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Estudos Interdisciplinares em Psicologia
versão On-line ISSN 2236-6407
Est. Inter. Psicol. vol.5 no.2 Londrina 2014
https://doi.org/10.5433/2236-6407.2014v5n2p113
Artigos
DOI: 10.5433/2236-6407.2014v5n2p113
Fica um grande vazio: relatos de mulheres que experienciaram morte fetal durante a gestação
It is a great empty: reports of women who have experienced fetal death during pregnancy
Es un gran vacío: informes de mujeres que han sufrido la muerte del feto durante el embarazo
Débora Bicudo Faria-Schützer*; Gabriel Lovorato Neto**; Claudia Aparecida Marchetti Duarte ***, I; Carla Maria Vieira****; Egberto Ribeiro Turato*****
Universidade Estadual de Campinas
I Prefeitura Municipal de Valinhos
Resumo
O objetivo deste artigo é discutir vivências emocionais de mulheres que tiveram perda fetal após vinte semanas de gravidez, coletadas em pesquisa de campo. Utilizou-se o método clínico-qualitativo. A amostra de sujeitos foi intencional e fechada pelo critério de saturação de informações. Utilizou-se a técnica de entrevista semidirigida de questões abertas com cinco mulheres. O tratamento de dados incluiu: transcrição das entrevistas, leituras flutuantes e categorização em tópicos através de análise de conteúdo. Da análise qualitativa dos dados emergiram quatro categorias: 1) "Recebi a notícia da perda..."; 2) "Meu filho nasceu morto..."; 3) "Por que comigo?"; 4) "Eu me sinto assim...". Identificou-se a necessidade de assegurar que as mães e familiares ingressem no processo de elaboração do luto perinatal que refletirá na minimização de prejuízos psicológicos. Deve ser priorizado um suporte por parte da equipe de saúde envolvida, que considere a mulher desde o momento em que é dada a notícia do óbito.
Palavras-chave: óbito perinatal; luto; maternidade; pesquisa qualitativa.
Abstract
The objective of this article is to discuss emotional experiences of women who had fetal loss after twenty weeks of pregnancy, collected in field research. We used the clinical-qualitative method. The construction of the subject sample was intentional and closed by the information saturation criterion. We used the semistructured interview technique of open-ended questions with five women. Data treatment included: transcription of the interviews, free-floating readings and categorization in topics through content analysis. From qualitative analysis, four categories emerged: 1) "I received the news of the loss ..."; 2) "My son was born dead ..."; 3) "Why me?"; 4) "I feel so ...". It is identified the need to ensure that mothers and families to enter the perinatal grief process that will reflect on minimizing psychological damage. It should be prioritized a support by the health team involved, that considers the woman since the moment which is given to death news.
Keywords: perinatal death; mourning; motherhood; qualitative research.
Resumen
El objetivo de este artículo es discutir las experiencias emocionales de las mujeres que tuvieron pérdida fetal después de veinte semanas de embarazo, recogido en la investigación de campo. Se utilizó el método clínico-cualitativo. La construcción de la muestra de sujetos fue intencional y cerrado por el criterio de la saturación de información. Se utilizó la técnica de entrevista semiestructurada de preguntas abiertas con cinco mujeres. El tratamiento de los datos incluyó: la transcripción de las entrevistas, lecturas de libre flotación y la categorización de los temas a través de análisis de contenido. A partir del análisis cualitativo, emergieron cuatro categorías: 1) "Recibí la noticia de la pérdida ..."; 2) "Mi hijo nació muerto ..."; 3) "¿Por qué yo?"; 4) "Me siento tan ...". Se identifica la necesidad de garantizar que las madres y las familias para entrar en el proceso de duelo perinatal que reflejará en minimizar el daño psicológico. Deberia ser priorizado por el apoyo del equipo de salud involucrado, que considere la mujer desde el momento en que se da las noticias de la muerte.
Palabras clave: muerte perinatal; luto; maternidad; investigación cualitativa.
Introdução
A gestação enquanto fenômeno representado no imaginário psíquico e social traz à tona a importância do nascimento, da vida, da esperança. Neste sentido, a morte fetal traz consigo, tanto para os familiares como para a equipe de saúde, a contradição da chamada ordem natural das coisas, dos fatos da vida e o antigo paradoxo entre vida e morte (Cacciatore, 2013; Flenady et al., 2014).
O conceito de óbito fetal em obstetrícia refere-se à morte do feto a partir das 20-22 semanas de gravidez, uma morte que ocorre assim anteriormente à sua expulsão ou extração. A morte fetal precoce ocorre entre 20 e 28 semanas de idade gestacional e o tardio após 28 semanas completas (Brasil, 2010). Sabese que este não é um evento raro em Obstetrícia, que entretanto fica muitas vezes ocultado na rotina, com o sofrimento das mães e de familiares. A falta em reconhecer o valor dessas vidas perdidas leva à diminuição dos esforços da Saúde para a prevenção de mortes perinatais, assim como dos cuidados de respeito humano para com os pais que sofrem esse evento, digamos, biológico. Independentemente de local ou de recursos diversos, este real problema de Saúde Pública deve ser considerado e "tirado das sombras" (Flenady et al., 2014).
