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Perspectivas em análise do comportamento

versión On-line ISSN 2177-3548

Perspectivas vol.7 no.1 São Paulo  2016

https://doi.org/10.18761/pac.2015.037 

ARTIGO

DOI: 10.18761/pac.2015.037

 

Análise de fenômenos sociais em um jogo on-line para múltiplos jogadores

 

Social phenomena analysis in a Massive Multiplayer On-line Game

 

Análisis de fenómenos sociales en un juego en línea com jugadores múltiples

 

 

Artur Luís Duarte Diniz NogueiraI, II,*; Angelo Augusto Silva SampaioI, III,**

I Universidade Federal do Vale do São Francisco
II Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
III Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O desenvolvimento de métodos e instrumentos para o estudo do comportamento social e da cultura ainda é um desafio para a Análise do Comportamento. Este trabalho sugere uma ferramenta ainda pouco explorada: os jogos on-line para múltiplos jogadores. Apresentamos uma análise interpretativa de algumas contingências e metacontingências no jogo World of Warcraft que parecem selecionar comportamentos e interações entre jogadores. E destacamos possibilidades para o estudo de tais fenômenos utilizando esse jogo ou similares.

Palavras-chave: Metacontingência, fenômenos sociais, Massive Multiplayer On-line Game, jogo on-line.


ABSTRACT

The development of methods and instruments for the study of social behavior and culture is still a challenge for Behavior Analysis. This paper suggests a rarely explored tool: massive multiplayer on-line games. We present an interpretative analysis of some contingencies and metacontingencies in the game World of Warcraft that seems to select behavior and interactions among players. And we highlight possibilities for the study of such phenomena using this game or similar ones.

Key-words: Metacontingencies, massive multiplayer on-line game, on-line game.


RESUMEN

El desarrollo de métodos y instrumentos para la investigación de la conducta social y de la cultura aún es un desafío para el análisis conductual. Este trabajo indica una herramienta aún poco explotada: los juegos on-line para múltiplos jugadores. Presentamos un análisis interpretativo de algunas contingencias y metacontingencias existentes en el juego World of Warcraft que parecen seleccionar conductas e interaciones entre jugadores. Y destacamos oportunidades para el estudio de tales fenómenos a partir de la utilización de este juego u similares.

Palabras clave: Metacontingencia, fenómenos sociales, Massive Multiplayer On-line Game, juego on-line.


 

 

Jogos de Computador OnLine para Múltiplos Jogadores (MMOGs) e o Estudo de Fenômenos Sociais

Com o desenvolvimento da informática e da tecnologia da informação e a expansão do acesso à internet, um novo espaço de convivência social foi criado e tem se fortalecido: o mundo virtual de jogos de computador on-line para múltiplos jogadores (Massive Multiplayer On-Line Games, MMOGs). Esses jogos suportam grandes quantidades de jogadores e contam com inúmeras possibilidades de interação social, tornando o ambiente bastante complexo e permitindo interações semelhantes às face-a-face (Castronova, 2006). World of Warcraft (da Blizzard Entertainment Co.), por exemplo, é um MMOG atualmente com mais de 10 milhões de usuários em todo o mundo, sendo o primeiro lugar em assinaturas no segmento (Bassi, 2014). Nesse jogo, cada jogador pode criar um ou mais personagens e participar de um mundo virtual interagindo – principalmente através de batalhas – com os demais personagens e com monstros do jogo (controlados pelo computador).

