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Psicologia Ensino & Formação

Print version ISSN 2177-2061

Psicol. Ensino & Form. vol.1 no.2 Brasília  2010

 

ENSAIOS E ESTUDOS TEÓRICOS

 

Extensão universitária na formação em psicologia e a questão vocacional: um analisador da produção de subjetividades

 

University extension in psychology formation and the vocational question: an analysis of the production of subjectivities in contemporaneous society

 

 

Pedro Paulo Gastalho de BicalhoI; Claudete Francisco de SousaII

I Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutor em psicologia-UFRJ ppbicalho@ufrj.br
II Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Especialista em Psicologia Educacional-UFRRJ claudete_sousa@ig.com.br

 

 


RESUMO

As complexas relações sociais, políticas e econômicas vividas em nossa atual sociedade brasileira - capitalista e neoliberal - foram problematizadas neste texto a partir da atuação da equipe de Psicologia em um pré-vestibular comunitário. Por meio da metodologia analítica do vocacional, problematiza-se o conceito de vocação e inicia-se o questionamento da dinâmica subjetiva presente nos grupos de alunos. Neste estudo, desenvolve-se a ideia da orientação vocacional como uma prática que, construída historicamente e legitimada pelo lugar de suposto saber da Psicologia, eximiu o sujeito da responsabilização por suas escolhas. O fenômeno da evasão, entendido como um analisador, viabilizou a discussão da produção de subjetividades em nossa sociedade capitalista atravessada pela lógica neoliberal.

Palavras-chave: Vocação. Escolhas. Neoliberalismo. Produção de subjetividade.


ABSTRACT

The complex social, economic and political relations of our current Brazilian society -capitalist and neoliberal - were discussed in this text from the team's performance in a Psychology "pre vestibular" community. Through the analytical methodology of the vocational it discusses the concept of vocation and it begins the questioning of the subjective dynamic in this group of students. This study is developed on the idea of vocational guidance as a practice that, historically constructed and sanctioned by the place of the supposed knowledge of psychology, avoids the subject of the accountability for their choices. The phenomenon of evasion, seen as an analyser, allowed the discussion of the production of subjectivity in our capitalist society which is influenced by the neoliberal logic.

Keywords: Vocation. Choices. Neoliberalism. Production of subjectivity.


 

 

A EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA E O CURSO PRÉ-VESTIBULAR COMUNITÁRIO DE NOVA IGUAÇU (CPV-NOVA IGUAÇU)

A Idade Média é o período na História em que a universidade surge como decorrência da extensão da irradiação da cultura dos mosteiros para a sociedade, por meio de ações que possuíam cunho religioso e que, por isso, são entendidas como missão ou como ação filantrópica (OLIVEIRA, 2006).

No período das luzes (século XVIII), tendo como contexto as revoluções burguesas e a consequente ascensão social da burguesia ao poder político na Europa, a extensão, restrita a pequenos grupos, teria o caráter de ação revolucionária e o ideário de liberdade.

Somente no século XIX o conceito de extensão universitária aparece em uma série de palestras na Universidade de Cambridge, Inglaterra, em 1867, com enorme repercussão, sendo, assim, institucionalizada como parte componente da estrutura acadêmica (OLIVEIRA, 2006).

Exportada para os Estados Unidos, a extensão, naquele país, associa-se aos ideais de liberdade e de promoção de desenvolvimento social. A extensão norte-americana influencia as instituições de ensino na América Latina, que a associam à dimensão de utilização de técnicas que viabilizavam programas de desenvolvimento.

A ditadura militar que vigorou no Brasil entre 1964 e 1984 caracterizou-se pelo alinhamento da economia nacional ao padrão de desenvolvimento capitalista em vigor nos anos 1960 e 1970, que se traduziu em autoritarismo de Estado, materializado por atos institucionais que, sob a vigência da Doutrina de Segurança Nacional, impunham políticas de segurança pública baseadas na lógica da existência do inimigo interno, em um modelo econômico altamente concentrador de renda. Esse modelo rompeu certo equilíbrio existente entre o modelo político de tendências populistas e o modelo econômico de expansão da indústria vigentes no período anterior ao golpe ao elaborar um conjunto de reformas políticas e institucionais que visavam à reconstrução da nação e à restauração da ordem, e que levaram ao endurecimento do regime instalado, defendido como necessário para o desenvolvimento social e econômico do País. 

