SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.6 issue2Projective tests in psychological assessment of schizophrenia: a review of Brazilian literatureIlness’ perception for truck drivers absented by social security system author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

article

Indicators

Share


Estudos Interdisciplinares em Psicologia

On-line version ISSN 2236-6407

Est. Inter. Psicol. vol.6 no.2 Londrina Dec. 2015

 

Artigos

 

O conceito de alianças inconscientes como fundamento para o trabalho vincular em psicanálise

 

The concept of unconscious alliances as the curbstone of bound work on psychoanalysis

 

El concepto de alianzas inconscientes como fundamento del trabajo vincular en psicoanálisis

 

 

Pablo CastanhoI i

I Universidade de São Paulo

 

 


Resumo

A relação indivíduo-sociedade é um desfio ao pensamento nas ciências humanas e sociais em geral e para a psicanálise em particular. Neste artigo, objetiva-se a apresentação e sustentação da lógica contratualista em psicanálise como fundamento para o trabalho vincular (com casais, famílias, grupos e instituições). A partir do estudo atento de dois textos sociais de Freud, busca-se caracterizar a noção de contrato no autor. Em seguida, apresenta-se o conceito de alianças inconscientes, de René Kaës, como um desenvolvimento possível dessa noção. Conclui-se sobre as especificidades e a potencialidade do conceito de alianças inconscientes para contribuir para o debate da relação indivíduo-sociedade em geral e sobre sua pertinência e utilidade como fundamento para o trabalho psicanalítico vincular.

Palavras-chave: teoria psicanalítica; psicanálise de grupo; René Kaës; psicoterapia de grupo.


Abstract

Understanding the Individual-society relationship is a challenge for human and social sciences in general and for psychoanalysis in particular. Our goal on this article is to present and sustain the contractual logic in psychoanalysis as the foundation for working with couples, families, groups and institutions. Starting from an attentive study of two of Freud’s “Social Texts”, we aim at characterizing the author’s notion of contract. We then present René Kaës’ concept of unconscious alliances as a possible development of such notion. We conclude upon the specificities and potentialities of the concept of unconscious alliances in contributing to the debate on the relationship between individual and society in general and about is pertinence and utility as the curbstone for bound work on psychoanalysis.

Key words: psychoanalytic theory; group psychoanalysis; René Kaës; group psychotherapy.


Resumen

La relación individuo-sociedad es un desafío para las ciencias humanas y sociales en general y para el psicoanálisis en particular. En este artículo, nuestro objetivo es la presentación y sustentación de la lógica contractualista en psicoanálisis como fundamento para el trabajo vincular (con parejas, familias, grupos e instituciones). A partir del atento estudio de dos textos sociales de Freud, intentamos caracterizar la noción de contrato del autor. Enseguida, presentamos el concepto de alianzas inconscientes de René Kaës como un desarrollo posible de dicha noción. Concluimos con las características específicas y las potencialidades del concepto de alianzas inconscientes para contribuir en el debate de las relaciones individuo-sociedad en general y sobre su pertinencia y utilidad como fundamento para el trabajo vincular en psicoanálisis.

Palabras clave: teoría psicoanalítica; psicoanálisis de grupo; René Kaës; psicoterapia de grupo.


 

Introdução

Em El Campo Grupal, Ana Maria Fernández (2006) identifica uma antinomia indivíduo–sociedade, característica de nosso universo acadêmico e da cultural ocidental. Oscilaríamos entre o “psicologismo” e o “sociologismo”, encarcerados em uma lógica disjuntiva que tende a afirmar ora o indivíduo, ora a sociedade como ideias abstratas reciprocamente excludentes.

Segundo Barros (2009), o “grupo” surge na literatura do início do século XX como intermediário entre o “psicologismo” e o “sociologismo” e, portanto, como “tentativa de solução deste impasse.” (Barros, 2009 p. 79). Ambas as autoras reconhecem essa pretensão dos estudos grupalistas, mas apontam seus limites. Fernández é contundente em sua crítica de uma compreensão antropomórfica dos grupos. Segundo um olhar antropomórfico, o grupo é pensado à imagem do indivíduo e concebido como agente de desejos, pensamentos e ações, dentre outras manifestações humanas. Nessa perspectiva, as categorias utilizadas para a compreensão do indivíduo são transpostas ao grupo e a especificidade da lógica dos fenômenos grupais é perdida.

Tal procedimento antropomórfico não é estranho à psicanálise. De fato, em momentos de seus textos Freud abre-se ao campo social por meio desse olhar antropomórfico. Por exemplo, no final de O Mal-estar na Civilização (Freud 2010/1930), comenta sobre a hipótese diagnóstica de “que muitas culturas – ou épocas culturais, ou possivelmente toda a humanidade – tornaram-se neuróticas’ (p. 120), seguindo-se uma discussão sobre as condições de possibilidade de tratar essas comunidades. O discurso freudiano é cheio de ressalvas, precauções e incertezas nessa passagem, mas tais reservas nem sempre são encontradas no discurso de analistas lançados às práticas de grupos e instituições. Ainda hoje, por exemplo, é possível ouvir numerosas referências ao inconsciente institucional ou de grupo sem pudores aparentes. Para um psicanalista, o grande problema dos modelos “antropomórficos” de grupo é justamente a perda ou enfraquecimento do espaço intrapsíquico dos componentes do conjunto. De fato, se o grupo está em vias de se sustentar, como extensão legítima da psicanálise, é necessário encontrar soluções conceituais que não só reconheçam as especificidades das formações vinculares, mas que preservem a tópica intrapsíquica freudiana (e pós-freudiana).

Curiosamente, é em um psicanalista que Ana Maria Fernández vê um movimento de superação da lógica antropomórfica que atravessa as ciências humanas e sociais. Ao comentar sobre o conceito de intermediário em Kaës, afirma que se trataria de uma:

mudança de paradigma: de um critério antinômico de indivíduos vs. sociedades, para uma operação conceitual que possa evitar uma falsa resolução reducionista e se permita sustentar a tensão singular-coletivo. (Fernández, 2006, p. 56, tradução nossa)

O conceito de intermediário em René Kaës é extremamente amplo. Ele opera na progressiva caracterização de diferentes conceitos. O conceito de alianças inconscientes é um dos beneficiados desse processo. Claramente compreendidas como formações intermediárias, as alianças inconscientes ganham maior consistência e detalhamento em uma publicação de Kaës de 2009.

