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Saúde & Transformação Social
versión On-line ISSN 2178-7085
Saúde Transform. Soc. vol.5 no.2 Florianopolis nov. 2014
Artigos Originais
Ampliação da capacidade de análise: a produção de sentidos na Política Nacional de Humanização
Extension of the analysis capability: production of meanings in the National Humanization Policy
Carlos Alberto Severo Garcia JúniorI*; Lucas Alexandre PedebôsI**; Camila NoguezII***; Silvio YasuiIII****
I Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, SC - Brasil
II Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS - Brasil
III Universidade Estadual Paulista Júlio Mesquita Filho (UNESP), Assis, SP - Brasil
RESUMO
O presente artigo refere-se à construção coletiva realizada a partir da Pesquisa Multicêntrica sobre Formação em Humanização do SUS. Trata-se de uma produção e construção de consensos sobre as diferentes formas de interpretação da superfamília "ampliação da capacidade de análise". Tem-se como percurso metodológico a constituição de relatórios analíticos advindos de quatro fontes: Planos de Intervenção construídos à época dos cursos de Formação oferecidos em três estados (Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo) pelos apoiadores institucionais em formação; questionários respondidos via Form-SUS pelos apoiadores já formados após quatro anos de encerramento do curso; dados e análises produzidos pelos apoiadores em grupos focais e entrevistas, realizados como etapa final da pesquisa nos três estados. Assim, considerando o referencial metodológico inclusivo, tanto dos cursos, como da pesquisa que os avaliaram, os participantes da pesquisa (egressos dos referidos cursos de formação) não só produziram os dados, mas passaram a exercer o papel ativo de pesquisadores/debatedores ao "estranharem" as análises parciais. Dessa forma, o artigo abordou a capacidade de análise de demanda exigida dos apoiadores diante de seus territórios de atuação e a relação dessa capacidade com conceitos e elementos da Análise Institucional, sublinhando a indissociabilidade entre emergência das demandas e o exercício de se colocar junto ao outro e seus interesses. Concluiu-se que a metodologia proposta pelo curso permitiu que os apoiadores em formação estimulassem e desenvolvessem uma capacidade crítica sobre o seu fazer; porém, percebeu-se que a ampliação de tal capacidade analítica, muitas vezes, permaneceu adstrita ao apoiador, sem o contágio dos demais trabalhadores nos territórios. Viu-se também que o curso e o marco político da PNH podem instrumentalizar os apoiadores, promovendo o empoderamento, a partir de suas análises, essencial à realização das intervenções.
Palavras-chave: Humanização da Assistência; Avaliação em Saúde; Políticas Públicas de Saúde.
ABSTRACT
The article refers to the collective construction performed from the Multicentric Research on Humanization Training of SUS. It is about production and building consensus on different interpretations of the superfamily "expansion of the analysis capability." The methodological approach is related to the creation of analytical reports coming from four sources: Intervention Plans built at the time of training courses offered in three states (Rio Grande do Sul, Santa Catarina and São Paulo) by the institutional supporters in training.Also, there were questionnaires answered via Form-SUS by graduated supporters after four years of the course closing; data and analysis produced by supporters in focus groups and interviews, conducted as the research final stage in the three states.Thus, considering the inclusive methodological framework not only from the courses, but also the research that evaluated them, the participants (graduates from the training courses) produced data and started to play the active role of researchers/panelists because they got "surprised" by partial analyzes.Therefore, the article discusses the analysis capability of demand required by supporters before their working areas and the relationship of that capability with concepts and elements of Institutional Analysis.It was possible to highlight the inseparability between demands of emergency and the exercise of being next to another person and his/her interests. The conclusion is that the methodology proposed by the course allowed the supporters in training to stimulate and develop a critical capacity on their work.However, it is noticed that the expansion of such analytical capability often remained linked to the supporter, without the contagion of other workers in the territories.It was also possible to see that the course and political framework of PNH could equip the supporters, promoting empowerment from their analysis, which is essential to the interventions performance.
Keywords: Care Humanization; Health Evaluation; Public Health Policies.
1. INTRODUÇÃO
O trabalho apresentado aqui é reflexo de debates e análises elaborados conjuntamente entre participantes e pesquisadores da Pesquisa Multicêntrica sobre Formação em Humanização do SUS. Uma produção constituída a partir da produção de relatórios analíticos advindos (1) dos Planos de Intervenção construídos à época dos cursos de formação oferecidos em três estados (Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo) pelos apoiadores institucionais em formação, (2) de questionários respondidos via Form-SUS pelos apoiadores já formados após quatro anos de encerramento do curso e (3) dos dados e análises produzidos pelos apoiadores em grupos focais, bem como (4) em algumas entrevistas, realizados como etapa final da pesquisa nos três estados. Assim, considerando o referencial metodológico do curso e alguns referenciais teóricos, partimos para a construção de consensos mínimos sobre as diferentes formas de interpretação da super-família "ampliação da capacidade de análise".
Super-família foi o termo utilizado para delimitar as grandes áreas de análise desta pesquisa, construídas a partir da associação de códigos gerados no software Atlas.ti no primeiro momento de análise dos Planos de Intervenção (trabalho principal do curso que unia referencial teórico, proposta de intervenção e relato desta). Dessa forma, tal aglutinado de dados, análises e impressões não se mostra tão limitado e delimitado como uma categoria, e sim como um conjunto de categorias que contempla, ainda, as interpretações das ligações entre elas.
Tomando como base as citações dos planos de intervenção dos apoiadores e suas respostas a um questionário, os pesquisadores atribuíram códigos (expressões de sentidos) às referidas citações. Tais códigos foram agrupados por categorias - famílias - a partir de questões norteadoras, por exemplo: em que medida o processo de formação permitiu e contribui com uma análise de demanda territorial, identificando os nós críticos? Assim, a superfamília (no caso, "ampliação da capacidade de análise") constitui-se como bloco que reúne uma ou mais famílias (um ou mais grupos temáticos compostos por códigos).