Nesse contexto, em 1968, é sancionada a Lei nº 5.540/68 (da reforma universitária), que torna a extensão obrigatória sob a forma de cursos e serviços estendidos à comunidade, mas que não a designa como terceira atividade, além do ensino e da pesquisa.

A Constituição Federal brasileira de 1988, em seu artigo 207, estabelece a indissociabilidade entre o ensino, a pesquisa e a extensão. Em fins da década de 90, com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei nº 9394, de 17/12/1996), a educação superior inclui como um de seus princípios a promoção da extensão, aberta à participação da população, visando à difusão das conquistas e dos benefícios resultantes da criação cultural e da pesquisa científica e tecnológica geradas na instituição.

O Plano Nacional de Extensão Universitária, elaborado em 2000 pelo Fórum de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras e pela Secretaria de Educação Superior do Ministério da Educação e do Desporto, traz em seu bojo a nova concepção da extensão em virtude do fortalecimento da sociedade civil, principalmente nos setores comprometidos com as classes populares, em oposição ao enfraquecimento da sociedade política. Tais transformações possibilitaram a reflexão sobre a elaboração de uma nova concepção de Universidade, baseada na redefinição das práticas de ensino, pesquisa e extensão até então vigentes.

Esse tipo de extensão - que vai além de sua compreensão tradicional de disseminação de conhecimentos (cursos, conferências, seminários), de prestação de serviços (assistências, assessorias e consultorias) e de difusão cultural (realização de eventos ou produtos artísticos e culturais) - aponta uma concepção de universidade em que a relação com a população passa a ser encarada como a oxigenação necessária à vida acadêmica.

Nessa perspectiva, a produção do conhecimento, via extensão, ocorre na troca de saberes sistematizados, acadêmico e popular, tendo como consequência a democratização do conhecimento, a participação efetiva da comunidade na atuação da Universidade e uma produção resultante do confronto com a realidade, a fim de socializar o conhecimento, visando à intervenção na realidade, o que possibilita acordos e ações coletivas entre Universidade e população.

Retira-se da extensão, assim, o caráter de terceira função, de terceira atividade, para dimensioná-la como política, estratégia e metodologia de formação, sinalizando uma universidade voltada para os problemas sociais, com o objetivo de problematização, através das pesquisas básica e aplicada, visando a realimentar o processo ensino-aprendizagem como um todo e a intervir na realidade concreta.

Ao afirmar que a extensão é parte indispensável do pensar e do fazer universitários, assume-se uma luta pela institucionalização dessas atividades, tanto do ponto de vista administrativo como acadêmico, o que implica a adoção de medidas e de procedimentos que redirecionam a própria política das universidades.

Ao reafirmar o compromisso social da Universidade como forma de inserção nas ações de promoção e de garantia dos valores democráticos e de igualdade e de desenvolvimento social, a extensão se coloca como prática acadêmica que objetiva interligar a Universidade, em suas atividades de ensino e pesquisa, com as demandas da sociedade. Segundo Oliveira,

(...) será no contato com a realidade que está fora dos muros da universidade que identificaremos as alternativas criadas nas condições adversas, reformulando maneiras de ver o mundo usando outras lentes que não estão nas salas de aula nem nos laboratórios (2006, p.51).

Nesse contexto, entra em cena, no ano 2006, o CPV - Nova Iguaçu, projeto de extensão universitária, a partir da parceria entre a Universidade Federal do Rio de Janeiro e a Prefeitura de Nova Iguaçu, na baixada fluminense. Com uma carga horária semanal estabelecida, os professores reuniam-se semanalmente com a coordenação geral do CPV para discutir as diretrizes do trabalho a ser realizado, além de uma orientação específica dada pelo docente da universidade, supervisor da disciplina lecionada.

Ainda em 2006, soma-se ao projeto a equipe de Psicologia, que tinha a incumbência de "orientar os alunos na escolha da profissão", e que, além de participar da reunião geral (com o coordenador e todos os bolsistas do projeto), encontrava-se semanalmente no Instituto de Psicologia, como atividade de supervisão.

