Introdução
O tabagismo é um problema de saúde pública que se destaca como a principal causa de morte evitável no mundo e que não afeta somente a saúde dos usuários diretos, uma vez que, dentre as mortes citadas, 1,2 milhão acontece em virtude da exposição ao fumo passivo (World Health Organization, 2022). O tabagismo também impacta a economia, a sociedade e o meio ambiente (García-Gómez et al., 2019; World Health Organization, 2022).
No que se refere ao Brasil, desde a década de 1980 têm sido tomadas medidas de controle do uso de produtos derivados do tabaco (PDT) (Lopes & Silveira, 2020). Apesar da redução da quantidade de tabagistas nos últimos anos (Nunes et al., 2021), aproximadamente 9,8% da população brasileira ainda é fumante; desse percentual, cerca de 428 pessoas morrem diariamente (Araujo et al., 2021).
A dependência da nicotina é uma doença crônica, complexa e multifatorial que, com acompanhamento apropriado, é passível de ser evitada e tratada (Lopes & Silveira, 2020). Entretanto, ainda que uma elevada porcentagem de tabagistas deseje parar de fumar, o suporte ofertado a essa população é deficiente e insuficiente nos serviços de saúde brasileiros (Brasil, 2015). Nesta direção, destaca-se a importância do apoio adequado ao paciente tabagista, tendo em vista que somente 1%-5% das tentativas de cessação são efetivas sem ajuda (Araújo et al., 2021).
Em diversos países, a diretriz clínica recomendada para o tratamento do tabagismo é a combinação da intervenção farmacológica e comportamental. Evidências contundentes têm demonstrado que a combinação entre estas duas modalidades interventivas pode duplicar a probabilidade de sucesso da cessação do consumo de tabaco (García-Gómez et al., 2019).
A dependência envolve comportamentos aprendidos e resulta da interação do indivíduo com seu ambiente. Envolve fatores referentes à cognição, reações físicas, emocionais e comportamentais (Lopes & Silveira, 2020). O comportamento de fazer uso do tabaco é associado a elementos presentes no contexto em que ocorre. Na medida em que essa associação é fortalecida, a presença de tais elementos tem o potencial de interferir na motivação do indivíduo e reduzir a probabilidade de sucesso na manutenção da abstinência, funcionando como desencadeadora para o comportamento de fumar. Ademais, as consequências reforçadoras imediatas do uso do tabaco têm o potencial de promover a manutenção dessa prática, fortalecendo a dependência (Lopes & Silveira 2020).
A terapia cognitiva-comportamental (TCC) é apontada em estudos baseados em evidências como a abordagem psicoterapêutica que apresenta melhores resultados no tratamento de dependências químicas (Marquezini, 2019). A intervenção para a cessação do uso de substâncias derivadas do tabaco é realizada em três fases: (a) a abordagem, que objetiva motivar o paciente a interromper o uso de PDT; (b) o manejo, que contempla o desenvolvimento de um plano de cessação e a promoção da adesão a este plano; e (c) o acompanhamento, que busca a prevenção de recaídas e promoção de abstinência em longo prazo (Scarinci et al., 2022).
Para a realização desse tipo de intervenção, é imprescindível que haja o envolvimento de profissionais de saúde capazes de oferecer o suporte necessário aos pacientes para a promoção da cessação (Bittencourt et al., 2014). Psicólogos têm sido apontados como profissionais que possuem aptidões adequadas para este tipo de atuação, haja vista que a formação inicial destes profissionais tende a contemplar o desenvolvimento de competências e habilidades correlatas às que são necessárias na condução do tratamento da adição ao tabaco. No entanto, este potencial é muitas vezes inexplorado por parte dos psicólogos (Bowman et al., 2013).