Cabe destacar que, no intuito de realizar uma pesquisa que pudesse integrar os "sujeitos de pesquisa" como seres ativos no processo, sobretudo pela influência dos métodos avaliativos da Política Nacional de Humanização e das pesquisas avaliativas de quarta geração, buscamos construir um percurso metodológico inclusivo. Logo, os egressos desses cursos de formação, além de auxiliarem na obtenção dos grupos de dados (como tradicionalmente os sujeitos de pesquisa fazem), passaram a exercer o papel ativo de pesquisadores/debatedores, questionando, argumentando e também "estranhando" as análises realizadas. Para tal, foram convidados a participar da elaboração da metodologia, análise de dados e redação dos textos finais através da composição de comitês específicos, estando presentes também nos encontros de demonstração parcial dos resultados, dos quais as discussões resultavam em mudanças no processo de pesquisar.
É importante salientar a importância da inclusão dos mencionados sujeitos por dois aspectos principais: (1) a riqueza e complexidade que traz à análise o olhar daquele que vivenciou o processo de formação, diferentemente do pesquisador tradicional que lança um olhar de investigador externo, muitas vezes não implicado diretamente no resultado deste movimento, exceto pelo próprio produto da pesquisa; e (2) pelo caráter avaliativo participativo interventivo formativo da pesquisa, em que a troca frequente e intensa de informações, bem como as construções conjuntas feitas pelos pesquisadores "formais" e por tais sujeitos também incluídos como pesquisadores, propiciou a ambas as partes uma ampliação da capacidade de análise sobre este processo.
Diante do desafio de acompanhar o modo como a capacidade de análise se deu do ponto de vista do processo de formação, deparamo-nos com uma relação íntima entre tal capacidade e a análise de demanda. O conceito de demanda é de grande relevância para os serviços/redes de saúde. Algumas correntes teóricas, como a psicanálise, a análise institucional, até mesmo a economia, referem-se a uma manifestação de um desejo, de um pedido. No campo da saúde, esclarecer a demanda é fundamental para traçar caminhos, delinear um projeto com o(s) demandante(s), traçar estratégias e, dessa maneira, efetivar um plano de ação. A partir dos referenciais da análise institucional, os processos de contratualização do apoio podem estabelecer relação com distintos tipos de análises: demanda, oferta e implicação1.
2. ANÁLISE DE DEMANDA/CENÁRIO E PESQUISA INCLUSIVA
A constituição de uma análise de demanda, de acordo com Baremblitt2, alude ao deciframento do pedido de intervenção por parte de uma organização/indivíduo, o primeiro material de acesso aos aspectos manifestos, deliberados e conscientes que podem remeter à problemática e conflitiva da organização/indivíduo solicitante. Já para Rodrigues3, além da dimensão interpretativa dos conceitos de encomenda e de pedido, no corpo teórico da Análise Institucional, a autora traz à cena a dimensão produtiva que os constitui, onde "a relação entre encomenda e demanda se vê circunstanciada pelo dispositivo socioanalítico de intervenção, em lugar de remeter a profundidades, verdades, sentidos ocultos e/ou níveis essencializados"3. Ou seja, a análise de demanda, para além do desvelamento do que é, dispara desvios para o que pode vir a ser.
Realizar uma análise da demanda implica necessariamente examinar a forma como é habitualmente ofertado o serviço/apoio: dependendo do que se oferta como possibilidade de intervenção é que se produzirá o pedido, pois nossa solicitação (demanda) é sempre realizada a partir de uma perspectiva que entendemos como real. A análise da oferta, por sua vez, está intrinsecamente relacionada à análise de implicação, que consiste em compartilhar, junto aos envolvidos no processo, as motivações e o próprio lugar do analista/apoiador no regime de forças institucionais em que se dá a intervenção (como a remuneração, o saber acadêmico, o pertencimento a determinados coletivos, o tempo disponível e acordado, etc.).
Assim são engendradas entre si as análises de demanda, de oferta e de implicação. Independentemente da perspectiva teórica - que conceberia a demanda como produto de um deciframento ou como aquilo que ganha os regimes de visibilidade e dizibilidade enquanto enunciados coletivos - a emergência da demanda só é possível a partir do exercício de se colocar junto ao outro e seus interesses, para então resgatar e decompor os porquês e para quês que movem tanto os pedidos como as ofertas.
Nem todas as demandas são abertamente manifestas. Um usuário, ao procurar o serviço de saúde, não necessariamente refere o principal motivo de sua consulta. Em determinados momentos, os profissionais que o atendem devem analisar, através do "não dito" (mas expresso de diversas outras maneiras), a principal demanda, a angústia que clama ocultamente por escuta. Tal cenário pode ser análogo às instituições e aos atores que a compõem. Os sujeitos, presos no dever de seu papel institucional, deixam de manifestar, diretamente, as angústias do cenário mais amplo no qual estão inseridos. No entanto, quanto maior essa inquietação, mais favorável à manifestação dessas demandas ocultas o ambiente se torna, e um agente mais sensível pode ser capaz de detectá-las.
A Política Nacional de Humanização (PNH) dialoga com tal perspectiva quando apresenta um "método" que produz inclusão dos diferentes agentes implicados nos processos de produção de saúde, chamado de "método da tríplice inclusão": diferentes sujeitos (gestores, trabalhadores e usuários); do coletivo, seja como movimento social organizado ou experiência singular; e dos analisadores sociais, "(...) inclusão dos fenômenos que desestabilizam os modelos tradicionais de atenção e de gestão, acolhendo e potencializando os processos de mudança"4. Tem-se, assim, o processo de mudança como algo, em si, mutante e manifestante de necessidades e desejos dos atores envolvidos em determinada situação/cenário e, ao mesmo tempo, constitutivo de caminhos e percursos ainda não pré-definidos. Um diálogo permanente com suas contradições, antagonismos, crenças e soluções provisórias4.