MMOGs como World of Warcraft podem ser um instrumento para o estudo de fenômenos sociais. Balicer (2007), por exemplo, destacou como ambientes virtuais como esse podem ser úteis no estudo da disseminação e controle de doenças infecciosas. Balicer analisou a disseminação de uma "infecção" virtual em World of Warcraft à luz da epidemiologia, destacando suas similaridades com epidemias reais. De acordo com esse autor, os programadores desse jogo introduziram em 2005 uma nova criatura virtual que podia causar uma "doença" em seus oponentes. A doença causava dano ao personagem infectado e ainda podia se espalhar para outras criaturas (controladas por computador) e personagens (controlados por jogadores) que se encontrassem próximos. Esses personagens infectados, por sua vez, podiam transmitir a infecção para outros personagens, o que acabou criando um análogo de epidemia. Balicer elencou alguns fatores análogos aos do mundo real que podem ter contribuído para a disseminação da infecção virtual. Um deles foi a transmissão da infecção para animais controlados pelo computador, de modo análogo à transmissão de doenças para e por animais no mundo real. Outro fator foi a alta velocidade com a qual um personagem podia chegar a qualquer lugar do mapa, analogamente às possibilitadas por viagens de avião no mundo real.

Castronova (2006) também salientou a possibilidade do uso de MMOGs como ferramenta para estudar fenômenos sociais. Ele relatou dois quase-experimentos com jogos on-line que testaram aplicações da Teoria dos Jogos à coordenação de grandes números de pessoas. No primeiro deles, Castronova analisou as áreas de batalha escolhidas pelos jogadores em Dark Age of Camelot (da Mythic Entertainement). Os programadores desse MMOG delimitaram três áreas nas quais grupos de jogadores podiam se enfrentar para ganhar prêmios. Contudo, o autor observou que uma das três áreas para batalha era a favorita entre os jogadores. Castronova atribuiu essa preferência à geografia da área preferida, que é um campo aberto, em contraste com as outras áreas mais acidentadas; e ao fato de que, se todas as três áreas fossem frequentadas pelos jogadores, o número de batalhas seria reduzido, já que os jogadores estariam distribuídos pelas três áreas ao invés de em uma só.

O outro quase-experimento relatado por Castronova (2006) investigou a seleção pelos jogadores de locais de encontro para a venda de itens virtuais. Em EverQuest (da Sony Online Entertainment), o autor entrevistou jogadores que se conectavam a 40 servidores diferentes, perguntando em que lugar eles iriam para comprar ou vender algum item. Cada servidor reproduz um mesmo mundo virtual construído pelos programadores, mas com uma população diferente de jogadores. Em todos os servidores, no mínimo 65% das respostas dos jogadores convergiram, isto é, em cada servidor, a maioria dos jogadores ia a um mesmo local vender e comprar itens, demonstrando a existência de pelo menos um ponto de coordenação em comum. De acordo com Castronova, a escolha do local do ponto de coordenação teria sido afetada pela época de inauguração do servidor. Alguns servidores foram abertos à época do lançamento do jogo, enquanto outros foram criados após uma expansão do jogo que acrescentava uma nova área com maiores facilidades para a compra e venda de itens, o que pode ter levado essa nova área a se tornar um ponto de coordenação entre os jogadores dos servidores mais recentes.

Castronova (2006) ainda sugere que a utilização de MMOGS talvez seja a única possibilidade de se conduzir experimentos com grandes quantidades de participantes – caso o experimentador possa manipular determinadas variáveis dos mundos virtuais dos jogos e observar seus efeitos de forma controlada.

 

O Estudo de Fenômenos Sociais pela Análise do Comportamento

Na Análise do Comportamento, as ações de um indivíduo só podem ser adequadamente compreendidas analisando-se suas relações com o ambiente. Como a maior parte do ambiente humano é composta por outros indivíduos, o comportamento social e outros fenômenos sociais tornam-se obrigatoriamente parte do seu objeto de estudo (Andery, Micheletto & Sério, 2005; Guerin, 1994; Sampaio & Andery, 2010; Skinner, 1953; Vichi, Andery & Glenn, 2009). Para estudar fenômenos sociais, contudo, outros conceitos – além da contingência tríplice, empregada na análise do comportamento individual – podem ser necessários, entre eles: contingências entrelaçadas, prática cultural e metacontingência (Andery et al., Sampaio & Andery; Vichi et al.).

