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Estudos Interdisciplinares em Psicologia

On-line version ISSN 2236-6407

Est. Inter. Psicol. vol.9 no.2 Londrina May/Aug. 2018

 

Relato de experiência/Prática profissional

 

Ambivalências do ser mãe: um estudo de caso em psicologia hospitalar

 

The ambivalences of being mother: a report of health psychology

 

Ambivalencias de ser madre: un estudio de caso en la psicologia hospitalaria

 

 

Marina Nogueira de Assis FonsecaI i; Tamires Sousa RochaI ii; Evandro de Quadros ChererI iii; Daniela Scheinkman ChatelardI iv;

I Universidade de Brasília

 

 


Resumo

A gestação, ainda que vivenciada por muitas mulheres, não se trata de uma experiência igual para todas. Diversos aspectos sociais e subjetivos influenciam esse período. Assim, as intervenções do profissional da psicologia se demonstram relevantes, pois atuam possibilitando o encontro da mulher com o exercício da maternidade à sua maneira. Este relato trata de um estudo de caso de uma mãe atendida na maternidade de um hospital público de Brasília. Particularmente, buscou-se refletir a respeito das ambivalências presentes na experiência da maternidade. No caso investigado, o sentimento de culpa materno resultou em associar a rejeição atual do bebê com a recusa inicial da gestação. Assim, o lugar simbólico cedido ao bebê, bem como a história materna, foram elementos cruciais desenvolvidos nos atendimentos. A partir do caso investigado percebeu-se a importância de pôr em questão algumas ambivalências, conflitos e questionamentos que permeiam a maternidade, opondo-se a uma tendência social em idealizá-la.

Palavras-chave: gestação; maternidade; psicologia hospitalar.


Abstract

Gestation, although experienced by many women, is not an equal experience for all. Several social and subjective aspects influence this period. Thus, the interventions of the psychologist are relevant, since they act allowing the encounter of the woman with the exercise of motherhood in her own way. This study is a report of a mother attended at the maternity of a public hospital in Brasilia. We sought to reflect on the ambivalences present in the experience of motherhood. In the case investigated, the feeling of maternal guilt resulted to be associated the baby's current rejection with the initial refusal of gestation. Thus, the symbolic place given to the baby, as well as the maternal history, were crucial elements developed in the care. It was possible to see the importance of calling into question some ambivalences and issues that permeate motherhood, opposing a social tendency to idealize it.

Keywords: pregnancy; maternity; hospital psychology.


Resumen

La gestación, aunque vivida por muchas mujeres, no se trata de una experiencia igual para todas. Diversos aspectos sociales e subjetivos influencian este periodo. Así, las intervenciones del profesional de psicología se muestran relevantes, porque actúan posibilitando el encuentro de la mujer con el ejercicio de la maternidad a su manera. En este artículo presentamos un estudio de caso de una madre atendida en un hospital público de Brasilia. Particularmente, buscamos reflexionar sobre las ambivalencias presentes en la experiencia de la maternidad. En este caso, el sentimiento de culpa de la madre llevó a asociar el actual rechazo del bebé con la negativa inicial del embarazo. Así, el lugar simbólico cedido al bebé, como la historia materna fueron elementos cruciales desarrollados en los atendimientos. Desde el caso investigado, se percibió la importancia de discutir algunas ambivalencias, conflictos y cuestionamientos que impregnan la maternidad, oponiéndose a una tendencia social a idealizarla.

Palabras clave: gestación; maternidad; psicología hospitalaria.


 

Introdução

A palavra “gravidez” corresponde ao período no qual as fêmeas mamíferas gestam o feto e o embrião no útero, momento esse que se inicia na concepção e estende-se até o nascimento do filho. Essa definição do Dicionário Michaelis Online implica o aspecto biológico da gravidez. Para além disso, o período gestacional faz parte de uma das possíveis etapas da vida de uma mulher e não se pode ignorar que, socialmente, grande parte da responsabilidade na reprodução humana seja feminina. Esses aspectos se baseiam em fatos biológicos que ocorrem no corpo da mulher – a menstruação, a capacidade de gestar, parir e amamentar – e se integram com a concepção de “natureza feminina” (Moraes, 2010). Mesmo que o paradigma que associou feminilidade e maternidade hoje não seja mais suficiente para definir as mulheres, ele ainda está presente no imaginário social sobre o sexo feminino (Nunes, 2011). Assim, as mulheres tendem a vivenciar a maternidade como além de um fenômeno biológico, abrangendo um dos papéis mais importante na vida, conforme regra social e cultural.