Tentamos imaginar o quanto a morte de um filho, antes de seu nascimento, afeta profundamente a mãe, o pai e demais familiares. Em relação à dinâmica emocional, a mulher que vivencia este momento, experiencia um choque, havendo naturalmente raiva, um vazio, desamparo, solidão, sentimentos de impotência, incapacidade e desvalorização de si mesma (Goméz, 2007; Gravensteen, 2013; Flenady, 2014). Este sofrimento é agudo e pode-se estender por anos, às vezes décadas, principalmente quando os pais não puderam elaborar emocionalmente a experiência de perda e assim carregaram sentimentos de culpa e de fracasso (Cacciatore, 2013).
Ao aprofundar o tema, Duarte e Turato (2009) discutiram anteriormente que a morte de um filho antes do nascimento pode representar a impossibilidade de transcendência das expectativas naturais humanas e que, desse modo, interrompe expectativas existenciais depositadas nessa gestação. Elaboração do luto frente à morte de uma criança, antes de seu nascimento, tem a partir dessa premissa uma dinâmica intrincada e peculiar.
É reconhecido pela literatura consagrada ao tema (Defey et al, 1992) que, nesse processo de elaboração pela perda do feto, é comum a sensação da mulher em viver algo como um sonho. A mãe, por não ter a criança aninhada em seus braços para prestar-lhe os cuidados necessários, tal como havia imaginado, não se sentiria verdadeiramente mãe da criança. De onde vem uma sensação de despersonalização. É descrita na literatura a forte necessidade de rememorar, repetidamente, o acontecimento em seus detalhes, como se fosse possível voltar no tempo, apagar naturalmente da memória tudo o que de ruim aconteceu e assim mudar o rumo da experiência. A angústia pela morte do bebê expressa-se frente ao que podemos denominar de repetidas provas da realidade, que a mãe enlutada deve integrar à sua vida frente àquela perda real enquanto parte de sua própria história.
Essa mulher lidará com representações que geram grande angústia, colocando-a em contato com valores pessoais e culturais em relação à maternidade e a fragilidade da vida por conta da contundente morte de seu filho. Isto exigirá um novo processo de simbolização por parte da mãe, no intuito de aplacar suas angústias (Defey et al, 1992; Iaconelli, 2007).
Freud, em seu texto clássico "O Luto e a Melancolia" (1917/1980), define amplamente o luto como a reação à perda de um ente querido. O autor considera que, no luto profundo, a pessoa perde o interesse pelo mundo externo, já que este não evoca tal ente querido ora perdido e também se afasta de qualquer atividade que não esteja ligada a pensamentos sobre ele. Freud postula que o trabalho psíquico a ser realizado pelo luto está ligado ao teste da realidade. Revela que aqueles que vivenciaram o luto frente ao objeto amado, que não mais existe, passem a exigir que toda a libido seja retirada de suas ligações com aquele objeto. Este processo é executado pouco a pouco e demanda dispêndio de tempo e de grande energia psíquica. Cada uma das lembranças e expectativas, através das quais a libido está vinculada ao objeto, vai sendo desligada até o trabalho do luto concluir-se e o "eu" ficar novamente mais livre.
Elisabeth Kübler-Ross (1998), autora que se destacou mundialmente na abordagem do tema da morte, foi uma das pioneiras na sistematização psicológica do processo de luto em estágios: negação e isolamento, raiva, barganha, depressão e aceitação. Paralelamente, Simonetti (2004) entende que o luto não pode ser compreendido apenas como um processo de sucessivas fases, mas um processo mais complexo que inclui o que se chamaríamos de um carrossel de reações e de sentimentos, que se alternam de diferentes maneiras em cada situação de perda.
O luto, segundo pontua Bromberg (1992), pode ser entendido enquanto crise, pois o impacto da morte exige uma energia psíquica – em dimensões emocional e relacional - maior do que os familiares habitualmente dão conta. Para enfrentar a morte, principalmente de familiares, é necessário um novo arranjo nas inter-relações pessoais.
Bromberg (2000) lembra-nos que há luto quando tiver existido um vínculo relevante que então tenha sido rompido. Nesse sentindo, o luto perinatal merece uma atenção diferenciada, como se vê recorrente na literatura (Iaconelli, 2007; Duarte e Turato, 2009; Muza, et al., 2013): Que especificidades tem o vínculo rompido entre a mãe e o bebê que vinha sendo gestado? O processo de construção do vínculo entre mãe e filho sonhado precede o nascimento do bebê, provavelmente até precede a concepção, e é este vínculo primitivo que traz sofrimento intenso quando interrompida a gravidez (Muza et al, 2013). Para Iaconelli (2007), a mãe busca (re)conhecimento do filho perdido, enquanto as pessoas ao redor têm dificuldade de vislumbrar o que ela perde. Essa vivência complexa, às vezes percebida como aniquiladora, implica numa forma singular de elaboração do luto pela mãe. A esperada construção do forte vínculo afetivo entre o bebê e a mãe, ou as recordações de convivência mútua, ficam impossibilitadas de se manterem para o mundo real, assim como todas as outras fantasias em relação a seu bebê. Na ausência dessas lembranças para o futuro, a falta da criança é profundamente sentida, enquanto no lugar da criança perdida surgem representações peculiares no psiquismo da mãe, adaptando-se àquela realidade dolorosa em virtude da morte real do bebê. Como um exemplo, dentre os vários conteúdos destas representações confrontantes com o juízo normal da realidade, podemos encontrar aquelas que geram a sensação de que a criança foi alguém que não tenha existido (Kennell & Klaus, 1992; Duarte & Turato, 2009).
