Servicios Personalizados
Revista
Articulo
Indicadores
Compartir
Saúde & Transformação Social
versión On-line ISSN 2178-7085
Saúde Transform. Soc. vol.3 no.1 Florianopolis ene. 2012
ARTIGOS ORIGINAIS
Implicações da viuvez na saúde: uma abordagem fenomenológica em Merleau-Ponty
Implications of the widowhood in health: a phenomenological approach in Merleau-Ponty
Bárbara Oliveira Turatti*
Centro de Pesquisa Leônidas e Maria Dean (Fiocruz), Manaus (AM) - Brasil
RESUMO
O processo de perda do companheiro, em qualquer época da vida que venha ocorrer, será enfrentado mediante o uso de mecanismos adaptativos do cônjuge sobrevivente à sua nova realidade emocional, podendo implicar no desenvolver de patologias relacionadas ao sofrimento gerado pela ausência daquele que partiu. Os objetivos deste estudo corresponderam em compreender as implicações da viuvez na saúde, descrever em que medida o estado emocional da pessoa em processo de viuvez interfere na produção de doenças, relacionar a história de vida do casal, o tempo de união e o grau de afetividade com o tipo e gravidade da patologia e buscar a ampliação do saber no que concerne ao cuidar da enfermagem neste contexto a partir do referencial merleau-pontyano. Este estudo foi descritivo com abordagem qualitativa e os sujeitos compreenderam 34 idosos com idade superior ou igual a 60 anos em processo de viuvez, enfocando o surgimento de patologias no período pós perda do cônjuge. O cenário foi o Instituto de Educação Gerontológica do município de Niterói â RJ. Utilizou-se a técnica de auto-relato juntamente com um roteiro de entrevistas semi estruturado para direcionar e facilitar a realização das entrevistas. Após a coleta dos dados e transcrição das falas, foi realizada a etapa de categorização dos dados, buscando-se as unidades de significado que foram examinadas à luz do referencial teórico merleau-pontyano. Nos resultados evidenciou-se que vários elementos influenciam o grau e intensidade do choque da perda, bem como a forma como se estabeleceu a partida do companheiro, tempo de união, características da vida a dois e a afinidade de modo geral. Concluiu-se que em qualquer momento em que a perda do cônjuge venha a ocorrer, dependendo do grau de afetividade do casal e de como se desenrolou a vida conjugal, poderá desencadear no viúvo manifestações físicas, em decorrência do sofrimento gerado no processo de viuvez.
Palavras-Chave: Viuvez; Enfermagem; Transtornos Psicossomáticos.ABSTRACT
The process of loss of companion at any time of life that will occur will be addressed through the use of adaptive mechanisms of the surviving spouse to your new emotional reality, which may involve the development of pathologies related to the suffering caused by the absence of the one who left. The goals correspond to understand the implications of widowhood on health, describe the extent to which the person's emotional state in case of widowhood affect the production of disease, to relate the life story of the couple, the time of marriage and the degree of affection to the type and severity of disease and to seek the expansion of knowledge regarding the care of nursing in this context in reference merleau-pontyan. This was a descriptive study with qualitative and comprised 34 elderly subjects aged greater than or equal to 60 years in case of widowhood, focusing on the development of pathologies in the period after loss of spouse. The scenario is the Institute of Geriatric Education of Niterói - RJ. We used the technique of self-report along with a semi-structured script to direct and facilitate the interviews. After data collection and transcription of the speeches, we performed a step of categorizing the data, searching for meaning units that were examined in the light of the theoretical merleau-pontyan. The results showed that several factors influence the degree and intensity of the shock of the loss and how to set the departure of partner, length of marriage, characteristics of life together and affinity in general. It follows that at any moment the loss of a spouse will occur depending on the degree of affection of the couple and how they rolled out their married life, may lead to physical manifestations widowed as a result of stress generated in the process of widowhood.
Keywords: Widowhood; Nursing; Psychophysiologic Disorders.
1. INTRODUÇÃO
A intensidade da dor do sujeito em luto está diretamente relacionada com os laços afetivos estabelecidos entre este e o parceiro falecido. O impacto da viuvez e as reações das pessoas enlutadas demonstraram sempre grandes diferenças, que são, em parte, explicáveis por características individuais, tais como sensibilidade, vulnerabilidade estrutura psicológica, ou por determinantes do contexto sociocultural onde o individuo se insere1.