Por meio da abordagem analítica do vocacional, inicia-se o trabalho com o intuito de questionar o momento da escolha profissional - e, assim, de analisar o próprio conceito de vocação, daí uma analítica do vocacional -, considerando os cruzamentos e as linhas que perpassam tal escolha, o que contraria a lógica instituída de direcioná-los para uma ou outra carreira, e colocando em análise o lugar dos que detêm respostas para as demandas surgidas.

A escolha profissional é entendida, então, como uma entre tantas escolhas que o sujeito realiza no decorrer de sua existência. Neste trabalho, foi possível, ainda, deparar de forma recorrente com alunos ávidos e desejosos de respostas referentes à sua escolha profissional, árdua tarefa que nos propomos realizar.

As atividades no CPV - Nova Iguaçu no ano 2006 foram iniciadas com 45 alunos distribuídos em três turmas respectivamente. Os encontros possuíam uma hora e quinze minutos de duração e ocorriam uma vez por semana. Chegamos ao final do semestre com apenas 39% desse total, ou seja, com dezessete alunos, fato já apresentado como um disparador para a construção destas reflexões.

Percebemos, entretanto, que a evasão cedia lugar a uma problemática maior: a produção de subjetividades presente em nossa sociedade. Nos encontros realizados, os discursos dos que continuavam - como também dos que abandonaram o trabalho - continuavam demandando um trabalho de indicação de carreira. Assim, tal questão tornou-se alvo de nossas investigações e foi ampliada para um contexto maior, já que não a entendíamos como uma especificidade dos alunos do CPV - Nova Iguaçu, mas sim, como reflexo da sociedade na qual estamos inseridos.

 

A ANALÍTICA DO VOCACIONAL

"...eu não quero desconstruir nada! Está tudo prontinho na minha cabeça."
(Depoimento de um jovem de 17 anos - 2006)

A proposta analítica do vocacional1 - delineada na Universidade Federal Fluminense a partir de 1995 como um projeto de extensão universitária - entende o homem sob uma perspectiva sociohistórica, ou seja, como um ser histórico construído ao longo do tempo pelas relações e condições sociais e culturais vividas durante sua existência.

O homem, nessa perspectiva, é concebido como um ser constituído no seu movimento, constituído ao longo do tempo pelas relações e condições sociais e culturais engendradas pela humanidade (BOCK, 2001). Dessa forma, o processo de escolha é entendido como resultado de atravessamentos múltiplos, e, assim, a escolha da profissão não estaria condicionada ao desvelar de um dom ou de uma vocação; não haveria, portanto, algo no interior do sujeito à espera da descoberta.

No Brasil, do início do século XX até a década de 30, é predominante, no campo da orientação vocacional, a abordagem estatística, que prioriza a identificação das aptidões. Esse termo foi citado em orientação vocacional pela primeira vez no ano 1575, na obra Examén de ingénios para las ciências, escrita pelo médico espanhol Juan Huarte, que, no século XVI, afirmava:

(...) para poder orientar, é preciso saber quais são as aptidões que permitem exercer convenientemente as diversas profissões. E, para isso, que classes de talento (do indivíduo) podem-se distinguir e a que ramos das ciências melhor corresponderão (WALTER apud PIMENTA, 1981, p.20).

Frank Parsons, ao criar em Boston, no ano 1908, o primeiro serviço de orientação profissional, propunha que a adaptação do indivíduo ao mundo do trabalho dependeria da harmonia entre suas aptidões e características, por um lado, e as exigências da ocupação, por outro (PIMENTA, 1981).

O início do século XX, imerso nos efeitos da Revolução Industrial e da Revolução Francesa, é um período em que se fez necessária a intervenção de alguns profissionais detentores do saber a fim de se realizar um redirecionamento das pessoas para determinadas profissões.

A abordagem estatística influenciada pelo trabalho de Frank Parsons vigora no Brasil até a década de 70, quando passa a dividir o campo de intervenção com a abordagem clínica, que tem em Bohoslavsky 2 seu maior expoente. Esse autor constrói uma intervenção em orientação vocacional que entende o homem como um sujeito de escolhas, e não como um objeto a ser direcionado passivamente. O sujeito é inserido de forma mais ativa no processo, e o conceito de aprendizado suprime a ideia de aptidão inata.