Tratar dos comportamentos de mais de um indivíduo demanda a descrição de mais de uma contingência. Se os indivíduos interagem entre si, torna-se necessário além disso, a análise de contingências entrelaçadas, nas quais a resposta de um indivíduo produz estímulos para o comportamento de outro. De acordo com Sampaio e Andery (2010), as contingências entrelaçadas são a unidade de análise utilizada para tratar do comportamento social. Para esses autores, um comportamento seria social desde que: (1) fosse operante, (2) tivesse suas consequências mediadas por outro sujeito e (3) tais consequências fossem produzidas por comportamentos operantes de outros sujeitos.

Outro tipo de fenômeno social seria a prática cultural, que Sampaio e Andery (2010) definiram como "a propagação de comportamentos aprendidos similares por sucessivos indivíduos" (p. 188). Suas características definidoras seriam: envolver principalmente comportamentos operantes, embora não se excluam respondentes condicionados; tais comportamentos serem emitidos por mais de uma pessoa e com funções semelhantes; serem propagados de indivíduo para indivíduo através de processos de aprendizagem; e serem comportamentos sociais (Sampaio & Andery, 2010). Ao lidar com práticas culturais mais complexas, podemos estar falando do nível cultural de seleção por consequências, ao invés de apenas do nível ontogenético (Glenn, 2003, 2004).

Por fim, outro conceito que analistas do comportamento têm empregado ao analisar fenômenos sociais é o de metacontingência, caracterizado por contingências entrelaçadas que resultam em algo além das consequências individuais dos comportamentos de cada sujeito: um produto agregado gerado pelas respostas dos indivíduos em conjunto (Glenn, 2004). O produto agregado seria o critério a partir do qual uma consequência cultural seria produzida. Essa consequência retroage sobre o entrelaçamento aumentando a probabilidade de que ocorra novamente (Andery et al., 2005; Glenn, 2004; Vichi et al., 2009). Esse efeito caracterizaria um tipo de seleção por consequências no nível cultural.

Muitos analistas do comportamento têm realizado estudos teóricos ou interpretativos sobre fenômenos sociais. Glenn e Malott (2004), Malott e Glenn (2006) e Todorov, Moreira e Moreira (2004), por exemplo, discutiram e propuseram diferenciações conceituais relacionadas a intervenções sociais. Na última década, analistas do comportamento também desenvolveram um programa de estudos experimentais de práticas culturais (e.g., Baum, Richerson, Efferson & Paciotti, 2004) e metacontingências no laboratório (e.g., Borba et al., 2014; Ortu, Becker, Woelz & Glenn, 2012; Tadaiesky & Tourinho, 2012; Sampaio et al., 2013; Vichi et al., 2009). O foco principal de tais estudos tem sido os efeitos da seleção por metacontingências – com exceção do de Baum et al., que analisou a transmissão de práticas culturais entre os indivíduos. Alguns autores realizaram estudos experimentais avaliando o efeito de variáveis análogas às estudadas no comportamento operante, como reforçamento negativo (Saconatto & Andery, 2013), estímulos discriminativos (Vieira, 2010), procedimentos de aproximações sucessivas (Cavalcanti, Leite, & Tourinho, 2014) e variabilidade (Dos Santos, 2011).

Apesar da larga produção teórica e da diversidade de estudos realizados pelos analistas do comportamento sobre fenômenos sociais, inovações metodológicas ainda parecem ser imprescindíveis para avançar a área. Nesse sentido, os MMOGs podem fornecer possibilidades promissoras.

 

Jogos de Computador OnLine para Múltiplos Jogadores (MMOGs) e o Estudo de Fenômenos Sociais pela Análise do Comportamento

O presente trabalho sugere o uso de MMOGs para o estudo de fenômenos sociais por analistas do comportamento. Para facilitar a exploração dessa ferramenta metodológica pela Análise do Comportamento apresentamos algumas interpretações de contingências e metacontingências presentes no MMOG World of Warcraft. A interpretação é um passo inicial na direção de análises experimentais ou quase-experimentais e parte de conceitos e princípios previamente testados por análise experimental (Donahoe, 1993, 2004; Tourinho & Sério, 2010).

