 23 textos, separados em 1.823 segmentos de texto (ST), dos quais 1.422 STs (78%) foram utilizados no texto. O conteúdo analisado foi agrupado em quatro classes, nomeadas com base nas evocações identificadas: Classe 1 - O momento do diagnóstico:“Só ela testou positivo, mais ninguém”, com 253 ST (17,79%); Classe 2 - O processo de adoecimento e hospitalização: “E aí ele piorou de um dia para o outro”, com 387 ST (27,22%); Classe 3 - O momento do óbito e a negação da morte: “Eu não achei que ele fosse morrer”, com 396 ST (27,85%); e Classe 4 - O processo de luto e os impactos da supressão dos rituais fúnebres: “Quando ele morreu, todas as pessoas sumiram”, com 386 ST (27,14%) (Figuras 1 e 2).
Classe 1 - O momento do diagnóstico: “Só ela testou positivo, mais ninguém”
Essa classe aborda os primeiros sintomas de covid-19, os testes e exames realizados, bem como momento do diagnóstico. Envolve também os receios e as dúvidas, em relação ao desconhecido, que atravessaram familiares, pacientes e profissionais da saúde nesse primeiro momento da pandemia, devido à falta de conhecimento científico e alta velocidade de disseminação da doença, como pode ser observado nas falas dos participantes.
Só ela testou positivo, mais ninguém [...] Quando ela foi para internar, primeiro fez uma teleconsulta. Começou a passar mal em casa, mas nenhum sintoma grave, não tinha febre, não tinha tosse, não tinha coriza, não tinha nada. Ela sentiu um cansaço, mas também era diabética, então a gente imaginava que era por conta do diabetes. (Participante 3)
O diagnóstico foi só no hospital, porque, no tempo, o swab demorava muito. Ele começou com diarreia, teve dois dias de diarreia, depois começou [sic] os sintomas gripais, e ele foi internado quando começou a falta de ar e a queda da saturação. E aí ele foi transferido do interior em uma quinta-feira, com resultado negativo ainda do teste rápido. Na sexta-feira o teste rápido deu positivo. (Participante 23)
Classe 2- O processo de adoecimento e hospitalização: “E aí ele piorou de um dia para o outro”
O conteúdo da classe está relacionado ao processo de adoecimento e hospitalização atravessado pelo isolamento, decorrente das medidas de contenção da pandemia. Ele mostra as novas relações interpessoais desenvolvidas entre equipe, paciente e familiares, por meio de ligações e videoconferências. Por outro lado, reflete sobre os impactos negativos da restrição de visitas e últimas despedidas do ente querido, expressos nas falas dos participantes.
Uma vez por dia, uma ligação de aproximadamente 5 minutos, não passava disso. De segunda a sábado, o mesmo médico que ligava, mas ele era responsável por passar todos os boletins, não era ele que atendia minha irmã. Só nos comunicávamos por ligação. (Participante 6)
Ele piorou de um dia para o outro. Quando a gente chegou lá, o médico já veio conversar com a gente, dizendo que teve essa piora e que não podia fazer mais nada, porque já tinha feito tudo. (Participante 20)
Classe 3 - O momento do óbito e a negação da morte: “Eu não achei que ele fosse morrer”
Essa classe reflete sobre o momento do óbito do ente querido e a negação. Isso ocorreu principalmente entre os familiares que não viveram rituais de despedidas e foram impossibilitados de experienciar um dos componentes centrais do processo de luto - a construção de significados oferecida a eles, que perpassa visões de mundo e crenças pré-existentes à perda do enlutado.