Iaconelli (2007), ao postular sobre o luto perinatal, afirma que nem sempre é escutado, de fato, o desejo dos pais de realizarem procedimentos ritualísticos, que fazem parte das demais perdas por morte e, quando são realizados, não deixam de criar algum constrangimento. Segundo a autora, é impossível enxergar o lugar psíquico de onde emerge um filho e por isso o luto perinatal carrega olhares de incompreensão àqueles que consideram somente o tempo de convívio. O que geralmente se negligencia é que a formação de vínculo mãebebê se assenta sobre as entranhas do psiquismo materno, ao menos desde sua formação. A morte do filho inverte as expectativas das perdas esperadas na vida – morte dos pais, dos mais velhos –, deixando os pais perdidos, sem referências temporais. Há algo do mais profundo desamparo nessa experiência.
Obter o conhecimento das vivências das mulheres em relação à perda fetal deve ser obviamente importante às equipes de saúde para que possam ir além das questões biomédicas. Há ainda poucas evidências sobre intervenções no sofrimento agudo após a morte perinatal, mas é crescente na literatura científica internacional o reconhecimento da importância dos cuidados psicológicos a respeito dos conflitos ocorridos neste período, principalmente no tratamento da ansiedade e depressão (Cacciatore, 2013).
Pesquisas que identificam a opinião e o conhecimento das mulheres podem contribuir para que às equipes tenham mais elementos para enfretamento do fenômeno da morte de um bebê antes do nascimento. São contribuições científicas que devem auxiliar àqueles que se dedicam especificamente ao manejo dessa situação psicológica, na busca por melhor assistência clínica e humana, tanto no puerpério, como também em eventuais futuras gestações. São questões relevantes que justificam o presente artigo, que assim tem como objetivo apresentar e discutir vivências emocionais de mulheres que tiveram perda gestacional após vinte semanas a partir de relatos colhidos numa pesquisa de campo em serviço obstétrico público especializado.
MÉTODO
O estudo teve um desenho qualitativo, de caráter exploratório, portanto não-experimental ou laboratorial, não-randômico ou estatístico, não-controlado ou comparativo (Turato, 2005). Utilizou-se o Método Clínico-Qualitativo em particular (Turato, 2010), que é um refinamento dos métodos qualitativos genéricos trazidos das Ciências Humanas e aqui aplicado em settings assistenciais da Saúde. O Método Clínico-Qualitativo propõe-se a investigar significados que os indivíduos atribuem aos fenômenos vividos quanto aos processos do adoecimento e de tratamentos e prevenções. O interesse dos pesquisadores pelo significado dados às "coisas" decorre do fato de que os signficados têm um papel organizador e estrturante na vida cotidiana das pessoas e da coletividade. O que as experiências representam a elas e ao grupo, dá um molde à vida individual e é partilhado culturalmente. Para isso, a pesquisa acontece no setting natural do sujeito sob estudo, frequentemente em alguma instituição de atendimento aos problemas de saúde (Turato et al. 2010).
Após a elaboração do projeto, a fase inicial da pesquisa clínico-qualitativa é a aculturação em campo (Turato, 2010), na qual o pesquisador estabelece uma relação direta com a população a ser estudada e com seu ambiente físico e institucional, conhecendo e apropriando-se da linguagem e do modo de pensar das pessoas daquele setting. A fase de aculturação neste trabalho foi realizada em um serviço médico universitário especializado de atendimento à saúde da mulher. O serviço conta com uma equipe multidisciplinar composta por docentes médicos, residentes, estudantes de graduação, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, nutricionistas e fisioterapeutas.
A amostra foi composta por um universo de cinco mulheres que tiveram perda gestacional diagnosticada após 20 semanas de gestação. Foram excluídas da amostra mulheres por já terem recebido atendimento diferenciado durante a gestação devido à possibilidade de perda fetal, e por isso pressupôs-se que apresentavam outro nível de elaboração. Foram os casos das mulheres que tiveram fetos malformados, ou nasceram com alterações visíveis externamente. A idade das mulheres participantes do estudo variou de 18 a 42 anos. Todas as participantes mantinham relacionamento conjugal estável. Uma das participantes era primigesta, duas eram secundigestas e duas multíparas. Uma delas era hipertensa crônica, duas tiveram hipertensão gestacional e uma era diabética.
O fechamento da amostra ocorreu segundo o critério de saturação teórica de informações. Significa que a inclusão de novos participantes não era necessária metodologicamente, pois a discussão entre os autores e peerreviewers do grupo de pesquisa, o LPCQ – Laboratório de Pesquisa ClínicoQualitativa da UNICAMP -, revelou que havia material coletado em profundidade para discutir suficientemente os objetivos iniciais do projeto (Fontanella, Ricas, & Turato, 2008).
As mulheres foram entrevistadas por ocasião de sua primeira consulta no ambulatório, cerca de 50 dias após o parto, que é o prazo definido pelo serviço para a consulta de revisão de parto. As entrevistas foram conduzidas por uma das autoras do artigo na sala do serviço de psicologia do hospital. Antes da entrevista, as participantes assinavam o competente termo de consentimento livre e esclarecido, que então era lido com elas. Após a leitura, iniciava-se a coleta dos relatos, sendo todas as entrevistas registradas em gravador de voz e transcritas posteriormente para texto eletrônico.