Diante disso, a partir de atendimentos e observações com enfoque psicanalítico no contexto da psicologia hospitalar – pressuposto que norteia este estudo – constata-se que a mulher gestante lida com as transformações em seu corpo, com suas oscilações emocionais e também com esses paradigmas sociais, da gravidez ao pós-parto. Particularmente, o parto constitui-se em um momento que confirma ou não as esperanças e medos que cercam a gestação, pois as expectativas e ansiedades que permearam as emoções da gestante ao longo de meses vão para a esfera da realidade (Lopes, Donelli, Lima & Piccinini, 2005). No entanto, a transição da maternidade não se finaliza no parto. Muitas mudanças ocorrem no puerpério, período de intensas mudanças fisiológicas, de consolidação da relação mãe-pai-filho e também grandes modificações no relacionamento familiar (Maldonado, 1997).

Um aspecto muito importante desse período, que é observado pelos profissionais de saúde, é a formação do vínculo da mãe com seu bebê. Quando esse período pré-natal e pós-parto se torna estressante para a mãe, o vínculo mãe-bebê pode ficar ameaçado e, como consequência, a autonomia da mulher é impactada quando ela não tem acesso a informações relativas ao processo de maternidade, particularmente sobre parto e amamentação (Cunha, Santos & Gonçalves, 2012). Dessa forma, é importante que haja, desde o início, junto ao acompanhamento hospitalar, intervenções de profissionais da psicologia. Dialogar a respeito dos aspectos psicossociais relativos ao bebê, à gestação, ao parto e à amamentação é um artifício que contempla elementos essenciais na transição para a maternidade. Considerar esses aspectos no modo como se escuta e, por consequência, se intervém, pode colaborar para o encontro da mulher com o exercício da sua maternidade de forma saudável e à sua própria maneira. Em outras palavras, é importante que a mulher disponha da autonomia necessária para minimizar sua ansiedade diante dessa nova etapa, exercendo o poder decisório sobre como deseja viver esse momento. Assim, se faz imprescindível que um olhar para além do biológico contemple a mãe, bem como aqueles que estão com ela nessa transição. É nesse contexto que a psicologia hospitalar se demonstra como extremamente relevante, intervindo de modo terapêutico juntamente às gestantes e puérperas.

Como exemplo disso, pode-se citar o estudo de Caldas et al. (2013), o qual relata a construção de um serviço de atendimento psicológico no pré-natal de alto-risco. Os autores afirmaram que, em sua experiência, a atuação do profissional de psicologia envolve principalmente ações terapêuticas e ações preventivas voltadas para aspectos emotivos e de relacionamento, ressaltando sempre que a mulher e a família passam por importantes transformações no período gravídico-puerperal; com isso, poder “ressignificar experiências difíceis representa uma possibilidade de melhorar a qualidade de vida entre as pessoas envolvidas” (Caldas et al., 2013, p. 84).

Nesse cenário, pode-se considerar que mesmo a gestação sendo algo vivenciado por grande parte das mulheres, não se torna uma experiência fácil e experimentada da mesma forma por todas. Em verdade, o momento da gestação é, para além da formação de uma nova vida, um período em que a mulher passa por inúmeras mudanças corporais, hormonais, rotineiras e interpessoais. Além disso, é o período em que ela deve se preparar para assumir um posicionamento materno e isso, muitas vezes, não é uma tarefa simples (Bortoletti, 2007; Milbradt, 2008; Taguchi & Pio, 2014). Cabe também ressaltar que existem muitas mulheres que, por circunstâncias pessoais, engravidam sem terem planejado ou ainda sem terem se preparado para isso. Evidentemente, como qualquer gestação, não há uma determinação que antecipe o modo como essa experiência será vivenciada. Apesar disso, é plausível supor que uma gestação não planejada ou de algum modo não pensada conscientemente possa vir a ser uma transição que demande readaptações mais intensas para a futura mãe. De todo modo, pode-se também considerar que não existem gestações completamente aceitas ou rejeitadas, havendo, assim, uma ambivalência presente na maternidade, a qual pode ser mais acentuada nos casos em que a gravidez não foi planejada (Simas, Souza, & Scorsolini-Comin, 2013). A respeito disso, a ambivalência pode ser entendida como a simultaneidade de pensamentos, sentimentos e atitudes que são contraditórias e conflitantes, evidenciando coexistir prazer e desprazer frente à experiência vivenciada (American Psychological Association [APA], 2010). Desse modo, mesmo aquelas mulheres que chegaram à maternidade por escolha também podem vivenciar algo parecido, não escapando de questões ambivalentes durante a gestação (Bortoletti, 2007; Motta, Costa, & Chatelard, 2008).