As análises apresentadas a seguir foram elaboradas principalmente a partir de observações realizadas jogando World of Warcraft. Um dos autores jogou World of Warcraft, por lazer, ao longo de quatro anos, durante cerca de 20 horas por semana, conseguindo fazer seu personagem atingir o nível máximo possível no jogo à época (nível 80). Apresentaremos interpretações sobre contingências e metacontingências essenciais para todo o funcionamento do jogo e, em mais detalhes, sobre contingências e metacontingências presentes em uma parte específica do jogo (em uma missão para grandes grupos). Para realizar essa análise da parte específica do jogo, um dos autores participou ao menos 15 vezes dessa parte. Isso permitiu, além de uma análise mais detalhada das contingências e metacontingências, a observação da recorrência de comportamentos e dos entrelaçamentos das contingências descritos adiante.

Também foram consultados sites mantidos por jogadores que disponibilizam estratégias para derrotar os monstros do jogo e completar missões. Tal recurso foi utilizado para um melhor entendimento das contingências à que cada jogador estava submetido, já que, apesar de conseguir ver toda a batalha do ponto de vista de um personagem, durante o jogo não se tem acesso a tudo que cada jogador está fazendo a cada momento. Os conteúdos disponibilizados pelos jogadores nesses sites são descrições do que cada jogador faz durante o jogo e, desta forma, permitem inferências sobre as contingências e metacontingências em vigor baseadas nas experiências dos jogadores.

 

Algumas Contingências e Metacontingências Gerais do MMOG World of Warcraft

Diversos aspectos do mundo virtual de World of Warcraft dispõem contingências para o comportamento individual dos jogadores ou metacontingências para entrelaçamentos entre diversos jogadores.

Os Personagens e seus Atributos

Ao se jogar pela primeira vez World of Warcraft, é necessário criar um personagem. Um personagem recém-criado não tem nenhum ponto de experiência e está no nível 1. Esses pontos permitem o acesso a novas áreas do jogo e a equipamentos e melhorias para o personagem do jogador. Os requisitos para ganhar pontos de experiência exemplificam contingências individuais. Para ganhar pontos, o jogador pode derrotar criaturas controladas pelo computador (monstros) ou completar missões individuais (quests). Ao se ganhar uma quantidade pré-definida de pontos de experiência, o personagem aumenta de nível, quando então a quantidade necessária de pontos de experiência para passar para o nível seguinte aumenta – um esquema de reforço progressivo. À época da observação e análise, o nível máximo de experiência era 80 e somente nesse nível o personagem podia acessar todas as áreas do mundo virtual. Quando é lançada uma nova expansão (um pacote com novas áreas, equipamentos e outras modificações no jogo), o nível máximo também aumenta.

Todos os personagens acumulam, além de experiência, pontos relativos a outros atributos, tais como:

stamina (resistência) – o máximo de pontos de vida que o personagem pode ter;

threat (ameaça) – a probabilidade do persona gem ser atacado por um monstro ao invés dos outros personagens próximos;

defense rating (grau de defesa) – a probabilidade do personagem se defender do ataque dos adversários;

intellect (inteligência) – a quantidade de ener gia mágica de cada personagem, necessária para utilizar magias;

strength (força) – a quantidade de pontos de vida subtraída do adversário a cada ataque com armas;

• e spell power (poder de magia) – a quantidade de pontos de vida retirados pelos ataques com magia ou recuperados pelas magias de cura.

A quantidade de pontos em cada atributo modifica as contingências em vigor para cada personagem. Durante a passagem de nível de experiência dos personagens os pontos dos demais atributos aumentam de modo pré-definido. Entretanto, existem outras formas de se melhorar atributos específicos, como ao escolher itens ou quais itens melhorar (e.g., com magias). Estes atributos não interferem diretamente na resposta emitida, mas sim na magnitude e/ou esquema das consequências produzidas. São essas mudanças na magnitude e/ou esquema que parecem selecionar as classes de respostas de escolher itens e magias para aumentar os pontos de determinado atributo do personagem.