Utilizou-se a entrevista semidirigida de questões abertas, em profundidade, como instrumento de viabilização do método, contendo questões relacionadas às experiências vivenciadas frente à perda fetal ocorrida, com o intuito de trazer as falas, assim associadas às angústias presentes. As informantes discursam, desta forma, num jogo de livre associação de ideias acerca de suas experiências (Turato, 2010). Tal técnica possibilita a investigação em profundidade da organização de vida do sujeito entrevistado, constituindo-se uma ferramenta de trabalho importante entre os pesquisadores de saúde na perspectiva das Ciências Humanas (Bleger, 1993).
Os pontos abordados nas entrevistas contemplavam aspectos do andamento da gestação, do momento do diagnóstico do óbito fetal, do parto em si mesmo, do posterior contato com o corpo do bebê, das repercussões nos relacionamentos pessoais, do retorno à casa. Nesse método, apesar de um roteiro de questões a serem indagadas, o próprio pesquisador é tido como o instrumento central através do uso de sua escuta clínica e do olhar acurado pela prática prévia em inter-relação pessoal (Minayo, 2004).
Após sucessivas leituras flutuantes do material completo transcrito, o material foi categorizado em tópicos de discussão que, a princípio, respondiam aos objetivos estabelecidos no projeto (Turato, 2010). Estes tópicos foram debatidos em equipe, segundo a técnica da análise qualitativa de conteúdo, suportado por um referencial teórico psicodinâmico. Seguiu-se a esta etapa, a chamada validação grupal, quando os resultados da discussão eram revisados pelos pares do grupo de pesquisa em que todos os autores estavam institucionalmente vinculados. Procurou-se, por sua vez, garantir o chamado caráter êmico da pesquisa, isto é, a compreensão ocorre na perspectiva vinda do sujeito estudado; assim como os autores ficaram atentos ao caráter polissêmico da investigação qualitativa, isto é, os sentidos atribuídos pelas pessoas às suas vivências são múltiplos, diferente das correlações matematicamente causais entre variáveis tal como estudadas em pesquisas quantitativas, o que leva autores a múltiplas interpretações plausíveis, todas gozando de legitimidade científica.
Para preservar os cuidados éticos em relação ao sigilo das entrevistas, os nomes das entrevistadas apresentados no artigo são fictícios. Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Desde as antigas tragédias gregas, os eventos dolorosos e inusitados ocupam um lugar no interesse das intrigas humanas (Romilly, 1998:8). A função daquelas representações dramáticas, conta-nos o filósofo Aristóteles, era despertar a atenção da plateia pela verossimilhança e peripécia (Aristóteles, VI:12). A primeira refere-se à capacidade de identificação; o personagem é um modelo (Aristóteles, XV:14); a segunda trata da encenação surpreendente dos incidentes, de maneira que eles proporcionavam, pelo terror, uma oportunidade de purificação afetiva para os que assistiam às peças e podiam vivenciar intensamente as emoções que provocavam (Aristóteles, VI:2).
A análise filosófica das tragédias representa uma das primeiras tentativas de se obter nos relatos das histórias, pelo seu valor mítico, um conteúdo psicológico e como eles interagem na sociedade. Os resultados que apresentamos a seguir, de certa forma, alcançam um grau desta composição, pelo seu valor trágico. Estas mulheres então descreveram e transmitiram ao entrevistador suas vivências do luto perinatal e os efeitos dele junto às suas famílias e equipes de saúde; bem como o destino que deram às suas vidas, e como se reorganizaram a partir daquele evento, com os desdobramentos que ele trouxe.
A maneira trágica como nossas entrevistadas relataram suas experiências, conduzem-nos às reflexões teóricas que abarcam a questão do luto, mais especificamente do luto perinatal e as possibilidades encontradas para lidar com tal perda. O contraste entre os elementos cíclicos e transitórios da vida, gestação e morte, perfazem o drama psíquico que ora tentamos captar e discutir neste texto. São relatos sobre um carrossel de reações e sentimentos, tal como Simionetti (2004) descreve o luto. A partir do referencial teórico psicodinâmico, isto é, considerando aspectos conceituais de compreensão das atitudes e estados de mentais das pessoas enquanto em movimento, especialmente considerando influências de níveis inconscientes, emergiram no processo de análise de conteúdo, quatro categorias aqui apresentadas e discutidas, que refletem facetas das apreensões das entrevistadas sobre suas vivências naquele momento de vida.
1) "Recebi a notícia da perda..."
As mulheres receberam a notícia da perda de seus bebês nas consultas de pré-natal ou durante a internação hospitalar. A perda fetal foi confirmada após a realização de um exame de ultrassom para constatação da ausência de batimento cardíaco fetal. Elas descreveram esse momento como sendo de dificílima aceitação, angustiante, quando grande número de emoções emerge ao mesmo tempo.
Desespero. Acho que todos os tipos de sentimentos se misturaram nessa hora... (Clara, 23a, primigesta)
Ela falou assim: infelizmente tinha tido o óbito. Eu não aceitei, eu não aceitei o que aconteceu, eu não queria ter perdido, mas não teve jeito" (Paula, 42a, multípara)
O trecho do relato de Clara, ao falar da intensidade e mistura de sentimentos, corrobora as ideias de Bromberg (2000), que descreve que a morte de um filho tem efeitos devastadores e gera uma enorme gama de sentimentos ambivalentes nos pais. Através dos relatos foi possível perceber que, no momento em que é dada a notícia do óbito fetal, essa mulher vive o estado descrito como fase de certo entorpecimento. A primeira reação à perda desperta um choque, uma descrença e muitas vezes até uma negação – inicial - como revelado no relato da entrevistada Paula.