Qualquer atuação profissional depende do que os profissionais fazem ao intervir sobre seus objetos de trabalho. Esse fazer, a partir da perspectiva analítico-comportamental, é nomeado tecnicamente de comportamento. Comportamento pode ser compreendido como um complexo sistema de relações entre o fazer da pessoa e o ambiente no qual ela atua, sendo o ambiente concebido como o que existe antes desse fazer e o que dele resulta (Botomé, 2013). No caso da intervenção do psicólogo para promoção da cessação de uso de PDT, isso implicaria em descrever: (a) com que tipos de situações, problemas e demandas ele se depara, em relação ao seu cliente, para promover a cessação (ambiente que antecede o fazer); (b) que tipos de ações ele precisa realizar diante dessas situações, problemas e demandas; e (c) que resultados ele precisa produzir em relação a essas situações, problemas e demandas, de modo a produzir mudanças significativas tanto para o cliente quanto para o seu entorno (contexto familiar, laboral etc.). Capacitar psicólogos para que possam se envolver ativamente em intervenções voltadas à cessação requer, então, a proposição dos comportamentos profissionais constituintes desse tipo de atuação.
A Programação de Condições para o Desenvolvimento de Comportamentos (PCDC), área derivada da Análise Experimental do Comportamento, pode se constituir em tecnologia relevante para a proposição dos comportamentos requeridos do psicólogo para a realização desse tipo de intervenção, pois objetiva a promoção da aprendizagem de comportamentos relevantes para a atuação profissional (Kienen et al., 2013). Uma série de pesquisas que visam à proposição de comportamentos constituintes de diferentes tipos de atuações profissionais, com base na PCDC, têm sido desenvolvidas. Cianca et al. (2020) sistematizaram os estudos analítico-comportamentais brasileiros sobre PCDC e identificaram 46 pesquisas que visavam à descoberta de comportamentos constituintes de diferentes tipos de atuação profissional. Como exemplos, podem ser destacadas intervenções do psicólogo para prevenir comportamentos-problema (Assini, 2012) e de equipes de saúde para realizarem atendimentos humanizados (Marcolini et al., 2022). Nesta direção, este trabalho objetiva propor os comportamentos básicos do psicólogo para promover a cessação do uso de PDT, a partir de literatura científica sobre o tema.
Método
Este trabalho se caracteriza como uma pesquisa qualitativa documental descritiva e o método foi adaptado de um procedimento utilizado em outros estudos que visam à proposição de comportamentos constituintes de atuações profissionais (Marcolini et al., 2022).
Fontes de informação
A fim de selecionar as fontes de informação relevantes para este estudo, foi feito um exame de um programa de treinamento (Association for the Treatment of Tobacco Use and Dependence, 2005) e de uma certificação para especialistas em tratamento de usuários de PDT (Pbert et al., 2000). A partir disso, foram identificadas categorias de competências e/ou habilidades requeridas de profissionais que atuam para promoção da cessação. Competências e habilidades são aqui compreendidas como qualificadores de comportamentos, descrevendo o grau de perfeição com que um determinado comportamento é emitido por alguém (ex.: o profissional é competente em relação ao comportamento x ou habilidoso em relação ao comportamento y) (Dos Santos et al., 2009). Tais categorias foram avaliadas e validadas por uma pesquisadora doutora em Psicologia Clínica e que é especialista em promoção da cessação de uso do tabaco. Estas categorias foram utilizadas para seleção das fontes de informação. São elas: reestruturação cognitiva, regulação emocional, resolução de problemas, trabalho em equipe, gerenciamento de estresse, entrevista motivacional, empatia, assertividade, competências interculturais, encaminhamento à rede de serviços, comportamentos gerais de cessação. As fontes de informação consultadas estão destacadas com “*” na seção de referências.
Instrumentos
Para coleta dos dados, foi utilizado um protocolo para registro dos dados referentes aos trechos dos textos que continham informações sobre comportamentos do psicólogo para promover a cessação, assim como de informações referentes aos componentes constituintes desses comportamentos (antecedentes, respostas, consequentes e comportamentos) (ver Tabela 1).