Ao criar um personagem, o jogador escolhe entre uma de dez classes de personagens, que implicam em restrições aos comportamentos emitidos pelo personagem (e.g., formas de atacar ou de curar), aos tipos de itens que pode usar (e.g., roupas e armas) e à quantidade de pontos possível em cada atributo do personagem. Cada classe de personagens tem um conjunto de atributos de maior valor, o que aumenta a probabilidade de que certas classes exerçam de modo mais efetivo certas funções nas missões em grupo.

As Missões em Grupo (Raids)

Muitas metacontingências do jogo estão em vigor em missões que só podem ser completadas por grupos de jogadores. Essas raids – termo utilizado tanto para a missão em si quanto para o grupo de jogadores formado para realiza-la – acontecem em áreas específicas dentro do ambiente virtual e seu objetivo é a derrota de monstros (controlados por computador) mais fortes que os demais monstros do jogo. De acordo com o sistema do jogo, a derrota de um monstro consiste na redução dos seus pontos de vida a zero. Os itens que são ganhos como prêmio pela derrota dos monstros são melhores e exclusivos dessas raids.

O acesso a essas missões é exclusivo para grupos com no mínimo dois personagens que estejam no nível máximo do jogo. As missões podem ser acessadas em diferentes níveis de dificuldade e por grupos com diferentes quantidades de jogadores. O nível de dificuldade da missão é definido pelo tamanho do grupo e pelo modo de jogo selecionado pelos jogadores (heroic ou normal). Quanto maior a dificuldade, maior o nível de coordenação exigido entre os jogadores. Cada personagem pode matar os monstros de uma raid apenas uma vez por semana, o que torna mais escassa a disponibilidade de reforçadores relacionados a esse tipo de atividade no jogo.

Os monstros a serem derrotados em missões para grupos são programados para emitirem ataques específicos, ou seja, são programadas contingências que exigem respostas e entrelaçamentos específicos do grupo para derrotar o adversário, a principal consequência dessas missões. As exigências para se completar uma missão parecem programadas para reforçar diferencialmente em aproximações sucessivas os comportamentos dos jogadores necessários para derrotar o monstro principal da missão. Para acessar a missão, por exemplo, ao menos alguns personagens precisam estar no último nível de experiência, implicando a existência de um extenso repertório de batalha desenvolvido pela exposição às contingências em vigor durante a "evolução" do personagem. Além disso, após ter acesso à missão, os personagens irão batalhar primeiramente com alguns monstros mais fracos (trash mobs) até chegar ao monstro principal, cuja derrota implica em completar a missão.

As Funções dos Jogadores nas Missões em Grupo

Antes de uma missão para grupos começar, o grupo geralmente designa explicitamente uma de três funções para cada um dos personagens que o compõem: (1) personagem alvo (tanker), que deve gerar mais ameaça (devido a um nível elevado do atributo threat) e, portanto, receber a maioria dos ataques do adversário, resguardando os demais; (2) curador (healer), que recupera os pontos de vida dos personagens do grupo e os seus próprios; ou (3) atacante (dps – damage per second), que deve priorizar o ataque aos monstros para subtrair deles o máximo de pontos de vida – podendo ser atacante de curta distância (melee dps), que ataca com armas de curta distância ou atacante de longa distância (ranged dps), que usam armas ou magias a longa distância. O grupo também decide a quantidade de jogadores em cada função.

As contingências em vigor para cada uma das funções tornam sua execução mais reforçadora para determinadas classes de personagens. Por exemplo, o personagem alvo deve receber a maioria dos ataques dos monstros, então a probabilidade de exercer adequadamente a sua função aumenta se tiver como atributos principais stamina (garantindo um máximo de pontos de vida elevado e portanto menor probabilidade de ser derrotado), defense rating (aumentando a probabilidade de se defender dos ataques) e threat (para que gere mais ameaça no monstro, diminuindo a probabilidade dele atacar os outros personagens do grupo). Algumas classes de personagens exercem apenas uma função, pois os seus atributos geram muito mais punição para as classes de respostas das outras funções (e.g., os rogues, que só exercem a função de atacante de curta distância); enquanto outras classes podem realizar duas funções (e.g., os priests, que exercem tanto a função de curadores quanto de atacantes de longa distância). Embora estas classes possam desempenhar mais de uma função, em cada raid cada personagem só pode exercer uma, pois o jogo não permite a troca dos itens, conjunto de magias ou de ataques disponíveis para o personagem durante uma batalha. Após o fim da batalha, o personagem pode trocar de função.