Fiquei meio em choque, porque, por mais que você soubesse que era provável, podia sim falecer, eu não achei que ele fosse morrer. (Participante 1)
Ela morreu do lado de pessoas estranhas, e eu não acredito até hoje que ela se foi, porque eu não vi. Foi caixão lacrado. A sensação que eu tenho é que ela está viva e vai chegar a qualquer momento, que ela vai chegar e me chamar como ela chamava. São simples coisas da vida que faz [sic] tanta diferença na vida da gente, e saber que eu nunca mais vou ter a oportunidade de abraçar ela, de comemorar o aniversário dela, de comemorar os natais, Ano-Novo, e cada dia que passa isso me dói. Às vezes eu tô [sic] bem, e aí eu penso que não vou ter mais minha mãe, eu começo a entrar em desespero. Eu não estava preparada para isso, ainda mais agora. (Participante 12)
Pelo fato de não ter tido o funeral, a gente acha que pode assim levar de um jeito mais leve, acha que ele está viajando, até que ele viajava bastante. Às vezes, até brinco: “Já pensou aquelas novelas que de repente ele aparece assim?” Porque ninguém viu. De repente ele some, e aparece, assim, do nada. (Participante 09)
Classe 4 - O processo de luto e os impactos da supressão dos rituais fúnebres: “Quando ele morreu, todas as pessoas sumiram”
O conteúdo da classe retrata o momento após o óbito do ente querido. A supressão dos rituais fúnebres afetou o processo de luto, uma vez que o isolamento social e as medidas de restrição afastaram, de maneira geral, a rede de apoio dos enlutados (outros membros da família e amigos, grupos informais e instituições), levando a uma percepção de baixo apoio recebido.
Quando meu pai faleceu, todas as pessoas sumiram, amigos muito próximos. Só quem ficou mesmo foram os familiares e alguns pouquíssimos amigos, porque o resto realmente sumiu. (Participante 19)
Não teve nada. A única coisa que eles deixaram fazer no cemitério foi ficar com a urna 15 minutos no jardim. A família se reuniu, mas não podia se aproximar muito. Tinha umas 40 pessoas, entre família e amigos de casa [...] Não sei se foi por causa da questão da doença, as pessoas podiam ter medo. São casos e casos. Algumas pessoas eu senti falta da presença física, até parentes. Outros de uma mensagem ou uma ligação, alguma coisa assim. Já tiveram pessoas que estiveram aqui que eu não esperava que estivessem. Então, são casos e casos. (Participante 6)
Ele chegou no caixão fechado. A gente não pode abrir. Totalmente fechado. A gente já estava lá esperando, na área perto da cremação. A gente meio que teve uma despedida, todo mundo botou a mão no caixão e cada um teve seu momento, mas principalmente eu e meus irmãos [...] Depois a gente teve que bater uma foto. Se você falar, assim, é estranho, com todo mundo de lá. Ninguém sorriu. É uma foto super esquisita, porque é o caixão na frente e a gente em linha atrás. Foi a ideia que meu tio, irmão do meu pai, teve para que meu avô soubesse que meu pai não estava sozinho e que teve uma homenagem. (Participante 19)
Especificidades e Análise Fatorial por Correspondência
A partir da análise de Especificidades e da Análise Fatorial por Correspondência (AFC), foi viável comparar as evocações (considerando a frequência de incidência de palavras e seus índices hipergeométricos/ χ2) entre grupos com experiências no processo de luto distintas, a partir das seguintes variáveis: vínculo familiar (filho (a), irmão (a), neto (a) e nora); tempo de luto; e religião (ateu/sem religião, católico, evangélico/protestante, budista e deísta).
Os conteúdos evocados por familiares com parentesco natural (filhos, irmãos e netos) focavam em aspectos sobre os impactos trazidos pelas supressões das visitas e possibilidades de cuidado ao ente querido hospitalizado durante o adoecimento e os últimos momentos de vida, os quais só puderam ser realizados por meio de videoconferências e telefonemas, na maioria dos casos (e.g., “sozinho”, “dor”, “visita”, “contato”, “cuidar”, “UTI”, “suporte”, “presença” e “vídeo”). As respostas dos que tinham parentesco civil com o falecido (noras e genros) centravam-se nas lembranças deixadas e nos últimos contatos possibilitados pelas tecnologias (e.g., “almoço”, “falta” e “videoconferência”).
