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Estudos Interdisciplinares em Psicologia
versão On-line ISSN 2236-6407
Est. Inter. Psicol. vol.5 no.2 Londrina 2014
https://doi.org/10.5433/2236-6407.2014v5n2p34
Artigos
DOI: 10.5433/2236-6407.2014v5n2p34
Concepções dos operadores do Direito sobre crimes sexuais conjugais e extraconjugais: implicações psicossociais
Conceptions of operators of law on marital and extramarital sexual crimes: psychosocial implications
Concepciónes de los profesionales del derecho sobre delitos sexuales matrimoniales y extramatrimoniales: implicaciones psicosociales
Clarissa De Antoni*, I; Carolina de Vasconcellos Mazoni**; Filipe Witz Musskopf***
I Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre. Porto Alegre, Rio Grande do Sul
Resumo
Este estudo identificou as concepções dos operadores do Direito sobre crimes de violência sexual conjugal e extraconjugal contra mulheres. Participaram deste estudo três operadores do Direito que atuam na área: um Juiz de Direito, um Promotor de Justiça e um Defensor Público, com idades entre 39 e 47 anos e sexo masculino. Foi realizada entrevista semidirigida, abordando aspectos jurídicos e psicossociais, e apresentação de um caso fictício. Utilizou-se à análise de conteúdo e foram criadas três categorias: 1) crimes sexuais conjugais; 2) crimes sexuais extraconjugais cometidos por desconhecidos e; 3) Comparação entre ambos os crimes. Foram encontrados diversos resultados, sendo o de maior relevância a compreensão de que o estupro conjugal é atenuado pelo vínculo do casal, enquanto o extraconjugal foi visto como algo mais agressivo. Percebe-se que as crenças dos operadores do Direito podem interferir no seu julgamento sobre crimes sexuais cometidos no âmbito conjugal.
Palavras-chave: estupro; crimes sexuais; operadores do Direito; mulheres.
Abstract
The present study aims to identify the conceptions of legal operators on crimes of marital and extramarital sexual violence against women. The study included three operators of the Law: A Judge of a District, Attorney and a Public Defender, aged between 39 and 47 years. Semi-instructured interview was conducted and also presented a fictitious case of marital rape. The data were subjected to qualitative content analysis and found three categories: 1) insight into the marital sexual crimes, 2) insight into the extramarital sexual crimes committed by strangers and 3) comparison beside marital sexual crimes and extramarital sexual crimes. Different results were found, the more relevant is the perception that marital rape is mitigated by the double bond, while the outside of the conjugal was seen as something more aggressive. This research proved important to better understand how beliefs of legal operators can interfere how the law is applied with work within marital rape.
Keywords: rape; sexual crimes; law professionals; women.
Resumen
Este estudio identificó las concepciónes de los operadores jurídicos sobre la violencia sexual marital y extramarital contra los crímenes de las mujeres. Los participantes fueron tres profesionales del Derecho: un Juez, de un fiscal de distrito y un Defensor Público, con edades entre 39 y 47 años de edad y de sexo masculino. Entrevista semiestructurada, abordando los aspectos legales y psicosociales y la presentación de un caso ficticio. Se utilizó el análisis de contenido y criamostres categorías: 1) crímenes sexuales maritales; 2) y los delitos sexuales extramaritales cometidos por extraños; 3) La comparación entre los dos crímenes. Se encontraron diferentes resultados, la más relevante la percepción de que la violación marital es mitigado por el doble enlace , mientras que la parte exterior de la conyugal era visto como algo más agresivo. Se dio cuenta de que las creencias de los operadores jurídicos pueden interferir con el juicio sobre los crímenes sexuales cometidos en el matrimonio.
Palabras clave: violación; delitos sexuales; profesionales del derecho; las mujeres.
Introdução
A interface entre as disciplinas de Psicologia e de Direito ainda estão em processo de aproximação. Os fenômenos são vistos, muitas vezes, em diferentes perspectivas de interpretações. Uma destas diferenças está voltada para a questão da violência sexual. Embora a prática de sexo violento seja considerada pela sociedade uma conduta repulsiva, no Direito, o foco é dirigido para inibir sua incidência, com uma rigorosa punição por parte do ente estatal, tendo uma regulação com penas pesadas a quem o pratica contra outra pessoa sem o consentimento desta. Na Psicologia, é compreendida como um fenômeno que necessita ser observado em todo o seu processo, isto é, em sua multicausalidade, expressões e nas diversas consequências psicossociais existentes e em relação a todas as pessoas envolvidas (agressores e vítimas).
No Direito, a violência sexual caracteriza-se pelo uso da força e da coerção para o fim de se obter da vítima uma relação sexual de qualquer natureza: seja conjunção carnal (cópula vagínica) ou atos libidinosos em geral. O fim é obtido por meios que anulem e/ou viciem a vontade da vítima (Oliveira, 2009). Na Psicologia, por meio de estudos vinculados à área da saúde, a violência sexual é conceituada como qualquer ato sexual ou tentativa de obter ato sexual sem consentimento da vítima, o que muitas vezes envolve intimidação ou coerção. Esses atos podem ocasionar consequências graves (Moura & Koller, 2008). Os estudos na área do desenvolvimento humano têm se concentrado em investigar principalmente as vítimas, havendo, assim, uma lacuna importante no que diz respeito aos perpetradores de violência; só recentemente tem sido abordada a perspectiva dos agressores sexuais em estudos brasileiros sobre o tema (Sanfelice & De Antoni, 2010; Moura & Koller, 2008). Além disso, no âmbito nacional e internacional, a produção sobre esse fenômeno tem se focado em casos de abusos sexuais infanto-juvenis (Habigzang, Azevedo, Koller & Machado, 2005). São escassos os estudos que abordam a violência sexual no âmbito conjugal. Igualmente, na área do Direito apenas foi encontrado o estudo brasileiro de Coulouris (2004), que busca compreender as percepções que influenciam a atuação dos agentes públicos, em especial os promotores, defensores e juízes na análise desses casos.
Sabe-se que a formação pessoal e profissional é fundamental para aqueles que trabalham com a violência sexual intrafamiliar (Froner, 2008). Segundo esta autora: "parte-se do pressuposto de que as concepções de escuta dos profissionais envolvidos são atravessadas por sentimentos, valores, crenças e experiências de vida que são constitutivos dos mesmos profissionais" (p. 47). Além disso, cada pessoa possui teorias implícitas ou concepções a respeito de determinadas situações. Froner (2008) assinala que o próprio indivíduo elabora sua teoria baseando-se na sua rede de experiências, proporcionado pelo grupo cultural no qual está inserido. Assim, é importante conhecer a concepção de operadores do direito para verificar a partir de que vieses e motivações são conduzidas suas práticas profissionais frente a casos de crimes sexuais entre adultos.