A seguir, analisamos mais minuciosamente as contingências e metacontingências presentes na primeira parte da missão para grupos de até 25 jogadores (25 man) chamada Ice Crown Citadel, cujo objetivo é matar um monstro chamado Lord Marrowgar (LM) para que o grupo tenha acesso ao restante da missão, composta por outros monstros cada vez mais fortes. Essa análise ilustra a complexidade e diversidade das contingências e metacontingências programadas em MMOGs como World of Warcraft e a possibilidade de avaliação nesse tipo de ambiente da seleção cultural por metacontingências.

 

Contingências e Metacontingências Arranjadas por um Monstro de uma Missão para Grupos

O monstro LM da missão Ice Crown Citadel, assim como todos os outros monstros do jogo, tem um "repertório comportamental" pré-programado análogo a um conjunto de respondentes, uma vez que as consequências das suas "respostas" não influenciam na emissão futura de respostas da mesma classe. Essas respostas consistem em: (1) atacar personagens que ficam diretamente na sua frente; (2) atacar diretamente o personagem que mais gera ameaça, diminuindo os pontos de vida deste e também do personagem que esteja mais próximo; (3) lançar "espinhos" que impedem a movimentação dos personagens atingidos (e que só podem ser quebrados pelo ataque de outros personagens); e (4) parar de atacar um só personagem e girar por todo o ambiente, atacando todos enquanto solta chamas que tiram pontos de vida dos personagens. Esse repertório do monstro seleciona comportamentos específicos para os personagens que assumem cada uma das funções nessa missão e contingências entrelaçadas específicas para todo o grupo. Os comportamentos tipicamente selecionados para os personagens exercendo cada uma das funções serão descritos nas seções seguintes (vide Tabela 1). Logo após, as contingências entrelaçadas selecionadas pelo repertório do monstro serão descritas.

 

 

Comportamentos Selecionados para a Função de Personagem Alvo

Geralmente, dois personagens exercem a função de personagem alvo, concentrando os ataques do monstro neles próprios, evitando que o monstro ataque os demais personagens. Então, tipicamente, os personagens alvo são os primeiros personagens a atacar o monstro. Na presença do monstro (antecedente), eles o atacam a partir de uma direção oposta àquela na qual o resto do grupo se encontra (ação), de modo que o monstro se vire de costas para o grupo, os ataques do monstro atinjam apenas eles e, assim, mantenham o restante do grupo vivo (consequências). Quando um dos personagens alvo está com poucos pontos de vida (antecedente), ele ameniza os ataques (resposta). Enquanto isso, outro personagem alvo intensifica os ataques para gerar mais ameaça e se tornar o novo foco dos ataques do LM, permitindo que um curador cure o primeiro personagem alvo totalmente (consequências). Desta forma, com a alternância entre os dois personagens alvo, a probabilidade de ambos executarem sua função com eficácia é maior.

Comportamentos Selecionados para a Função de Curador

Os personagens que assumem essa função encarregam-se de restaurar seus próprios pontos de vida e o dos outros personagens durante a batalha. Na batalha contra o LM, à época em que foi feita a observação, os grupos tipicamente se organizavam com três curadores: um encarregado dos personagens alvo e outros dois encarregados do resto do grupo. No início do combate com LM, contudo, os personagens alvo são os únicos a perder pontos de vida. Essa perda de pontos dos personagens alvo é antecedente para todos os três curadores emitirem a resposta de curá-los. Quando o LM prende personagens com os espinhos ou roda e solta chamas, retirando pontos de vida de muitos membros do grupo (antecedente para os personagens com a função de curador), dois dos curadores passam a restaurar os pontos de vida do restante do grupo (resposta dos personagens com a função de curador), evitando que personagens que compõem o grupo sejam derrotados (consequência).