Mas, se se pode sublinhar a novidade da contribuição de René Kaës, como concebê-la na linha de herança de Freud? O objetivo deste artigo, então, é apresentar e sustentar a lógica contratualista em psicanálise como fundamento para o trabalho vincular em psicanálise (com casais, famílias, grupos e instituições).

O retorno a Freud é procedimento metodológico comum na obra de muitos psicanalistas e sempre presente em René Kaës. Neste artigo, ele é operado por conta própria. Para tanto, selecionaram-se dois dos principais textos sociais freudianos: Psicologia das massas e análise do Eu e O mal estar na civilização. Os dois textos foram lidos e relidos buscando-se identificar as concepções freudianas sobre o laço/vínculo social e suas relações com o funcionamento intrapsíquico. As passagens selecionadas da tradução de Paulo Cézar de Souza são cotejadas com o texto original alemão (Freud, 1921/1999; 1930/1999) de modo a permitir a identificação do léxico utilizado por Freud para abordar a problemática do vínculo entre as pessoas. Recorre-se a comentadores e outros textos freudianos que permitem organizar o material em três categorias que são apresentadas neste artigo: 1) O desvio pulsional como estruturante do vínculo; 2) Bindung, Verbindung e Beziehung: questões de terminologia e concepções freudiana; e 3) A noção de contrato no pensamento freudiano e sua dupla incidência sobre o vínculo social e o aparelho psíquico individual. Em seguida, o conceito de alianças inconscientes em Kaës é apresentado. Uma apresentação geral do histórico de desenvolvimento do conceito e sua lógica é feita no item “Sobre o conceito de alianças inconscientes em René Kaës”. Espera-se evidenciar que se trata de fato de um desenvolvimento da lógica contratualista já presente em Freud. A seção seguinte, intitulada “Pactos denegativos e contrato narcísico: dois destaques dentre as alianças inconscientes”, busca dar forma à lógica em discussão, aproximando o leitor de seus desdobramentos nas diferentes configurações vinculares (par analítico, grupo, casal, família, instituições). Na discussão, enfocam-se as relações da lógica contratualista com a categoria do inconsciente. Finalmente, na conclusão, afirma-se o valor do conceito de alianças inconscientes no enfrentamento da leitura dicotômica entre sujeito e sociedade e a pertinência do conceito como fundamento ao trabalho psicanalítico vincular.

O desvio pulsional como estruturante do vínculo social em Freud

Em Psicologia das massas e análise do Eu (Massen Psychologie und Ich Analysis), Freud contesta a ideia de um instinto social (herd instinct)1 ou pulsão social (des sozialen Triebes) compreendendo que a ligação entre os seres humanos é um fenômeno a ser explicado por uma combinação de conceitos psicanalíticos, e não pela simples postulação de uma pulsão específica. De fato, a investigação freudiana sobre a massa preocupa-se grandemente em compreender – dentro do universo psicanalítico – como se dá a ligação entre os seres humanos. Logo no início de sua apresentação das ideias de Le Bon, Freud observa que “Se os indivíduos da massa estão ligados numa unidade [einer Einheit verbunden], tem de haver algo que os une [bindet] entre si [...]” (Freud, 1921/2011, p. 18).

Afastado o conceito de instinto social, cria-se espaço para pensar psicanaliticamente como se dá essa ligação. Quais processos e formações psíquicas são aqui evocados? Contrastando suas próprias ideias com as de Le Bon e Mac Dougall, Freud evoca a centralidade do afeto na formação desses vínculos. Escreve ele: “Então experimentaremos a hipótese de que as relações de amor [Liebesbeziehungen] (ou expresso de modo mais neutro, os laços de sentimento [Gefühlsbindungen]) constituem também a essência da alma coletiva” (Freud, 1921/2011, p. 45). Em Freud, a libido sexual busca sua realização como descarga, e é na descarga que o indivíduo experimenta o prazer concomitantemente ao rebaixamento da acumulação pulsional. A libido pode assim lançar um indivíduo em direção ao outro em busca de sua realização – e, portanto, do prazer –, mas, uma vez satisfeita, a libido deixaria de sustentar essa ligação. Mesmo em um vínculo no qual haja realização direta da libido, como em um casal, Freud concebe que uma parte dessa libido seja desviada para a criação da ternura e dos processos de idealização (incluída aqui a paixão). Em relação aos outros vínculos formados na sociedade, como os de amizade, de parentesco etc., Freud é ainda mais claro em sua postulação de que são sustentados pela libido desviada de sua finalidade sexual. Para Freud, a vida em sociedade, e mais precisamente a formação de qualquer relacionamento – inclusive o amoroso –, implica no desvio de uma parte da libido sexual. Assim, o vínculo propriamente humano só pode se constituir pela presença de alguma falta na realização sexual.

Se em Psicologia das massas e análise do Eu a libido sexual é protagonista da construção freudiana sobre os vínculos, em O mal-estar na civilização (Das Unbehagen in der Kultur), Freud nos leva a considerações seminais sobre a pulsão de morte em sua relação com o laço social. O autor segue Hobbes no pensamento de que, em estado natural, o homem é o lobo do homem (Homo homini lupus). O prazer humano viria não só da realização amorosa, mas também da realização das pulsões agressivas. Freud desenvolve então a tese de que a vida em sociedade – e, portanto, em qualquer relacionamento humano – exige a renúncia a uma parte dessa agressividade. Na medida em que as relações com outras pessoas (Beziehungen zu anderen Menschen [p. 434]) exigem a dupla renúncia a uma parcela da agressividade e a uma parcela da satisfação sexual, o campo relacional se apresenta como fonte inevitável de sofrimento. Como alerta Freud, essa constatação não deve impedir o indivíduo de buscar avançar rumo a formas de laço social que causem menos sofrimento. Isso do mesmo modo que o homem ganha terreno sobre as duas outras fontes de sofrimento humano, o corpo e o mundo externo (Auβenwelt), sem que exista perspectiva de eliminação total dessas fontes de sofrimento.