Tabela 1 Exemplo de Protocolo de Registro Preenchido
Trecho selecionado da obra utilizada como fonte de informação | Classe de Estímulos Antecedentes | Classe de Respostas | Classe de Estímulos Consequentes | Classes de Comportamentos |
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“Colaborativo. A EM se baseia em uma parceria cooperativa e colaborativa entre o paciente e o clínico. Enquanto o método centrado no paciente é uma abordagem ampla de consulta, a EM lida com uma situação específica em que é necessário que o paciente mude o seu comportamento. Em vez de uma relação de poder desigual, na qual o clínico especialista direciona o paciente passivo no que deve fazer, há uma conversa colaborativa ativa e um processo decisório conjunto. Isso é particularmente vital na mudança de comportamentos relacionados com a saúde, pois, essencialmente, o paciente é o único que pode efetuar tal mudança” (Miller & Butler, 2009, p. 22). |
Necessidade de o paciente modificar seu próprio comportamento. O paciente é o único que pode efetuar tal mudança. Relação colaborativa (ao invés de desigual) |
Parceria cooperativa e colaborativa com o paciente Conversa colaborativa ativa e um processo decisório conjunto |
Vital na mudança de comportamentos relacionados com a saúde |
Estabelecer uma parceria cooperativa e colaborativa com o cliente Conversar de forma colaborativa com o cliente para promoção de mudança de comportamento Engajar o cliente ativamente na conversa para promoção de mudança de comportamento Conversar de forma cooperativa com o cliente, possibilitando que ele interaja ativamente na relação Estabelecer condições para que ocorra um processo decisório conjunto entre terapeuta e cliente |
Nota. Expressões em itálico foram propostas pelas pesquisadoras com base no exame dos três componentes comportamentais identificados nos trechos.
Procedimento
Nas fontes consultadas, foram selecionados e transcritos os trechos que continham informações sobre os seguintes componentes comportamentais: (a) situações-problema com as quais os psicólogos lidam para promover a cessação, (b) ações requeridas do psicólogo diante dessas situações, (c) resultados a serem produzidos a partir dessas ações (Tabela 1). Nem sempre os trechos continham todos os componentes comportamentais. Nesses casos, foi realizado o procedimento de derivação, que consiste em propor, a partir de algum componente identificado, o componente faltante. Para isso, foram utilizadas as perguntas descritas na Tabela 1.
Com base nessas informações identificadas e derivadas, foram feitas as nomeações dos comportamentos a partir das relações entre os componentes comportamentais descritos (quinta coluna da tabela). Os critérios para essas nomeações foram: (a) clareza: linguagem deve ser de fácil compreensão; (b) objetividade: linguagem deve se referir a variáveis observáveis; (c) adequação ao contexto de intervenção para cessação: comportamentos propostos devem estar voltados à intervenção psicológica para promoção de modificações de comportamentos/pensamentos/sentimentos para lidar com a adição à nicotina. Os critérios a e b foram definidos com base em Danna e Matos (1999). Por exemplo, em relação à expressão “Respeitar outros membros da equipe e pessoas adjacentes a elatrabalhadores de apoio a ela”, o que está tachado foi substituído pela expressão em itálico, de modo a deixar mais claro ao que se refere a expressão “pessoas adjacentes”.
As nomeações propostas foram avaliadas por uma juíza, psicóloga e pesquisadora familiarizada com a intervenção para promoção da cessação de uso de PDT. A avaliação consistiu em verificar o grau de clareza e objetividade das nomeações propostas, bem como sua adequação ao contexto de intervenção para cessação. Nomeações que, segundo a juíza, requeriam adaptações, foram sinalizadas no formato de comentários, os quais foram avaliados conjuntamente por ambas as pesquisadoras para redação final dos nomes dos comportamentos identificados. Um exemplo do procedimento realizado está apresentado na Tabela 1.