Em um segundo momento, Bohoslavsky repensa a liberdade de escolhas, à medida que passa a dar ênfase ao sistema social como um fator que influencia a escolha da profissão. Amplia a problemática da escolha profissional para todo indivíduo (e não somente para o adolescente) que em algum momento da vida tivesse dificuldades em escolher. Preocupa-se, desse modo, em construir representações do sentido do trabalho dado pelo mundo capitalista; entretanto, não consegue se desprender da ideia de possibilitar ao sujeito uma identidade vocacional.

Dessa forma, segundo Frotté (2001),

Tanto a intervenção estatística, com o seu desvendamento de aptidões, quanto a clínica, mais voltada para o indivíduo e seus sentimentos, preocuparam-se em adequar as potências humanas a um mercado de trabalho, num processo de acomodação e controle para que as escolhas fossem acertadas e a realização profissional fosse atingida. Aliadas à lógica do capital, reforçaram modos de vida completamente separados de suas potências singulares de ver e sentir o mundo (p. 38).

A clientela que participa de um trabalho de orientação vocacional, comumente, traz consigo concepções enrijecidas e cristalizadas, que ficam à margem de questionamentos e indagações, já que são entendidas como verdades absolutas que, disseminadas na sociedade, visam a respaldar um dado saber.

As intervenções da analítica do vocacional (AV) ocorreram no sentido de desestabilizar esses pontos endurecidos e de permitir movimentos de invenção, desconstruindo ideias naturalizadas que comumente respaldam determinados discursos.

Ao apresentar a AV e suas especificidades aos alunos do curso, identificamos um estranhamento nos mesmos, visto ser nossa proposta contrária ao que, hegemonicamente, foi instituído como prática de orientar vocações.

O esclarecimento de que ao final do trabalho não indicaríamos uma feliz e promissora carreira era motivo de grande alvoroço entre os alunos, seguido de mal-estar generalizado ao convite de produzir novos olhares em relação ao processo de escolhas, que não estaria restrito à escolha de uma profissão. Nem todos se mostraram receptivos à proposta, que se desdobraria em uma postura crítica e autônoma frente às exigências de nossa complexa sociedade.

Iniciado o trabalho, muitos evadiam durante o percurso. Acometida por uma angústia, e em virtude da inquietação sucedida, passamos a problematizar nossa atuação e a questionar os motivos que poderiam estar contribuindo para o abandono do trabalho por parte dos alunos.

Com referência na análise institucional 3, entende-se um analisador como aquilo que permite revelar uma estrutura, provocando-a e colocando-a em análise, mostrando algo que permanecia escondido, desorganizando, de certa forma, o organizado e dando novo sentido a fatos conhecidos (ABBATE, 2004).

Assim, o fenômeno da evasão - como um analisador - possibilitou e tem possibilitado a reflexão sobre a emergência da prática de orientar vocações em uma sociedade capitalista que, atrelada à lógica neoliberal, se fundamenta nos pressupostos do individualismo, da igualdade e da liberdade evidenciando inúmeras contradições que se refletem na maneira de o homem estabelecer relações, de criar vínculos sem, contudo, se dar conta dos paradoxos que permeiam nossa realidade econômica, política e social.

 

A PRÁTICA DE ORIENTAR VOCAÇÕES: UMA DEMANDA CONSTRUÍDA SOCIALMENTE

"...não existem necessidades básicas naturais (...).
A noção da necessidade é produzida, assim como a demanda é modulada."
(BAREMBLITT, 1994)

Os séculos XVIII e XIX foram marcos de profundas transformações sociais, políticas e econômicas no Ocidente ao inaugurar o capitalismo, que trouxe a necessidade de uma reconfiguração das relações de poder na sociedade.

A demanda por orientar vocações foi uma construção social em decorrência das exigências da nova ordem socioeconômica que emergiu no Ocidente na metade do século XVIII devido às Revoluções Industrial e Francesa.