A violência sexual na conjugalidade
Somente a partir da década de 1980 que a violência contra a mulher começou a ser configurada como um problema social no Brasil (Silveira, Medrado & Rodrigues, 2009). São escassos os estudos que abordam a violência sexual conjugal, embora as notificações estejam crescendo no Brasil (Oliveria & Meneguel, 2012). Em geral, se referem a violência como agressão, sem especificá-la. Na história das origens da aceitação do dever sexual da esposa, encontra-se a tradição patriarcal, que por muito tempo "permitiu" certo padrão de violência contra mulheres pelo fato de o homem exercer o papel ativo na relação sexual e à mulher ser dado o papel de passividade. O papel da mulher era a reprodução biológica. O lugar do homem como provedor e a dependência financeira feminina parecem explicar a aceitação dos "deveres conjugais" que incluíam o "serviço sexual" (Dantas & Giffin, 2005). No entanto, a pesquisa dessas autoras mostra que, mesmo agora, com as mulheres assumindo o sustento da casa, os casos de violência sexual no âmbito conjugal ainda ocorrem, e o pensamento das mulheres de que o sexo forçado não se configura uma violência, pelo fato de ser praticado pelo marido, ainda persiste. Além disso, este fenômeno ainda possui certa invisibilidade por parte da sociedade, dos profissionais da saúde e do Direito e pela própria vítima que, muitas vezes, não reconhece o sexo forçado pelo marido como sendo uma violência sexual.
A violência sexual doméstica muitas vezes é acompanhada pela violência física e emocional. Os achados da pesquisa de Dantas e Giffin (2005) demonstram a violência física como sendo uma extensão da violência sexual, ou seja, quando a mulher recusa-se a fazer sexo com seu companheiro, este se torna violento, agredindo-a fisicamente. A relação sexual ocorreu, muitas vezes, sob forma de coerção "naturalizada" ou como "cláusula" prevista no contexto das obrigações conjugais. As entevistadas naquela pesquisa relataram alguma situação do parceiro querer e insistir na relação sexual apesar de elas não quererem; nenhuma delas fez uma denúncia prévia dessa situação nos serviços que buscaram. O sexo cedido ou sob resistência foi recorrente, mas pouco nomeado como violência. A "permissão" para o sexo não desejado despertou em algumas mulheres nojo e repulsa similares ao estupro (Dantas & Giffin, 2005).
A nova legislação sobre o estupro
Os operadores do Direito têm a lei como norteadora para o exercício de seu trabalho não importando em qual cargo estejam (advogados, promotores, juízes, defensores) e, mesmo que esses operadores se situem em polos opostos de uma prestação jurisdicional, ambicionando uma vitória sobre o outro no processo, eles não podem ir contra o que a lei estabelece. No entanto, a lei sempre permite interpretações e, muitas vezes, deixa lacunas incompletas no seu texto, possibilitando que o operador utilize outros argumentos não antes previstos, assim como permite que ele interprete a lei conforme seu viés teórico.
Ao final de 2009, houve uma importante mudança nas leis que definem os crimes sexuais. A Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009, realizou diversas mudanças nos diplomas legais que versam sobre o tema, e uma dessas modificações foi quanto à tipificação do estupro no Código Penal Brasileiro (Colás s/d). O artigo 213 do Código Penal Brasileiro foi alterado e a nova redação do artigo reuniu num mesmo crime as condutas de estupro advindo de conjunção carnal com as condutas que tipificavam o crime de atentado violento ao pudor (este crime não foi extinto, apenas agora passam as condutas nele englobadas a configurarem-se como estupro). O estupro é caracterizado pela realização de ato libidinoso, porém o artigo 213 não define o que seriam os atos libidinosos, deixando para a Doutrina e para Jurisprudência essa definição. Prado (2008) resume quais são os atos que podem ser considerados libidinosos, a exemplo do sexo oral; o coito anal; a masturbação; as apalpadas nos órgãos genitais; a contemplação lasciva, entre outros. No entanto, não há como confundir tais atos libidinosos com "apalpadelas, amassos e beijos lascivos (destinado a produzir ou estimular prazer sexual)". Segundo Bittencourt (2008), quando isso ocorre, deve ser enquadrado como contravenção penal, senão, promoveriam muitos processos por crime de estupro, gerando uma insegurança jurídica, por condutas que não devem ter uma pena tão grave como a destinada ao crime de estupro.
A antiga redação do artigo 213 definia como sujeito passivo somente a mulher, agora "mulher" fora substituída pela expressão "alguém". Tal supressão e substituição dessas palavras modificaram todo o sentido desse crime. A partir de então, o gênero do ofendido é indiferente para a caracterização do delito, tanto homens quanto mulheres podem ser sujeitos passivos do crime (Marques, 2010).
Direitos da mulher nas relações conjugais: Lei Maria da Penha
A Lei 11.340/2006 versa sobre a Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, também chamada de Lei Maria da Penha (Brasil, 2006). Esta lei foi instituída com a finalidade de diminuir a impunidade sobre aqueles que agridem mulheres dentro do âmbito familiar e doméstico e, também, para garantir uma maior proteção às vítimas dessas agressões. Carvalho, Ferreira e Santos (2010) ressaltam que a Lei Maria da Penha tem um importante papel no avanço dos direitos da mulher, uma vez que, até o ano de 2006, não existia uma lei específica para a mulher. Estes casos de violência eram tratados como crime de menor potencial ofensivo, tendo pena máxima de até dois anos, podendo se converter em penas pecuniárias. Hoje, com a lei específica, a violência contra a mulher não é mais vista como um crime punido brandamente, sendo o violentador punido de forma severa, na forma da lei.
A violência, para os efeitos da lei, é aquela contra a mulher, seja essa violência praticada através de uma ação ou omissão que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico, dano moral ou patrimonial (Kato, 2008; Martini, 2009). Dessa forma, a Lei Maria da Penha refere-se apenas à violência baseada no gênero. Neste estudo, o foco é a violência sexual contra a mulher, entendida pelo art. 7o, inciso III da Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), compreendida, não apenas aquela que diz respeito ao ato sexual em si, mas também abrange outras formas que se enquadram como violência sexual, como obrigar a vítima a olhar imagens pornográficas, a manter relação sexual com outras pessoas, a ter relações que causem desconforto ou repulsa e obrigar a vítima a ter relação sob coação, intimidação e pelo uso da força física, no caso do estupro conjugal (Carvalho et al, 2010).
Estupro dentro dos Relacionamentos Amorosos na concepção do Direito e da Psicologia
Dentre as publicações da área do Direito, encontra-se a de Motter Motter (2011) que aborda sobre o matrimônio e as relações sexuais. Segundo o autor, o matrimônio tornaria as relações sexuais "legais" entre os cônjuges, tendo em vista que, dentro do casamento, ocorre a satisfação do desejo sexual, que é "normal e inerente à natureza humana" e apazigua a concupiscência, aproxima os sexos e promove o convívio natural entre marido e mulher. No entanto, há muita discussão jurídica acerca da possibilidade de o marido ser configurado como estuprador da esposa, pois o crime de estupro não exclui, em seu tipo penal, o marido de ser o agente ativo desse delito.