Comportamentos Selecionados para a Função de Atacante

O estímulo discriminativo relevante para os atacantes iniciarem sua ofensiva ao LM tipicamente é o monstro voltar-se para os personagens alvo ficando de costas para o restante do grupo. A partir daí, os atacantes de longa distância iniciam seu ataque, enquanto os atacantes de curta distância aproximam-se do LM e começam a ataca-lo de perto. Quando o LM prende alguns personagens com espinhos (antecedente), os atacantes de curta distância mais próximos atacam os espinhos (resposta) para soltar os personagens presos (consequência). Quando o LM começa a girar e soltar chamas no chão (antecedente), os atacantes de longa e curta distância desviam dos giros e saem das chamas (resposta) para não perderem muitos pontos de vida (consequência). Quando os atacantes subtraem muitos pontos de vida do monstro, a ameaça gerada por estes personagens é maior que a gerada pelos personagens alvo e o monstro passa a atacá-los (antecedente), então os atacantes param de atacar e se afastam (resposta) até que os personagens alvo voltem a ser o foco dos ataques do LM (consequência).

Contingências Entrelaçadas Selecionadas

Como explicitado nas seções anteriores, é necessária a coordenação de todo o grupo para derrotar o monstro LM: enquanto os personagens alvo geram ameaça e atraem os ataques do adversário para si, os curadores curam todo o grupo e os atacantes de curta e longa distância subtraem pontos de vida do LM até que tais pontos cheguem a zero e o monstro seja derrotado. Ou seja, elementos das contingências de um personagem são antecedentes ou consequências (sociais) para a ação de outro, constituindo o entrelaçamento das contingências individuais dos personagens. A resposta de ataque ao LM dos personagens alvo, levando o monstro a voltar-se para eles, é antecedente para as respostas dos atacantes, enquanto uma de suas consequências (per der pontos de vida) é estímulo discriminativo para que os curadores comecem a curar e recuperar os pontos de vida dos personagens alvo. O ataque dos personagens alvo é mantido pelas consequências de gerar ameaça para o monstro e ser atacado por ele, entretanto o ataque dos atacantes de curta e longa distância, embora seja topograficamente semelhante ao ataque dos personagens alvo, é reforçado pela subtração de pontos de vida do monstro (vide Figura 1).

 

 

Outro entrelaçamento de contingências (não ilustrado na Figura 1) ocorre quando um personagem alvo está atacando o LM e o curador não consegue restaurar os pontos de vida dele, o que é antecedente para o personagem alvo amenizar a geração de ameaça, que por sua vez é antecedente para o outro personagem alvo intensificar o ataque gerando mais ameaça e tendo como consequência a diminuição de ataques ao personagem alvo primário. Assim, o curador cura o primeiro personagem alvo, restaurando seus pontos de vida completamente (consequência da resposta do curador), o que é estímulo discriminativo para este voltar a atacar e, posteriormente, o outro personagem alvo realizar a mesma troca novamente. Estes entrelaçamentos são condição necessária para a derrota do LM, um produto agregado, portanto.

Quando os pontos de vida do monstro LM chegam a zero e ele é derrotado (produto agregado), o grupo tem acesso a consequências que provavelmente mantêm tais comportamentos e entrelaçamentos: (1) itens específicos a que só se tem acesso com a derrota do LM e que podem ser sorteados entre os personagens ou, como é mais comum, divididos entre eles por um personagem eleito para esse fim; (2) acesso à próxima parte da missão; (3) dois emblemas para cada jogador, que podem ser trocados por itens específicos; e (4) uma quantidade de dinheiro do jogo (gold) (trocável, e.g., por restauração de equipamentos utilizados durante a batalha, montarias, itens para recuperação de pontos de vida etc.) dividida igual e automaticamente entre os jogadores. Todos esses eventos podem ser considerados consequências culturais que selecionam os entrelaçamentos (definidos pela geração do produto agregado).