Os fenômenos psicossomáticos ou somatizações contribuem para o aparecimento de disfunções. Entendimento compartilhado por Caldeira e Martins que ao se referirem à dinâmica da somatização,afirmam que estas "ocorrem após a perda das defesas psíquicas seguida de uma tentativa de organização e, quando esta não acontece ocorrem desorganizações corporais"2.
As manifestações das doenças orgânicas sofrem, inevitavelmente, influência da mente de quem as apresenta e as doenças mentais são trazidas, em sua intimidade última, por processos bioquímicos que, de resto, acompanham todos os momentos de viver3.
O ramo científico da psicossomática, baseando-se nas idéias de Volich4 é considerado o que há de mais avançado no que se refere às formas do pensar e do fazer em se tratando da assistência na área de saúde, exprimindo uma visão que interliga corpo, mente e alma, tendo-se em vista que qualquer desequilíbrio em algum desses sistemas, acarretará manifestações patológicas no organismo vivo.
A conceituação de saúde apresentada pela OMS - Organização Mundial da Saúde5 a estabelece como "um estado de completo bem-estar físico, mental, social e não apenas a ausência de doença", o que só vem a referendar o protagonismo da visão psicossomática na busca por uma prática de assistência à saúde com qualidade. Este conceito aproxima-se ao máximo de uma visão integral do homem, ao levar em conta as variáveis biopsicossociais. Vasconcellos6 pontificou que para que o pleno bem-estar seja alcançado, não apenas esta problemática biopsicossocial apontada pela OMS deva ser levada em consideração, mas sim acrescentada das dimensões espiritual e ecológica. Para a aceitação e adequada apreensão dessas idéias, o referido autor apontou como relevante à necessidade de uma utilização mais flexível dos paradigmas, enfatizando o papel de preponderância nos cinco aspectos correspondentes ao biológico, psicológico, social, espiritual e ecológico, no encontro da homeostase orgânica. Desse modo, essas dimensões influem direta e constantemente na saúde e na doença, independente da origem da complicação psicossomática.
Outro tipo de situação que se destaca capaz de gerar ou agravar doenças físicas é a chamada síndrome de desistência que parece representar um estado em que o individuo desiste de viver, permitindo, então, que a doença o acometa7. Situações de perda familiar, por exemplo, que deixam o individuo com a sensação de não ter saída, estão na base desse estado. Dois mecanismos mentais que se apresentam como geradores de somatização: a identificação e a conversão. Identificar-se é sentir como o outro. é tornar seu, algo que é do outro. Assim, sentir-se doente pode ser uma forma de identificar-se com alguém que esta ou esteve doente. Segundo Silva8, é necessário chamar a atenção para o fato de a somatização acontece com todos os seres humanos, com maior ou menos intensidade e frequência ao longo da vida, sem perceber ou até mesmo sem aceitar tal fato.
A perda do companheiro é um processo doloroso em qualquer idade. Considerando-se o casal após muitos anos juntos, o impacto do luto toma dimensões grandiosas, podendo ser devastador e, não raro, levar a uma depressão fatal. Existem muitas situações em que, após a morte de um cônjuge, o outro falece logo depois9. Para que a viuvez não represente o fim da vida para quem fica, torna-se essencial o apoio familiar, uma atividade que leve a motivação na manutenção da vida e o contato com outras pessoas estimulando a criação de um vínculo de amizades. Este fator que motive no seguimento da existência pode ser entendido como uma atividade física, uma prazerosa ocupação que leve ao sentimento de utilidade perante a sociedade na qual este pertence e o círculo de conhecidos próximos que irão exercer um grande papel na reconstrução da pessoa em processo de viuvez10. O envolvimento do enlutado com o morto, a forma como o falecimento veio a ocorrer, juntamente com a força e a segurança do apego, a confiança e as circunstâncias de uma relação particular entre o casal, são fatores contribuintes para a previsão de como irá desenrolar na pessoa vítima da perda conjugal, o processo emocional e comportamental9.
A morte do companheiro tem geralmente uma representação de vazio, como se uma parte de si terminasse de existir concretamente para permanecer na memória e no coração dos que com ele compartilharam suas vidas. Quanto mais longa a trajetória lado a lado, mais momentos a lembrar e maior a cumplicidade e o entrelaçamento de objetivos, conquistas e derrotas, inerentes à construção de uma história conjunta, que após um casamento de muitos anos desenvolve um sistema de papéis, tarefas e costumes que se desfaz com a morte do parceiro, passando a exigir de quem fica uma reconfiguração da vida em termos afetivos e sociais11.