Considerando esses aspectos, a gestação, para muitas mulheres, pode ser encarada como um momento de crise, em que elas passam a refletir sobre pontos conflitivos decisórios tanto de um ponto de visto emocional como social (Taguchi & Pio, 2014). A espera por um bebê põe em questão muitas mudanças que precisarão ser feitas em um espaço relativamente curto de tempo. Para além das mudanças corporais e hormonais da mulher, as alterações estruturais na dinâmica familiar, o que inclui também questões financeiras, e mudanças interpessoais e emocionais são fatores que costumam gerar muito estresse na mulher durante esse período. Assim, durante a gestação de um bebê, a mulher é convocada a gerir também esse lugar de mãe, que até então era ocupado por sua própria mãe. Portanto, é uma época em que a mulher é convidada a revisitar suas origens na infância e atualizar esse material já construído (Motta et al., 2008).

Em um estudo sobre a parentalidade, Darchis (2000) considerou que para se ter condições de responder ao filho que virá, deve-se em primeiro lugar “sair à procura da aventura familiar passada e da continência do passado, para reorganizar sua identidade e seu lugar tanto no nível conjugal, familiar, quanto no transgeracional” (Darchis, 2000, p. 1). Essa trajetória parental implica que nesse processo de tornar-se pai e mãe é preciso se reaver com os pais que se teve, com os pais que queria ter tido e com aqueles que imagina ter tido. É necessário que esse lugar de filho seja cedido à nova criança que virá, sem que isso gere conflitos nessa nova posição de pais que será assumida (Taguchi & Pio, 2014). Nesse período, uma das consequências dessa revisita as origens é o estado de sensibilidade exacerbada que vivencia a mulher em relação ao seu filho (Winnicott, 1956/2000). Esse quadro é fundamental para a identificação com o bebê e, por conseguinte, na relação com esse e nos cuidados desempenhados com ele. Nesse contexto, usualmente a mulher vive também uma fase de introversão, caracterizada por um grande foco em si mesma, o que acaba, inconscientemente, ligando-a ao feto (Bortoletti, 2007).

De fato, vincular-se ao bebê é uma etapa muito importante da gestação e do puerpério. É fundamental para a constituição subjetiva infantil que a mãe consiga imaginá-lo, fantasiar sobre ele e falar em seu nome antes que ele mesmo o faça, pois só assim poderá ser cedido um lugar ao bebê da realidade com a sua chegada (Rodulfo, 1990). Desse estado de coisas, percebe-se, então, que a gestação é um período de transição que abarca profundos questionamentos e mudanças, sendo imprescindível a construção de um lugar simbólico, no qual o bebê será situado e investido pela mãe (Ferrari & Piccinini, 2010). Nesse processo, opondo-se a uma idealização social, a mulher pode perceber que pouco há de “mágico” ou totalmente natural em tornar-se mãe. E, como já dito anteriormente, a ambivalência usualmente se faz presente, sendo que em alguns casos essa pode ser mais acentuada, dificultando, para algumas mães, o estabelecimento de uma relação com o bebê. Assim, quando a mulher consegue, por alguma via, posicionar-se frente a esse bebê, estabelecendo uma relação com esse – ainda que seja somente após seu nascimento – pode haver um intenso sentimento de culpa pela dificuldade de aceitação inicial do filho, colocando-a como que em uma posição de dívida frente à criança (Milbradt, 2008). Esse sentimento pode permear a noção de maternidade, pois a própria ambivalência materna e os consequentes sentimentos de contradição frente à maternidade podem associar-se à culpa com a qual as mães podem habituar-se a viver, apesar do sofrimento implicado disso (Azevedo & Arrais, 2006).