Assim, durante a batalha, diversos entrelaçamentos produzem consequências que só poderiam ser produzidas pelo grupo como um todo. Podese dizer então que os eventos que se sucedem à derrota do LM (produto agregado gerado pelo entrelaçamento) são consequências culturais da metacontingência em questão e mantêm tanto o entrelaçamento de contingências quanto os comportamentos individuais de cada personagem. As metacontingências programadas pelos criadores do jogo selecionam contingências entrelaçadas específicas (vide Figura 1). As evidências para tanto são a repetição do entrelaçamento nas diversas vezes em que se observou a batalha e a transmissão destas práticas para outros jogadores, que por sua vez reproduzem tais práticas. Uma das fontes utilizadas para coleta de dados foram páginas da internet produzidas pelos jogadores com o intuito de publicar estratégias de batalhas mais eficientes. Estas podem ser consideradas indícios de propagação de práticas culturais entre grupos e sujeitos individuais – como é também o caso da manutenção destas práticas dentro do próprio grupo mesmo com a substituição de participantes nas missões.

 

Conclusão

O estudo empírico de fenômenos sociais a partir da Análise do Comportamento não é novidade. Mas ainda tem um longo caminho a percorrer rumo a uma compreensão ampla da diversidade de fenômenos sociais e de suas relações com o comportamento. A partir das observações de um jogador e da leitura de relatos de outros jogadores, interpretamos eventos do jogo World of Wacraft com base nos conceitos e princípios da análise do comportamento e da cultura visando destacar como MMOGs como esse podem ser empregados em estudos sobre fenômenos sociais e suas relações com o comportamento. As possibilidades para estudos futuros incluem conseguir acesso direto aos dados produzidos durante o jogo com as companhias que produzem tais jogos (cf. Bohannon, 2010; Timmer, 2009) ou mesmo à programação dos jogos para que se possa manipular variáveis. Cada evento em um MMOG fica armazenado nos servidores do jogo, permitindo diversas análises. Alguns jogos on-line não são pagos e permitem que os jogadores criem servidores próprios, possibilitando o a manipulação direta de variáveis, aumentando a possibilidade de se realizar experimentos com estas ferramentas.

Nossa análise interpretativa sugere a possibilidade de novos estudos em metacontingências e práticas culturais empregando jogos on-line. As contingências e metacontingências programadascontrolam o comportamento dos jogadores de forma bastante específica. Junto a isso, por ser um ambiente virtual em que tudo é registrado pelos computadores, é possível analisar variáveis dependentes e programar variáveis independentes. Desta forma, fica clara a possibilidade de se realizar delineamentos experimentais caso seja possível o controle das variáveis independentes.

Caso não seja possível o controle das variáveis, uma vez que é necessário programar o jogo, há ainda a possibilidade de se realizar quase-experimentos, já que o acesso aos registros pode ser conseguido mais facilmente, e mesmo a posteriori. A empresa faz atualizações periódicas no jogo, alterando aspectos mínimos em uma classe de personagem (e.g., mudando o tempo de duração de uma magia) – ou seja, mudanças de contingências para personagens dessa classe e outros que serão influenciados por tal magia. A observação sistemática dos efeitos desse tipo de mudança sobre determinadas variáveis dependentes (e.g., escolha relativa de personagens daquela classe) permitiria uma análise quase-experimental. As possibilidades de pesquisa com MMOGs são praticamente infinitas.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Artur Luís Duarte Diniz Nogueira
Rua Bartira, 387, Perdizes
CEP 05009-000 – São Paulo - SP
E-mail: arturlddn@hotmail.com

Submetido em: 07/12/2015
Primeira decisão editorial: 02/03/2016
Aceito em: 18/04/2016
Editor associado: Saulo Velasco

 

 

* Bolsista da CAPES, Brasil
** Bolsista do CNPq Brasil

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