Bindung, Verbindung e Beziehung: questões de terminologia e concepções freudianas

A opção pela interpolação de alguns termos em alemão nos trechos citados visa permitir ao leitor constatar a variedade dos termos utilizados por Freud para se referir à ligação entre pessoas. Considerando-se o uso de diferentes formas verbais e de palavras compostas, os termos citados podem ser reduzidos aos três que aqui se apresentam em sua forma substantiva: Bindung, Beziehung, Verbindung. Segundo Hanns (1996), os termos Bindung e Verbindung “São traduzidos indistintamente por palavras como ‘ligação’, ‘laço’, ‘elo’ ou ‘vínculo’” (Hanns, 1996, p. 302). O substantivo Beziehung forma com a palavra Objekt o termo Objektbeziehung, cuja tradução por “relações de objeto” (ou objetais) consagrou-se no uso da terminologia psicanalítica em português. De todo modo, nos usos dos trechos citados até aqui, os três termos convergem para um ponto comum: aquilo que está entre dois indivíduos e os conecta. Desses três termos, apenas Bindung é encontrado como verbete no Dicionário comentado do alemão de Freud, de Luiz Hanns (1996), no Vocabulário de psicanálise, de Laplanche e Pontalis (1967/1986), e no Gesamtregister da Gesemmelt Werk.2 Os demais não figuram como verbete em nenhuma dessas fontes.

Em seu dicionário, Luiz Hanns apresenta dois sentidos possíveis para o vocábulo: “Em alemão, Bindung pode significar ‘ligação afetiva’ (laços) ou ‘ligação física’ (fixação, estar atado, preso)” (Hanns, 1996, p. 293). O autor enfatiza que esse segundo sentido não é coincidente com os sentidos em português do termo “ligação” quando este significa “Correlação, conexão lógica, correspondência lógico-temática, articulação ... Interligação física ou funcional ... Interligar, ativar, acender. ” (Hanns, 1996, p. 295). Desse modo, o termo alemão Bindung coincide com o significado de “ligação afetiva” entre pessoas em português, mas não exatamente com seus outros usos. O significado de “interligação física e funcional”, segundo Hanns, pode ser expresso pelo termo Verbindung.

Curiosamente, no Vocabulário de psicanálise, a Bindung é apresentada apenas como conceito que diz respeito a processos neurológicos ou intrapsíquicos. Laplanche e Pontalis introduzem o termo do seguinte modo:

Termo utilizado por Freud para designar de um modo muito geral e em registros relativamente diversos – quer ao nível biológico, quer no aparelho psíquico – uma operação tendente a limitar o livre escoamento das excitações, a ligar as representações entre si, a construir e manter formas relativamente estáveis. (Laplanche & Pontalis, 1967/1986, p. 347)
O verbete propõe estudar a Bindung em três momentos da teoria freudiana: no Projeto para uma psicologia científica (Entwurf einer Psychologie), em Para além do princípio do prazer (Jenseits des Lustprinzips) e na segunda tópica. Desse percurso resulta a possibilidade de pensar a ligação por três perspectivas:
a ideia de relação entre vários termos ligados, por exemplo, numa cadeia associativa (Verbindung), a ideia de um conjunto em que é conservada uma certa coesão, de uma forma definida por certos limites ou fronteiras (cf. o inglês bounday, onde reencontramos a raiz bind), e por fim, a ideia de uma fixação local de uma certa quantidade de energia que já não pode escoar-se livremente. (Laplanche & Pontalis, 1967/1986, p. 350)

Essa apresentação do termo Bindung põe em relevo seu papel na construção da teoria freudiana sobre a constituição psíquica (notadamente na formação do Eu, seja como grupo de neurônios ligados e como instância tópica; seja pela evocação da noção de fronteira em relação ao resto do psiquismo). Trata-se de pensar as propriedades de fixar e liberar como características do próprio modelo intrapsíquico freudiano. Esta caracterização intrapsíquica do conceito contrasta com a problemática do vínculo entre pessoas e amplia a visão sobre o tema.

Já no caso do Gesamtregister, o vínculo entre pessoas é ressaltado. No termo Bindung não há uma lista direta de referências, mas o leitor é remetido às seguintes entradas: Energia (tema discutido por Laplanche e Pontalis), Analista, Pais, Pai e Ligação com a Mãe (Mutterbindung). Na maioria desses termos, Bindung é usado para se referir a um laço entre pessoas.

Em 2003, Regina Herzog publicou um texto intitulado “O estatuto da Bindung na contemporaneidade”, no qual o termo Bindung designa um modo importantíssimo de funcionamento do pensamento freudiano. Ao discutir o Projeto para uma psicologia científica (Entwurf einer Psychologie), a autora propõe que a Bindung freudiana permite uma compreensão do aparelho neural que supera a dicotomia entre corpo e mente. Nesse texto, a Bindung diz respeito ao funcionamento de diferentes tipos de neurônio e aos processos aos quais as excitações energéticas são submetidas no sistema neural. Como diz a autora: “na ligação que a pulsão efetua nem o corpo é pura extensão, ou biológico, nem o psiquismo comporta a idéia de puro pensamento” (Herzog, 2003, p. 41).

Na leitura freudiana de Herzog, esse processo de ligação da energia que emana do corpo com a atividade de pensamento exige a presença de um outro: “a Bindung só tem lugar a partir da relação com o outro ” (Herzog, 2003, p.41). Segue então uma reflexão sobre como o modo de pensar a partir da noção de ligação – explicitado pelo uso de Bindung – é utilizado por Freud para pensar o laço social.

Com relação ao termo Beziehung, apesar de não figurar como entrada própria nem no Vocabulário de psicanálise, nem no Gesamtregister, nem no dicionário de Hanns, encontra-se nos dois primeiros o termo Objektbeziehung (relação de objeto). Laplanche e Pontalis deixam claro que Freud desenvolveu pouco esse tema. Os autores indicam o uso desta terminologia dentro da teoria pulsional freudiana. Como objeto da pulsão, vemos seu caráter de meio para a satisfação do indivíduo e sua forte ligação com a fonte da pulsão. Assim, as fases do desenvolvimento psicossexual (oral, anal, fálica e genital) são determinantes das relações objetais em Freud. Esses são os elementos que servem de base para o progressivo desenvolvimento do conceito de relações objetais pela escola inglesa de psicanálise, desenvolvimento no qual muitos veem uma redução da problemática à relação com o intrapsíquico.3 Embora haja controvérsias com relação a essa linha de argumentação,4 a discussão desse tema fugiria aos propósitos deste texto. Ademais, importa constatar que, ao menos em seu estado nascente em Freud, o termo Beziehung compunha a problemática das ligações intrapsíquicas e entre pessoas.