A partir dessa análise, temos que as reações de descrença e negação não devem ser tomadas necessariamente como uma defesa patológica do psiquismo.
Entretanto, são reações que se manifestam em fase inicial, sim, para que o psiquismo busque reorganizar-se diante do impacto da notícia no trabalho emocional de elaboração do luto.
2) "Meu filho nasceu morto..."
As mulheres descreveram o parto do bebê morto e os instantes seguintes com sensações de vazio, desamparo e frustração. Neste momento, a percepção da perda fica evidente e a sensação da finitude da vida evoca angústias intensas que pedirão serem elaboradas. A inquietação se instala como dor emocional na busca de simbolizar a experiência de sentir a dor do parto, com o indesejado resultado de não ter o filho vivo. Esta dor suga a atenção deste momento crítico da vivência.
...se você sentir toda a dor que eu senti e tiver a criança ao lado, tudo bem. Mas você sentir tudo que você sentiu, passar tudo que você passou e não ter a criança do seu lado, é terrível, inaceitável (Paula, 42a, multípara)
...sentimento, angústia, choro, desespero, porque a partir do momento em que você vê teu filho morto, ali, assim sem se mexer, morto, sem movimento nenhum é como se o mundo tivesse acabando naquela hora. Para você não existe ninguém. Ali, ao seu redor você não vê ninguém, você só vê aquela cena, só vive aquela cena. Você está vendo um filho esperado, planejado, como no meu caso, que praticamente foi uma gestação inteira assim (Clara, 23a, primigesta).
Apresenta-se a necessidade de confirmar as expectativas idealizadas em relação ao filho então esperado. O filho é reconhecido, tendo as características físicas da família e é imaginado por tamanha perfeição que torna a vida indigna de recebê-lo, o que justificaria estranhamente sua morte precoce.
Ela nasceu perfeita, linda. No dia que ela morreu a médica me mostrou e eu falei: Ah meu Deus, não dá para acreditar... uma menina perfeita. Ela estava perfeita até demais, era linda... Às vezes eu penso que ela era linda daquele jeito que não era para ficar aqui... (Laura, 32a, secundigesta)
... ele era parecido com meu marido. Não tinha nada de mim. Ele era loirinho, parecia que não era meu filho... (Rosa, 18a, secundigesta).
O momento reportado a seguir também se descreve como de grande dificuldade para a aceitação. A situação emocional que se instalou remete à dificuldade de nomear sentimentos, de simbolizar, e fica evidenciada a tentativa de evitar o contato com a dor psíquica através da forte negação da realidade. No lugar desta realidade, vem então o uso de mecanismos defensivos como a negação e a racionalizações, uma vez que a pura supressão dos pensamentos dolorosos em função do luto não pôde ser efetivada.
Quando eu vi, eu não sentia muita coisa, porque eu acho que eu estava com tanto medicamento, que eu não tinha reações... (Paula, 42a, multípara).
No dia seguinte, ocorreu como se eu tivesse esquecido que eu não tinha mais o bebê. Eu me via pensando que eu estava ainda grávida e cheguei a pensar que eu não tinha perdido de fato o bebê. Acordei como se eu tivesse grávida... Na madrugada, eu acordei de novo, como se eu estivesse grávida. Para mim, eu estava grávida, eu esqueci que eu tinha ficado internada e que e tinha feito uma laqueadura e que eu tinha perdido o bebê (Vera, 29a, multípara).
Iaconelli (2007) recorda-nos que a gravidez é vivida por muitas mulheres como um momento de plenitude e poder. Se por um lado, a mulher se sente frágil e ansiosa, por outro, tende a atribuir sua condição ao caráter de bênção. Esta fantasia onipotente cria potencialmente um solo fértil para efeitos traumáticos, quando as coisas não saem dentro do esperado. O trauma é uma experiência que exige trabalho psíquico tão intenso, que parece que não se consegue dar conta, ou seja, a experiência do luto é, em termos psicodinâmicos, desorganizadora. Seu resultado é um desajuste, e portanto há angústia como sintoma da tensão psíquica. O trauma, evidenciado pelos trechos selecionados, demonstra exigências de um caminho árduo e complexo que a elaboração do luto tomará.
As análises dos relatos aproximam-se da abordagem de Maldonado (2005) sobre a idealização da maternidade, bem como o quanto este ideal promove transformação da sensação de insegurança e ameaça intrínseca à gravidez em plenitude. A partir das entrevistas, foi possível identificar que o filho é "tudo", é "o mundo" que tampona o vazio interior pela insegurança que o existir representa. Ter a "criança ao lado" é o "tudo bem" para "passar pelo que passou". Porém não tê-la significa a dúvida do "não sei se vou conseguir", questionando-se o futuro. A ligação afetiva instalada no filho representa a segurança de continuidade para elas. Continuidade experimentada pelas mães no corpo grávido, no reconhecimento estético da fisionomia dos membros da família projetada no bebê, na dotação de um ambiente doméstico a ele preparado e a ideia de que o filho conservaria a herança genética, cultural e o usufruto dos bens familiares.