Os princípios da individualidade, da igualdade e da liberdade contidos na Declaração dos Direitos do Homem abrem precedentes para que o indivíduo opte pelo que realmente deseja. Ocorre, assim, um acentuado direcionamento para algumas profissões (dentre elas, Medicina e Direito) em detrimento de outras, sendo urgente a intervenção de alguns profissionais (detentores do saber) que, utilizando-se de alguns instrumentos como testes de inteligência e habilidades, atribuem ao indivíduo uma ou outra característica que o habilitará ou não para uma dada profissão. "É necessário equilibrar as demandas que emergem nesse novo contexto sócio-econômico" (PIMENTA, 1981, p. 23).

O modo de produção capitalista passou a condicionar a distribuição das pessoas para diferentes atividades produtivas de acordo com a classe social a que pertenciam. A ideia do homem certo no lugar certo entra em vigor, cabendo à orientação vocacional sujeitar o homem a um trabalho produtivo que demandasse mão de obra qualificada.

Segundo Ferreti (1992), "a orientação vocacional desempenha um papel de sujeição do homem a um trabalho produtivo" (p. 34). Assim, é possível entender que a prática de orientar vocações foi constituída para dar conta das necessidades do novo mundo de trabalho que emergia na sociedade.

Foucault (1988) utiliza o conceito de dispositivo definindo-o como um tipo de formação que, em determinado momento histórico, tem a função principal de responder a uma urgência. Segundo ele: "De natureza essencialmente estratégica e dominante (...), o dispositivo sempre inscrito em um jogo de poder liga-se a configurações de saber que dele nascem, mas que igualmente o condicionam" (p. 244).

Arriscamos afirmar ter sido a orientação vocacional um dispositivo utilizado por uma classe detentora de conhecimento para lidar com as inúmeras necessidades de cunho essencialmente produtivo e capitalista que emergiam na sociedade, ou seja, um saber psicológico datado em virtude de múltiplas práticas, destacando que o saber em questão não existiu antes das práticas que o produziram, mas foi correlato dessas práticas, que não funcionam como originárias, mas coengendradas; são, portanto, "práticas atravessadas por outras práticas, que criam objetos e saberes, que se fazem na história, sendo constantemente atualizados conforme forças desejantes se conjuguem e se façam" (FROTTÉ, 2001, p.16).

A orientação vocacional, em sua emergência, buscou fazer com que o jovem alcançasse uma identidade profissional, algo que pudesse torná-lo reconhecido como sujeito social, processo de contenção de forças múltiplas aprisionadas em uma dada estrutura, em uma única forma (ou fôrma) profissional.

O indivíduo vivencia a necessidade de encontrar o caminho ou a escolha certa de maneira angustiante e, nessa condição, sua decisão sobre algo que poderá se transformar ou que poderá ser repensado em outro momento (se necessário) não é bem-vinda, já que traz consigo o peso de ser uma escolha definitiva.

A emergência da prática de orientar vocações como um saber psicológico destituiu o sujeito de todo envolvimento no processo de escolha profissional, estabelecendo, até os dias atuais, relações de força e poder que os condicionam sempre a eximir-se de suas responsabilidades e a delegá-las a outros.

Ao nos depararmos com a resistência dos alunos em envolver-se na construção de suas escolhas, trabalhamos no sentido de discutir as produções subjetivas de nossa sociedade capitalista, sinalizando a ideia de estarem a serviço de um controle social que definirá a maneira de cada um perceber o mundo.

 

A PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADE CAPITALÍSTICA ATRELADA À LÓGICA NEOLIBERAL INCIDINDO NO CPV-NOVA IGUAÇU

O sistema capitalista, para manter sua hegemonia, vem reorganizando as formas de produção e consumo, em movimentos aparentemente paradoxais, ora alimentando fronteiras comerciais, ora fortalecendo-se através de mega-blocos econômicos, num misto de liberalismo e protecionismo. Não nos iludamos: as mudanças pretendidas, inclusive aquelas defendidas por organismos internacionais, tem o objetivo de fortalecer as nações ricas e submeter os países pobres à dependência, mesmo que disfarçada, num papel de consumidores em potencial das tecnologias desenvolvidas nos (ou pelos) primeiros (OLIVEIRA, 2006).