Mesmo no Direito há diversas concepções acerca do tema. Jesus (2002) sintetiza a visão predominante, segundo a qual, entende que o marido pode ser sujeito ativo do crime de estupro contra a própria esposa. Embora com o casamento surja o direito de manter relação sexual, tal direito não autoriza o marido a forçar a mulher ao ato sexual, empregando contra ela a violência física ou moral que caracteriza o estupro. Não fica a mulher, com o casamento, sujeita aos caprichos do marido em matéria sexual, obrigada a manter relações quando e onde este quiser. Não perde o direito de dispor de seu corpo, ou seja, o direito de se negar ao ato sexual. Assim, sempre que a mulher não consentir a conjunção carnal, e o marido a obrigar ao ato, com violência ou grave ameaça, em princípio, caracterizar-se-á o crime de estupro.
Entretanto, o fenômeno das relações humanas é foco de estudos e constitui-se a prática da Psicologia. Os primeiros estudos sobre relações conjugais ou conjugalidade relacionavam-se à violência e iniciaram na década de 1960, porém a agressão existente era associada à presença de transtornos mentais, compreendida como situações raras e atípicas. Atualmente o estudo sobre conjugalidade é visto em sua complexidade, levando-se em conta as características pessoais, a história do casal (ciclo de vida familiar), sua interação e as consequências psicossociais envolvidas (Féres-Carneiro & Diniz Neto, 2010).
Diante dessas constatações, esse estudo objetivou conhecer quais são as concepções dos operadores do Direito, que atuam nessa área, sobre os crimes de violência sexual conjugal (ocasionada por um companheiro no qual haja uma relação estável) e extraconjugal (ocasionada por um desconhecido) contra as mulheres. Além disso, busca-se compreender se essas concepções podem ter implicações psicossociais e jurídicas, já que os operadores do Direito lidam cotidianamente no seu trabalho com esses crimes.
MÉTODO
Trata-se de uma pesquisa qualitativa de cunho exploratório e transversal. Participaram três operadores do Direito (um Promotor de Justiça, um Defensor Público e um Juiz de Direito), com idades entre 39 e 47 anos, gênero masculino, todos exercendo a profissão na cidade de Porto Alegre. Como critério de inclusão, era necessário que estes profissionais tivessem atuado em pelo menos 10 casos de violência sexual contra a mulher, há pelo menos 5 anos. Em termos de escolaridade, o Juiz possui mestrado em uma área das humanas; o Defensor Público é pós-graduado, e o Promotor iniciou pós-graduação, porém, não a concluiu. Os participantes foram selecionados por conveniência, através de indicação de profissionais da área. A coleta de dados ocorreu entre abril e maio de 2013.
Utilizou-se uma entrevista semidirigida, elaborada pelos pesquisadores, que investigou a atuação profissional de cada operador, o posicionamento pessoal e profissional sobre violência sexual contra a mulher, os sentimentos despertados na atuação nos crimes sexuais, o conhecimento sobre as leis referentes ao assunto em questão e a trajetória profissional até o momento. Foi apresentado, também, aos operadores do Direito um caso fictício de autoria dos pesquisadores sobre uma situação de violência sexual no âmbito conjugal, sobre o qual esses profissionais tiveram que se posicionar e simular como o interpretariam se fosse um caso real e estivessem atuando perante a lide. O caso relata a história de uma mulher de 28 anos, mãe de duas crianças, que é casada há oito anos e sofre violência sexual pelo seu marido há anos. O relato do caso traz a angústia da mulher, que diz enfrentar frequentemente essa violência. No caso, fica bem evidente o sofrimento da vítima e a atitude brutal do marido. As entrevistas foram gravadas, transcritas e posteriormente analisadas qualitativamente através da identificação de categorias de sentido (Bardin, 2011). Esse estudo seguiu todas as determinações éticas para pesquisa com seres humanos. Os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido após a aprovação da pesquisa pelo Comitê de Ética em Pesquisa, da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre sob o nº 161.013.
RESULTADOS
A partir dos dados obtidos nas entrevistas e da metodologia de análise adotada, foi possível a criação de três categorias. A primeira categoria de sentido encontrada corresponde às "concepções sobre os crimes sexuais conjugais" e refere-se à violência sexual perpetrada por um companheiro, com o qual há uma relação estável conjugal. Essa categoria foi dividida em outras quatro subcategorias para uma melhor compreensão, são elas: concepções sobre a vítima, sobre o estuprador, sobre a relação do casal e os sentimentos despertados nos operadores. A segunda categoria intitula-se "concepções sobre os crimes sexuais extraconjugais". O termo extraconjugal refere-se à violência perpetrada por um desconhecido, sem nenhum tipo de vinculação com a vítima e foi dividida em outras duas subcategorias: sobre o estuprador e os sentimentos despertados. Optou-se neste estudo pelo termo "estuprador" ao invés de agressor sexual para estar em consonância com a Lei 12.015. A terceira categoria refere-se à comparação entre as duas categorias anteriores, como demonstra a Figura 1:
A seguir, estas categorias serão ilustradas com as falas dos participantes. E, a fim de preservar a identidade do profissional e ao mesmo tempo diferenciá-los, optou-se por utilizar as inicias do cargo junto a elas, como "D" para Defensor, "J" para Juiz e "P" para Promotor.
Concepções sobre os crimes sexuais conjugais
A categoria em questão mostra como os operadores do Direito compreendem os crimes sexuais na conjugalidade. Foram identificadas quatro subcategorias, relacionadas às concepções: a) sobre a vítima, b) sobre o estuprador c) sobre a relação do casal, e d) sentimentos despertados.