As respostas evocadas pelos participantes enlutados há cerca de 1 mês, no momento da coleta de dados, estavam relacionadas aos comportamentos e sentimentos após os rituais de despedida do ente querido (e.g., “dormir”, “doloroso”, “pesado”, “lembrar” e “ansiedade”). Os conteúdos trazidos por aqueles que estavam em luto há 6 meses centram-se nas estratégias de enfrentamento do processo de luto, nas redes de apoio social e profissional e em repercussões para a saúde mental dos enlutados (e.g., “conversar”, “família”, “tempo”, “psicóloga” e “depressão”). Por fim, as evocações dos participantes com 12 ou mais meses de luto focavam na restauração da rotina dos familiares e nas ressignificações feitas acerca do ente querido que faleceu (e.g., “trabalhar”, “reagir”, “roupa”, “continuar”).
As evocações dos participantes que tinham alguma religião focaram em aspectos relacionados às redes de apoio sociais e espirituais como estratégias de enfrentamento ao luto, aos rituais fúnebres e de despedida tradicionais e às adaptações mediadas pelas TICs (e.g., “deus”, “igreja”, “social”, “corpo”, “caixão”, “relação”, “telefone” e “videoconferência”). As evocações daqueles que não tinham religião contemplaram, de maneira semelhante, a importância do compartilhamento de sentimentos e emoções com a rede de apoio social no processo de enlutamento (e.g., “reunir”, “abraçar”, “apoio” e “esperança”).
Discussão
A partir dos resultados encontrados nas análises, é possível perceber como os processos de luto vividos por esses familiares que perderam entes queridos para o covid-19 acompanharam a evolução do vírus, e os desdobramentos acarretados pelas medidas de enfretamento a pandemia. Inicialmente, na ausência de tratamento comprovadamente eficaz e com o colapso nos sistemas de saúde (Aquino et al., 2020), as medidas sanitárias de controle geraram restrição na experiência de morte e luto (Crepaldi et al., 2020; Melo & Sena, 2021).
A experiência de ser separado de um ente querido durante os períodos críticos da doença, até no momento da morte, foi descrita pela maioria dos entrevistados como negativa. Isso corrobora outros estudos, realizados no período pandêmico, sobre os prejuízos dessa condição para as tomadas de decisões sobre o fim da vida, especialmente relacionadas às diretrizes de ressuscitação (Dennis et al., 2022), o que contribuiu para sensações de solidão, desamparo e desproteção em pacientes internados; insegurança, medo, angústia, culpa, autorrecriminação e raiva entre os familiares (Cardoso et al., 2020; Casellato, 2020).
A presença das emoções supracitadas é comum no processo de luto daqueles que viveram uma perda, principalmente em adultos - faixa etária dos participantes da presente pesquisa. Além disso, envolve questionamentos, que ganharam ênfase durante a pandemia de covid-19, sobre os esforços que poderiam ter sido empregados para evitar a morte, tendo em vista a impossibilidade de cuidados durante a doença e internação, e do acesso após a morte. Dessa forma, o luto foi vivido, na maioria das vezes, de forma angustiante e conflituosa, havendo uma busca constante, real e simbólica, de aproximação daquele que se tinha vínculo (Meireles & Lima, 2016).
Depois, no transcurso da pandemia, foram criadas e aprimoradas estratégias que viabilizassem o contato. As TICs foram protagonistas e intermediárias das novas relações entre pacientes, familiares e equipe, que se comunicaram majoritariamente por meio de ligações e videoconferências (Casellato, 2020). O uso desses recursos facilitou os cuidados durante e após o processo de adoecimento, pois aumentou o acesso à equipe de saúde, manteve as famílias informadas e promoveu a comunicação face a face com pacientes (Feder et al., 2021). Apesar do conforto que essas estratégias davam, para muitos dos entrevistados, as conversas por telefone ou videoconferências e os rituais de despedida adaptados para o espaço online eram incompletos, por conta da distância, que não permitia o cuidado e o toque nas últimas despedidas (Guite-Verret et al., 2021).
O sentimento de incompletude permaneceu entre os participantes após o óbito do familiar, com a ausência dos ritos fúnebres e de despedida do corpo físico durante velórios, missas e sepultamentos, que são o principal meio pelo qual as comunidades ocidentais expressam emoções, reconhecem e aceitam a realidade da morte, compartilham memórias, expressam seu luto em voz alta e compartilham apoio e solidariedade (Aguiar et al., 2022).