O conceito de subjetividade, tal como proposto por Guattari (1987), é definido como formas de perceber e ver o mundo sob o efeito da produção de determinados olhares fabricados pela conexão, pelo agenciamento, por instâncias extrapessoais a infrapessoais. Guattari apresenta a ideia de CMI (capitalismo mundial integrado), que é uma denominação proposta às formas do capitalismo contemporâneo "porque [o CMI] potencialmente colonizou o conjunto do Planeta, porque atualmente vive em simbiose com países que historicamente pareciam ter escapado dele (os países do bloco soviético, a China) e porque tende a fazer com que nenhuma atividade humana, nenhum setor de produção fique fora do seu controle" (p. 211). Assim, entende-se que essas produções niveladas em escala mundial sejam capitalísticas, referindo-se a modos de produção que, independentemente de fazerem parte de sociedades diferentes, funcionam segundo a mesma lógica moduladora que produz a mesma economia "libidinal-política" (p. 15).

Baremblitt afirma que, em uma sociedade capitalista, os indivíduos produzem um saber acerca do próprio funcionamento dessa sociedade como objeto de estudo. São gerados assim, profissionais, intelectuais e experts conhecedores dessa estrutura e do processo dessa sociedade em si.

O saber acumulado pela sociedade durante os anos de sua existência, a partir do momento em que emerge o saber científico e tecnológico, é relegado e colocado em segundo plano, passando o saber dito científico a gerir e a condicionar a existência humana.

As sociedades perdem a capacidade de saber de que precisam, "demandam e aspiram achando que necessitam do que os experts dizem que necessitam e que pedem o que querem e como querem, mas na verdade pedem o que lhe inculcam que devem pedir" (BAREMBLITT, 1994, p.17).

Guattari e Rolnik (1996), discorrendo sobre a temática da produção de subjetividade em uma sociedade capitalista, viabilizam discussões acerca dos papéis que o sujeito poderá assumir ao longo da vida, apontando a possibilidade da emergência de desvios, de linhas de fuga que propiciarão a ocorrência de processos de singularização que permitirão a coexistência de singulares maneiras de ser e de estar no mundo.

O conceito de subjetividade 4 opera através de processos de subjetivação, de criação de modos de existência sempre circunstanciais e provisórios, através de jogos estratégicos os mais diversos, e cria territórios existenciais, estilos de vida. Essa noção não remete a qualquer interioridade que se oponha a uma exterioridade, e nisso difere das instâncias fixas de eu, de personalidade, de intimidade e de identidade (MOREIRA, 2006). Ainda para a referida autora, subjetividade sugere emergência, e, assim, remete a movimento, e não a um estado. Em torno dessa emergência, haverá sempre um contorno que não é fixo, mas funcional, variando de acordo com as políticas de subjetivação, que intervém coletivamente na realidade. Nesse sentido, as fragmentações históricas são pontos de apoio, entre as quais são tecidos arranjos demonstrativos dos mecanismos de produção de políticas cognitivas hegemônicas, ou seja, em cada época, torna-se possível questionar quais aspectos atravessam os processos de subjetivação, que tipos de relações emergem a partir dos seus agenciamentos e que práticas são legitimadas nesses contextos.

Considerando algumas proposições de Pelbart (apud Moreira, 2006), não se pode pretender realizar qualquer análise da constituição da subjetividade sem vinculá-la ao processo de consolidação do capitalismo - dispositivo político gerenciador das formas hegemônicas de produção (que é sempre de subjetividade) utilizando o termo economia do desejo, de Guattari e Rolnik (1996), que seria o modo como somos levados a investir nessa máquina5 produtora de subjetividades serializadas, pautadas em padrões capitalísticos, individualizantes, operadores semióticos, como mecanismos de sobrecodificação processado pelo modo de produção capitalista. Em outras palavras, o capital é um instrumento que opera equivalências ao fazer uso de um determinado código, de modo que este se torne uma referência absoluta. Nas palavras de Guattari: "A ordem capitalista pretende impor aos indivíduos que vivam unicamente num sistema de troca, uma traduzibilidade geral de todos os valores para além dos quais tudo é feito, de modo que o menor de seus desejos seja sentido como associal, perigoso, culpado" (1987, p. 202).