A subcategoria denominada "concepções sobre a vítima" refere-se a duas diferentes situações, entre elas, a) das mulheres não se perceberem como vítimas de violência sexual e, b) das mulheres que se utilizam da situação para obter algum ganho e, nesse caso, podem até mentir sobre o crime. Em relação à primeira situação, ocorre o fato de a mulher não denunciar por não compreender o ato sexual como uma violência ou ele ser minimizado pela presença de violência física. O Juiz e o Promotor relatam serem raros os crimes de estupro no âmbito conjugal que chegam até o judiciário. O Juiz aponta como uma das explicações para essa "escassez de casos de estupro na conjugalidade" o fato da própria mulher muitas vezes não enxergar a violência como sendo um estupro, denunciando somente a violência física: "agora me diz, quando é que tu vê uma mulher dizer 'o meu marido me estuprou!’? É muito complicado! Ela vai dizer o seguinte: que brigaram, e brigaram mesmo, que vai aparecer então como lesão corporal, que ela se negou ao ato sexual, o que aconteceu? Ela sofreu uma violência, mas ela não sofreu um estupro! Ela sofreu uma lesão corporal, uma ameaça". O magistrado relata também que os casos de estupro acabam sendo invisibilizados no contexto da violência doméstica: "o que a gente podia constatar assim era a existência de uma violência sexual, mas que ficava, vamos dizer, pulverizada, ficava quase que subsumida no contexto da violência doméstica. (...)". O Juiz aponta que há uma escassez de casos de estupro na conjugalidade, no entanto as pesquisas indicam que, com muita frequência, os casos de estupro têm como autores os parceiros, maridos ou namorados (Villela, 2007). Ou seja, pessoas com um vínculo próximo e intenso com a vítima (Andrade, 2010). Ele tenta explicar esse fenômeno pela crença de que as mulheres não consideram esta violência como sendo um estupro, e a classificam como violência física. A maioria dos estupros ocorre dentro de um contexto de violência física em vez de paixão sexual ou como meio para a satisfação sexual, demonstrando a presença da força ou da ira. Além disso, o estupro, em vez de ser principalmente uma expressão de desejo sexual, constitui de fato, o uso da sexualidade para expressar questões de dominação. A percepção dos operadores do Direito sobre o sentimento dessas mulheres pode revelar que elas estão em situação de risco para novos eventos similares. Os operadores citam que, além do crime sexual ser subjugado frente à violência física, em algumas situações a mulher pode entendê-lo como parte de um "jogo sexual" vivido por muitos casais. Mesmo que os operadores do Direito identifiquem o estupro, eles reproduzem o mesmo discurso das mulheres ao considerar que a violência sexual possa ser um jogo sexual entre o casal, como está exemplificado: "mas assim, tu tá numa brincadeira, (...), uma linha às vezes limítrofe, assim, daqui um pouco tu para e me senti agredida!" (J). Juiz e Defensor sugerem que, no caso, poderia estar havendo um mal entendido entre o casal e que poderia ter se estabelecido uma relação mais agressiva, sadomasoquista, uma brincadeira que teria passado dos limites: "então, de repente se estabeleceu entre eles esse tipo de relacionamento sexual mais agressivo, de repente ele tá até achando que ela gosta daquela coisa meio sadomasoquista, meio de, de simular de apanhar ou não, eu alegaria como isso" (D). O Promotor vê o caso como um desacerto conjugal, que, na sua visão, poderia não se caracterizar como um crime de estupro: "descaracteriza muito essa situação de violência, até que ponto houve um constrangimento, que configura o tipo penal estupro ou aquele desacerto conjugal mais tênue". Além disso, o Promotor acredita que, no caso apresentado, por ter passado um grande espaço temporal da mulher naquela situação, isso descaracterizaria um estupro: "E tendo isso se dado ao longo de um período muito significativo, ao que tudo indica aqui, isso descaracteriza muito o estupro". Os demais operadores não fazem menção a isso. O Promotor relata que não teria dúvidas de que esse caso resultaria em absolvição.
Ainda em relação à concepção sobre as vítimas, os operadores do Direito alegam que a mulher fica emocionalmente frágil e desestruturada. Entretanto, afirmam que outras mulheres usam a situação para terem vantagens ou simplesmente mentem sobre o crime, sendo assim, seu comportamento é digno de desconfiança ou pena, como observado nas falas: "ela fica desestruturada, fica desequilibrada, fica desorganizada, então tu ouve um discurso que não faz sentido, aí tu acaba pensando entre aspas 'essa mulher é uma louca!’, mas não, essa mulher é uma vítima de violência doméstica, só que tu conseguir identificar se daqui um pouco não é uma louca mesmo!"(J); e "é um sentimento assim de pena!" (P); "algumas me passaram raiva, cara! Porque eu via que estavam mentindo! Sinceramente! E outras eu fiquei com pena assim, um absurdo, sabe?" (D). Quanto ao perfil das vítimas de estupro, todos disseram não existir um perfil ou não se lembrar de um: "não, é difícil! Não é tão fácil fazer perfil porque cada uma sofre de um jeito!" (J); " eu não posso dizer que haja um perfil majoritário também de vítimas na violência doméstica. São muito variadas as situações e casos que é indiscutível que a vítima provocou e deu ensejos pra... indiscutível!" (P). Entretanto, há certa insinuação de que algumas mulheres que agem em sua defesa têm ganhos secundários com a situação, como no exemplo: "e então, tem desde a vítima que tem prazer nesse tipo, com a provocação do marido, até a vítima que já quer se separar e quer levar vantagem na separação. A maioria das vítimas não deu ensejo, não provocou a situação, podemos usar a palavra vítimas mesmo! São vítimas da situação!" (P).