A análise das entrevistadas revelou que, para além do trabalho de luto, essas mulheres sofreram processo ambíguo de (des)idealização da gravidez e do filho morto. Assim como retoma Iaconelli, (2007), as entrevistadas dessa pesquisa demonstraram o quanto um filho e a morte de um bebê puderam formar fantasias relativas à perda do "bebê maravilhoso", tal como um dia pudemos ser para nossos pais, assim como um dia serão para nossos filhos. Para Bartilotti (2007), o luto perinatal interfere muito na autoestima da mulher, pois se entende que a "criança morta" também traz uma "mãe morta". Desta maneira, a construção real e imaginária do papel da maternidade, ao longo da gestação, é chamada a interromper-se de forma abrupta.
A confusão de sentimentos disfarçaria a essência da dor principal. É o momento no qual novas defesas precisam ser erguidas para suportar e superar. Se a dor da perda não for adequadamente sentida, como se é esperado que aconteça, há necessidade de se buscar uma explicação para isto, racionalizar o porquê de não se ter dado vazão ao sentimento.
O sepultamento da criança é outro momento crítico na experiência da perda gestacional, tal como emergiu na análise do material do discurso, vivenciado com típica tristeza e frustração. Mais uma vez, a realidade se impõe como irreversível e há a necessidade de enfrentar a dor da angústia pelo caminho da elaboração. A partir do momento literalmente fúnebre, a comunidade que cerca a mãe reúnese com ela para a despedida. Estabelece-se um contato com outros que estão olhando a situação e tentando contribuir emocionalmente com esta mãe. Para ela, todavia, o resultado final deste contato não alcança a minimização do evento como pretendida pela comunidade. Antes, a mãe ressente sua frustração inicial do ideal materno.
É uma coisa muito triste ver o filho dentro do caixão, o filho sendo enterrado. Uma coisa que você espera nove meses e pega amor. Tem gente que fala que é só um bebê, que você não viu ainda, que não conheceu... Mas há o mesmo amor como se o filho estivesse grande. É o mesmo amor, é o mesmo carinho... (Rosa,18a, secundigesta).
Por sua vez, a volta para casa é descrita novamente com profundo pesar. A ausência do filho, perdido, é sentida diariamente no contato com aqueles que seriam os pertences da criança, com a família e com amigos. A retomada da rotina de vida dá-se aos poucos, dolorosamente, quando mecanismos defensivos de projeção aparecem para salvar o "eu" de um sofrimento maior.
Cheguei em casa sem a menina e todos esperavam por ela. Era para eu chegar com ela. Veio-me aquele vazio e eu entrei no quarto. Às vezes, não dá nem para acreditar. Parece que é um sonho ruim... (Laura, 32a, secundigesta).
O momento em que se chega à casa é a hora mais difícil que há, porque você vê o berço e o quarto pronto. Quando se abre a cômoda, se veem as gavetas com as roupas arrumadas, limpas e passadas, esperando quem iria usá-las. É terrível. Não tem em quem colocá-las. Você tinha alguém para usa-las e naquele momento, ela não está mais com você. É como se o mundo tivesse acabado (Clara, 23a, primigesta).
Novamente, Iaconelli (2007) considera os rituais que se dispensa a um ente querido falecido e observa que no luto perinatal é comum não ser escutado o desejo dos pais de realizarem procedimentos ritualísticos tal como são típicos nas demais perdas por morte e, quando são realizados, criam certo constrangimento. O relato de Rosa descreveu este sentimento de incompreensão por parte de outras pessoas e denunciou seu sentimento de desamparo e solidão. É também semelhante a de outras mães que sofreram a mesma condição, em que os pais costumam ouvir declarações de que seus bebês são substituíveis, e como sofrem a pressão para acelerar o trabalho do luto.
Estudos recentes (Iaconelli, 2007; Muza et al., 2013) demonstram a melhora do sofrimento dos pais, em relação ao seu sofrimento, quando estes são incentivados a lidar com o bebê real. Semelhantemente, foram observados em nosso estudo, quando da ajuda dos profissionais de psicologia do local, pôde-se escutar os pais e identificar o desejo deles acerca de rituais fúnebres, ou da necessidade da própria mãe em lidar com os destinos dos pertences do quarto do filho morto, sem que outro familiar venha a fazer isso por ela. Como revelou o relato de Laura, "é um sonho ruim", mas com acompanhamento profissional e apoio familiar, percebe-se que a mãe pode aos poucos inserir-se na realidade, voltando para casa, para sua rotina, por mais doloroso que seja. Defey et al (1992) pontuaram que nesse processo de elaboração pela perda da criança, depois de ocorrido o parto, é comum uma sensação na mulher de estar vivendo algo como um estranho sonho – semelhante ao que descreveu a entrevistada Laura.
Nos resultados encontrados aqui pelos autores, além de toda a experiência de angústia vivenciada pelas mulheres que obtiveram o diagnóstico de óbito intrauterino, constataram-se certos aspectos peculiares que ajudaram no processo de elaboração deste drama. Destaca-se o parto, o contato com o corpo, a decisão familiar frente ao evento, o rito fúnebre e o processo psicológico.
As angústias e todas as dores psíquicas pela perda do bebê são simbolizadas na dor física do trabalho de parto. Ressalta-se que, apesar da dor física e emocional, é importante que tais mulheres tenham a experiência sensorial – consciente - da saída da criança de seu próprio corpo, no sentido de ajudá-las a discriminá-las como um ser distinto (Defey et al., 1992).