Foucault (1988 apud MOREIRA, 2006), na pesquisa realizada sobre a consolidação do Estado moderno, faz a apresentação de dois dispositivos, a saber: técnicas de individualização (valorização da interioridade como essência) e totalização (modulação das subjetividades através do controle das massas), que passaram a ser concomitantemente utilizadas no intuito de controlar todos e cada um simultaneamente.

Foucault (1988), ao cartografar processos de submissão, utilização, transformação e aperfeiçoamento dos sujeitos como forma de domesticação e alienação, utiliza a ideia da produção de corpos dóceis. É possível fazer um paralelo dessa ideia com o conceito de homogeneização de subjetividades trazido por Guattari e Rolnik (1996). Os autores afirmam que, nas sociedades capitalísticas, existe um movimento pelo qual os indivíduos são reduzidos a nada mais do que engrenagens concentradas sobre o valor de seus atos, valor que responde ao mercado capitalista no qual "(...) a tendência atual é igualar tudo através de grandes categorias unificadas que impedem os processos de singularização, e em que toda criatividade no campo social e tecnológico tende a ser esmagada" (p. 48). Há, dessa forma, a necessidade de assegurar um tipo específico de indivíduo, capaz de adaptar-se ao aparelho de produção, não somente sujeitando-se a ele mas também, e principalmente, tornando-se cada vez mais parte do próprio processo, aumentando constantemente sua utilidade através de uma atuação direta na formatação dos corpos, que se mostrava tanto mais eficiente quanto mais sutil. Isso significa que novos mecanismos de moldagem subjetiva se instituíam pelo viés da socialização do corpo como força de produção.

Foucault chamou de sociedades disciplinares essas novas formações sociais nas quais as relações de poder eram baseadas em tipos variados de confinamento, das escolas às casernas, passando pelos hospitais, fábricas, prisões e pela própria família, a fim de que todos os sujeitos pudessem estar de acordo com as padronizações exigidas pela norma, isto é, pelas definições naturais de normalidade.

Já na fase atual do capitalismo globalizado, tanto o poder central do Estado quanto a definição de sujeição encontram-se fragilizados diante de uma nova racionalidade. O controle deixa de se exercer somente pela disciplinarização dos corpos, passando a incidir também sobre a vida, o que o torna ainda mais sutil. Os confinamentos entram em um processo de adequação, permitindo uma pseudoabertura. Os moldes dividem seu espaço com a modulação, na qual a ideia de movimento pode até levar a uma sensação de liberdade de escolha, mas que, no fundo, remete a estratégias invisíveis de captura cujos mecanismos atuam menos sobre o tempo em que se passa no exercício de cada atividade e incidem de forma mais direta sobre o ato mesmo de estar vivo, já que o controle passa a se dar o tempo todo.

Dessa forma, também os processos de normalização subjetiva passam por transformações profundas sempre atreladas aos movimentos do capitalismo. A recente passagem do capitalismo de produção para o capitalismo de consumo é vivenciada na atualidade, e a diferença entre eles está no foco. De acordo com Bauman (2001 apud MOREIRA, 2006), se antes os indivíduos deviam ter tanto capacidade quanto vontade de desempenhar o papel de produtores, hoje esse papel não está mais disponível para quem o queira desempenhar. Não há mais necessidade de mão de obra industrial em larga escala; nessa nova sociedade informada, informatizada e empresarial, importa que haja indivíduos com capacidade e vontade de desempenhar apenas o papel de consumidores.

Diante do exposto, entendemos o CPV - Nova Iguaçu como um locus onde foi possível discutir e problematizar algumas questões presentes em nossa complexa sociedade capitalista e neoliberal, incitando a emergência de processos de singularização à medida que nos apropriamos da responsabilidade que temos de não aceitar passivamente o que é oferecido, enfim, fazendo micropolítica, tentando agir de modo a fazer com que os processos de singularização pudessem emergir e não serem neutralizados.

Silva (2006), ao relatar os objetivos de um curso pré-vestibular comunitário - e no caso em questão, o CPV-Maré - registra que seus idealizadores priorizam tanto a aprovação do maior número possível de estudantes quanto a formação de um novo ator social, ou seja, de um indivíduo oriundo das classes populares que, ao adquirir o saber formal, transforma-se em um agente efetivo da transformação social, capaz de articular o saber, a reflexão e a vivência e, por isso mesmo, apto a produzir uma transformação social efetiva.