Outra subcategoria refere-se à compreensão dos operadores sobre a relação do casal, em que eles alegam não compreenderem as razões pelas quais as mulheres permanecem na relação conjugal, mesmo sofrendo violência, o que demonstra o desconhecimento por parte desses profissionais da dinâmica das relações conjugais violentas. No entanto, o Juiz demonstra teoricamente ter um entendimento mais amplo sobre esses casos. O Promotor acredita que o estupro no âmbito conjugal é mais sutil e menos relevante tanto juridicamente, quanto socialmente, acredita ser uma situação mais amena, afirma que, apesar de ter "a questão social", ela não justifica a passividade da mulher, e o porquê de ela não ter feito a denúncia antes: "sempre vai ficar a pergunta, mas por que não se separou antes?! Aí vai ter a explicação social, mas explica tudo? Porque tem muitas mulheres, no mesmo contexto social, que na primeira vez vão embora, e por que ela não fez? Aí tem que analisar as condições pessoais dela, a condição é muito complexa (...), a mulher poderia ter evitado essa continuidade de fatos, né? Essa repetição, essa reiteração de fatos, mas não, ela não se retirou da relação". Da mesma forma, o Defensor, ao analisar o caso apresentado, faz o mesmo questionamento, já que afirma que parece não existir a dependência econômica e mesmo assim ela deixou que as agressões ocorressem seguidamente: "se aconteceu a primeira vez e a segunda, já era tempo dela fazer a ocorrência, entrar com alguma medida na Maria da Penha e... por que que não fez isso? Se como está no caso aqui, ela trabalha fora e de repente não tem aquela dependência financeira, econômica do marido, entendeu?". O Juiz, ao contrário dos outros operadores, observa a dificuldade da mulher ao realizar uma denúncia contra o próprio marido: "tem uma fala de uma mulher que disse assim 'eu fui na delegacia registrar uma ocorrência e na terceira vez que eu fui na delegacia (...)’, mas como assim? Não precisa ir três vezes na delegacia! Ela disse 'não, na terceira vez que eu fui na delegacia, eu tive coragem de entrar!’, e foi interessante pra gente compreender assim o drama da mulher, só dentro dela né? A porta tá aberta, é só entrar lá! Mas a dificuldade, o drama que é!". O Juiz tem um entendimento mais amplo sobre esses casos, dizendo que, muitas vezes, a mulher não tem escolha, que, se não estiver disposta a ter relações sexuais, apanha do marido: "e fica visível o quê? Que se ela não transa, ela apanha! Então isso que eu digo! (...) Mas eu quero dizer, é um negócio muito complexo!". Ele busca explicações culturais, sociais e de gênero para explicar a dinâmica desses relacionamentos: "mas é que não é, às 4 da manhã no barraco, quando o cara diz que vai transar, a mulher transa!". O Juiz e o Defensor discordaram no que tange à questão social da violência doméstica. Para o Defensor, esses crimes aparecem nas camadas mais baixas da sociedade, enquanto para o Juiz, a violência doméstica acontece em todas as camadas sociais: "o que eu vejo muito de processo é que é a classe mais baixa que, não sei se eu posso concluir isso, que, se acontece em classe mais alta, isso fica dentro de casa, (D); "porque a violência doméstica tem essa peculiaridade, ela perpassa todas as camadas sociais!" (J). O Promotor somente refere que há um contexto social por trás dos crimes sexuais: "claro que nós sabemos que há um contexto social, que dificulta ou impede que a mulher se separe". Os operadores divergem quanto a prevalência dos crimes sexuais em diferentes camadas sociais, o Defensor acredita que esses crimes ocorrem nas camadas mais baixas, enquanto o Juiz acredita que ocorra em todas as camadas sociais. Quanto a essas afirmações Villela (2007) e Ribeiro (2009) constatam que a violência sexual ocorre em todos os tipos de sociedade, e afeta pessoas de qualquer idade, em graus variados, sem distinção de raça, credo, sexo, cultura e classe social, o que ocorre por muitas vezes é uma maior subnotificação desses casos em classes sociais mais altas. O Juiz fala sobre o uso de álcool e drogas, que pode estar presente nesses crimes, e faz referência ao ciúme, que também é um grande impulsionador desses crimes: "muito, quando se fala em violência doméstica, principalmente contra mulheres, cita-se o uso do álcool, uso de drogas, que de fato é bastante presente, mas se fala pouco e também é igualmente presente a questão do ciúme".
Na subcategoria "sentimentos despertados", os operadores relatam os sentimentos frente aos crimes sexuais na conjugalidade, bem como a preocupação em cometerem uma injustiça. Os três operadores referem não ter dificuldades de trabalhar com crimes sexuais. O promotor relata que, apesar de apontar que fica abalado com esses casos, na sua atuação profissional não se sente assim frente a eles devido a um "sentimento mais técnico" (sic), o qual é resultado de um "isolamento emocional". Ele crê que isso é uma defesa, explicando que o tempo de carreira ajuda a isolar os sentimentos, pois começa a enxergar o crime com maior naturalidade. O Juiz relata que o sentimento dele pelas vítimas acaba tornando-se diferente, porque observa que essas situações de violência contra a mulher ocorrerem diariamente na sua atuação profissional, porém, teme uma banalização da violência. Diz que o sentimento é algo ruim, mas parece não se penalizar com a situação delas: "se chegam 400 mulheres e te falam isso, tu sente um pouco diferente (...) ali o problema é assim ó, o risco que a gente corre é banalizar a violência..." (J); "nesse caso, nós já temos uma preparação pra isolar, digamos, o sentimento da nossa atuação técnica (...), isso não quer dizer que nós não temos sentimentos..."; "não me sinto atingido e nem preocupado" (P). O Promotor deixa bem claro que o seu sentimento em relação aos crimes de violência sexual na conjugalidade é mais atenuado que os fora do âmbito conjugal: "É bem mais atenuado esse sentimento, (...) um caso, como eu disse, tecnicamente falando, fácil, atenuado aqui o constrangimento". O Juiz relata que se sente muito despreparado para lidar com esses casos, comenta que muitas vezes se pergunta se em todos os relacionamentos a violência está presente, visto que julga muitos casos todos os dias: "é tanta brutalidade, é tanta violência! (...) a impressão que todo mundo é assim né! Aí tu diz, não, não é! Tem relações que não é! Eu não bato na minha mulher!! (...); primeiro assim, um desconforto, não é, constrangimento, difícil de lidar com isso(...), eu não sei como lidar! (...), a gente não tem preparação pra isso! Ponto!" (J). Os três operadores mostram preocupação em não cometerem "injustiças" em um caso de estupro na conjugalidade. Eles relatam que, muitas vezes, nesses casos que ocorrem no âmbito doméstico, é muito difícil saber se a situação que é relatada pela mulher é real ou somente uma maneira dela obter algum ganho com a denúncia do marido. Relatam que conseguir provas concretas da agressão é muito complexo. Eles justificam esse receio, pois já viram ou participaram de vários casos onde as mulheres faziam a denúncia, porém, depois a retiravam ou se descobria que o que elas falavam não era verdade. "A lei Maria da Penha é um exemplo, chega muitos casos assim que elas inventam só pra tirar, dar um susto, é normal!"; "ah mas a senhora fez isso por quê? 'ah eu queria dar um susto!’, entendeu?" (D). Os três operadores apontam a necessidade de provas para que crimes, como o relatado no caso apresentado, sejam comprovados.
A subcategoria concepções sobre o estuprador traz a visão do Juiz de que, muitas vezes, o marido que comete o estupro contra a esposa não enxerga esse fato como um crime: "o agressor não, o agressor chega ali e diz 'mas eu não sou bandido! Como me prenderam? Mas eu sou um homem trabalhador!’, porque ele não percebe a violência contra a mulher, mesmo que tenha conotação sexual, não se percebe como criminoso! É uma relação bastante complicada, tu tem que dizer pro cara 'não, mas o senhor não pode fazer isso!’. O Defensor refere ser um ato extremamente reprovável que um marido cometa estupro contra sua esposa, "absurdo! É que nem aquele outro que eu te falei, absurdo! Não existe isso! Pra mim, é absurdo isso!". Já o Promotor prefere não se pronunciar, dizendo que sua visão pessoal não importa para esses casos, ele deve somente seguir a lei.
Concepções sobre os crimes sexuais fora do âmbito conjugal
Essa categoria refere-se aos crimes sexuais cometidos em relação a mulheres por homens desconhecidos. Foram criadas duas subcategorias.