Desse cenário diverso, que aposta na inclusão dos diferentes sujeitos/coletivos implicados para uma construção mais rica e plural, iniciamos a construção de uma metodologia de pesquisa que pudesse dialogar com os apoiadores formados nesses cursos e incluí-los como participantes do processo de análise. Ou seja, fugindo do papel de espectadores, sujeitos da pesquisa, são também pesquisadores com um olhar diferenciado, propondo o estranhamento de quem viveu o processo sobre os dados que auxiliaram a gerar. Desse modo, constituiu-se uma pesquisa avaliativa, participativa, inclusiva e interventiva.
Paulon5 alerta que em uma pesquisa-intervenção os movimentos são vividos como uma metamorfose e, consequentemente, não podem ser apreendidos por uma técnica capaz de garantir a fidedignidade à informação que procura congelar o processo para poder estudá-lo. Por isso, procura identificar possíveis "analisadores". Assim:
(...) o analisador refere-se a todo dispositivo revelador das contradições de uma época, de um acontecimento, de um momento de grupo e que permita, a partir de uma análise de decomposição do que aparecia até então como uma totalidade homogênea (uma verdade instituída), desvelar o caráter fragmentário, parcial e polifônico de toda realidade5.
Em um curso-intervenção – entendido como um processo formativo no qual a construção de uma intervenção perpassa todos os momentos – como os que foram objeto da presente pesquisa, a análise de cenário é um momento de fundamental importância. A partir dela é traçada a intervenção, e tanto as chances de sucesso quanto o seu grau de legitimação pelos outros agentes dependem de uma análise ampliada, incluindo o manifesto e o "não manifesto". Tanto questões cotidianas quanto eventos pontuais podem servir como analisadores importantes para essa identificação.
A ampliação da capacidade de análise abordada neste texto é uma tentativa de demonstrar as várias formas e momentos em que o processo de formação-intervenção propiciou aos apoiadores um olhar distinto, de maior amplitude, quiçá mais profundo e integral, sobre o próprio processo de formação, sobre o cenário em que estavam inseridos na prática profissional e sobre os modos de intervir para tornar o sistema de saúde mais próximo do que busca para o SUS.
3. A AMPLIAÇÃO E LIMITES DA CAPACIDADE DE ANÁLISE
Em uma análise mais geral dos dados utilizados neste estudo, podemos dizer que o curso permitiu aos apoiadores ampliarem sua capacidade de análise sobre o seu processo de trabalho e sobre o modelo de atenção instituído em seus espaços de atuação. Esse novo olhar sobre a realidade se deu, muitas vezes, sobre a percepção dos nós críticos presentes no cotidiano dos apoiadores, isto é, a metodologia proposta no curso permitiu que os apoiadores em formação estimulassem e desenvolvessem uma capacidade crítica sobre o seu fazer.
Sabemos e reconhecemos que há uma dificuldade da nossa unidade de saúde em lidar com a demanda não agendada ou espontânea de forma qualificada e com critérios de acesso implicados com o sofrimento das pessoas que procuram o serviço (Plano de intervenção de um apoiador).
Sabemos que muitos são os desafios que teremos que passar para fazer valer esses princípios, onde devemos lutar a cada dia que se passa por uma saúde melhor e de qualidade e não quantidade. Ver a patologia sim, mais visar o indivíduo, o ser humano em si como um todo. Todos nós profissionais da saúde estamos comprometidos em cuidar, prevenir, proteger, promover, recuperar e produzir saúde. Ter uma corresponsabilização com o sujeito, ou seja, usuário dos serviços de saúde (Plano de intervenção de um apoiador).
No âmbito direto de atuação dos profissionais, o estímulo à análise de demanda dos usuários para a oferta de serviços condizentes com a realidade destes possibilitou a percepção da importância em entender as necessidades do território (mapeamento). Ocorre então uma mudança no modo de entendimento do que seja demanda, a partir do momento em que se relaciona a demanda com a oferta que está sendo realizada. Do que adiantaria ofertar serviços/grupos/discussões que não fazem sentido para aquela comunidade em análise. "O que a gente precisa, primeiramente, é mapear essa comunidade. Será que no momento eles querem saber sobre hipertensão?" (Narrativa de grupo focal).
Essa mudança de atitude, que passa de diretiva, ou seja, vinculada à concretude dos dados e ações realizadas, para compreensiva, que denota um olhar diferenciado para o que se realiza e o que pode ser a demanda do território, sugere uma ampliação da capacidade de análise no seu cerne mais prático e direto. Independentemente se o planejamento dos serviços e práticas em um ambiente de cuidado à saúde for realizado puramente a partir da opinião empírica dos trabalhadores ou baseado em indicadores, deve ser explícito que em todos os casos a decisão é coletiva, com participação da equipe, indivíduos e coletivos implicados.
O Curso traz um novo horizonte, te instrumentaliza, traz novos conceitos que nos geram um reposicionamento, uma nova forma de fazer. É um novo modo de fazer, que vai pra além de uma formação acadêmica. Ela pensa um lugar, uma equipe, todo um sistema. É um exercício de colocação pessoal e profissional. Permite nos colocar em análise (Narrativa de grupo focal).
O apoiador não é sujeito de formação estanque, de análise determinada e certa. Tampouco deve ser responsável por todas as intervenções possíveis no ambiente/serviço/rede. Portanto, é ponto fundamental do apoio o contágio de outros agentes, o despertar de atores que sejam tocados pela possibilidade de mudanças ético-políticas. Porém, ao analisar os dados, percebemos que a ampliação da capacidade analítica, em muitas vezes, permaneceu adstrita ao apoiador, sem o contágio dos demais trabalhadores nos territórios. A discussão com estes, em determinados cenários, se restringiu ao Método da Roda, como um momento de identificar e coletar analisadores. Contudo, as reflexões oriundas de tais rodas não sinalizam a clareza necessária dos momentos de análise conjunta e aprofundada da realidade entre gestores, apoiadores, usuários e profissionais de saúde, com a dissociação da hierarquia profissional e institucional6.