O processo do luto estabelecido com a perda do cônjuge torna a pessoa viúva suscetível ao surgimento de doenças físicas, já que todo o emocional da mesma apresentar-se-á desorganizado, abrindo as portas assim, para a somatização dos sentimentos em conseqüências no corpo humano. De acordo com Hisatugo12, "o luto torna-se necessário para se encontrar o posterior equilíbrio e que a sensação devastadora da perda requer algum tempo para que se possa pensar mais calmamente." Portanto, é mais que compreensível a existência do luto nos casos de enfrentamento de situações dramáticas como a perda de um ente querido, e como este processo é importante e primórdio, para reorganização da vida de quem fica. Diversos fatores como os pessoais, circunstanciais e culturais podem estar relacionados com a contribuição ou dificuldade em elaborar e expressar a dor referente à perda do cônjuge. O tempo torna-se um aliado no alívio da dor e sofrimento gerado pela falta decorrente da morte. Uma considerável margem superior no quantitativo de mulheres viúvas do que o do sexo masculino se deve a fatores relacionados à ampliação da expectativa de vida da população e também às melhorias nas condições de saúde e às mudanças em todo o ciclo de vida, inclusive nos papéis sociais atribuídos a cada idade e sexo11.
Assim, quanto maior o envelhecimento populacional, maior é a probabilidade de mulheres idosas viverem sozinhas. Aliem-se a esses fatores psicossociais as normas culturais prevalecentes na sociedade, que levam os homens a se casarem de novo, geralmente com mulheres jovens, sendo o novo casamento para viúvos muito mais comum do que para viúvas.
Manifestações decorrentes do processo de perda podem ser representadas por raiva, culpa, protesto, amargura e auto-acusação que podem ser mantidos até a recuperação do processo de luto, de encontro com a aquisição de uma nova identidade do enlutado13. As experiências positivas na vida, como fatores de proteção, favorecem para o fortalecimento de uma percepção que os viúvos e viúvas apresentam de si mesmos. Então, as manifestações que estes sujeitos apresentam as suas percepções, existem pelo fato de que possuem um corpo que não é objeto, mas corpo sinergético que acolhe e é acolhido pelo mundo e pelas circunstâncias do vivido. Diante do exposto, diz Merleau-Ponty14: "Só sairemos desse impasse quando renunciarmos à bifurcação entre a consciência de (...) e o objeto, admitindo que meu corpo sinérgico não é objeto, que reúne um feixe de consciência aderente a minhas mãos, a meus olhos...".
Nesse sentido, este grupo em processo de viuvez pode ter em mãos uma capacidade importante para o enfrentamento e resolução de problemas relacionados com seu próprio jeito de ser e de encarar a vida. Alguns destes mecanismos de enfrentamento correspondem ao humor, o otimismo, o senso de significado, entre outros. Equivale ressaltar que o impacto da perda por sua grande significação, favorece ao surgimento de doenças físicas, que podem ser desenvolvidas neste processo de viuvez, e por vezes gerar conseqüências duráveis pelo resto da existência, mas que com a utilização de efetivos instrumentos adaptativos poderiam ser se não impedidos, amenizados. Para desenvolver este estudo retratando as implicações dos aspectos emocionais no processo de viuvez, utilizou-se a descrição realizada por Maurice Merleau-Ponty a respeito da questão do dualismo psicofísico, que representa a separação mente-corpo. Conforme dito por Fontes15, o esforço desse filósofo foi o de mostrar que a relação no mundo é corporal e sempre significativa.
Assim o corpo é visto numa totalidade, na sua estrutura de relação com as coisas ao seu redor, como uma fonte de sentidos, não como conjunto de órgãos, e o sujeito da percepção é visto como corpo, não como consciência.
Esta pesquisa relacionou a dimensão psicossomática ao surgimento de doenças físicas no período pós-perda do cônjuge, atrelando a perspectiva filosófica de Maurice Merleau-Ponty no que diz respeito à questão do corpo, o que sem dúvida traz importantes contribuições para intervenção de enfermagem com vistas à qualidade da abordagem a essa clientela. Em última instância mister se faz cuidar melhor e isso pressupõe cuidar integralmente. Diante do exposto acredita-se que cuidar integralmente pressupõe também cuidar para que nossas palavras e atitudes junto ao outro não venham trazer mais prejuízos emocionais e existenciais.