Na primeira subcategoria denominada "Sentimentos despertados" os três operadores relatam que sentem raiva e repulsa, não conseguem entender o porquê de alguém cometer um crime sexual. Acham um "absurdo’, uma "brutalidade". O Promotor aponta ainda que esses crimes despertam nele um sentimento de mobilização frente ao caso, de querer fazer algo em relação a ele. "Ah, acho repugnante, o quê que eu vou dizer? É como eu te falei, o quê que eu fico pensando, aí eu acho que é mais a parte psicológica! Que tem gente que se excita com isso! Isso não faz sentido pra mim!" (J); "eu acho um horror! Um absurdo, entendeu? Não tem, não tem explicação! Um absurdo! Jamais eu vou defender uma conduta dessas!" (D); "é um sentimento de raiva, um sentimento assim de repugnância, né, o sentimento de fazer alguma coisa" (P). Quando o Promotor fala sobre os crimes sexuais fora do âmbito conjugal, fica visível os sentimentos negativos despertados: "são crimes que mexem muito com os operadores todos ali, que estão envolvidos, porque é assim, uma violência atroz". Mesmo com esse sentimento de revolta e indignação, Juiz e Defensor demonstram medo de cometer uma injustiça: "agora vamos pensar assim, processualmente ou na atividade profissional, é tu ter elementos de prova pra isso, porque o risco do Direito é assim, foi um estupro, uma coisa horrorosa! Aí tu pega o cara e tu quer jogar o cara no presídio central e largar lá! Mas esse cara é culpado do que aconteceu? Ou era outro parecido com ele?" (J); "eu vou defender, eu vou patrocinar a defesa da pessoa pra ver se ela fez mesmo, se foi aquilo mesmo, até pra não se prender um inocente e ver se foi daquela forma mesmo!".
Na segunda subcategoria "Concepções sobre o estuprador", o Juiz e o Defensor comentam que não entendem a motivação do estuprador e não conseguem entender o funcionamento psíquico do mesmo. O Defensor aponta ainda que não sabe definir se sente raiva ou pena de quem comete tal crime: "cara, a primeira coisa que eu acho é que tem que ter alguma coisa! Não pode ser normal a pessoa, não pode ser normal, não tem!". Já o Promotor acredita não existir um perfil de estuprador, ele diz ainda que a opinião dele frente a quem comete esse crime pouco importa, visto que ele deve denunciar se o indivíduo tiver cometido o crime e não fazer um juízo pessoal sobre o estuprador.
Comparação entre os crimes sexuais conjugais e extraconjugais
Foi possível identificar, nessa categoria, a comparação que os operadores fazem entre os crimes de estupro cometidos dentro e fora do âmbito conjugal. O Juiz, quando perguntado se havia diferença entre o estupro cometido no âmbito conjugal e fora dele, disse que percebia essa diferença. Primeiramente, utilizou um exemplo de estupro no âmbito conjugal como sendo uma brincadeira sexual que passaria dos limites, caracterizando-se como estupro. Utilizou um exemplo de estupro fora do âmbito conjugal visto como algo extremamente agressivo, com utilização de agressão física, com socos. Diz que o primeiro é mais aceitável, razoável, do que o segundo: "e aí, o quê que se pressupõe, que eu imagino, que é uma coisa que é prazerosa para ambos, tu pode discutir, 'mas eu não tenho prazer em levar uma chicotada’, não, tu pode não ter, mas pode ter quem tenha, ta dentro, o importante é que quem ta levando a chicotada pode parar a brincadeira quando quiser! Isso é, entre aspas, sagrado nessa relação sexual! A outra coisa é um estupro assim... e ah, dentro da relação conjugal, tu começa a transar com a mulher, não vou entrar em detalhes, mas tu começa a excitar a mulher, né, e a mulher começa a te excitar, e costuma ser uma coisa recíproca, e aí tem um pouco às vezes de tensão entre o que que tu quer fazer, o que tu não quer fazer, o que é permitido, o que que não é permitido! Pronto! Tudo é reprovável, mas é diferente. (...) Outra coisa pô, não conhece a pessoa, tu tá na rua, eu digo, tu vai e dá um soco na pessoa, derruba no chão, arranca a roupa da pessoa e estupra! Eu vejo como coisas diferentes! Não é? Às vezes, é, eu acho que é um pouco isso!". Depois de dar esses dois exemplos, o magistrado analisa um estupro fora do contexto de uma brincadeira: "dá pra marido estuprar a mulher? Dá! Dá pra ele chegar em casa bêbado e agarrar e estuprar! Fora do contexto de qualquer brincadeira, tipo, também, também, lógico!". Perguntou-se se, nesse caso, fora do contexto de uma brincadeira, se ele achava que se distanciava muito de um estupro fora do âmbito conjugal. O Juiz diz que os dois casos se aproximam muito, mas não passa segurança de que os dois casos seriam entendidos da mesma forma: "não, daí seria assim, muito próximos! Quer dizer, essas coisas podem se aproximar bastante! Ao ponto de tu nem reconhecer isso como uma relação conjugal! Pô, o cara foi um animal! Mas pode ser, às vezes, delicado assim, difícil de tu apurares, pô, isso aqui é um estupro?!". O Promotor verbaliza que os dois casos de estupro, fora e dentro do âmbito conjugal, não podem ser tratados e interpretados da mesma forma, pois há um distanciamento entre eles. Ele assegura que a questão conjugal modifica o seu entendimento quanto à relevância do estupro: "é diferente do estupro sob ameaça de arma, é diferente do estupro do sujeito que pegou a mulher na rua! Não há a menor dúvida que esse caso tem que ser tratado de forma diferente, e não é querendo usar a palavra atenuar, a situação é, juridicamente, menos, socialmente também, menos relevante, daquela [do caso]". Ele considera que é incorreto que qualquer operador tente igualar esses crimes, não considera ser possível igualar e parece "condenar" aqueles que o fazem, por considerar serem situações totalmente desiguais: "errado estaríamos ou estaria o operador que tentasse igualar as situações! Tem pessoas que tendem a igualar as situações e não é o caso! Isso não quer dizer que o outro não tenha que ter uma resposta penal, os dois casos em tese teriam que ter uma resposta penal! Agora, nós temos que fazer distinção entre um caso e outro pra dar a justa resposta penal e não igualar situações que são absolutamente desiguais!". O Defensor não vê diferença nos crimes sexuais cometidos na conjugalidade e os entre estranhos: "não, acho que não! Acho que ambos é a vontade da pessoa que não foi obedecida! Isso aqui antigamente eles diziam: 'não, é a obrigação da mulher!’. Hoje mudou isso aí, e eu concordo com a mudança, entendeu? Acho absurdo! Se não quer, bom, não quer! (...) Mas não tem diferença nenhuma!".
DISCUSSÃO
Moreira, Boris e Venâncio (2011) comentam em seu estudo que as mulheres vítimas de violência doméstica são estigmatizadas, ou seja, assumem características diferentes das que a sociedade avalia como positivas. Referem que esse estigma é imposto pela sociedade e assimilado pelas vítimas, dessa forma, elas têm maiores receios de denunciar seus parceiros, pela dependência que elas sofrem por parte deles ou por um processo de inversão de culpa no qual elas acreditam que, de alguma maneira, deram ensejo à agressão e a revitimização.