Percebi que minha implicância e minha militância não é a "do outro" e eu tinha que fazer, de certa forma, aqueles trabalhadores entenderem que a PNH nos dá um caminho (Plano de intervenção de um apoiador).
Hoje percebo a minha participação como gestora da Sala 10 e tenho ciência que, se não fosse a teoria que estava se alicerçando, o processo seria mais difícil (Plano de intervenção de um apoiador).
Nossos gestores tinham uma visão totalmente errônea da PNH, com a percepção de que "humanizar" é ser "atencioso com o paciente" e "agradá-lo". Foram realizadas muitas intervenções no âmbito da divulgação das ações e dispositivos da PNH (Plano de intervenção de um apoiador).
Fato a ser destacado é que, através de levantamento realizado com a aplicação de questionário após o término do curso, verificou-se que mais de 65% dos apoiadores formados (egressos do curso) tiveram mudança de local de trabalho entre o final do curso e a data de aplicação do instrumento. Destes, mais da metade relatou que houve relação com o curso, em um sentido positivo. De maneira geral, os relatos citavam que as atividades desenvolvidas como apoiador e os bons resultados alcançados no local de trabalho inicial fizeram com que a gestão propusesse um novo posto de trabalho. Em muitos casos, este novo local se tratava de um cargo a partir do qual seria possível realizar apoio institucional. Os relatos não tocam no mérito da "institucionalização" do apoiador. Pelo contrário: citam os novos cargos sob uma perspectiva de maior liberdade para o desenvolvimento do apoio, sobretudo de maior abrangência. Podemos entender, então, que as análises realizadas pelos apoiadores em conjunto com os demais trabalhadores locais, e os resultados apreendidos, possibilitam uma mudança na análise realizada pelos gestores sobre o papel do apoio, valorando-o.
Todavia, não podemos deixar de citar alguns poucos casos em que ocorreu o oposto: o descontentamento da gestão com relação a um olhar mais crítico, lançado e estimulado pelos apoiadores, fez com que esses fossem demitidos das instituições públicas onde trabalhavam. Aqui a ampliação da capacidade de análise, em conjunto com as ações desta derivadas, lançadas pelos apoiadores em formação; e o evidenciamento de questões políticas que não se quisera expostos, pelos gestores, fizeram com que o "cale-se" recaísse sobre os pontos mais "frágeis" dessa dualidade de poderes.
A análise dos processos e dos nós críticos nas colocações dos apoiadores perpassou pela promoção da saúde individualista, refletindo uma moralidade existente em muitos discursos da saúde. Há a demonstração de uma "busca por causas evidentes para regular conduta em direção a novas ideias de higiene comportamental em época de altos custos para ações de saúde"7; ou seja, trouxe o processo de culpabilização do outro a partir de práticas individuais. No exercício de avaliar o cenário e buscar analisadores, os apoiadores transcorreram um momento de apontar os erros, tanto de seus colegas, gestores e usuários, classificando os gestores, por exemplo, como autoritários e unilaterais. Dessa forma, em algumas rodas realizadas pelos apoiadores, temos o mesmo comportamento, em que os participantes questionam ações e posturas dos colegas, fazendo julgamentos quanto à postura e à ética profissional. Este modo de pensar, condicionado por uma sociedade pós-moderna e individualista, consente uma lacuna dificultando o andamento do processo, devido ao fluxo corrente da própria PNH com os seus conceitos e objetivos, como a implementação dos princípios do SUS, embasados na coletividade e não na individualidade; procurando realizar um rompimento com o modo hegemônico, atual. Assim, podemos afirmar que, ao se tentar caminhar para as mudanças no processo de trabalho, é necessário que se avance com o respeito e a inserção da coletividade, e o papel do apoiador é justamente o de promover o direcionamento para as críticas, buscando potência naquilo que é percebido como "problema", para a reflexão de todas as pessoas pertencentes ao grupo na direção da construção de ações conjuntas como solução ao problema, e não julgamento7.
Muitos acabam se decepcionando com a carreira profissional, ou com a vida pessoal, e preferem cruzar os braços por já terem tido frustrações, por não terem o reconhecimento que acreditam que mereciam, preferem então não mais estressarem-se e preocuparem-se e vão transformando-se em profissionais acomodados, fazendo somente as funções básicas, sem se importarem em atualizar seus conhecimentos, qualificar sua prática. Assim tornam-se verdadeiros "funcionários públicos": recebem sem muito esforço. Levam esse título e não fazem nada para não serem rotulados como tal (Plano de intervenção de um apoiador).
Mas ao mesmo tempo a administração municipal não compreende e não segue a mesma linha de seus pensamentos, interferindo em suas tomadas de decisões e não permitindo que o gestor da saúde gerencie seus conflitos e ideais da forma que o mesmo gostaria, pois como é sabido por todos, o gestor em saúde passa por inúmeras capacitações oferecidas há todos os instantes pela SES para que saiba como deverá atuar em seu mandato, mas as mesmas informações não chegam ao gabinete do prefeito e nem de muitos outros secretários de governo que muitas vezes sentem-se enciumados com o poder que lhe é conferido por meio da legalidade, e este passa a ser vítima de boicotes (Plano de intervenção de um apoiador).