O objetivo do presente trabalho corresponde a compreender as implicações da viuvez na saúde. Especificamente, busca descrever em que medida o estado emocional da pessoa em processo de viuvez interfere na produção de doenças; relacionar a história de vida do casal, o tempo de união e o grau de afetividade com o tipo e gravidade da patologia e buscar a ampliação do saber no que concerne ao cuidar da enfermagem neste contexto a partir do referencial merleau-pontyano.
2. PERCURSO METODOLÓGICO
A pesquisa apresenta abordagem qualitativa e caráter descritivo, sendo realizada em campo para se observar diretamente o comportamento das pessoas, na qual de acordo com Polit e Hungler16, o pesquisador utiliza este tipo de pesquisa, pois deseja aproximar-se das pessoas estudadas de modo a compreender uma situação, a partir de seu cenário natural, sem uma estrutura ou controle por ele imposto, sendo que o mesmo objeto de estudo serve como fonte de informação para o pesquisador. No estudo em questão investiguei a trajetória de vida e os aspectos psicossomáticos envolvidos no surgimento de patologias em clientes em processo de viuvez.
Como método de coleta de dados, utilizou-se a técnica de auto-relato que oferece flexibilidade na coleta de informações sobre o sujeito da pesquisa, e é caracterizada por não existir uma seqüência de perguntas. Segundo Minayo17,a pesquisa inicia-se com algumas perguntas feitas pelo pesquisador e os "respondentes" ou "informantes" contam suas histórias de uma forma narrativa, obtendo-se dados através da continuidade da conversação. Foi elaborado um roteiro de entrevista semi-estruturado para direcionar e facilitar a realização das entrevistas. Este roteiro se encontra de acordo com os objetivos da pesquisa de modo a contemplar: lembranças conjugais, vivências, emoções, hábitos de vida, entre outros.
Os sujeitos deste estudo compreenderam o quantitativo de 34 idosos com idade superior ou igual a 60 anos em processo de viuvez, de ambos os sexos, e sem distinção de cor, enfocando o surgimento de patologias no período pós perda do cônjuge, juntamente com o tempo de união do casal. Esses foram abordados, sendo primeiramente apresentada a proposta do estudo e a leitura e explicação do Termo de Consentimento e Livre Esclarecido, a fim de orientar dúvidas possíveis, de acordo com as especificações éticas e legais da Resolução196 / 96, do Ministério da Saúde.
O cenário escolhido para a realização desta pesquisa foi o Instituto de Educação Gerontológica, conhecido como Casa Verde, localizado no município de Niterói, RJ. As entrevistas foram gravadas em dispositivo magnético (MP3), transcritas e identificadas com nomes fictícios para preservar a identidade dos sujeitos, e posteriormente foram submetidos a análise temática Após a coleta dos dados e a transcrição das falas, realizou-se a etapa metodológica da categorização dos dados buscando-se as unidades de significado. Estas unidades de significado foram examinadas à luz do referencial teórico merleau-pontyano, enfocando acima de tudo o "mundo fenomenológico" desses sujeitos em processo de viuvez. Esse mundo fenomenológico, para Merleau-Ponty18 é "o sentido que transparece na interseção de minhas experiências com as do outro, pela engrenagem de umas sobre as outras"; ele é, pois, inseparável da subjetividade e da intersubjetividade, que faz sua unidade pela retomada das experiências passadas nas experiências presentes e da experiência do outro. Tal estudo obteve aprovação do Comitê de ética em Pesquisa do Centro de Ciências Médicas- Hospital Universitário Antônio Pedro/ UFF sob o protocolo nº CAAE 0049.0.258.000-08.
3. ASPECTOS EMOCIONAIS VERSUS VIUVEZ
Uma das questões que ficou clara coma realização das entrevistas foi o fortalecimento do viúvo, quando este possuía alguém sob os seus cuidados, como um filho ou neto, o que impediu o surgimento de doenças psicossomáticas. Compreendendo com uma abordagem filosófica em Merleau-Ponty a questão do corpo, visualiza-se que este é o ponto de vista sobre o mundo, ou seja, é o que acolhe inicialmente a experiência humana.