O momento de ver e ter contato físico com o corpo do bebê morto é profundamente marcante. Os achados da presente pesquisa apontaram a necessidade de se vivenciar uma tristeza psicológica, presente, para assim marcar a realidade da perda (Maldonado, 1992). Esse ritual, permitindo o contato real com a criança, permite também as recordações de fatos concretos, facilitando a adequada elaboração do luto pela perda (Kennell & Klaus, 1992). Além disso, a mulher consegue lidar melhor com uma angústia que pode ser terrorífica e então passar a sentir uma tristeza natural, chorando e sentindo uma dor, ainda que profunda. Essa mãe coloca-se no lugar de uma mãe que perdeu um filho real, que pode vê-lo como um bebê que é inofensivo, pelo qual se sente dor, mas também amor (Defey et al., 1992).
Diante das reações relatadas, ambíguas quanto ao que fazer após a perda, entendemos que é a própria mulher, juntamente à sua família, quem deve decidir o que fazer, por exemplo, com os pertences que seriam do bebê. Caso isso não aconteça, a sensação de irrealidade pode fazer-se presente. A partir da escuta dos relatos das pacientes, deduzimos que, quanto maior for o contato com a realidade, ainda que extremamente doloroso, maior poderá ser o envolvimento da pessoa num processo normal, facilitando a elaboração psicológica mais adequada dos sentimentos presentes.
As pessoas enlutadas devem ser encorajadas a ter oportunidade de desempenhar papel ativo e de tomar suas próprias decisões (Maldonado, 1992). É importante, por exemplo, que a própria mulher hospitalizada cuide de eventuais pertences do bebê que não poderia levar para casa.
3) "Por que comigo?"
Na tentativa de compreensão dos motivos que levaram à perda do bebê e preencher o vazio sentido, a necessidade de se fazer várias perguntas marcadas pela indignação e raiva foram reveladas nas entrevistas. Vivências angustiantes puderam ser observadas, tais como: culpa-castigo, tentativa de desvincular-se do filho, impotência e vulnerabilidade diante da fragilidade da vida. As defesas psíquicas continuam agindo na tentativa de melhor lidar com a situação traumática.
Eu me sinto culpada por ter acontecido isso. É como se fosse eu quem tivesse matado ela... (Paula, 42a, multípara).
... um filho vivo é seu. Se o filho já morreu, já não te pertence mais. Você vai ficar se apegando a uma criança que já morreu no seu próprio ventre? Que nem chegou a nascer, que não mais é teu? Tem mulheres que ficam pensando muito naquele filho. Eu penso nos meus dois filhos vivos: esses são meus, e eu tenho que cuidar deles. O que morreu não é meu mais. Eu nem cheguei a vê-lo. Nasceu, mas não é meu. Ele não me pertence. Eu acho que pertenceria a Deus (Vera, 29a, multípara).
A confusão de sentimentos e a necessidade do psiquismo de defender-se da dor da morte do filho, tal como revelados nas falas, não fica somente no momento da notícia, mas sim como um processo que preenche dias, meses ou mesmo anos. As mulheres entrevistadas puderam expressar diferentes sentimentos e formas de lidar com a dor. Contudo, foi possível perceber que todas elas tentaram elaborar, cada uma à sua maneira, esse sofrimento na tentativa de conseguirem levar adiante suas vidas. Assim como creem Santos, Rosenburg, & Buralli (2004), pudemos perceber que, do ponto de vista parental, não existe uma idade menos traumática para a morte de um filho. Sentimentos vários como frustração, decepção, revolta, tristeza, hostilidade e culpa são frequentes nessas situações e a perda do bebê pode gerar estados mais depressivos clinicamente (Bartilotti, 1998).
É importante ressaltar que o sentimento de culpa, definição consagrada na literatura, é necessário e deve ser pontuado. A culpa, neste contexto, geralmente está acompanhada de certa necessidade psicológica de entender causas realmente explicativas do ocorrido, tendo em vista que o psiquismo fica ainda mais fragilizado diante do desconhecido, do obscuro labirinto mental (Duarte & Turato, 2009).
4) "Eu me sinto assim..."
Nas entrevistas, mulheres referiram que se sentiram incapazes, envergonhadas, descrentes em relação a seus futuros. Apontaram também a dificuldade de contato com mulheres grávidas ou com bebês, pois o contato lhes traria lembranças da ausência do seu filho, situação em que a identificação no próprio desejo e a realidade alcançada pelo outro constrói uma assimetria geradora de dor. A autoestima torna-se abalada. Nossos resultados se aproximam dos de Hsu et al. (2004), que registraram as mulheres entrevistadas vivendo o luto perinatal com sentimentos múltiplos de perda de controle, quebra de desejos/sonhos, de incompletude, culpa, derrota pessoal, de menos-valia enquanto mulher e em relação ao seu papel na sociedade.
Soifer (1992) já havia pontuado que a perda do bebê antes de seu nascimento, faz com que os desejos da mulher em relação àquela criança tornam-se frustrados, deixando–a impossibilitada de usar sua potencialidade materna, trazendo-lhe uma dor quase insuportável. Este fenômeno foi referido pelas mulheres deste estudo como uma dor psíquica imensurável, que as levou a um conflito interno e social em relação até mesmo à feminilidade individual e ao papel do feminino quanto à maternidade.
Eu penso: elas têm filhos porque têm saúde e são melhores do que eu (Laura, 32a, secundigesta).