Como era de se esperar, a formação do apoiador, incluindo a sua capacidade de análise, não se restringia ao curso, em si. Os momentos em que tentava ofertar o apoio no seu ambiente/rede de trabalho foram fundamentais para a consolidação do escopo de intervenção deste ator em construção. No entanto, apesar de o curso ser fundamentado na PNH, o apoiador deveria ser capaz de enxergar tal política apenas com "um dos modos" de fazer, como "uma faz formas" de construção nos territórios. Nesse sentido, identificamos que alguns apoiadores foram capazes de perceber os nós, questionar seu fazer e os modelos de atenção, mas muitos desses atores restringiram as possibilidades de mudança à PNH, tendo esta Política como resposta e caminho único para a mudança.
Construindo o Plano de Intervenção, com a criação do Comitê Gestor Municipal de Humanização, vamos caminhando cada vez mais para o objetivo final deste processo, que é promover e implementar a Política de Humanização em toda a rede de saúde do município (Plano de intervenção de um apoiador).
Concluí que o atendimento, principalmente nos setores de urgência e emergência, estão precarizados, o que requer um certo tempo de adaptação com a implantação da Política de Humanização para reestruturar a forma de fazer assistência à população (Plano de intervenção de um apoiador).
4. CAMINHOS, PRÁTICAS E PRODUÇÕES DE SI
Cabe ressaltar que a própria PNH não se coloca como "o caminho correto" para a construção de um sistema de saúde melhor. Tampouco é uma política estanque, dura, hierárquica. Como uma aposta construída e reconstruída a partir de diferentes modos de fazer já em prática, procurando aglutinar nos seus amplos princípios diferentes atores/coletivos, colocando, a si mesma, como "um modo de fazer". Nesse mesmo sentido, o apoiador poderia ser capaz de extrapolar o papel formal, fugindo das institucionalidades, e ser um agente que favorecesse a construção de novos caminhos. O caminho para os novos modos de pensar, em que o coletivo compõe a sociedade formando uma teia, que engloba todas as pessoas, sem procurar pontuar erros, mas sim construir ações conjuntas em que todos possuam uma participação e consigam desenvolver um efeito de responsabilidade no processo de trabalho; é um dos intuitos da produção de novas práticas e de si.
Como não se constroem caminhos de maneira autônoma sem conhecimento, os dados coletados a posteriori com os questionários nos trazem que apenas 13% dos apoiadores entendiam que os seus colegas de trabalho e chefia imediata possuíam "bom" conhecimento sobre a PNH. Contudo, 69% e 60% percebiam que, através das intervenções realizadas, os colegas de trabalho e a chefia imediata, respectivamente, ampliaram o grau de conhecimento/entendimento da política, métodos e possibilidades. Isso nos dá uma boa ideia da potência que o método do apoio traz consigo e as possibilidades de análise derivadas deste cenário. Podemos até vislumbrar a continuidade, ao menos parcial, dessa capilarização a partir da extensão da capacidade de análise em todos esses profissionais sensibilizados. E podemos levar em consideração que a "produção de si" reverbera na produção de sujeitos sensibilizados, o que, de certo modo, demonstra com uma questão de perspectiva e de contágio de outros atores no exercício cotidiano de produção de saúde.
Nos fragmentos dos planos de intervenção, há evidências de que foram pensadas práticas voltadas aos trabalhadores da saúde, nos territórios onde os apoiadores atuavam. Não está descrito nos planos de intervenção como seriam desenvolvidas tais práticas, mostrando apenas o desejo de olhar para uma melhoria da qualidade de vida no ambiente de trabalho. Assim, há um movimento especulatório na direção da produção de si na relação com o envolvimento com a equipe de inserção.
Decidiram também desenvolver um projeto: "cuidando do cuidador", onde eles teriam garantido um espaço para eles trabalharem o estresse no cotidiano das equipes. Cada equipe escolherá de que forma isto irá acontecer (Plano de intervenção de um apoiador).
(...) paciente, movimentos para criar serviços de assistência à saúde do trabalhador, participação e realização de seminários, eventos, bem como elaboração de um mural para divulgação da PNH entre os servidores (Plano de intervenção de um apoiador).
Nesse processo de "produção se si" e construção com o outro, o apoiador aparece em algumas falas como um agente externo, um ser que não é o seu "eu profissional", seu "eu cotidiano". Com o processo de formação, e com a necessidade de que ele mesmo se incumbe, a de "ser apoiador", coloca-se em duas posições distintas, em momentos distintos: o profissional e o apoiador. Este modo dicotômico e dualista de se colocar – ou sou um apoiador ou sou um profissional da área da saúde – reflete o que Guattari8 classifica como subjetivação individualizada, condicionada por uma sociedade de modo de produção capitalista, e afirma a possibilidade de mudarmos esse modo de ser com "processos de singularização".
Contudo, por várias vezes saí do lugar de gerente da unidade de saúde e assumi a função de apoiadora institucional dentro de minha própria unidade de saúde (Plano de intervenção de um apoiador).
Assim, conseguiríamos efetivamente agenciar a produção de si e outras práticas, sem dissociá-las? Podemos considerar que o sentimento de pertencimento ao sistema, de empoderamento (empowerment) e corresponsabilização colabora na promoção de saúde ao apoiador e aos trabalhadores. O termo empowerment, de acordo com Carvalho9, define-se como o acúmulo de poder nas esferas políticas, intersubjetivas e pessoais. Ao mesmo tempo é processo e resultado de ações que afetam e distribuem o poder.
Este curso produziu em mim o desejo de um SUS que dá certo, acreditar nele enquanto plano de saúde. Na Instituição que trabalho discretamente produziu o desejo de participar das decisões de conhecer melhor a PNH (Plano de intervenção de um apoiador).
Sinto-me orgulhosa, por ter a oportunidade de vivenciar e, de alguma forma, contribuir com a Política Nacional de Humanização no estado de Santa Catarina. Fazer parte deste processo, poder conhecer, compartilhar, e principalmente ser um vetor, objetivando contagiar o maior número de pessoas possível com a ideia da PNH, isso é realmente gratificante (Plano de intervenção de um apoiador).