Portanto, para os fins deste artigo, entende-se que o uso dos termos Bindung, Verbindung e Beziehung por Freud aponta uma visão da estrutura e do funcionamento do aparelho psíquico em que a problemática da ligação e do desligamento entre elementos é central. O uso dos mesmos termos para pensar os vínculos entre pessoas aproxima a lógica intrapsíquica da intersubjetiva, caracterizando uma semelhança estrutural entre ambas.

Independentemente do termo ou da tradução adotada para se referir à ligação entre as pessoas, é importante que se compreenda que o termo escolhido, qualquer que ele seja, se refere também a processos de ligação e desligamento que constituem o sistema intrapsíquico e, ainda, que essa dimensão intrapsíquica se relaciona com a ligação das pessoas entre si. A literatura em português tem utilizado com frequência os termos “laço” ou “vínculo” para se referir a esse entendimento. Ainda que ambos sejam opções plenamente válidas, é necessário privilegiar uma delas para garantir a homogeneidade deste texto. Levando em conta a história da produção latino-americana, a opção pelo termo “vínculo” impõe-se com naturalidade.

A noção de contrato no pensamento freudiano e sua dupla incidência sobre o vínculo social e o aparelho psíquico individual

No que pese a variedade terminológica freudiana que se acaba de evidenciar, comum a todos os termos está essa procura pelo que faz a ligação entre os indivíduos. Vê-se claramente que Freud coloca o desvio da finalidade pulsional, seja ela amorosa ou agressiva, como central na lógica desse fenômeno. Isso gera desprazer e, portanto, sofrimento. Assim, o desvio e o sofrimento são dois elementos iniciais para uma metapsicologia do vínculo social em Freud.

Mas o que mais oferece o texto freudiano? O sofrimento da fonte social é inevitável na medida em que não se pode conceber o ser humano como propriamente humano fora da cultura. Em Totem e tabu (Totem und Tabu), Freud (1913/1999) propõe um modelo da passagem de uma condição animal (horda primitiva [Urhorde]) para a civilizada, no qual o advento da cultura é concomitante ao advento do indivíduo. Os tabus do incesto e do parricídio, enquanto criações coletivas, possuem papel fundamental na estruturação psíquica de cada membro do grupo. Se a castração é fundamental na estruturação psíquica neurótica, ela só é possível em uma sociedade onde haja leis (em contraposição à horda primitiva). Em Totem e tabu, o pacto entre os irmãos exige de cada um – e de todos – uma série de renúncias. A existência social dos tabus impõe trabalho psíquico a cada membro da sociedade, barrando-lhe fontes de satisfação pulsional e obrigando-o a construir formas de satisfação substitutivas. Nesse processo, ganha-se a si mesmo, em certo sentido, pois a obediência ao tabu é compensada pela possibilidade de formação do aparelho psíquico.

É possível ver aqui uma relação entre o que deve ser objeto de renúncia para que o vínculo possa ser constituído e aquilo que pode ser constituído em cada um dos membros desse vínculo. Há um complexo jogo de ganhos e perdas nesse processo, bem como uma complexa relação entre o plano do vínculo social e o do indivíduo em sua singularidade.

Freud estabelece esse tipo de pensamento a partir de um raciocínio que pode ser chamado de contratualista. Essa forma de pensar trabalha intensamente em seus textos sociais. Pode-se destacar sua presença no pacto entre os irmãos para o assassinato do pai primevo e, posteriormente, no pacto que cria os tabus do incesto e do parricídio, bem como na fórmula freudiana de que “O homem civilizado trocou um tanto de felicidade por um tanto de segurança” (Freud, 1930/2010, p. 82).

Em geral, Freud recorre à noção de contrato para pensar o advento original da cultura e do homem que a habita. Entretanto, em algumas passagens essa noção é empregada para delimitar formas de vínculo mais restritas. Em O mal-estar na civilização, ao discutir as formas de evitação do sofrimento e busca do prazer, Freud fala de uma estratégia de evitação do desprazer que passa pelo grupo:

É de particular importância o caso em que grande número de pessoas empreende conjuntamente a tentativa de assegurar a felicidade e proteger-se do sofrimento através de uma delirante modificação da realidade... Naturalmente, quem partilha o delírio jamais o percebe. (Freud, 1930/2010, p. 38)

Em sua busca da felicidade, o homem pode aliar-se a outros homens para achar no delírio coletivo uma forma de mitigar seu sofrimento. Segundo Freud, o delírio pode funcionar para mitigar o sofrimento também através do uso de narcóticos e nas neuroses. É significativo que, a adesão a uma crença comum permita a alguns homens sustentarem, dentro de si, uma formação defensiva desse tipo. Postula-se, portanto, um mecanismo de defesa intrapsíquico que se apoia nesse arranjo vincular específico. Essa estratégia, é bem verdade, entra em tensão com a possibilidade de cada um buscar seus próprios caminhos de busca da felicidade. Entretanto, seguindo-se a lógica aqui discutida, aqueles que decidem sair de um grupo, onde existe um delírio partilhado, podem colocar em risco a estratégia de busca de felicidade daqueles que nesse grupo ficam. Há uma tensão entre a necessidade própria e a do grupo: de um lado, o indivíduo em sua busca por formas e estratégias mais eficientes de se aproximar do prazer e se afastar do desprazer; de outro, o grupo procurando aderência de seus membros ao delírio comum para que ele seja eficiente em sua sustentação da defesa de cada um.

A mesma lógica de base se apresenta na fórmula “O homem civilizado trocou um tanto de felicidade por um tanto de segurança” na qual se implicam a agressividade, a culpa e cultura. O sujeito precisa da cultura para se constituir como sujeito, e a cultura, para poder existir, precisa que as pulsões agressivas de seus constituintes sejam controladas. O desequilíbrio entre os termos gera um grau de insatisfação inerente à vida do sujeito. Freud elabora, ainda nesse texto, a hipótese de uma dimensão cultural do super-eu que permite, do ponto de vista psíquico, através da culpa, o controle da agressividade dos sujeitos. São os indivíduos, enquanto “signatários” do “contrato” que funda a cultura, que delegam a ela o poder desse “super-eu cultural”, que opera uma restrição e um controle da agressividade e da sexualidade em cada um do grupo. É do interesse paradoxal do sujeito que esse controle exista de alguma forma, pois dele retira outros ganhos. No entanto (e Freud se questiona sobre isso em seu texto), é possível que sua época fosse demasiado severa nos mecanismos de restrição da atividade sexual mediante a culpa. Nesse sentido, o vínculo estabelecido na civilização possui também uma dimensão histórica, sendo capaz de modulações que podem produzir um sofrimento maior ou menor de seus integrantes. Percebe-se aqui um “contrato” que em certa medida é condição para a vida humana, mas que, uma vez assinado, passa a ter “vida própria”, podendo exigir de seus signatários mais do que lhes seria interessante oferecer.