Os depoentes a seguir exemplificam tal situação:
Ela faleceu de câncer. Pouco tempo depois do nascimento de nossa filha ela foi ao médico e descobriu que estava num estado muito avançado e em 3 anos ela partiu. Como já era esperado pelo tempo que ela estava sofrendo coma doença, voltei minhas atenções para minha filha que ficaria sem a mãe tão cedo. Tudo isso foi bem chocante para mim. (Lírio)
Foi velhice mesmo. Eu me apeguei muito aos filhos, e hoje em dia cuido de uma neta desde que a minha filha faleceu. Como ele já era idoso, eu já me preparava pra partida dele um dia, e por isso depois do choque consegui me conformar rápido. (Violeta)
Ele faleceu vítima de atropelamento, e foi um susto para nós. Eu consegui me manter forte, até por ter a minha filha para cuidar. E desde que meu marido começou a ter esses problemas com a bebida, eu me apeguei muito a minha filha, que mesmo depois de casada ainda mora comigo. (Crisântemo)
Os viúvos que em sua vida conjugal, passaram por situações difíceis que enfraqueceram a afinidade do casal, tais como brigas constantes, problemas com vícios do companheiro, agressões ou doenças prolongadas, não desenvolveram patologias associadas a perda, o que é demonstrado nos próximos relatos.
Ele faleceu de várias coisas. Cirrose, diabetes, câncer no fígado (20 anos de processo de doença). E eu sempre do lado dele, mesmo com as grosserias. Eu senti como um alívio. Vivia com medo dele. (Rosa)
Ele morreu de coma diabético. Ele tinha diabetes e não se cuidava. A princípio eu senti que tinha me livrado de um fardo, depois veio a saudade porque eu o amava. (Amor Perfeito)
De maneira contrária aos relatos já expostos, encontramos aqueles que desenvolveram sim patologias, e que apresentaram uma reação exacerbada da perda de seu companheiro, o que é corroborado pelas idéias do referencial teórico em Merleau-Ponty18 que enuncia em Fenomenologia da percepção, ao tratar da experiência do corpo que "O corpo é um objeto afetivo, enquanto as coisas me são somente representadas." Dessa forma, as falas dos viúvos abaixo, confirmam esse conceito.
Foi de repente. Eu fui acordá-la e ela estava com o braço roxo e não reagiu. Comecei a gritar, não sei nem direito o que aconteceu depois. Foi horrível, e eu sinto dificuldade de cuidar da minha filha, pois a mãe fazia tudo. Nós dois engordamos, e ficamos muito tempo sem dormir direito. (Flor de Maio)
Ele faleceu de cirrose, de uma hepatite mal cuidada. Foi bem depressa a sua morte. Eu não queria acreditar. Primeiro eu fiquei completamente atordoada, depois entrei em depressão. O grupo de idosos me ajudou muito a encarar essa situação, me fazendo interagir com outras pessoas e desenvolver diversas atividades. (Hortência)
Ele partiu de câncer de próstata. E ele tinha melhorado só que depois que ele teve um aborrecimento muito forte em casa, o PSA dele alterou e ele foi piorando até morrer. Nossa, sofri demais. Fiquei sem conseguir dormir e não me conformava. (Margarida)
Ao considerar a questão do corpo, o problema do outro está também em jogo, já que a solidão e a comunicação não devem ser os dois termos de uma alternativa, mas dois momentos de um único fenômeno, pois, de fato, o outro existe para mim. Merleau-Ponty19 refere que "ser uma consciência ou mais certamente ser uma experiência, é comunicar-se com o mundo, o corpo e os outros, estar com eles ao invés de estar ao lado deles." O corpo exerce um papel original de descobrir o mundo. O autor concebe o ser-no-mundo como um sistema integrado em que todas as partes e funções constituem um todo no movimento geral da existência. Pelo fato de o sujeito estar ligado ao mundo por meio do corpo, a intenção de conhecer condiciona-se a percepção do sujeito a cerca das coisas, sempre em perspectiva, ou seja, um objeto pode ser visto por vários aspectos, sendo que ele nunca será visto em si mesmo.