Nesse cenário, psicólogos da saúde realizam importantes intervenções, baseadas em ensinamentos e pesquisas da psicologia, a fim de contribuir para o bem-estar e saúde dos pacientes. Particularmente no caso da psicologia hospitalar, o objetivo do profissional de psicologia em hospitais, ou em qualquer instituição de saúde, é tratar do sofrimento, traduzido pelo cuidar. Nessa atividade, a orientação clínica do psicólogo distingue-se da clínica médica tradicional, na medida em que a psicologia busca considerar aspectos sociais e subjetivos, produzindo um espaço e olhar distinto em sua atuação (Mutarelli, 2015; Romano, 1999). Diante da proposta de tornar o serviço oferecido em hospitais mais humanizado, o profissional de psicologia tem o papel de resgatar o ser humano para além de sua dimensão físico-biológica. Trata-se de situá-lo num contexto maior, significado nas suas dimensões psíquicas e sociais, por meio da escuta da subjetividade (Mota, Martins & Véras, 2006). A atuação do psicólogo hospitalar deve ser guiada pelo viés da humanização, participando das seguintes ações:

Atua em instituições de saúde, participando da prestação de serviços de nível secundário ou terciário da atenção a saúde. (...) Atende a pacientes, familiares e/ou responsáveis pelo paciente; membros da comunidade dentro de sua área de atuação; membros da equipe multiprofissional e eventualmente administrativa, visando o bem estar físico e emocional do paciente; Oferece e desenvolve atividades em diferentes níveis de tratamento, tendo como sua principal tarefa a avaliação e acompanhamento de intercorrências psíquicas dos pacientes que estão ou serão submetidos a procedimentos médicos, visando basicamente a promoção e/ou a recuperação da saúde física e mental. Promove intervenções direcionadas à relação médico/paciente, paciente/família, e paciente/paciente e do paciente em relação ao processo do adoecer, hospitalização e repercussões emocionais que emergem neste processo (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2001, p. 13).

O contexto do profissional de psicologia hospitalar se dá muitas vezes, como neste estudo, em uma equipe multidisciplinar de trabalho. Assim sendo, além dos cuidados destinados aos pacientes, o psicólogo também precisa encontrar caminhos de comunicação que promovam a troca e o conhecimento a partir de diferentes saberes, mantendo um nível de integridade nas suas relações profissionais dentro da equipe (Porto & Lustosa, 2010). Desse modo, esse profissional é um tradutor de culturas na medida em que desempenha sua função de identificar maneiras de troca entre paciente/família com a unidade de cuidados; tudo a fim de promover boa adesão aos cuidados propostos pela equipe de saúde, em um grau controlado de desgaste profissional e pessoal nessa tríade, através da construção de uma comunicação eficiente (Franco, 2008).

Stellin, Monteiro, Albuquerque e Marques (2011), em sua pesquisa sobre as condições psíquicas que uma mulher desenvolve para poder cuidar de seu bebê, detectaram a necessidade das gestantes de terem um espaço de escuta, um serviço de acompanhamento psíquico pré-natal para que possam falar sobre a gestação, as dificuldades relacionadas e os conflitos familiares. Dessa forma, a fala da mulher gestante poderá ter lugar para alinhar as questões do desejo materno referentes à nova configuração do vínculo mãe-filho, que são bases do exercício da maternagem e da constituição psíquica do bebê. (Stellin et al., 2011).

Considerando esses aspectos, este relato trata de um estudo de caso de uma mãe atendida na maternidade de um hospital público de Brasília. Particularmente, busca-se refletir, por meio deste caso, a respeito das ambivalências presentes na experiência da maternidade. Acredita-se ser fundamental a relevância deste estudo pela possibilidade de desenvolver reflexões que auxiliem os psicólogos no cuidado às mulheres mães. Estudos a respeito da experiência da maternidade no mesmo contexto hospitalar já têm sido realizados (Braga, Boas, & Chatelard, 2013; Freire & Chatelard, 2009; Motta et al., 2007). Dando continuidade a essas investigações, outros aspectos são desenvolvidos no presente estudo. Espera-se que o conjunto desses estudos possa contribuir de maneira a avançar na investigação do período gravídico-puerperal, colaborando com a atuação dos profissionais de psicologia neste contexto.