Os dados coletados foram organizados em duas categorias, constituídas por subcategorias: (a) comportamentos voltados especificamente à cessação (3 subcategorias) e (b) comportamentos gerais constituintes de intervenções do psicólogo (10 subcategorias). Esses dados foram tratados por meio de estatística descritiva. Foi feita também uma organização dos comportamentos conforme os estágios da intervenção para promoção da cessação (1 – motivar, 2 – desenvolver e promover adesão, 3 – evitar recaídas e promover abstinência em longo prazo), sendo criadas subcategorias relativas a cada estágio. Os dados resultantes desse procedimento foram organizados em tabelas contendo listas com os nomes e a quantidade de comportamentos identificados.
Resultados
O exame das fontes de informação possibilitou propor 562 comportamentos constituintes da intervenção do psicólogo para promover a cessação de uso de PDT, distribuídos em duas categorias: (a) comportamentos gerais constituintes de intervenções do psicólogo (78%, N=393) e (b) comportamentos voltados especificamente à cessação (22%, N=108). Tais comportamentos foram classificados também em subcategorias mais específicas, conforme apresentado na Figura 1.

Figura 1 Percentagem de Comportamentos do Psicólogo para Promover a Cessação de uso de PDT por Categorias e Subcategorias Identificadas
A primeira categoria, “Comportamentos gerais constituintes de intervenções do psicólogo”, organizada em 10 subcategorias, envolveu uma diversidade de comportamentos característicos da intervenção do psicólogo em diferentes contextos de promoção de mudança de comportamento (e.g., reestruturação cognitiva, regulação emocional, resolução de problemas, gerenciamento de estresse, adaptação intercultural), assim como comportamentos voltados ao trabalho em contextos institucionais (e.g., trabalho em equipe). A subcategoria com maior quantidade de comportamentos identificados foi entrevista motivacional (25,1%, N=126), seguida de resolução de problemas (10,2%, N=51) e reestruturação cognitiva (8,8%, N=44).
Já a segunda categoria, “Comportamentos voltados especificamente à cessação”, organizada em três subcategorias, envolveu comportamentos mais especificamente voltados à cessação, sendo seu foco sobre a dependência de nicotina e o processo de cessação (3%, N=15), assim como estratégias de intervenção para cessar o uso (14,6%, N=73) e para promover a manutenção da cessação (4%, N=20).
Na Tabela 2, estão apresentadas as subcategorias de comportamentos, organizadas conforme os estágios de intervenção para promoção da cessação. O estágio que concentra a maior quantidade de comportamentos se refere a “Desenvolver e promover adesão ao plano de tratamento” (2° estágio, 42,32%, N=190). Esse estágio envolve tanto comportamentos relacionados ao desenvolvimento de um repertório comportamental no cliente, para que ele possa lidar com pensamentos e cognições (8,24%, N=37), com as emoções (4,01%, N=18) e resolução de problemas (10,91%, N=49), quanto comportamentos que requerem do psicólogo conhecimentos específicos sobre o tabaco, como adição e o processo de cessação, como explorar o uso do tabaco (2,67%, N=12), abordá-lo como uma dependência (3,79%, N=17), marcar o dia “D” (1,34%, N=6) e elaborar e discutir um plano de ação para a cessação (4,45%, N=20).