O acesso à evidência de estar-no-mundo ocorre pelo retorno aos fenômenos perceptivos a por meio da própria experiência de perceber, percepção encarnada em cada história individual. O corpo encarnado no mundo não é apenas um objeto. Merleau-Ponty18 observa que "meu corpo não é apenas um objeto entre todos os outros objetos, um complexo de qualidades sensíveis, entre outras, ele é um objeto sensível a todos os sons".
4. AFETO E PATHOS: UM QUIASMA
Diante da reação apresentada pelos idosos viúvos entrevistados, será agora analisada a relação entre a afetividade do casal, bem como o tempo de união e o desenvolvimento de patologias neste processo.
O processo de perda do companheiro pode desencadear na pessoa que fica em estado de viuvez, o aparecimento de manifestações físicas que são representadas em sua maioria por depressão, insônia, hipertensão arterial sistêmica e problemas cardíacos. Nota-se inclusive, o surgimento de patologias no viúvo similares a existente no cônjuge que faleceu, o que reforça a importância da interação corpo e mundo no processo saúde-doença. Essas idéias são evidenciadas nas falas das seguintes pessoas em processo de viuvez:
Tempo de vida conjugal: 25 anos "Foi uma união muito boa. Ele era muito alegre, levava muito pra passear. Perdi 1 filho pequenininho e um a pouco tempo. Mesmo com a nossa grande diferença de idade, nós fomos muito felizes. Depois da perda dele, desenvolvi hipertensão. Caso não fossemos um casal harmônico eu não sentiria falta dele e não teria sofrido. Não tive mais nenhum homem desde que ele partiu." (Violeta)
Tempo de vida conjugal: 37 anos "A união sempre foi muito tranqüila, nós nos dávamos muito bem. Ele era muito presente em tudo em casa. Eu adquiri hipertensão após a perda de meu marido, e desde então uso medicamentos para pressão e também calmantes para dormir. Como éramos muito unidos, não consegui aceitar a perda dele, ficando sem chão." (Margarida)
Nesse sentido Merleau-Ponty20 afirma que "tudo aquilo que sei do mundo, mesmo por ciência, eu sei a partir de visão minha ou de uma experiência do mundo, sem a qual os símbolos da ciência não poderiam dizer nada". O universo da ciência é construído sobre o mundo-vivido e, se queremos pensar a própria ciência com rigor, apreciar exatamente seu sentido e seu alcance, precisamos, primeiramente, despertar essa experiência do mundo da qual ela é a expressão segunda.
Reforçando na análise do discurso, o referencial teórico da pesquisa traz neste trecho a questão da interioridade que sempre é vista a partir do próprio sujeito, a respeito do mundo exterior, sendo estes inseparáveis. Por isso, a significação humana é dada antes dos pretensos sinais sensíveis. Um rosto é um centro de expressão humana, o invólucro transparente das atitudes e dos desejos de outrém18. Disso vem, acrescenta Merleau-Ponty20, que nos parece impossível tratar como uma coisa um rosto ou um corpo mesmo morto. Prosseguindo com esta conceituação descrita estão as seguintes falas de idosos que sofreram intensamente com a chegada da viuvez, e na posterior manifestação em seu corpo físico.
Tempo de vida conjugal: 14 anos. "A vida conjugal sempre foi muito boa. Eu desenvolvi depressão e faço as coisas com desânimo. Só tenho um pouco de força por causa da minha filha. Minha coluna passou a doer demais desde então. E eu tomo remédios fortes. E eu só não morri por causa da minha filha, pois eu não esperava isso nunca." (Flor de Maio)
Tempo de vida conjugal: 26 anos. "Nossa vida era boa demais, parecia uma história de filme. Com a perda do meu amado, meus problemas de saúde pioraram muito e surgiu a insônia, a falta, a saudade. Só fiquei dessa forma por amá-lo mais do que a mim." (Jasmim)
Tempo de vida conjugal: 42 anos. "Era uma maravilha de união. Um companheirão, um paizão. Nos amamos até o fim da vida. Ele foi meu destino... Tive depressão e achei que ia junto com ele. O nosso amor era tão forte e perfeito. Nunca quis imaginar minha vida sem ele. Vejo que nossa afinidade tão intensa foi o que me abalou tanto mentalmente quanto fisicamente." (Hortência)
Tempo de vida conjugal: 50 anos. "Vida muito boa. Nós dois éramos muito unidos. Sinto muita falta. Tive problemas cardíacos, e fiquei internado por duas vezes, coisa que nunca aconteceu na minha vida. Como é penoso pensar em prosseguir sem uma parte de mim." (Cravo)
Coopera para a elucidação destes discursos, o pensamento de Merleau-Ponty14 que fala que o sentido dos gestos não é dado, mas compreendido, quer dizer, retomado por um ato do espectador. Toda dificuldade é conceber bem esse ato e não confundi-lo com uma operação do conhecimento. Obtém-se a comunicação ou a compreensão dos gestos pela reciprocidade entre minhas intenções e os gestos do outro, entre meus gestos e intenções legíveis na conduta do outro. Tudo se passa como se a intenção do outro habitasse meu corpo ou como se minhas intenções habitassem o seu.