 

Método

Participou deste estudo de caso uma puérpera que no início do tratamento havia dado à luz ao seu terceiro filho. Esse caso foi escolhido visto que apresentou uma oportunidade de aprendizado a respeito da ambivalência na experiência da maternidade. O caso foi acompanhado por meio do serviço de psicologia que se desenvolve na maternidade de um hospital público de Brasília. Esse serviço presta atendimento às gestantes, puérperas e mães juntamente aos seus bebês. A equipe de psicologia da Maternidade é composta por uma psicóloga, uma residente em psicologia, um psicólogo voluntário e quatro estagiárias de psicologia.

O serviço de psicologia realizado na enfermaria da maternidade foi estruturado a partir das atividades oferecidas, possuindo dois segmentos: rotina da enfermaria e rotina de atividade de grupos. A rotina da enfermaria consiste em identificação das pacientes internadas; levantamento de demandas com a paciente, familiar ou equipe multidisciplinar; acolhimento de novas pacientes e realização de atendimento psicológico. A rotina da atividade de grupos, por sua vez, diz respeito ao “Grupo de Apoio às mães com filhos na Unidade de Tratamento Intensivo Neonatal (UTINeo)”, e ao “Grupo Interdisciplinar com Gestantes Internadas”. Após essas intervenções, sempre é descrita a evolução na folha de registro de atendimento psicológico hospitalar.

A Maternidade do hospital envolve diversos ambientes em seu espaço físico. O Centro de Obstetrícia, no qual são atendidas gestantes e parturientes, é composto por salas de atendimento e centro cirúrgico. Por sua vez, a UTINeo e a Unidade de Cuidado Intermediário Neonatal (UCIN) destinam-se aos cuidados intensivos de bebês prematuros, estando ambas as unidades dispostas em um mesmo espaço. Alguns leitos são acessíveis visualmente pelos que estão de fora, sendo possível também a visualização dos profissionais que trabalham nesse ambiente, facilitando o deslocamento e acesso a esses diversos locais. Há também a Enfermaria que dispõe atualmente de dez apartamentos, sendo que em cada um o número de leitos varia entre três e quatro, dependendo das demandas das pacientes. Cada leito possui uma cortina que permite um isolamento visual, no entanto, o isolamento auditivo é mínimo. A Enfermaria destina-se aos alojamentos para as gestantes com gravidez de risco e para as mães e recém-nascidos que aguardam alta hospitalar.

A equipe médica da respectiva maternidade passa nos leitos todas as manhãs apresentado os casos, discutindo procedimentos e condutas. É a partir dessas visitas de rotina que encaminhamentos são feitos para a equipe de psicologia. Além disso, os encaminhamentos também podem ser sugeridos por outros profissionais da equipe multiprofissional – enfermeiros, técnicos em enfermagem, nutricionistas etc. – ou ainda por solicitação da paciente ou de familiares da mesma. Os atendimentos ocorreram, usualmente, ao lado dos leitos onde as gestantes e puérperas estavam internadas ou nos corredores da enfermaria. Por ser um espaço na maioria das vezes de pouca permanência, as intervenções da psicologia não se estendiam por muitos encontros. Porém, em alguns casos, algumas gestantes e puérperas retornavam ou permaneciam hospitalizadas por período maior, possibilitando um acompanhamento por algumas semanas.

 

Resultados e discussão

O caso aqui discutido foi nomeado ficticiamente de Gina. Ela foi internada no hospital devido ao trabalho de parto prematuro. Ao nascer, sua filha estava com baixo peso e ainda sem conseguir respirar sozinha, portanto, precisou ser internada na UTINeo. Após a liberação do bebê para a Enfermaria Canguru, que se caracteriza por ser um local no qual a mãe proporciona ao recém-nascido um espaço de contato com sua pele e começam as primeiras tentativas de amamentação, a equipe médica solicitou o serviço psicológico a essa paciente, pois achou que ela poderia enfrentar dificuldades de criar um vínculo com a filha. Além disso, os médicos informaram que, durante o período em que o bebê ficou internado, Gina foi para sua casa voltando apenas ocasionalmente ao hospital para realizar a ordenha no banco de leite.