Em resumo, contata-se que, para Freud, o vínculo social exige que as pulsões sejam desviadas em sua finalidade. O autor apresenta modelos em que isso ocorre de diferentes formas, criando uma pluralidade de dinâmicas vinculares. Por sua vez, tais dinâmicas vinculares estão relacionadas com a dimensão intrapsíquica dos sujeitos que as compõem. Esse princípio de conexão entre o que se passa no vínculo com o que se passa nos sujeitos em sua singularidade sustenta a proposta das alianças inconscientes em Kaës. O leitor poderá constatar, a seguir, como essa lógica contratualista freudiana é explicitada, precisada e desenvolvida mediante o conceito de alianças inconscientes por René Kaës.

Sobre o conceito de alianças inconscientes em René Kaës

René Kaës introduz a noção de alianças inconscientes em 1986 (cf. Kaës, 1976/2000, p. 242),5 desenvolvendo-a progressivamente em diversos trabalhos publicados. Temos um marco no desenvolvimento do conceito em 2009, com a publicação da primeira edição de Les alliances inconscientes, obra que apresenta e discute o conceito detalhadamente em cerca de 250 páginas (Kaës, 2009).

Como é costume no método de trabalho de René Kaës, a construção do conceito de alianças inconscientes inclui um retorno a Freud, identificando, a seu modo, alguns dos pontos já apontados aqui. Kaës também retoma algumas contribuições de psicanalistas posteriores, com destaque para os trabalhos de Piera Aulagnier sobre o contrato narcísico. Trata-se, nesse sentido, de um conceito amplo, que recolhe e sistematiza essa forma de pensar em psicanálise. O conceito de alianças inconscientes torna-se um conceito-chave em Kaës, postulado como condição para a existência dos vínculos em todas as suas configurações vinculares (par analítico, casal, família, grupo e instituição).

Em 2009, Kaës inicia a abordagem do tema contextualizando a problemática das alianças nas ciências humanas, sociais, no pensamento religioso e político. Nomeia diferentes conceitos da filosofia política que trazem consigo o raciocínio da aliança: “A noção platônica de justiça, o pacto de Hobbes e o contrato social de Rousseau” (Kaës, 2009, p. 23, tradução nossa). Menciona a posição de Durkheim, para quem “tudo é contratual no contrato, salvo o próprio contrato” (Durkheim citado por Kaës, 2009, p. 24, tradução nossa). Em um trabalho anterior, afirma que “Todos os teóricos do político colocaram o contrato social como fundamento da sociedade: Aristóteles, Maquiavel, Hobbes, Rousseau, Saint-Simon, Spinoza” (Kaës, 1993, p. 264, tradução nossa).

Naturalmente, todas essas alianças são concebidas de modo racional, mas mesmo assim Kaës acredita que seria possível adicionar a elas um olhar psicanalítico:

As alianças que descrevem a antropologia social, política ou religiosa são alianças conscientes, voluntaristas, mas podemos pensar que seus conteúdos inconscientes e suas funções inconscientes são recobertas por um discurso secundarizado, racionalizado, são justificadas de diversas maneiras... Uma aliança conscientemente selada pode esconder outra, cujos entrejogos [enjeux] são de outra ordem. (Kaës, 2009, p. 30, tradução nossa)

De fato, o conceito de alianças só se torna pertinente em psicanálise quando se inclui nele a questão do inconsciente. Desse modo, Kaës afirma: “A característica principal das alianças pelas quais nos interessamos é sua qualidade inconsciente” (Kaës, 2009, p. 33, tradução nossa).

Na segunda edição de L'appareille psychique groupale (Kaës, 1976/2000), ao comentar sobre o conceito de alianças inconscientes, o autor escreve: “É sobre essas bases que reexaminei a questão do inconsciente nos grupos” (Kaës, 1976/2000, p. 241, tradução nossa). E então, critica “a noção demasiadamente vaga de um ‘inconsciente de grupo’” que, para ele, “não parece ter outro interesse a não ser o de obstruir mesmo a questão do inconsciente, de seus efeitos e de suas formações no agenciamento dos vínculos grupais” (Kaës, 1976/2000, p. 241, tradução nossa). O conceito de aliança inconsciente visa, em Kaës, dar conta da especificidade do inconsciente nas relações vinculares, evitando a transposição pura da tópica intrapsíquica freudiana ao grupo.

Cabe sublinhar que Kaës propõe o conceito de alianças inconscientes não só como modelo para compreender o advento da civilização – e portanto do laço social de modo geral –, mas para compreender o advento e a manutenção de cada tipo de vínculo específico. De fato, para Kaës, as alianças inconscientes são o “cimento” de todo o vínculo. Como nas propostas freudianas analisadas acima, todo contrato implica abdicar de algo (em troca de alguma outra coisa, como, por exemplo, o incremento de uma possibilidade defensiva ao signatário da aliança). Isso coloca a categoria do negativo no centro da formulação de Kaës sobre as alianças inconscientes. Para o autor, as alianças inconscientes só existem em função de algo que fique fora do campo da consciência dos seus signatários, seja isso da ordem do recalcado, rejeitado, abolido, depositado, apagado, dos restos ou de outras figuras do negativo. Importa ao autor que todo vínculo repousa sobre o negativo.