... meu marido perguntou para mim se eu quero ter outro filho. Eu disse que não sei se eu vou conseguir. Não sei como eu vou passar a outra gravidez, pensando, me preocupando. Compensaria sofrer mais uma vez? (Rosa, 18a, secundigesta).
... Lembra da minha gestação, lembra da minha barriga? Eu penso assim: poxa, eu podia estar com o meu nenê como essa mulher está. Eu podia estar amamentando como essa mulher está amamentando... A falta, a falta... Sempre eu tenho que desviar o olho... (Clara, 23a, primigesta).
O não reconhecimento de si mesma é mais uma questão identificada neste estudo como crucial. Há uma vivência de certa despersonalização, de não reconhecer-se, de diluição da identidade de mulher. Defey et al (1992) afirmam que, por não ter a criança em seus braços para prestar-lhe os cuidados necessários, tal como havia imaginado longamente, ela não se sente propriamente mãe da criança, prevalecendo uma sensação de determinada despersonalização. É nesta fase que pode manifestar-se a depressão clínica.
Eu acho que fiquei meio distante das pessoas e eu não consigo me encontrar... (Paula, 42a, multípara).
Eu me sinto muito triste, magoada, me percebo o diferente com as outras pessoas. Acho que a tristeza que eu sinto por dentro, dá para ser percebida pelas outras pessoas (Rosa, 18a., secundigesta).
Naquela hora, um vazio tão grande ocorre que você que parece que você não mais tem alma... (Clara, 23a, primigesta).
Kovács (1996) discute que os seres mortais buscam o significado de suas vidas também através das suas vivências e elaborações sobre as várias mortes que vivem ao longo do ciclo vital. Apesar da intensa emoção apresentada pelas entrevistadas em relação à sensação de fracasso, de despersonalização, e aparente desesperança, as análises dos dados indicaram que essas mulheres tentaram, a partir da tragédia, atribuir novos sentidos à própria vida. Visto que as entrevistas foram realizadas em período recente após a perda real dos bebês, é possível que a sensação de estar "perdida", de sentir-se mais sensível em relação a outras mães ou gestantes, assim como a constatação de estar vivendo "um grande vazio", indicam uma fase precoce da elaboração do luto. Se bem assistido pela família e profissionais, entende-se que pode ajudar no processo de "cicatrização mental" dessa dor.
Sob a luz de contribuições teóricas é relevante enfatizar que a mulher que vivencia a perda do feto precisaria sentir, de certo modo, suas dores e sofrimentos para assim poder dar lugar a sentimentos, digamos, positivos que então virão. Tais sentimentos não são eventos meramente isolados. Devem incluir a família e sua comunidade, a começar pela própria comunidade do atendimento hospitalar. Se sentimentos são negados e o bebê não está presente no discurso, abre-se espaço para uma elaboração não adequada do luto. Nas instituições de saúde, isso pode ser facilitado evidentemente pela equipe multiprofissional com medidas de efeito terapêutico, que incluam tal mulher e demais pessoas envolvidas nesse singular processo.
CONCLUSÕES
Resultados da interpretação aqui das falas das mulheres que vivenciaram o trabalho de elaboração de luto perinatal expõem a necessidade de se assegurar que mães e familiares, ingressem imediatamente no processo de elaboração do luto, que se espera desdobrar na minimização dos prejuízos psicológicos, apesar do sofrimento vivenciado. Essa recomendação vai contra certo senso comum que prega a velha ideia de que "é melhor não mexer nisso", revelando mais o despreparo emocional e humanista dos profissionais. Neste sentido, deve idealmente ser priorizado um suporte teórico e de habilidades para a equipe de saúde envolvida que foque desde o momento em que é dada a notícia e das defesas psíquicas típicas desse instante do impacto da perda. Não se deve deixar paralisar pelo medo de falar sobre o bebê morto, de tocar seu corpo inerte, de planejar o sepultamento e pensar nos pertences que seriam da criança.
Experiências subsequentes incluem as tentativas de elaboração da dor psíquica, identificação e respeito aos desejos maternos, e a necessidade da mãe em viver seu sofrimento para posteriormente abrir então espaço para sentimentos positivos que deverão vir. Tendo em vista que esta perda deixa um vazio que é sentido, que deve ser percebido na consciência e verbalizado, para que haja processo sadio de "cicatrização mental" da dor. Erro dos profissionais é deixar que as "coisas psicológicas" aconteçam por si.
Este texto soma-se às propostas da literatura, mostrando ser fundamental que equipes ligadas à Saúde da Mulher contem regularmente com participação de profissionais da área de Saúde Mental, que estejam instrumentalizados para lidar com elementos psicológicos presentes na perda perinatal, no sentido de assistir aos pais, instruir e orientar familiares próximos. Vencer certos tabus é papel da ciência.
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Recebido em: 26/09/2014
Revisado em: 02/12/2014
Aceito em: 26/01/2015
Endereço para correspondência
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* Psicóloga/Psicanalista, Mestre em Ciências Médicas/ Departamento de Tocoginecologia, CAISM/ UNICAMP
** Psicanalista, aluno de mestrado da Faculdade de Enfermagem/ UNICAMP
*** Psicóloga, Mestre em Ciências Médicas/ Saúde Mental, Psicóloga da Prefeitura Municipal de Valinhos.
****Nutricionista, Doutora em Ciências Médicas/ Saúde Mental, FCM/ UNICAMP.
*****Psiquiatra, Professor titular do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria, FCM/ UNICAMP.