O primeiro atendimento à paciente, realizado na Enfermaria Canguru, foi breve. Nessa ocasião, foi observado que ela estava tentando amamentar o bebê de uma forma aparentemente impaciente. Ela relatou que já era mãe de duas outras crianças, porém essas eram frutos de outro relacionamento. A recém-nascida era a primeira filha com seu atual parceiro e o relacionamento entre eles era um dos fatores que estava fazendo com que a maternidade para Gina fosse vivida de uma forma muito distinta das outras vezes. Segundo Gina, devido ao tempo que sua filha passou na UTINeo, o leite dela havia secado e agora ela estava com dificuldades em amamentar. Gina demonstrou certa decepção ao falar de sua filha, pois essa era muito diferente do que ela teria imaginado. Gina dizia que a filha era muito mais agitada e nervosa do que gostaria. A impaciência com a criança ficava evidenciada inclusive pela forma como essa era segurada e manuseada. Sendo assim, a observação da díade mãe-bebê foi fundamental para se pensar este caso, a partir da qual foi plausível se considerar que Gina não queria estar naquele local.

Em outro momento, foi possível conversar novamente e entrar em mais detalhes sobre a demanda de Gina. Ela falou que se sentia muito sozinha no hospital e que estava triste em ver todas as mães, exceto ela, recebendo visitas. No entanto, ela havia recebido a visita de sua mãe no dia anterior e, mesmo assim, não se sentia satisfeita. Gina contou que seu marido havia se mostrado muito ausente, expressando, de certo modo, ser a companhia dele que ela esperava ter. Apesar disso, ela relatou que a gestação foi um período muito difícil, permeado por muitas brigas e desentendimentos conjugais. De sua parte, foi uma gravidez indesejada, tendo explicitamente rejeitado o bebê até o sexto mês gestacional. No momento em que Gina se descobriu grávida, ela pensou em abortar. No entanto, o marido a convenceu do contrário. Segundo ela, ele lhe disse palavras de conforto e encorajadoras para que ela ficasse com a criança.

É nesse contexto que Gina relatava se encontrar muito decepcionada pelo fato de estar sem seu marido no hospital. Ele, que a incentivou em levar adiante a gestação, não compartilhava com Gina das imposições que a internação do bebê demandava. Para ela, esta experiência da maternidade estava sendo como que “carregar sozinha o peso de uma obrigação” que ela não queria ter tido. Foi por meio desses conteúdos que foi possível se perceber o lugar simbólico no qual a filha de Gina era situada por ela, bem como a maternidade era experienciada. Frente a esses elementos, pode-se considerar que teria sido devido a esses conflitos conjugais que Gina mostrava-se muito ambivalente com relação à filha. Ao mesmo tempo em que falava que ia permanecer no hospital o tempo que precisasse pelo bem da filha, ela relatava que estava sendo muito difícil e que a filha era muito nervosa. Parte dessa agressividade em relação ao bebê era atribuída por Gina ao fato de tê-lo rejeitado no início. Ela relatou que percebeu sua filha mais agressiva com ela do que com outras pessoas, aspecto esse que pode ser associado ao modo como Gina se posicionava frente à relação mãe-bebê. Ao mesmo tempo em que, de algum modo, Gina queria se ocupar de sua filha, ela era tomada por um enorme sentimento de traição por parte do marido, sendo a filha o vínculo entre eles. Ela era o artifício que Gina tinha para tentar reverter esse sentimento de solidão. Ela falou que, em determinado momento, disse para o marido que se ele não fosse visitá-la, ela ia entregar a filha para a adoção.