(Re) conhecer as ações já disparadas e/ou em andamento nos seus territórios a partir das diretrizes e dos dispositivos da PNH fez com que os apoiadores tivessem um empoderamento não só dos conceitos apresentados no curso, mas, também, de utilizá-los em um modo outro de ofertar cuidado/saúde possibilitando pensar em um modelo de saúde que não mais curativo e assistencialista. Compreende-se que os profissionais se mobilizam e se envolvem mais quando as discussões são referentes ao seu contexto de trabalho (e de vida), e quando destas discussões derivam produtos concretos, visibilizando os frutos de tal trabalho. Os apoiadores apontam que as rodas de conversa surgem como metodologia preferencial, tanto nos momentos de análise do território e construção de intervenções, quanto nas possibilidades construídas de disseminação da função apoio. Muitos relatam que passaram a experimentar em suas unidades a metodologia das rodas de conversa como espaço cotidiano de troca de saberes. Apontam como algo positivo, que aproxima, que possibilita discussões e que acrescenta, afirmam em grupo focal realizado a posteriori.
A construção de espaços como este, nos ambientes/redes de trabalho, foi fundamental para a continuidade das intervenções durante e após os cursos. Se os "gestores autoritários", como apontado por alguns apoiadores, constituíram-se como dificultadores na abertura de espaços, este mesmo tipo de atitude de alguns gestores foi o motivador para que os apoiadores em formação e os coletivos em construção no local pudessem entender que as possibilidades não se esgotavam na PNH. Ainda, a ampliação da compreensão de apoio, de coletivos atuantes, de intervenção, fez com que o fechamento formal de espaços instituídos (como GTHs) fomentasse a construção de outros espaços, externos às instituições, mas mais potentes.
Dessas possibilidades de mudança das práticas instituídas aparece certo reencantamento com os modos de produção de trabalho. Esse "novo" encantamento se reflete, na prática, em outra postura ou forma de se posicionar frente às situações do cotidiano. Há então, de certo modo, um impacto deste reencantamento nas práticas de saúde, na produção do contato com perspectivas e análises diferentes sobre situações e problemas enfrentados.
Ainda não posso falar com muita segurança sobre a PNH, mas, com certeza, minha maneira de olhar, e de ver as coisas, mudaram, o que antes tinha que ser provado por A+B, hoje pode ser "vamos discutir", "vamos ver o que é melhor para todos", "o que podemos aproveitar de cada situação". Sinto que neste período de formação cresci muito, mas tenho muito ainda a aprender, sei que é difícil mudar algumas concepções, mas agora sei que é possível, talvez não mudar, mas agregar, ver o outro lado das coisas. Aprendi que o saber coletivo é muito grande e não tem limites (Plano de intervenção de um apoiador).
Como citado anteriormente, ainda que tais construções para os trabalhadores tenham sido mencionadas, nos planos de intervenção as reflexões acerca das práticas de cuidado ainda permanecem mais voltadas para os usuários. As discussões seguem na direção do posicionamento da equipe frente aos usuários e seus familiares, sobre autonomia e empoderamento (empowerment) de quem procura os serviços de saúde, e de como os profissionais podem promover melhores práticas de cuidado aos referidos usuários.
Em nossa realidade, o maior desafio era de refazer e/ou fortalecer um novo método de atenção, diferente do modelo que estava implantado no nosso município, que tem como base a valorização do sistema privado, aliado ao descomprometimento e não qualificação dos servidores voltada para a saúde pública. Isto piora a realidade quando encontrávamos usuários com relação de submissão ao serviço de saúde, a realidade encontrada no município era inacreditável, do ponto de vista da relação de poder estabelecida entre trabalhadores de saúde (dos "Doutores" aos profissionais de enfermagem) e usuários. Estas questões e a falta de informação fragilizam o dia a dia de trabalho (Plano de intervenção de um apoiador).
Cuidar é uma atitude de responsabilização conjunta e em construção de todos os indivíduos envolvidos. Responsabilizar-se é ser capaz de responder aos anseios do outro, desenvolvendo ações de autonomia em resposta a uma determinada situação (Plano de intervenção de um apoiador).
Como profissional, devemos nos preocupar com o zelo á saúde do paciente e com o respeito á dignidade do mesmo, preceitos fundamentais da humanização da assistência (Plano de intervenção de um apoiador).
A exemplo de outros trabalhos que retratam o processo formativo na Política Nacional de Humanização, as análises consideram que ocorrem mudanças subjetivas nos participantes, referindo sentir-se "potencializados", em que o curso permite a "abertura para novas possibilidades", experimentando mudanças afetivas e a ampliação dos graus de comunicação: em alguns casos, restritos à expressão dos sujeitos, em outros, se desdobrando nos processos de trabalho dos serviços de saúde. Porém, se em vários momentos a ampliação de tal capacidade de análise, seja sobre o ambiente de trabalho, seja sobre os territórios, seja sobre a própria PNH, permitiu vislumbrar outras possibilidades, o fato de alguns apoiadores colocarem "para si" as responsabilidades das intervenções/mudanças/análises demonstra uma fragilidade dessa capacidade analítica. O entendimento de que o "fazer" é anterior ao contágio, à conversa, aos afetos, perpassa por um reducionismo também encontrado em outras categorias de análise dessa mesma pesquisa. Sugere que alguns apoiadores em formação se apropriaram de tal forma das ferramentas e potências demonstradas que passaram a entender o "eu" como principal ser com uma capacidade de "análise ampliada"10.