Tabela 2 Subcategorias de Comportamentos Constituintes da Intervenção do Psicólogo para Promover a Cessação de uso de PDT, Conforme Estágios da Intervenção
Estágios de intervenção | Subcategorias | Quantidade e % comportamentos | |
---|---|---|---|
Motivar o cliente (1º estágio) | Identificando o repertório do cliente | 5 | 1,11% |
Aceitando as escolhas do cliente | 4 | 0,89% | |
Analisando as motivações do cliente | 7 | 1,56% | |
Fortalecendo o cliente | 9 | 2,00% | |
Estimulando a motivação do cliente para a mudança comportamental | 14 | 3,12% | |
Lidando com a resistência/ambivalência para a mudança de comportamento | 14 | 3,12% | |
Fortalecendo o compromisso do cliente com a mudança comportamental | 8 | 1,78% | |
Outros | 31 | 6,90% | |
Subtotal | 92 | 20,49% | |
Desenvolver e promover adesão (2° estágio) | Lidando com pensamentos e cognições | 37 | 8,24% |
Lidando com as emoções | 18 | 4,01% | |
Trabalhando a resolução de problemas | 49 | 10,91% | |
Implementando a ativação comportamental | 13 | 2,90% | |
Elaborando e discutindo o plano de ação com o cliente | 20 | 4,45% | |
Explorando o uso do tabaco | 12 | 2,67% | |
Abordando o uso do tabaco como uma dependência | 17 | 3,79% | |
Abordando o suporte social | 2 | 0,45% | |
Utilizando estratégias relacionadas ao tratamento | 12 | 2,67% | |
Abordando as medicações para a cessação | 4 | 0,89% | |
Marcando o “Dia D” | 6 | 1,34% | |
Subtotal | 190 | 42,32% | |
Evitar recaídas e promover abstinência em longo prazo (3º estágio) | Lidando com desejos e fissuras | 7 | 1,56% |
Lidando com recaídas e escorregadas | 6 | 1,34% | |
Mudando o estilo de vida | 8 | 1,78% | |
Melhorando resultados de longo prazo | 3 | 0,67% | |
Outros | 1 | 0,22% | |
Subtotal | 25 | 5,57% | |
Comportamentos comuns a todas as etapas | Comunicando-se com o cliente | 39 | 8,69% |
Estilo acompanhar | 5 | 1,11% | |
Estilo direcionar | 6 | 1,34% | |
Estilo orientar | 3 | 0,67% | |
Lidando com as diferenças culturais | 33 | 7,35% | |
Conhecendo a rede e os encaminhamentos | 6 | 1,34% | |
Trabalhando em equipe | 50 | 11,14% | |
Subtotal | 142 | 31,63% | |
Total geral | 449 | 100,00% |
Nota. Ao organizar os dados por estágio de intervenção, a quantidade de comportamentos é menor se comparada aos dados da Tabela 2, pois alguns comportamentos se repetem em diferentes subcategorias naquela tabela. É o caso, por exemplo, de comportamentos referentes às subcategorias empatia e assertividade.
No estágio referente a “Motivar o cliente para o processo de cessação” (1º estágio), foram identificados 20,49% (N=92) do total de comportamentos propostos neste estudo. Eles envolvem comportamentos referentes a identificar o repertório (1,11%, N=5) e as motivações do cliente (1,56%, N=7), bem como repertórios do psicólogo para lidar com a resistência/ambivalência do cliente em relação à mudança (3,12%, N=14) e ao fortalecimento do cliente (2%, N=9) e do compromisso dele com a mudança (1,78%, N=8). Por fim, o estágio de intervenção em que foi identificada a menor quantidade de comportamentos nas fontes consultadas diz respeito a “Evitar recaídas e promover abstinência em longo prazo” (3º estágio) (5,57%, N=25). Os comportamentos classificados nessa subcategoria envolvem lidar com desejos/fissuras (1,56%, N=7), com recaídas e escorregadas (1,34%, N=6), bem como mudar o estilo de vida (1,78%, N=8) e melhorar resultados de longo prazo (0,67%, N=3).
Vale destacar ainda que uma expressiva quantidade de comportamentos (31,53%, N=142) é comum a todos os estágios de intervenção, uma vez que dizem respeito à comunicação com o cliente, conhecimento da rede de atenção à saúde e possíveis encaminhamentos, trabalho em equipe e adaptações culturais da intervenção.