Durante os atendimentos, ao ser retomado o modo como Gina experienciou o período gestacional, ela revelou que no momento em que quis abortar a criança, o marido falou que ele iria embora caso ela o fizesse. Ela relatou ainda que já havia inúmeras vezes dito ao marido que ao sair do hospital ela iria se divorciar, mas sempre acabava se contradizendo e mudando de ideia. O divórcio tornava insuportável o vínculo com aquele bebê que só existia porque – e para que – eles existissem enquanto casal. Ela relatou que, caso houvesse a separação, ia ser difícil cuidar da filha, mas que seria necessário. Evidenciava-se, diante disso, o lugar cedido àquela criança. Essa sempre estava sendo falada em nome de alguém, de modo que a relação conjugal parecia depender exclusivamente dela. Esse lugar parecia estar impedindo que Gina se ocupasse de sua filha de outros modos, uma vez que ela indicava precisar desse distanciamento para ser capaz de usar sua filha nessa posição de mediadora entre os dois.

Os resultados encontrados por Milbradt (2008) em seu estudo com relação à ambivalência e culpa de mães que rejeitaram o bebê corroboram com a situação do caso aqui apresentado. Não é incomum que as mães que rejeitaram o bebê em algum período da gestação se sintam responsáveis por vezes em que o bebê demonstra sentimentos como raiva ou tristeza. Muitas vezes, elas se sentem culpadas por não terem sido capazes de oferecer amor durante a gestação, e podem passar a viver em um estado de auto cobrança muito intenso para satisfazer e conseguir o perdão daquele bebê.

A ambivalência no caso de Gina era clara. A culpa ficou evidenciada em sua fala quando ela se referia à sua filha, o que foi associado por ela à recusa inicial da gestação, levando o bebê, em sua percepção, a dirigir-se a ela de forma mais agressiva do que aos outros. Gina sentia-se, ainda, culpada por não conseguir amar a filha tanto quanto gostaria. Fazia comparação com o amor que sentia pelos outros filhos e sempre verbalizava sobre a satisfação que sentia com eles, a qual não conseguia sentir pela filha recém-chegada. Isso evidencia o impacto que o mito do amor materno incondicional pode gerar em mulheres que não se apropriam da maternidade dessa forma (Azevedo & Arrais, 2006).

Nos momentos em que se dava conta de que sua filha não era culpada pela situação que estava vivendo, ela era capaz de despender tempo, cuidado e amor a ela. Porém, quando se encontrava frustrada com o posicionamento de seu companheiro frente à situação que ela estava vivendo, tendia a expressar sua frustração cortando os cuidados e o contato com a filha. A respeito disso, compreende-se que o bebê é quem proporciona aos pais a singularidade da construção da parentalidade. É essa relação dos pais com o bebê que vai permitir com que cada membro encontre seu lugar pertencente dentro daquele núcleo familiar (Moro, 2005). Por isso, pode-se dizer que essa tríade constituída por Gina, seu companheiro e sua filha, que é ao mesmo tempo tão sólida e tão frágil, pode dificultar que cada membro encontre seu lugar e seu papel dentro da família.

 

Considerações finais

Tradicionalmente a literatura acadêmica e popular costuma relatar a maternidade de modo idealizado, escamoteando as dificuldades e conflitos que podem ocorrer com a chegada de um filho. Geralmente se é descrito um contexto “perfeito” para a gestação, no qual a mulher tem um companheiro e uma base de suporte social satisfatória ou mesmo estaria em condições ideais de desenvolver um vínculo saudável com o bebê. No entanto, a experiência clínica dos autores deste estudo, põe em questão esses aspectos. Ao contrário de uma idealização da maternidade, corriqueiramente constatou-se que poucas são as gestantes que experimentam a maternidade dessa forma, mesmo que não seja o primeiro filho.

O que se espera socialmente de uma mãe é que ela deva se dedicar intensamente ao bebê, amá-lo incondicionalmente e ter uma vocação quase que instintiva para cuidar dele. Portanto, a mulher é convocada para uma posição obrigatória, porém, ao mesmo tempo, insustentável. Diante desse discurso social, por vezes, quando uma mulher não se habitua à maternidade como esperava, ou ainda a contragosto, ela pode sentir-se culpada. Mesmo que não negligencie seu filho, o imperativo de uma maternidade idealizada, na qual também não há espaços para ambivalências, pode expor uma mãe a conflitos sobre sua maternidade.