Neste ponto, cabe discutir a categorização das alianças inconscientes em “Estruturantes” e “Defensivas e patogênicas’” (Kaës, 2009). A leitura do texto do autor impõe o reconhecimento de uma área de sobreposição entre ambas, na medida em que a categoria do negativo está presente em todas as alianças inconscientes, de modo que seus aspectos defensivos e estruturantes não podem ser totalmente separados. Mesmo assim, a abordagem das alianças inconscientes por esses dois ângulos revela pontos interessantes do conceito. Na perspectiva das alianças inconscientes estruturantes, o termo estruturante refere-se tanto ao papel dessas alianças inconscientes na estruturação dos vínculos quanto aos seus efeitos de estruturação do psiquismo dos signatários dessas alianças. Já as alianças inconscientes defensivas ou patogênicas são fonte de sofrimento ou desorganização psíquica ou, ainda, de destruição do espaço interno e do espaço do vínculo. Kaës compreende que as alianças estruturantes podem se tornar alianças inconscientes defensivas e patológicas. Estas incluem, portanto, alianças que possuem semelhanças em seus funcionamentos com as anteriores ou representam versões malfadadas das alianças anteriormente descritas, ou, ainda, um outro ângulo de visão sobre os mesmos processos e formações.

Sustentadas sobre o negativo, as alianças inconscientes também devem ser pensadas em termos de algo que se apresenta como benefício ou contrapartida das operações psíquicas exigidas e sustentadas pelo vínculo. Ao comentar sobre esses possíveis benefícios, Kaës enumera:

a continuidade do vínculo e a segurança que se liga a ele, certas realizações pessoais que não podem ser conquistadas fora do vínculo por meio da aliança, como, por exemplo, um investimento narcísico recíproco, uma relação amorosa suficientemente estável, uma proteção contra os perigos (reais ou fantasiados), um gozo que não pode ser adquirido sem o acordo inconsciente do outro. (Kaës, 2009, p. 2, tradução nossa)

Mesmo que o benefício ou a contrapartida sejam vividos como prazer ou evitação do desprazer, trata-se frequentemente de ganhos secundários que contribuem para a sustentação de formas patológicas de vínculo e do funcionamento do sujeito. Nesse ponto, a semelhança com a lógica do sintoma é sublinhada por Kaës:
as alianças inconscientes têm a estrutura de um sintoma partilhado para o qual cada sujeito contribui e do qual retira benefício para seus próprios interesses, sob a condição de que aqueles com os quais se liga tenham, se não exatamente o mesmo interesse, ao menos o interesse de fundar seu vínculo sobre essa aliança. (Kaës, 2009, p. 2, tradução nossa)

A lógica das alianças inconscientes relaciona os grupos ao sistema intrapsíquico. Os acordos inconscientes firmados entre sujeitos repercutem nas ligações do interior do aparelho psíquico de cada membro do grupo. Nessa perspectiva as alianças inconscientes são firmadas pelos humanos “Para se associar em grupo, mas também para associar as representações e os pensamentos” (Kaës, 1993, p. 266, tradução nossa). O aparelho psíquico descrito por Freud pode ser pensado como um sistema de ligações que coincide com a morfologia dos grupos humanos: nos dois casos trata-se de um conjunto de elementos em constante processo de ligação e desligamento. Essa visão facilita a compreensão das relações entre os grupos humanos e o sistema intrapsíquico. A discussão sobre os termos Bindung, Verbindung e Beziehung em Freud havia levado a uma visão semelhante. Já o caminho teórico de Kaës é distinto, em grande medida tributário do conceito de grupos internos desenvolvido pelo autor (Kaës, 1993).

Pactos denegativos e contrato narcísico: dois destaques dentre as alianças inconscientes.

O entendimento das alianças inconscientes em René Kaës se beneficia de uma compreensão das duas principais modalidades de alianças inconscientes estudadas pelo autor: os pactos denegativos e os contratos narcísicos.

O pacto denegativo é uma aliança defensiva de amplo espectro. Vínculos formados pelo pacto denegativo exigem que seus signatários recalquem, recusem (déni), desmintam (désaveu) ou rejeitem (rejet) algo para que o vínculo permaneça. Ao fazer essa exigência, o pacto denegativo se oferece como metadefesa, como apoio para que estes mecanismos operem no sujeito. O pacto denegativo pode ser homogêneo (nesse caso, todos os signatários se utilizam do mesmo mecanismo de defesa intrapsíquico) ou heterogêneo (no qual diferentes mecanismos de defesa intrapsíquicos são utilizados). Como diz Kaës:

A especificidade desse pacto é que ele é constituído para assegurar as necessidades defensivas dos sujeitos quando estes formam um vínculo e para manter esse vínculo... Portanto, deve ser visto como uma modalidade de resolução de conflitos intrapsíquicos e de conflitos que atravessam uma configuração vincular. (Kaës, 2009, p. 114, tradução nossa)

O traço distintivo do conceito de pactos denegativos é justamente a compreensão de um determinado vínculo por seu potencial de metadefesa. Trata-se, portanto, de um modo de interpretar determinada aliança inconsciente que focaliza a dinâmica da defesa no vínculo e no funcionamento psíquico de cada um de seus signatários. Porém é importante salientar que essa perspectiva defensiva comporta uma possibilidade estruturante. “O pacto denegativo apresenta assim uma dupla função: por certos aspectos ele faz parte das alianças necessárias à estruturação do vínculo e em outros aspectos ele funciona como uma aliança alienante” (Kaës, 2009, p. 120, tradução nossa).

De todo modo, o conceito de pacto denegativo descreve uma lógica própria de funcionamento que ajuda a compreender e operar sobre os vínculos. Como metadefesa, os efeitos do pacto denegativo se apresentam e retornam aos vínculos que constituem: “Seus efeitos se manifestam nas repetições e nos sintomas partilhados, nos objetos bizarros ou enigmáticos e nos actings” (Kaës, 2009, p. 120, tradução nossa).

Esses sintomas podem retornar tanto na forma de um conflito entre desejos e defesas quanto na forma do enigmático, do não significável e do não transformável. Essas diferenças indicam o tipo de mecanismo de defesa exigido dos signatários dessa forma de vínculo (recalque, no primeiro caso; recusa [déni], rejeição [rejet] ou desmentido [désaveu], no segundo).

Já o termo contrato narcísico foi cunhado por Piera Aulagnier e retomado por Kaës, que o expandiu. Segundo Kaës, elementos importantes para esse conceito estavam presentes no texto de Freud sobre o narcisismo, de 1914 (Zur Einführung des Narziβmus). Nele, Freud conceitua e discute o narcisismo primário do bebê e o retorno dos pais ao seu próprio narcisismo primário. Do ponto de vista do bebê, essa experiência é fundamental, pois possibilita a união das diversas zonas autoeróticas, operando assim um papel importante na formação do eu da criança. Essa experiência está na origem da formação do ideal de eu e deixa um registro, contribuindo para a sensação de autoestima do sujeito ao longo da vida. Do ponto de vista dos pais, compreende-se o investimento feito no bebê pelo retorno ao próprio narcisismo primário, pela possibilidade de depositar no bebê seus próprios desejos irrealizados e de ludibriar a certeza de sua própria morte.