Discussão
Os resultados deste estudo demonstraram que, ainda que um amplo repertório comportamental seja necessário para a promoção da cessação, a maioria dos comportamentos requeridos nesta intervenção faz parte do perfil básico de atuação desse profissional. Comportamentos relacionados à assertividade, resolução de problemas, regulação emocional, empatia, adaptação intercultural e trabalho em equipe são exemplos desse repertório básico, uma vez que se mostram importantes para a atuação em contextos clínicos, organizacionais, de saúde, educação, entre outros. Trata-se, portanto, de comportamentos requeridos em intervenções psicológicas em diferentes contextos, os quais se espera que sejam contemplados no processo de formação deste profissional durante a graduação (Brasil, 2011; Schultz & Cruz, 2009).
Além de comportamentos que fazem parte do perfil básico de atuação do psicólogo, também foram identificados comportamentos que envolvem diretamente a capacidade desse profissional para lidar com o processo de dependência e suas consequências. Estes se referem ao repertório específico para promoção da cessação e poderiam ser desenvolvidos pelos profissionais de Psicologia por meio de capacitação complementar. No que diz respeito aos estágios de intervenção para promoção da cessação, observa-se que a maior parte dos comportamentos identificados está ligada ao desenvolvimento e à promoção da adesão ao plano de tratamento (N=192). A adesão ao tratamento se refere ao quanto os comportamentos do indivíduo correspondem às recomendações acordadas com o profissional de saúde e tem forte relação com a obtenção de melhores resultados de cessação (World Health Organization, 2003), o que mostra a importância da ênfase a este processo ao longo do acompanhamento.
Em contrapartida, foram identificados poucos comportamentos voltados à prevenção de recaídas e manutenção da abstinência (N=25). Esses resultados evidenciam que há ainda a necessidade de ampliação dos dados acerca da manutenção da abstinência em longo prazo e sinalizam a demanda por mais pesquisas nesta área. Conforme indicam Peuker e Bizarro (2015), conhecer os fatores envolvidos com obtenção da abstinência e sua manutenção pode auxiliar no desenvolvimento de intervenções preventivas e tratamentos mais eficazes.
A dependência do tabaco é um processo complexo que envolve aspectos biopsicossociais (Seabra et al., 2011). Do ponto de vista comportamental, é fundamental observar as interações que o fumante estabelece com o ambiente, sua história de aprendizagem em relação ao uso do cigarro, as associações estabelecidas entre o ambiente e o hábito de fumar, as estratégias de enfrentamento de situações estressoras (e.g., fumar como forma de lidar com situações de estresse, ansiedade, tédio), assim como a presença de comorbidades psiquiátricas, que se referem a transtornos com importantes componentes psicológicos (e.g., transtornos de ansiedade, depressão etc.) (Conti et al., 2020; Correa et al., 2021; Mantey et al., 2022).
Parar de fumar requer também que o usuário de tabaco desenvolva autoconhecimen-to para reconhecimento e manejo de situações associadas ao comportamento de fumar; mudança no estilo de vida e na forma como a pessoa se relaciona com o ambiente social e físico ao seu redor, modificando o significado de associações previamente estabelecidas com o ambiente e as interações com outras pessoas fumantes e não fumantes (Gavazzoni & Marinho-Casanova, 2011). Intervenções comportamentais podem auxiliar na identificação e modificação de comportamentos relativos à manutenção da adição (e.g., como lidar com as fissuras; manejo de estresse e resolução de problemas de forma mais efetiva), ao processo de parar de fumar (Taylor et al., 2021), assim como na modificação de estilo de vida e na manutenção da abstinência (Seabra et al., 2011). O desenvolvimento de comportamentos específicos relacionados à promoção da cessação, somado ao repertório que constitui o perfil básico de atuação do psicólogo na sociedade, poderia contribuir significativamente para a atuação desses profissionais em programas de tratamento do tabagista, suprindo lacunas tanto com relação ao processo de cessação quanto promovendo ações de prevenção de uso do tabaco.