Ao contrário das falas já descritas, encontramos os relatos de viúvos que não desenvolveram problemas em sua saúde em virtude de acontecimentos ao longo de suas vidas conjugais que diminuíram a afetividade do casal. Esclarecem esta afirmação as seguintes falas:
Tempo de vida conjugal: 22 anos. "Eu sempre fui muito tolerante, a vida sempre foi muito tranqüila. Ela era atriz, assim como eu, e ficávamos muito tempo longe. Não pude desenvolver amor por ela. Sei que o tempo que ela ficou doente em casa (10 anos) nos afastaram, e assim fiquei um pouco frio com o que viria a acontecer." (Girassol)
Tempo de vida conjugal: 24 anos. "Ele era mulherengo. A última gravidez ele disse que não era dele. Trouxe uma doença venérea da rua para mim. Não tive nada, além da saudade que veio com o tempo, mesmo depois de tudo. Se ele fosse mais presente em casa e valorizasse meu amor, sei que teria surtado com a partida dele." (Amor perfeito)
Tempo de vida conjugal: 32 anos. "Minha vida era terrível. Ele era um homem de vícios. Ele era agressivo. Já me ameaçou com faca e até revolver. Eu suportei pelos meus filhos e por gostar dele de verdade. Como a nossa afetividade era inexistente, interferiu em nada em mim." (Rosa)
Deste modo, Merleau-Ponty20 pode afirmar que "o sensível não é feito de coisas". é feito também de tudo que nelas se desenha, mesmo no vazio dos intervalos, tudo que nelas deixa vestígio, tudo que nelas figura, mesmo a título de desvio e como uma certa ausência: "o que pode ser apreendido pela experiência no sentido originário do termo, o ser que pode dar-se em presença originária(...)". Portanto, diante das entrevistas coletadas com idosos em processo de viuvez juntamente com o referencial teórico de Merleau-Ponty, é notado que quanto maior o grau de afetividade do casal e tempo de união, mais intenso é choque precedido da morte do companheiro, já que o que fica manifesta implicações em sua saúde. Esta compreensão é compartilhada com o estudo da psicossomática que refere a influencia externa no surgimento de patologias físicas.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com o término desta pesquisa ficou claro que em qualquer momento em que a perda do cônjuge venha a ocorrer, dependendo do grau de afetividade do casal e de como se desenrolou a vida conjugal, poderá desencadear no viúvo, manifestações físicas, em decorrência do sofrimento gerado no processo de viuvez. Vários elementos influenciam o grau e intensidade do choque da perda, bem como a forma como se estabeleceu a partida do companheiro, tempo de união, características da vida a dois e a afinidade de modo geral.
Nota-se que quando o viúvo possuía alguém sob seus cuidados diretos, esta situação configurava um motivo para fortalecimento interno, que evitaram o desencadeamento de doenças ditas psicossomáticas, já que se originam da somatização de angústias e conflitos através de sintomas corporais.
Outro grupo que não apresentou surgimento de patologias foi o composto de viúvos que durante a vida tiveram problemas com o parceiro, como brigas, desentendimentos sérios ou mesmo processo de doença prolongado do que partiu, fazendo com que a viuvez fosse encarada de maneira natural e até esperada.
Porém, aqueles idosos cujo relacionamento era intenso, desde o inicio da união e que com a perda de seus companheiros não puderam contar com o apoio da família, estes sim apresentaram patologias físicas, inclusive similares às existentes no que faleceu, o que corrobora as idéias de que o corpo e o mundo estão em constante interação, conceito defendido e enunciado pelo filósofo Merleau-Ponty.