Podemos dizer que os cursos realizados ocasionaram "trans-formações" aos próprios apoiadores, resultando numa inflexão subjetiva, como propõe Guattari8, que nos levaria a outro patamar que supere a objetividade e racionalidade produzida pela lógica do modo de produção capitalista e valorize, no campo da saúde, a dimensão subjetiva e relacional, por sua vez, produtora de cuidados de saúde. No entanto, como dimensão subjetiva, refletiu-se de maneira singular em cada indivíduo. Com base nos dados analisados, podemos perceber que, para alguns apoiadores, a existência de tarefas a serem concluídas, como em todo curso, pode ter limitado a capacidade de análise dos cenários, a priori. O entendimento de que a maior tarefa do curso seria a própria formação do apoiador e as possibilidades criadas nos territórios durante esse processo só foram sendo clarificados ao longo da formação. Assim, nos momentos de colheita de dados realizada após a finalização do curso, os apoiadores demonstraram que a "revisitação" a cada um dos momentos deste curso ampliou a capacidade de análise sobre o próprio processo de formação.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pode-se considerar que as reflexões sobre a "ampliação da capacidade de análise" no curso ampliam/ampliaram a capacidade de análise dos trabalhadores/apoiadores.
De modo geral, compreende-se que sem o empoderamento dos apoiadores o processo de intervenção teria parado, ponto identificado por muitos. O momento inicial do curso buscou o mapeamento do território e de possíveis parceiros, permitindo a "semeadura" de ideias. Da identificação do território, permitiu-se reidentificar pontos críticos já familiares, mas sob um novo olhar, com mais detalhamento e possibilidade de intervenção. Esse "novo" olhar seria uma construção coletiva a partir da visão do apoiador, mas com a Unidade de Produção (UP) como espaço de troca. Segundo os próprios apoiadores, no momento de restituição das análises parciais da pesquisa, a análise de demanda - como módulo teórico do curso que convidava os apoiadores a fazerem uma leitura do contexto e das necessidades de seus territórios - não se constituiu como momento isolado de mudança em relação ao exercício analítico. Tal capacidade de análise entrou em exercício efetivo na feitoria do plano de intervenção, ao final dele, e não exatamente numa das etapas didáticas do curso. Ou seja, o módulo de análise de cenário foi revisitado em momento posterior e a análise está intimamente relacionada à prática do plano de intervenção. Neste mesmo sentido, entende-se que a troca entre os apoiadores em formação possibilitou utilizar formas já experimentadas em outros locais, mas também de construir uma nova maneira de encarar os pontos críticos.
Acho que sim, e acho que muitos de nós eram familiares, outros o curso nos ajudou, esteve do nosso lado, assim, vamos olhar juntos para esses nós. E eu acho que esse momento inicial do curso que a gente ficou muito discutindo o cenário, a governabilidade (...) eu acho que esse momento permitiu a gente olhar de uma outra maneira a nossa realidade, um outro estranhamento. (...) eu acho que a gente estava apoiada (Narrativa de Grupo Focal).
Há casos nos quais o GTH (Grupo de Trabalho Humanização) no município foi destituído, mas esse movimento do gestor de tolhimento à discussão acabou sendo um motivador para a organização em outros moldes, por dentro de espaços já existentes, como, por exemplo, os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF); ou ainda, a melhor utilização dos espaços de diálogo não tão institucionais, como as reuniões de equipe. Houve ainda a criação de novos espaços pensados unicamente para propiciar este tipo de discussão, como um modo não institucional e, portanto, um coletivo autônomo. Leva-se em consideração que o curso foi um grande disparador de processos e que a análise inicial serviu para construir uma base sólida dos passos seguintes na construção da intervenção. No início do curso, os apoiadores em formação começaram a perceber que não eram os únicos inquietos com determinados problemas e tal levantamento só foi possível através do diálogo com o outro. Se hoje os coletivos são outros, e não mais GTH, por exemplo - com o rótulo da Humanização - eles se constituem a partir de brechas, por meio de coletivos com outras permeabilidades. Além disso, os apoiadores referiram que o peso do aval do gestor passou a adquirir, com o tempo, outra dimensão. Todavia, reconhece-se o "pnhguês" como etapa didática importante, que sustentou um saber-fazer e que permitiu uma capilarização posterior.
Quando ela (PNH) surgiu, que no município foi por lá por 2005, 2005, acho foi necessária essa questão didática, foi necessária... porque tudo tem fases, né? Para chegar numa fase de incorporar, tu tens que vir lá com a cartilhazinha, né, tem que chegar em roda, sentar junto e "ó, vamos estudar isso aqui agora?", né? porque aí que começou, não tem como a gente dizer... incorporar já de cara, é difícil, né, então olha só, dez anos se passaram (...) então acho que é bem legal parar, sentar e fazer essa análise (Narrativa de Grupo Focal).
E assim, deu ranço: a história de PNH, acolhimento... a gente mudou o rótulo, pronto! não se fala mais em rótulo, e aí se consegue, porque a gente vai se infiltrando, vai fazendo de um outro jeito, sem levantar bandeirinha, né? (Narrativa de Grupo Focal).