Assim, a equipe de Psicologia apostou na criação de desvios, de linhas de fuga capazes de fortalecer processos de singularização, contrariando a lógica estabelecida de homogeneizar subjetividades e alienar sujeitos. Para Deleuze e Parnet (1998), traçar linhas de fuga é o mesmo que ser estrangeiro em sua própria língua. É lançar um olhar diferenciado capaz de abalar seu próprio modelo e de produzir acontecimentos no cotidiano vivido, afetando o sistema e impedindo-o de ser homogêneo, propiciando encontros que seriam, a priori, o em-si; onde ainda, de acordo com Bicalho (1998), fuga não significará renúncia, pelo contrário, será, antes de mais nada,

um fazer fugir, uma atitude ativa capaz de produzir um sair dos eixos, estes que, em um plano cartesiano, são meramente uma abscissa e uma ordenada que não se afetam, não produzem encontros, nem agenciamentos. Sendo necessário, subverter a ordem, fazer passar fluxos que produzem rupturas e efeitos de desterritorializações na ordem estabelecida (p.35).

Apostamos, assim, nas formas singulares e atuantes de ser e estar no mundo propondo um posicionamento crítico a um sistema que sutil e hegemonicamente tem domesticado corpos, oprimido e alienado sujeitos. Como afirmam Guattari e Rolnik (1996): "o produto da subjetivação capitalista são os sistemas de conexão direta entre as grandes máquinas produtivas, as grandes máquinas de controle social e as instâncias psíquicas que definem a maneira de perceber o mundo" (p. 35). E, como ressalta Forrester (1997), "a capacidade de pensar é vista como uma atividade subversiva e temida. (...) Daí, a luta insidiosa, cada vez mais eficaz, hoje mais do que nunca, contra o pensamento. Contra a capacidade de pensar" (p. 47 - grifo da autora).

Finalizamos aqui citando João Cabral de Melo Neto, em Morte e vida Severina: "Qual parte nos cabe neste latifúndio"? Essa, e outras perguntas, não podem deixar de ser feitas cotidianamente. Talvez seja essa uma possível aposta no sentido de uma formação de psicólogos que não atenda, sem colocar em análise, as demandas que são endereçadas a um ortopedista social cujas funções sejam dizer ao outro como ele deve sentir, viver e escolher. E até morrer.

 

NOTAS

1 Tal experiência é relatada em Frotté, Mônica Dreux. Analítica do vocacional: percursos e derivas de uma intervenção. Dissertação (mestrado em Psicologia). Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2001. O termo análise do vocacional também é aí utilizado, sendo citado algumas vezes no artigo.
2 Como não é nossa intenção aprofundar tal metodologia, para maiores detalhes, sugerimos consultar Bohoslavsky, Rodolfo, Orientação vocacional: a estratégia clínica. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1977.
3 Propõe a deflagração, nas comunidades, nos coletivos, nos conjuntos de pessoas, de processos de autoanálise e de autogestão. Principais expoentes: George Lapassade e René Lourau (BAREMBLITT, 1994).
4 O modo pelo qual os indivíduos vivem a subjetividade oscila entre dois extremos: uma relação de alienação e opressão, na qual o indivíduo se submete à subjetividade tal como a recebe, ou uma relação de expressão e criação, na qual o indivíduo se reapropria dos componentes da subjetividade produzindo um processo que se chamaria singularização. São momentos, portanto, dissociados de uma suposta essência reacionária ou revolucionária (GUATTARI; ROLNIK, 1996).
5 A diferenciação entre máquina e mecânica proposta por Guattari ressalta que a primeira está sempre em processo de interação com outras máquinas, sejam elas técnicas, teóricas, sociais, estéticas, etc. É importante compreender que elas interagem, permitindo sempre a emergência de linhas de potencialidades (GUATTARI; ROLNIK, 1996).

 

REFERÊNCIAS

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Recebido em: 24 de novembro de 2008.
Aceito em: 27 de julho de 2009

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