O embasamento no referencial teórico de Maurice Merleau-Ponty foi imprescindível para o entendimento das questões aqui descritas, já que este filósofo reforça a ligação corpo e mundo, no qual um reflete no outro.
Portanto, o profissional de saúde que em sua atividade diária, desenvolve uma visão integral do outro, considerando a existência de um elo entre o que nos rodeia e o nosso corpo, irá prestar uma assistência com qualidade, buscando solucionar a causa do surgimento das manifestações psicossomáticas e não somente as suas consequências, como são realizadas e propostas com o modelo curativista.
Referências Bibliográficas
1. Doll J. Luto e viuvez na velhice. In: Freitas E, et al. Tratado de geriatria e gerontologia. Rio de Janeiro: Guanabara; 2002. p.999 - 1012. [ Links ]
2. Caldeira G, Martins JC. Mecanismos de Somatização. In: Mello Filho J (org.) Grupo e Corpo: Psicoterapia com pacientes somáticos. Porto Alegre: Artmed; 2000. p.170-194. [ Links ]
3. Merleau-Ponty M. Concepção Psicossomática: Visão Atual. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; 1986. [ Links ]
4. Volich RM. Psicossomática De Hipócrates à psicanálise. 3ª ed. São Paulo: Editora Casa do Psicólogo; 2000. [ Links ]
5. WHO (World Health Organization). WHOQOL and spirituality, religiousness and personal beliefs (SRPB). Report on WHO consultation. Genebra; 1998. P.22. [ Links ]
6. Vasconcellos EG. Tópicos de psiconeuroimunologia. São Paulo: Ipê Editorial; 1998. p.54-57. [ Links ]
7. Arthur H. Relationship of Separation and Depression to Disease. Psychosomatic Medicine 1958; 20(4): 259-277. [ Links ]
8. Silva MAD. Quem ama não adoece. 38ª Ed. Rio de Janeiro: BestSeller; 2006. p.134-135. [ Links ]
9. Rocha C, Gonni I, Mazzarino M, Krabbe S, Areosa SVC. Como mulheres viúvas de terceira idade encaram a perda do companheiro. Rev Bras Ciênc Envel Hum 2005; 2(2):65-73. http://www.upf.br/seer/index.php/rbceh/article/view/31. Acesso em 15.01.2011. [ Links ]
10. Novaes MH. Psicologia da terceira idade: conquistas possíveis e rupturas necessárias. Rio de Janeiro: NAU; 2000. [ Links ]
11. Portella MR, Pasqualotti A, Gaglietti M (org). Envelhecimento Humano - saberes e fazer. Passo Fundo: UPF Editora; 2006:71-90. [ Links ]
12. Hisatugo CLC. O Luto e o Idoso: A Arte de Sobreviver às Perdas: envelhecendo com qualidade. Porto Alegre: Edipucrs; 2002. p.26-29. [ Links ]
13. Ramos D. A psique do corpo: uma compreensão simbólica da doença. São Paulo: Summus; 1994. [ Links ]
14. Merleau-Ponty M. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva; 1984. [ Links ]
15. Fontes J. Psicologia cognitiva. Porto alegre: Artmed; 1999. [ Links ]
16. Polit DF, Hungler BP. Fundamentos de pesquisa em enfermagem. 3ª ed. Porto Alegre: Artes Médicas; 1995. [ Links ]
17. Minayo MCS (org). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 16ª ed. Petrópolis: Vozes; 2001. [ Links ]
18. Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes; 1994. p.241-248. [ Links ]
19. Merleau-Ponty M. La Structure du Comportement. Paris: Gallimard; 1971. P.105-182. [ Links ]
20. Merleau-Ponty M. O filósofo e sua sombra; Sobre a fenomenologia da linguagem; A linguagem indireta e as vozes do silêncio. In: Textos Escolhidos (Os Pensadores). v. XLI. São Paulo: Editora Abril; 1975. p.442-447. [ Links ]
Bárbara Oliveira Turatti
Centro de Pesquisa Leônidas e Maria Dean - Fundação Oswaldo Cruz
Rua Terezina, 476. Adrianópolis. Manaus - AM - Brasil
CEP: 69.057-070. Telefone: +55 (92) 3621-2323
e-mail: barbara.olliveira@gmail.com
Artigo encaminhado: 19/07/2011
Aceito para publicação em: 20/12/2011
Notas
*Mestranda