Devem-se levar em conta alguns desafios, especialmente, pela construção processual do curso, impulsionando uma meta-análise, isto é, um exercício permanente de pôr em análise o que rodeia e compõe um espaço e contexto de atuação. Ao mesmo tempo, a própria metodologia do curso exercitava uma ruptura com métodos tradicionais em que a ênfase está nas tarefas/atividades a serem cumpridas. Correlacionam-se tais apontamentos, diante dos crescentes diálogos subsidiados no curso e sublinhados no encontro final da pesquisa. Paulatinamente, demonstrou-se uma perceptível ansiedade pela realização das tarefas necessárias à formação por parte dos apoiadores, uma vez que a metodologia utilizada pelo curso foi sendo clarificada ao longo do processo. Pode-se considerar que essa "pressão" possa ter sido maior no curso do Estado do Rio Grande do Sul, visto que tinha como objetivo final a titulação de "especialização"; logo, trazia consigo um grau de exigência maior. Dessa forma, a necessidade de conclusão de tarefas pode ter prejudicado a ampliação da capacidade de análise do cenário/sujeitos em um primeiro momento, já que não havia o entendimento inicial de que o curso não seria modular, e que a maior tarefa seria uma construção contínua e não finalizada ao término do próprio curso. Neste, destaca-se como positivo que a cada momento eram revisitados os momentos anteriores, fazendo com que os apoiadores em formação olhassem para eles mesmos e suas práticas, recursivamente. Assim, o curso gerou um "álibi" para que as práticas acontecessem, pois vontades existiam anteriormente ao curso, mas não havia "motivo" para começar uma intervenção. Uma das questões trazidas pelos apoiadores que vivenciaram o processo do curso, como "reação" às análises parciais apresentadas, foi à dúvida sobre terem conseguido ou não compartilhar e produzir tal capacidade de exercer a análise com os seus coletivos na mesma intensidade com que vivenciaram:
Apesar da gente mobilizar coletivos, eu não sei se a gente pode dizer que conseguimos ampliar a capacidade de análise dos coletivos, dos nossos coletivos, acho que teve movimento, em alguns momentos, algumas mobilizações... agora dizer... eu acho que não, acho que não. Eles até hoje fazem referência àquele momento, as intervenções feitas, às rodas, agora dizer que a capacidade de análise também foi transformada, eu acho que não dá para dizer (Narrativa de Grupo focal).
Diante dessa noção de cenário e contexto, percebem-se algumas consequências e dois pontos merecem relevância dentro dos resultados: 1) a ampliação da capacidade de análise permaneceu adstrita aos apoiadores, não contagiando, em muitas vezes, os demais trabalhadores nos territórios; 2) a discussão com os demais trabalhadores restringiu-se, na maior parte, ao método da roda, como um momento de identificar e coletar analisadores. Porém, as reflexões oriundas dessas rodas não sinalizam a clareza necessária dos momentos de análise conjunta e aprofundada da realidade entre gestores, apoiadores, usuários e profissionais de saúde com a dissociação de hierarquia profissional e institucional. Não se trata de remeter a uma "incapacidade" dos apoiadores, mas atribuir sentido ao que dos espaços era possível produzir.
Podemos considerar, assim, que, ao avaliar o cenário inicialmente e buscar analisadores, os apoiadores transcorreram um momento de culpabilização do outro. Houve, então, uma sinalização em vários momentos de que "não fui eu, como apoiador, que não consegui realizar nada; foi a PNH que não me deu instrumentos ou os outros que não se esforçaram". Questiona-se se tal culpabilização é uma análise de cenário. A figura dos gestores foi muito importante nos encontros para a validação das práticas, de modo que essa legitimação diminuiu a culpabilização do gestor. Contudo, a vontade e acreditação podem fazer com que, ainda com gestores autoritários, os movimentos pudessem continuar acontecendo nos espaços de discussão. E, ademais, deve-se relatar que a culpabilização iniciou durante o curso, a partir das frustrações perante as dificuldades em realizar o plano de intervenção "logo", isto é, a ideia do tempo como um elemento produtor da própria demanda. Assim, a culpabilização se tornou mais difusa, já que outras formas surgiram com a análise, diminuindo a questão de que, "se o outro não quiser, não vai acontecer".
Num exercício retrospectivo, analisando ao final do curso, entende-se que a intervenção pode ocorrer de outras formas. A partir do amadurecimento do apoiador e da capacidade de percepção do que seria uma intervenção, das multifacetas que essa ferramenta pode ter, dos vários atores e ambientes em que pode acontecer e de que as possibilidades são muito maiores do que as "apostilas" da PNH apontavam.
Pondera-se que para os apoiadores que já estavam identificados com a PNH houve menor ampliação, mas sim o exercício da capacidade de análise. Alguns apoiadores argumentam que responder o questionário (a posteriori) gerou um momento de reflexão sobre as análises realizadas ao longo do processo de formação. Questiona-se se essa análise ocorreu pelo fato de alguns apoiadores estarem inseridos na pesquisa ou se ela já vinha acontecendo ao longo do tempo. Uma apoiadora responde que, apesar da referida análise ocorrer, o questionário ajudou e ampliou muito isso. Ao responder o questionário, se "forçou" uma análise de cenário/coletivo e um reposicionamento sobre os modos de fazer atualmente e durante o curso. De certo modo, percebe-se que os coletivos são coletivos de trabalho, que incorporaram a PNH às suas práticas; ou seja, a PNH chega a um dos seus grandes objetivos: diluir-se nas práticas cotidianas.
No evento final da pesquisa, uma apoiadora fala que "o se colocar" no lugar de apoio, ser apoiador, sem ter a necessidade imediata de fincar uma bandeira, de enxergar no coletivo outras potências é algo que se consegue muito melhor agora do que no momento da formação.
Portanto, em que momento fazemos a distinção: estamos falando da ampliação da capacidade de análise ou do exercício da capacidade de análise? Algumas respostas inacabadas: a junção da prática e dos conceitos, em um movimento dialético, fez com que houvesse a própria ampliação da análise de tais dispositivos. E, as transformações ocorridas contribuíram para a ampliação dessa capacidade de análise, passando a perceber as potências onde antes só se enxergavam problemas.
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Endereço para correspondência
Carlos Alberto Severo Garcia Junior
Universidade Federal de Santa Catarina
Centro de Ciências da Saúde
Campus Universitário - Trindade
CEP: 88040-900. Florianópolis, SC – Brasil
Email: carlosgarciajunior@hotmail.com
Tel.: (48) 9948-6694
Artigo encaminhado 05/10/2014
Aceito para publicação em 13/11/2014
Notas
* Doutorando em Ciências Humanas
** Doutorando em Saúde Coletiva
*** Mestre em Saúde Coletiva
**** Professor Assistente