Essas constatações corroboram com os achados de Dantas e Giffin (2005), que também obtiveram os mesmos resultados através de uma pesquisa realizada, em que as vítimas não percebiam que estavam sofrendo um estupro e isso ficava inserido no contexto da violência doméstica. Ademais, de acordo com o estudo de Moreira et. al. (2011), a violência sexual é a que as mulheres têm mais dificuldade de denunciar, pelo preconceito e pela vergonha de expor sua intimidade, visto que elas podem entender a questão sexual como um dever conjugal, ou seja, como um direito para o homem e uma obrigação para a mulher. Estudos também revelam que em relação à situação de estupro a mulher é sempre considerada culpada, isto é, responsabilizada pelo ato (Serafim, Barros & Rigotti, 2006). Além disso, acreditam na impunidade do estuprador e são desacreditadas em seus depoimentos pelos órgãos de proteção (Oliveira & Meneguel, 2012).
Essa estigmatização da mulher agredida parece estar presente no discurso dos operadores do Direito no momento em que trazem questionamentos do porquê elas não denunciaram os seus maridos antes. Sendo assim, demonstram um desconhecimento da dinâmica envolvida nesses casos, como as questões de dependência financeira, psicológica, social e das questões relacionadas as forma como a sociedade trata essas mulheres.
Contudo, dados de pesquisas ainda reforçam o estereótipo do estuprador como "um ser anormal, de lascívia desenfreada, estranho à vítima" (Andrade, 2010, p.54) e que pertencem a um nível socioeconômico baixo. Andrade também refere ser mais fácil "etiquetar como estupro a conduta cometida por um estranho na rua, que a realizada pelo chefe ou pelo marido, cuja possibilidade está, em algumas legislações ou jurisprudências, explicitamente excluída" (p. 56). Dessa forma, os operadores têm dificuldades em compreender esses casos e conceber que o marido também pode ser um agressor sexual, independente de o contexto ser o familiar.
Os operadores do Direito demonstraram certo receio em cometer "injustiças" com os agressores, por se tratar de um caso de violência sexual e ainda por cima confinado ao âmbito doméstico. Relatam que pelo fato das mulheres muitas vezes retirarem as denúncias, não conseguem afirmar se a violência realmente existiu ou foi uma maneira delas obterem algum ganho. Os operadores receiam sentir a responsabilidade por mandarem para a prisão um homem que poderia ser inocente, visto que o conjunto probatório nos processos de estupro é extremamente frágil, limitando-se à prova pericial e testemunhal ou esgotando-se, muitas vezes, no depoimento da vítima. São crimes geralmente praticados na intimidade dos lares e sem testemunhas (Andrade, 2010). Além disso, sabe-se que os agressores sexuais sofrem violência dos outros presos dentro do presídio. Desta forma, os operadores do Direito parecem ter cautela ao analisar um caso de violência sexual contra a companheira, o que pode influenciar na avaliação do caso, colocando sempre em dúvida o discurso da mulher agredida. Sendo assim, a vítima que acessa o sistema, requerendo o julgamento de uma conduta definida como crime pode acabar por se ver julgada incumbindo-lhe provar que é uma vítima real e não simulada (Andrade, 2010).
Pesquisas têm mostrado que, mesmo quando a violência é denunciada, pode se constituir em fator de risco uma vez que os encaminhamentos jurídicos não acontecem a termo, não contemplam todos os casos identificados, não percorrem todas as esferas e não julgam, nem penalizam todos os agressores. O risco da revitimização decorre das exigências jurídicas que desconsideram as dimensões psicológica e social que configuram tal fenômeno. (Lima et al., 2014, p. 6).
Estes dados, também podem ter surgido pelo potencial atravessamento causado pela questão dos participantes serem do sexo masculino, isto pode desencadear certa empatia e pode levar a um julgamento também marcado pela questão da construção das masculinidades em nossa sociedade e cultura. No entanto, conforme Moreira et. al. (2011), na maioria das vezes, as mulheres, quando procuram alguma instituição para efetuar a denúncia o fazem mais na tentativa de parar a violência e possibilitar uma reprimenda ou um aconselhamento ao companheiro e, assim, quem sabe, fazê-lo mudar. Desta forma, fica evidente que, mesmo que muitas mulheres retirem as queixas, não quer dizer que a violência não exista, apesar de que às vezes elas somente denunciem para ter um ganho com aquela denúncia, mas, conforme os próprios operadores ressaltam, essa não é a regra. Essa desconfiança, portanto, pode ter uma influência direta no curso desses processos, pelo receio de que eles possam estar cometendo uma injustiça.
Quanto à visão que eles têm da vítima e do estuprador, os operadores parecem corroborar os achados de Coulouris (2004), que destaca que a prática jurídica está permeada por discursos tradicionais de gênero, classe e etnia, que se referem à configuração do conceito de estupro e de estuprador presente no imaginário dos agentes jurídicos. Como resultado, o discurso jurídico nos casos de crimes sexuais só acreditará na palavra da vítima se esta for caracterizada como "honesta", sendo este conceito intimamente relacionado à questão da moralidade sexual feminina. O que acaba se julgando na apuração da criminalidade sexual é mais a moralidade da vítima e adequação às prédicas tradicionais de gênero do que o ato do acusado (De Tilio, 2013), ou seja, vítima é julgada pela sua reputação sexual, é o resultado deste julgamento que determina a importância de suas afirmações. Sendo assim, existindo ou não laudo pericial, ou ainda prova testemunhal, mesmo em situações de flagrante delito, a palavra da vítima perde credibilidade se não for ela considerada "mulher honesta", de acordo com a moral sexual patriarcal ainda vigente (Andrade, 2010). Nesse sentido, parece haver um discurso de gênero no interior do discurso jurídico, que tem por finalidade afirmar papéis normativos para as mulheres, principalmente em relação ao controle de sua sexualidade, e também em relação aos homens que têm a vivência da sexualidade socialmente regularizada dentro da sociedade.
Coulouris (2004) afirma que, de acordo com a bibliografia sobre o assunto, percebe-se que a justiça é mais resistente em acreditar na mulher quando o suspeito não se enquadra no "estereótipo do estuprador". Para Colouris (2004), o que define este estereótipo é um conjunto de predicados como: beber, usar drogas, ser violento, possuir desenvolvimento mental incompleto, não possuir residência fixa, demonstrar tendências perniciosas, personalidade deformada dirigida por instintos sexuais irreprimíveis, ser reincidente, estar constantemente envolvido em confusões etc. Entretanto, as denúncias contra homens com este perfil são raras, pois o perfil do estuprador, ao contrário do que se pensa, é na maioria das vezes "inofensivo". Muitos deles são vistos pelas pessoas com quem convivem como homens trabalhadores, atenciosos, bondosos e religiosos. A maioria deles não tem passagem pela polícia, o que muitas vezes coloca em dúvida na investigação a acusação feita ao agressor.