Entendemos que existe uma relação entre o investimento parental e a vivência do narcisismo primário na criança. A famosa frase freudiana “his majesty the baby” indica o caráter grupal e contratual do narcisismo primário: só é possível um reino com súditos. A experiência do narcisismo primário no bebê é sustentada pelo investimento parental, e esse ocorre pelos ganhos psíquicos que possibilita aos pais. Pode-se ver a lógica das alianças operando nos bastidores do pensamento freudiano (Freud, 1914/1999).

O contrato narcísico de Piera Aulagnier (1975/2007) pensa a relação entre o infans e seu conjunto social mais amplo. Trata-se de estabelecer as “condições nas quais o Eu [Je] pode advir”. O sujeito que recebe o investimento do conjunto recebe com ele um lugar de pertencimento e a possibilidade de se constituir como Eu (Je). A autora postula que o conjunto social faz um investimento em seu novo membro com a condição de que, no futuro, ele venha a assumir sua linguagem fundamental. A linguagem fundamental, para Piera Aulagnier, é o que constitui a especificidade de um conjunto social. Nesse sentido, o contrato narcísico tem uma função de transmissão e preservação dos valores e ideais de um grupo social assegurando sua continuidade. Como diz Kaës:

Este contrato – assimétrico: ele precede o sujeito – não apenas atribui a todos um lugar determinado, oferecido pelo grupo e significado pelo conjunto de vozes antes do surgimento do recém-chegado, e sustenta um discurso em conformidade com o mito fundador do grupo. Ele requer também que esse discurso, que inclui os ideais e valores, que transmite a cultura e as palavras de certeza do conjunto social, seja retomado por sua própria conta pelo sujeito. (Kaës, 2009, p. 59, tradução nossa)

Kaës estende o conceito ao propor que existem contratos narcísicos originários, primários e secundários. Em sua vertente originária, os contratos narcísicos dizem respeito à entrada do bebê na espécie humana. Em sua vertente primária, trata-se de pensar os investimentos que recebe dos pais. Já o contrato narcísico secundário é baseado no narcisismo secundário e se dá nos grupos e instituições aos quais o sujeito pertence ao longo da vida.

Observe-se, entretanto, que o contrato narcísico secundário não é descolado dos contratos narcísicos precedentes. Como diz Kaës:

Não somente ele redistribui os investimentos, mas é a ocasião de uma recolocação e retomada mais ou menos conflitiva da sujeição [assujettissement] narcísica às exigências do conjunto, tal qual definida pelos dois primeiros contratos. Toda mudança da relação do sujeito ao conjunto, todo pertencimento posterior, toda nova adesão a um grupo, recoloca em causa, e em alguns casos em trabalho, os elementos [enjeux] desses contratos. (Kaës, 2009, p. 61, tradução nossa)

Kaës dedica bastante atenção para as possibilidades patológicas desse contrato. Justamente por implicar em sujeição (assujettissement) ele evoca a problemática da sujeição necessária para a subjetivação e a excessiva, tal como pode ser pensada em ligação com a violência em Piera Aulagnier (1975/2007).

Por fim, é interessante notar que Kaës indica relações entre pacto denegativo e contrato narcísico. Ao discutir o pacto denegativo, escreve:

Um acordo inconsciente é constituído e em certos casos imposto, para que o vínculo se organize e se mantenha na complementaridade convergente ou desigual dos interesses de seus sujeitos, para que seja assegurada a continuidade dos investimentos e dos benefícios ligados à subsistência da função dos ideais comuns, do contrato e do pacto narcísico. O preço é o desconhecimento do que está em jogo para cada um no vínculo. (Kaës, 2009, p. 121, tradução nossa )

Discussão

O percurso neste artigo permite sublinhar como a psicanálise introduz a questão do inconsciente no pensamento contratualista por duas vias principais: a lógica das condições de possibilidade para a constituição do inconsciente e a lógica do processo primário.

Mediante a primeira via, constata-se que o bebê chega ao mundo envolto em uma teia de alianças inconscientes que lhe antecedem e que, quando tudo vai suficientemente bem, lhe dão acesso à experiência humana. Tal experiência inaugural é de algum modo reeditada quando este sujeito entra em novos grupos e instituições ao longo de sua trajetória. Compreende-se, por essa via, que a vida grupal e institucional opera naquilo que há de mais arcaico e primitivo no psiquismo de cada um de seus membros. A problemática da sujeição (assujetissement) evidencia o caráter assimétrico da relação dos sujeitos singulares com os grupos que compõem. Por isso, ao mesmo tempo em que os grupos e instituições são recriações constantes dos coletivos, nunca se apresentam plenamente como objetos capazes de sofrer a ação dos seus membros – ou ainda, quando assim é pretendido, algo de fundamental escapa. É certo que indivíduos e formações grupais e institucionais interagem umas com as outras e se determinam mutuamente, mas, seja qual for o modelo utilizado (dialético, racionalista, entre outros), é fundamental reconhecer que tais relações não se dão entre elementos possuidores de uma mesma lógica, tampouco em uma relação simétrica.

Quanto à segunda via, cabe lembrar que, seguindo a lógica do processo primário, os contratos entre os sujeitos são formados em função da busca do prazer e evitação do sofrimento imediatos. Tal como os sintomas, as alianças inconscientes são estrangeiras à racionalidade do processo secundário. As formações sociais dos grupos e instituições são sempre acompanhadas por racionalizações, mas sua liga afetiva encontra-se em outro espaço. Trata-se, portanto, de um modelo que difere dos olhares racionalistas tão comuns em nossa época.