Atividades como se profissionalizar, relacionar-se com outras pessoas, investir tempo e dinheiro consigo mesma podem se tornar sofridas para a mulher que se tornou mãe. Grant (2002) corrobora com isso no momento em que afirma que “trabalhar, ser uma profissional bem-sucedida é somar responsabilidades, mais do que isso é, frequentemente, suportar uma certa medida de conflitos e culpa” (p. 2). Portanto, é importante que se direcione uma escuta muito acolhedora a essas mulheres que muitas vezes não conseguem sequer entender o motivo de estarem sentindo afetos disfóricos em um momento que se esperava que fosse de completude e realização plena. Nesse sentido, pode-se perceber a importância do psicólogo no contexto hospitalar, uma vez percebido que o contexto da internação agrava as ambivalências sentidas durante esse período.

O caso aqui apresentado ilustra essas questões teóricas, tendo em vista que a experiência da maternidade de Gina retrata a questão da ambivalência, trazendo entre suas repercussões a culpa possivelmente vivenciada pelas mulheres que um dia rejeitaram seu filho e, ainda, de aspectos delicados com relação ao estabelecimento da relação mãe-bebê. O caso demonstra, ainda, a relevância da comunicação da equipe multiprofissional de saúde, pois a partir dela a paciente pôde receber um espaço de escuta importante para reconsiderar e elaborar a vivência pela qual passava.

A experiência do serviço de psicologia que embasou este trabalho foi de fundamental importância para levantar questionamentos a respeito da posição ideal da mulher frente à maternidade. Portanto, pode-se dizer que este estudo contribui e soma-se a outros que procuram dar lugar às diferentes expressões do que significa ser mãe, pois se faz importante estar atento a esses aspectos no estudo sobre a experiência da maternidade nos tempos atuais em que a mulher ocupa outros espaços. Da mesma forma, outros elementos psicossociais ainda precisam ser percebidos e investigados para que o atendimento a essa população seja mais abrangente, surtindo efeitos que respeitem as singularidades de mulheres fora dos padrões primordiais clássicos de pesquisa.

 

Declaração de conflitos de interesse

Não há conflitos de interesse.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Marina Nogueira de Assis Fonseca

e-mail: marinanogueira@outlook.com

Endereço para correspondência
Tamires Sousa Rocha

e-mail: tam.s.rocha@gmail.com

Endereço para correspondência
Evandro de Quadros Cherer

e-mail: quadroscherer@gmail.com

Endereço para correspondência
Daniela Scheinkman Chatelard

e-mail: dchatelard@gmail.com

 

Recebido em: 25/07/2015
1ª revisão em: 20/11/2016

2ª revisão em: 01/03/2017
Aceito em: 02/03/2017

 

 

 

Certificamos que todos os autores participaram suficientemente do trabalho para tornar pública sua responsabilidade pelo conteúdo. A contribuição de cada autor pode ser atribuída como se segue: Marina Nogueira de Assis Fonseca, Tamires Souza Rocha e Evandro de Quadros Cherer contribuíram para a conceitualização, investigação e visualização do artigo; Marina Nogueira de Assis Fonseca e Tamires Souza Rocha fizeram a redação inicial do artigo (rascunho) e Evandro de Quadros Cherer e Daniela Scheinkman Chatelard são os responsáveis pela redação final (revisão e edição).

Os autores agradecem Aleida Oliveira de Carvalho pela disponibilidade e apoio, sem o qual não seria possível a realização deste estudo na unidade, bem como pelas discussões enriquecedoras sobre o tema e supervisão de estágio junto às estagiárias.

 

i Psicóloga pela Universidade de Brasília e mestranda em Psicologia do Desenvolvimento Humano e Saúde pela Universidade de Brasília.

ii Psicóloga pela Universidade de Brasília.

iii Psicólogo pela Universidade Federal de Santa Maria, mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e doutorando em Psicologia Clínica e Cultura pela Universidade de Brasília. Trabalha nas linhas de pesquisa “Relações familiares na infância” e “Psicanálise, Subjetivação e Cultura”.

iv Docente do Programa da Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura - PCL do Instituto de Psicologia na Universidade de Brasília. Psicóloga pela Universidade Santa Úrsula, mestre em Psicanálise e doutora em Filosofia pela Université de Paris VIII. Trabalha na linha de pesquisa “Psicanálise, Subjetivação e Cultura”.

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