Esse isolamento social enfraqueceu as redes de apoio social dos familiares enlutados, que seriam importantes no enfrentamento da perda (Hernandez-Fernandez & Meneses-Falcon, 2022). A disponibilidade física e emocional das pessoas em que os enlutados podiam confiar e com quem poderiam se comunicar diminuiu consideravelmente, impossibilitando o compartilhamento de significados e crenças com a comunidade (Luna, 2021).
A ausência desses rituais de despedida e de uma rede de apoio contribuiu para uma maior vulnerabilidade nos processos de luto dos participantes, permeados por sofrimento acentuado, angústia, dificuldades em aceitar a morte e construir novos significados após a perda, de uma parcela considerável de enlutados pelo covid-19. Como consequência, eles relataram, de maneira geral, dificuldades em acreditar na morte, por não terem visto e tocado pela última vez o corpo e/ou caixão (Dantas et al., 2020) e por não terem vivido o apoio e a solidariedade mútuos (Fernandez & Gonzalez-Gonzalez, 2020).
No contexto de interdições e isolamentos, a religiosidade e a espiritualidade emergiram nas falas dos participantes como principais recursos de enfrentamento, proteção e resiliência, pois puderam oferecer um sistema de crenças estáveis para aqueles que acreditam (Franco, 2021; Parkes, 2009). Outras estratégias foram importantes paras os processos de luto dos participantes, como: o reconhecimento da perda irreversível do ente querido, após momentos iniciais de negação; o processo de elaboração da dor; a adaptação a um mundo sem o falecido, e o estabelecimento de uma nova conexão com aquele que morreu, após uma dificuldade inicial em construir novos significados, o que configura a realização de diferentes tarefas de elaboração do luto (Worden, 2013). Também se observou uma oscilação presente nos participantes entre níveis relativamente estáveis e saudáveis de funcionamento físico e psíquico e sentimentos agudos, bem como reações moderadas ou graves à morte do ente querido, confirmando a existência de diferentes trajetórias de luto vividas por cada um (Bonanno et al., 2002).
Considerações Finais
Os resultados desse estudo mostraram os estágios de uma narrativa vivenciada pela maioria dos familiares enlutados, desde o diagnóstico da doença até o momento derradeiro, com as despedidas negadas e/ou desencorajadas. Foram identificados os impactos das restrições de visitas, bem como as possibilidades e limitações das novas relações criadas por intermédio de celulares e videoconferências. A abolição dos cerimoniais fúnebres e o distanciamento dos laços de suporte social dificultaram a elaboração do luto, em alguns casos negados, gerando vulnerabilidade para o desenvolvimento de lutos difíceis.
Apesar dos resultados da pesquisa oferecerem importantes contribuições sobre as consequências da pandemia, o estudo apresenta limitações no processo de coleta de dados. Devido às recomendações de distanciamento, todas as entrevistas ocorreram virtualmente, com dispositivos com internet, dificultando a participação de pessoas sem acesso a esse meio. No entanto, a escolha deste formato ocorreu devido às restrições para pesquisas presenciais no momento da coleta. Ademais, deve-se considerar a abrangência nacional que pesquisas online proporcionam, sendo possível acessar participantes de diferentes regiões do país.
Reforça-se a importância das discussões geradas nesta pesquisa a partir da compreensão das perdas ocasionadas pelo covid-19 e da investigação das experiências relacionadas ao luto. Isso visa subsidiar a elaboração de intervenções preventivas, a fim de minimizar os impactos na saúde ou mitigar os efeitos das transformações da experiência do fim de vida trazidas pela pandemia. Além disso, destaca-se a importância futuras pesquisas sobre o tema, considerando diferentes abordagens metodológicas, que permitam acompanhar o processo de luto a longo prazo e/ou avaliá-lo em larga escala. Por fim, esta pesquisa possibilitou que os familiares enlutados expressassem seus sentimentos e conflitos; para os profissionais e pesquisadores, possibilitou elementos para reflexão e elaboração de protocolos de acolhimento e apoio, tanto para os pacientes quanto para seus familiares.