Dada a complexidade da dependência da nicotina e do processo de cessação, as intervenções mais eficazes são aquelas que envolvem, concomitantemente, abordagem farmacológica e comportamental (Tobacco Use and Dependence Guideline Panel, 2008), o que pode auxiliar os clientes tanto na preparação quanto nas tentativas de parar de fumar (An et al., 2008). Intervenções desse tipo requerem vários profissionais e a necessidade de trabalhar em equipe. Os resultados deste estudo possibilitaram identificar 50 comportamentos relacionados a essa subcategoria, envolvendo uma diversidade de comportamentos voltados à interação do psicólogo com os demais profissionais (e.g., respeitar a diversidade de opiniões; aproveitar o feedback dos colegas como oportunidade de crescimento e aprimoramento de seu trabalho), ao foco no cliente (e.g., incorporar os objetivos do cliente ao plano de atendimento, considerando as experiências e críticas dele à configuração desse plano; envolver o cliente na avaliação de resultados da equipe), assim como ao gerenciamento da equipe (e.g., identificar alguns riscos comuns à eficiência da equipe; manter outros membros da equipe responsáveis por suas contribuições, de uma maneira respeitosa), o que demonstra a complexidade do repertório a ser desenvolvido por esse profissional. Apesar de sua complexidade, trata-se de um repertório útil para intervenções em diferentes contextos, por isso, considerado básico e previsto como essencial na formação (Brasil, 2011; Schultz & Cruz, 2009).
A capacitação dos profissionais de saúde é um processo importante para a qualificação do atendimento ofertado neste campo (Portes et al., 2014) e deve ter sua relevância assegurada para que os tratamentos fornecidos para a promoção da saúde sejam efetivos (Santos et al., 2019). Especialmente no processo de intervenção para a cessação, a capacitação profissional propicia a ampliação de conhecimentos que subsidiarão o profissional para ofertar a assistência necessária ao cliente (Chan et al., 2011), assim como a expansão do acesso dos clientes a um tratamento eficaz (Sheffer et al., 2009). Além disso, apesar das evidências sobre a eficácia das intervenções realizadas por psicólogos para promoção da cessação (Lopes & Silveira, 2020), a participação desses profissionais nesse tipo de trabalho ainda está numa fase embrionária no Brasil. Ainda que haja maior inclusão de psicólogos em instituições de saúde (Freire & Pichelli, 2010), a atuação desse profissional em programas de cessação do uso de PDT poderia ser mais bem explorada, tanto no âmbito de intervenções na saúde pública quanto em atendimentos em outros contextos, tais como o de clínicas particulares, ofertas de serviços para planos de saúde etc.
É necessário, também, testar empiricamente os dados aqui sistematizados. Isso pode ser feito por meio de aplicação e avaliação de treinamentos com base nesses comportamentos propostos. Avaliar a eficácia das intervenções realizadas por psicólogos comparativamente a intervenções realizadas por outros profissionais que atuam no aconselhamento psicológico também poderia subsidiar as decisões de gestores e outros profissionais que atuam em contextos de saúde sobre a relevância (ou não) de se ter psicólogos realizando intervenções para promoção da cessação.
Ainda que o tratamento para cessação de uso do tabaco envolva intervenções voltadas à prevenção de recaída e manutenção da abstinência, identificamos poucos comportamentos a elas relacionados na literatura consultada, o que indica a importância de desenvolvimento de novas pesquisas que possibilitem um maior aprofundamento com relação a isso. Destacamos que as fontes de informação consultadas foram selecionadas a partir de categorias estabelecidas a priori com base em um programa de treinamento e uma certificação para especialistas em tratamento de usuários do tabaco que não são exclusivamente psicólogos, o que pode produzir um viés na natureza dos dados coletados. Buscamos reduzir esse viés introduzindo a avaliação dessas categorias por uma pesquisadora doutora em Psicologia Clínica e que é especialista em promoção da cessação de uso do tabaco.