Apesar dos entrevistados não acreditarem num perfil de estuprador, eles têm dificuldade de compreender o marido como um. Isso ocorre, talvez, pelo contexto familiar ou de intimidade do casal, tendo mais dúvidas e exigindo que existam provas inequívocas de que o estupro realmente ocorreu. No entanto, o juiz comenta que percebe os casos de violência no âmbito conjugal relacionados ao ciúme e ao uso de álcool e drogas. Essa afirmação está de acordo com a literatura, pois resultados de uma pesquisa mostraram que vários fatores culturais e psíquicos motivam e contribuem para a ocorrência do ato criminoso, dentre eles o patriarcalismo, o machismo, as noções de masculinidade e virilidade, a ideia de defesa da honra, o uso de substâncias psicoativas, os sentimentos de rivalidade, ciúme, amor, ódio e a intolerância à traição (Santiago & Coelho, 2010). Além disso, o uso de álcool pelo marido tem sido frequentemente relacionado com a violência conjugal e que episódios de violência são mais frequentes em casais em que o marido tem problemas com abuso de bebidas alcoólicas e a esposa não (Serafim, Barros & Rigotti, 2006). Já Dantas e Giffin (2005) relatam que o ciúme é apontado como uma das justificativas para o sexo forçado, pois se as mulheres recusam a relação sexual com seus companheiros são acusadas pelo mesmo de o estarem traindo. Assim, o ciumento considera a outra pessoa mais como um objeto que exige controle do que um ser que possui desejos e necessidade de autonomia (Gaia, 2009).
Foi apontado também pelo Juiz que o marido que comete estupro contra a esposa não compreende esse fato como crime, o que pode ser explicado pela influência do patriarcado presente em nossa sociedade, sendo ele uma estrutura hierárquica, que confere aos homens o direito de dominar as mulheres, independentemente da figura humana singular investida de poder (Saffioti, 2004). Sendo assim, no patriarcado, as mulheres são objeto da satisfação sexual, reprodutoras de herdeiros e de força de trabalho. Desta forma, a sujeição das mulheres envolve prestação de serviços sexuais aos seus dominadores (Saffiotti, 2004). Portanto, a violência contra a mulher cometida por maridos ou companheiros, pode ser entendida por esses estupradores como uma expressão de poder e domínio, e não como um ato de violência (Andrade, 2010). Apesar dos operadores do Direito afirmarem que não conseguem compreender as razões pelas quais as mulheres permanecem na relação conjugal mesmo sofrendo violência, o patriarcado, acima descrito, pode ajudar a compreender estas razões. Ademais, as formas de dominação que as mulheres sofrem por parte dos homens contribuem para que elas não consigam se separar de seus agressores. Para Santos e Izumino (2005) a violência contra as mulheres pode ser explicada por três correntes: a) a dominação masculina (advinda na anulação da autonomia das mulheres); b) a dominação patriarcal (na qual as mulheres são vistas como vítimas do controle social masculino); e c) a dominação relacional (que considera serem as mulheres cúmplices da violência sofrida). Sendo assim, a dominação transforma as diferenças em desigualdades hierárquicas com o fim de dominar, explorar e oprimir, e a mulher torna-se dependente e passiva, transformando-se em objeto, e não mais um sujeito o que dificulta o desligamento da relação.
Já quando falam dos casos de estupro extraconjugal, cometido por desconhecido, fica evidente que essa desconfiança e desconforto de denunciar esses estupradores e de classificá-los como criminosos é menor. Dessa forma, os operadores ressaltam que os sentimentos negativos que têm frente aos casos de estupro dentro do âmbito conjugal são bem mais atenuados do que quando este ocorre extraconjugalmente, valorando as duas situações diferentemente, apesar de a lei valorar as duas situações igualmente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os profissionais envolvidos nesta pesquisa relatam o despreparo que possuem para lidar com casos de violência, especialmente sexual, e o quanto isso os afeta, tendo que desenvolverem sozinhos mecanismos de proteção ou "defesas" para lidar com as emoções que os mesmos provocam. Eles demonstram um desconhecimento e um distanciamento da dinâmica envolvida nesses casos, não compreendendo a motivação para esses crimes, tanto do estuprador como da mulher. No que tange aos crimes sexuais realizados no âmbito conjugal, esta pesquisa demonstrou que a percepção dos operadores influencia o andamento do processo, em razão da insegurança advinda do desconhecimento sobre a dinâmica desses casos.
Sendo assim, esse estudo evidencia que a Psicologia pode ajudar os operadores do Direito em relação aos aspectos psicológicos, subjetivos e sociais envolvidos nesses casos, para dar uma maior segurança a esses agentes durante sua prestação jurisdicional. Para isso, algumas possibilidades de trabalho interdisciplinar fomentariam essa discussão, como o desenvolvimento de espaços de reflexão ou a inserção de um profissional da Psicologia para auxiliar os operadores no trabalho com os crimes sexuais.
Esse estudo também buscou proporcionar uma maior visibilidade aos casos de estupro conjugal, visto que, como corroborado pela pesquisa, muitas vezes esses crimes não são denunciados pelas vítimas não compreenderem que se trata de uma agressão ou pela desconfiança ou descrença que os operadores do Direito têm frente a esses casos. No entanto, conforme a legislação, toda relação sexual não consensual é caracterizada como estupro e deve ser denunciada. Destaca-se a necessidade de mais estudos nessa área, visto a sua escassez.
As limitações do estudo estão relacionadas a não generalização dos dados por se tratar de uma pesquisa qualitativa, o que talvez desencadeie uma visão regionalizada da situação, mas por outro lado, a sociedade brasileira sofre influencia da cultura latino-americana, marcada por relações machistas e marianistas. Outra limitação deste estudo está relacionada ao fato dos participantes serem do gênero masculino o que pode ter influenciado diretamente nos resultados, mas não os invalida, já que são estes profissionais que atuam nos casos de violência contra a mulher. Assim, sugere-se ampliação desse estudo, com uma abrangência maior de participantes e de regiões do Brasil. A presente pesquisa revelou-se importante para compreender como as crenças e concepções dos operadores do Direito podem interferir no trabalho com crimes sexuais cometidos no âmbito conjugal, talvez revitimizando essa mulher.
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Recebido em: 08/08/2014
Revisado em: 15/10/2014
Aceito em: 27/01/2015
Endereço para correspondência
e-mail: carolina.mazoni@msn.com, filipewm@gmail.com, clarissad@ufcspa.edu.br
*Psicóloga