Um acordo inconsciente é constituído e em certos casos imposto, para que o vínculo se organize e se mantenha na complementaridade convergente ou desigual dos interesses de seus sujeitos, para que seja assegurada a continuidade dos investimentos e dos benefícios ligados à subsistência da função dos ideais comuns, do contrato e do pacto narcísico. O preço é o desconhecimento do que está em jogo para cada um no vínculo. (Kaës, 2009, p. 121, tradução nossa )

Conclusão

Tanto a noção freudiana de contrato quanto o conceito de alianças inconscientes de René Kaës se distanciam de um olhar antropomórfico, na medida em que permitem a identificação de lógicas distintas, mas comunicantes entre o indivíduo e as formações vinculares. Destacam-se alguns pontos comuns em ambas as perspectivas: o vínculo como condição de possibilidade para o surgimento do sujeito psíquico; a centralidade da categoria do “negativo” na constituição dos vínculos; a postulação de uma conexão entre a organização dos vínculos e a organização intrapsíquica dos sujeitos que os compõe. Desse modo, o conceito de alianças inconscientes não é somente inspirado, historicamente, nas contribuições freudianas, mas também preserva em si um núcleo estrutural teórico convergente com a proposição freudiana.

Estes apontamentos são coerentes com a visão de Fernández (2006) sobre a contribuição da obra de René Kaës para a superação da lógica disjuntiva da relação indivíduo-sociedade no âmbito das ciências humanas e sociais. Porém, ao deslocar o foco atribuído por Fernandez ao conceito de intermediário para o conceito de alianças inconscientes, este artigo permite precisar melhor as formas pelas quais essa contribuição ocorre.

Mais importante ao propósito deste texto é sublinhar a compatibilidade constada entre o conceito de alianças inconscientes e o espaço intrapsíquico. Na seção de discussão, evidencia-se como a concepção contratualista em psicanálise se relaciona teoricamente com a categoria do inconsciente. Pelas duas vias apresentadas, percebe-se como a proposição das alianças inconscientes é compatível tanto com a lógica do processo primário quanto com a lógica das condições de possibilidade de constituição do inconsciente. Trata-se, portanto, de um conceito que, ao mesmo tempo em que propõe uma lógica vincular específica, afirma a existência de uma lógica intrapsíquica e dispõe sobre a relação entre ambas. A proposição de se considerar as alianças inconscientes como fundamento do trabalho vincular em psicanálise se apoia sobre esta constatação.

Tal proposição deixa novos caminhos a serem percorridos por pesquisas futuras – a saber se, e como seria possível, a partir da lógica das alianças inconscientes, deduzir as diferentes formações psíquicas comuns e partilhadas encontradas no trabalho vincular. Nesse contexto, seria de especial relevância técnica e teórica proceder ao estudo das fantasias, transferências e contratransferências comuns e partilhadas.

Referências

Aulagnier P. (2007). La violence de l’interprétation. (7. ed.) Paris: PUF. (Trabalho original publicado em 1975).

Barros, R. B. (2009). Grupo: A afirmação de um simulacro. (2. ed.) Porto Alegre, RS: UFRGS.         [ Links ]

Fernández, A. M. (2006). El campo grupal: Notas para una genealogía. Buenos Aires, AR: Nueva Visión.         [ Links ]

Freud, S. (1999). Das Unbehagen in der Kultur. Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch Verlag. (Trabalho original publicado em 1930).         [ Links ]

Freud, S. (1999). Totem und Tabu. Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch Verlag. (Trabalho original publicado em 1913).         [ Links ]

Freud, S. (2010). O Mal-Estar Na Civilização. In S. Freud Obras Completas (vol. 18, pp.13-122). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1930).         [ Links ]

Freud, S. (1999). Massenpsychologie und Ich-Analyse. Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch Verlag. (Trabalho original publicado em 1921).         [ Links ]

Freud, S. (1999). Zur Einführung des Narziβmus. Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch Verlag. (Trabalho original publicado em 1914).

Freud, S. (2010). Introdução ao Narcisismo. In S. Freud Obras Completas (vol. 12, pp.14-50). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1914).         [ Links ]

Freud, S. (2011). Psicologia das Massas e Análise do Eu. In S. Freud Obras Completas (vol. 15, pp.13-113). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1921).         [ Links ]

Freud, S. (1973). Obras Completas. Madrid: Biblioteca Nueva.         [ Links ]

Hanns, L. (1996). Dicionário Comentado do Alemão de Freud. Rio de Janeiro, RJ: Imago.         [ Links ]

Herzog, R. (2003). O estatuto da Bindung na contemporaneidade. Interações, 8(16), 37-56.         [ Links ]

Kaës, R. (1993). Le groupe et le sujet du Group. Paris: Dunod.         [ Links ]

Kaës, R. (2000). L’appareil psychique groupal. Paris: Dunod. (Trabalho original publicado em 1976).

Kaës, R. (2005). Os Espaços Psíquicos Comuns e Partilhados. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Kaës, R. (2006). Un Singulier Pluriel La psychanalyse à l´épreuve du groupe. Paris: Dunod.         [ Links ]

Kaës, R. (2007). Linking, Alliances and Shared Spaces. London: The International Psychoanalitical Association.         [ Links ]

Kaës, R. (2009). Les Alliances Inconscientes. Paris: Dunod.         [ Links ]

Laplanche, J. Pontalis, J.-B. (1986). Vocabulário de Psicanálise. (9. Ed). São Paulo, SP: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1967).         [ Links ]

Pichon-Rivière, E. (2000). Teoria del Vínculo. Buenos Aires: Nueva Visión.         [ Links ]

 

Endereço para correspondência
Pablo Castanho

e-mail: pablo.castanho@usp.br

Recebido em: 03/08/2015
Revisado em: 24/11/2015

Aceito em: 27/11/2015

 

 

1Freud toma o termo de Trotter e prefere utilizá-lo em inglês (Freud, 1921/2011).

2Trata-se do índex de termos das obras completas de Freud em alemão.

3No campo grupal, essa posição é advogada claramente por Pichon-Rivière (2000).

4Além das questões teóricas, esse debate é particularmente complexo, pois está marcado por elementos institucionais e do contexto. De um lado, um processo de delimitação de fronteiras de instituições e linhas de pensamento pelo destaque e fortalecimento de supostas diferenças; de outro, a questão das filiações ou desfiliações desses corpos teóricos em relação a concepções de viés político mais gerais.

5Entretanto, Kaës indica que, já em suas pesquisas sobre a posição ideológica, publicadas em 1980, o raciocínio das alianças inconscientes estava expresso em seu trabalho (cf. Kaës, 1993, p. 265).

 

iProfessor Doutor do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da USP. Membro do Núcleo de Estudos em Saúde Mental e Psicanálise das Configurações Vinculares (NESME) e da International Association for Group Psychotherapy and Group Processes (IAGP).

Creative Commons License All the contents of this journal, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution License