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Estudos Interdisciplinares em Psicologia
On-line version ISSN 2236-6407
Est. Inter. Psicol. vol.11 no.3 Londrina Sept./Dec. 2020
https://doi.org/10.5433/2236-6407.2020v11n3p52
ARTIGOS ORIGINAIS
O brasileiro no "divã de procusto": a psicanálise e seu discurso sobre o Brasil
Brazilian on the "procrustes divan": psychoanalysis and its discourse about Brazil
Brasileno en el "divano de procusto": psicoanálisis y su discurso sobre Brasil
Mauricio Cardoso da Silva Junior; Gustavo Adolfo Ramos Mello Neto
Universidade Estadual de Maringá
RESUMO
A psicanálise, desde seus primeiros anos no Brasil, foi utilizada para o estudo de supostas singularidades características do sujeito nacional. Nos últimos trinta anos, aproximadamente, um boom de produções psicanalíticas sobre o brasileiro foram publicadas. A fim de compreender como nossos psicanalistas construíram suas conclusões, selecionamos algumas obras dando foco às referências utilizadas para suas respectivas fundamentações. Concluímos que nossos analistas têm buscado, para compreender os dilemas nacionais, referências do pensamento social brasileiro em comum, e, ao lerem tais referências não como interpretações, mas como "verdades", acabam reproduzindo, no interior da psicanálise, ideologias que permeiam as obras dos pensadores que lhes servem como fonte.
Palavras-chave: Brasil; psicanálise; brasileiro; cultura.
ABSTRACT
Psychoanalysis, since its early years in Brazil, was used to study supposed singularities characteristic of the national subject. Approximately in the past thirty years, a boom of psychoanalytic productions about the Brazilian were published. In order to understand how our psychoanalysts constructed such conclusions, we selected some works focusing on the references used for their respective interpretations. We conclude that our analysts have sought, to understand national dilemmas, references in common, and, when reading such references not as interpretations, but as "truths", reproduce, within psychoanalysis, ideologies that permeate the works of the thinkers who serve them as theoretical foundation.
Keywords: Brazil; psychoanalysis; Brazilian; culture.
RESUMEN
El psicoanálisis, desde sus primeros anos en Brasil, se ha utilizado para estudiar supuestas singularidades características del sujeto nacional. En los últimos treinta anos, aproximadamente, se publicó un boom de producciones psicoanalíticas sobre el brasileno. Para entender cómo nuestros psicoanalistas construyeron sus conclusiones, seleccionamos algunos trabajos dando foco a las referencias utilizadas para sus respectivas interpretaciones. Concluimos que nuestros analistas han buscado, para entender los dilemas nacionales, referencias sociológicas comunes y, a o leer tales referencias no como interpretaciones, sino como "verdades", reproducen, dentro del psicoanálisis, ideologias que impregnan las obras de los pensadores que les sirven de fuente.
Palabras clave: Brasil; psicoanálisis; brasileno; cultura.
INTRODUÇÃO
A psicanálise, enquanto ciência criada e desenvolvida por Freud e seus colaboradores na virada do século XIX e início do século XX, nascera como efeito do que se costuma denominar, dentro do contexto histórico europeu, de Modernidade - que pode ser definida, como sintetiza Nascimento (2009), como um conjunto de transformações sociais, econômicas, culturais, filosóficas ocorridas entre os séculos XVI e XVIII, que trouxeram uma nova concepção de homem e sociedade.
Embora gestada em Viena e em países circunvizinhos, a psicanálise não tardou em romper esses limites territoriais e culturais e atingir, dentro de poucas décadas, diferentes países e continentes com uma considerável velocidade de propagação (Damousi & Plotikin, 2009; Russo, 2002). Tão logo desembarcou no Brasil, a psicanálise atuou tanto pelas mãos de psiquiatras de inspiração higienista, quanto por artistas, sobretudo ligados à literatura e às artes plásticas, em projetos modernizadores para o país. Apesar de substancialmente diferentes entre si, tanto a psiquiatria local quanto o movimento modernista se aproximam ao buscarem construir um novo país - um por meio da tentativa de retirar o brasileiro do domínio de um "id primitivo", responsável por seu atraso, para atingir um nível civilizatório mais elevado, outro movido pela ideia de se aproveitar das raízes desse mesmo id para canibalizar a cultura estrangeira, fazendo surgir uma identidade brasileira singular (Torquato, 2015).
Com o progressivo distanciamento dos movimentos higienistas e a criação de sociedades filiadas à Associação Psicanalítica Internacional, em meados do século XX, a psicanálise marcou presença nas mídias voltadas para o público leigo, operando um emparelhamento entre "tradição" e "neurose". A psicanálise estipulava, para a grande massa, um novo ideal a ser perseguido: segundo Santos (1997), o do indivíduo não-neurótico, sexualmente livre, liberto da rígida hierarquia familiar vigente até a década de 1950, questionador das normas e regras impostas pelas figuras paternas. Era preciso aderir a uma nova ordem simbólica, superar os valores arcaicos que impediam nossa modernização.
Podemos identificar, então, dois momentos do discurso psicanalítico sobre o brasileiro. Em uma primeira fase (início do século XX até década de 1940-50, aproximadamente), temos um discurso normalizador baseado em uma pedagogia de teor higienista; em uma segunda onda discursiva (meados do século XX até década de 1980), identificada por Figueira (1986) como "psicologismo", as pautas se detinham sobre a transformação subjetiva dos costumes de acordo com os conhecimentos da psicanálise sobre nossa vida mental inconsciente.
A crise das instituições oficiais nos anos 1970-1980, a partir da proliferação de grupos independentes, sobretudo lacanianos (Figueiredo, 1995b), a ampliação do mercado editorial no período (Sampaio, 1996), a entrada da psicanálise nas universidades e o fim da ditadura militar, abrindo campo para se refletir, pensar e criticar fenômenos da cultura e da sociedade brasileiras, rompendo com um longo período de silenciamento ou latência (Barros & Abrão, 2017), criaram um ambiente propício para a proliferação de novos estudos sobre um suposto sujeito nacional e as vicissitudes de nossa formação social. Pensamos que, de meados da década de 1980 em diante, uma terceira onda discursiva da psicanálise sobre o brasileiro tomou corpo.
Nessa terceira onda de estudos, a atribuição de alguns "diagnósticos" se destacam. Como nota Bastidas (2002), a psicanálise mais recente tem atribuído a esse suposto sujeito brasileiro um lugar "negativo" - portador de uma falha constitucional, que enfrenta dificuldades na constituição da lei ou com relações exóticas perante ela, dado à transgressão, flertando com a perversão -, interpretação hegemônica que podemos encontrar nas publicações psicanalíticas dos últimos trinta anos, aproximadamente.
Nesses trabalhos, constatamos que a clínica não se caracteriza como fonte medular para as interpretações; trata-se, portanto, de uma série de escritos de psicanálise extra-muros, nos quais as interpretações se dão a partir de materiais e elementos disponíveis na cultura. Não estamos lidando com a psicanálise de brasileiros (nível da clínica), mas sobre os brasileiros (nível do discurso).
Nossa hipótese é a de que tais interpretações, longe de romperem com o ideal modernizador historicamente presente na psicanálise brasileira, que partem da compreensão de que nos encontramos, digamos, "atrasados" em relação a um ideal de sujeito moderno (supostamente presente em sociedades tidas como superiores, desenvolvidas, avançadas, civilizadas), consistem em reedições deste comprometimento com tal ideal. Porém, nas produções mais atuais isto surge não enquanto uma pedagogia moral ou orientações massificadas para mudanças subjetivas, mas sob a forma de produções teóricas com alto grau de refinamento que se apoiam em consagrados estudos de outros campos do conhecimento.
Dentre as referências buscadas por nossos psicanalistas para compreender o Brasil e lançar suas respectivas interpretações, destacam-se o historiador paulistano Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), o antropólogo carioca Roberto DaMatta (1936-) e o crítico literário austríaco naturalizado brasileiro Roberto Schwarz (1938-). Isso não significa que sejam os únicos citados. Outros autores do pensamento social brasileiro, como Gilberto Freyre, também são referenciados, mas de maneira pontual; notamos que os três autores citados acima assumem uma posição medular para a construção das interpretações de nossos psicanalistas. E, nesses autores, é possível identificar, entre suas mais proeminentes ideias, compreensões de que nossa formação social se constituiu em descompasso com o mundo moderno, levando-nos à perpetuação de modos de funcionamento arcaicos em nossas relações e instituições, o que determinou formas de sociabilidade baseadas na afetividade e no personalismo, em detrimento da racionalidade (Holanda, 2016), na impregnação da vida pública (rua) pela dinâmica privada (casa) (DaMatta, 1997) ou "fora do lugar" (Schwarz, 2000). Presumimos que nossos psicanalistas, ao buscarem tais fontes, acabam revivificando, no interior da psicanálise, a modernização enquanto eixo explicativo, paradigmático, presente nessa literatura extra-psicanalítica.
A partir dessa hipótese, introduzimos uma metáfora, o mito grego de Procusto, que frequentemente é evocado para discutir a natureza do conhecimento científico. Ele narra a história de um malfeitor que, ao albergar viajantes em sua casa, forçava-os a caber no tamanho exato de sua cama, cerrando ou esticando seus corpos, de acordo com suas medidas (Ménard, 1991). No que tange à pesquisa científica, então, esse mito é tomado como alegoria para se discutir o risco que o pesquisador corre ao buscar "encaixar" o objeto de estudo dentro de concepções estabelecidas apriori, levando à sua deformação ou mutilação.
Aqui, tomamos o mito de Procusto para pensar a psicanálise, mais especificamente o conhecimento produzido por esta ciência a respeito do Brasil e seu povo. Nossa hipótese é a de que esta interpretação majoritária se produz quando a psicanálise, ao buscar material para análise em outras áreas do conhecimento (Antropologia, Sociologia, Ciência Política, História, entre outras), opera uma transposição para o campo psicanalítico de tais ideias, tomadas enquanto "realidade", e não enquanto "interpretações", como afirma Certeau (1982).
Para trabalharmos essa hipótese, buscamos obras de psicanálise que se dedicam a lançar interpretações sobre as vicissitudes de nossa formação social e subjetiva enquanto temática principal. Para os fins desse artigo, apresentamos as teorizações de reconhecidos psicanalistas desse período, cujas produções possuem grande alcance pelo prestígio que muitos gozam no cenário acadêmico e, mesmo, midiático: Sérvulo de Augusto Figueira, Contardo Calligaris, Octavio Souza, Luís Cláudio Figueiredo, Christian Dunker e Maria Rita Kehl.
É importante frisar que nossa crítica não é direcionada à psicanálise de maneira indiscriminada, enquanto procedimento para investigação do inconsciente, método de tratamento clínico e disciplina científica (Freud, 1922/1996a). Também não se trata de uma crítica personalista, voltada às figuras dos psicanalistas aqui estudados; afinal, são reconhecidos profissionais em suas respectivas áreas de atuação. Nosso recorte é bem específico, sobre as produções extraclínicas que tomam o Brasil como "paciente", como objeto, e, sobretudo, às formas como suas análises foram construídas.
Antes de adentrarmos em nossas análises, façamos um breve percurso sobre as obras "Raízes do Brasil", de Sérgio Buarque de Holanda, publicada originalmente em 1936, "Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro", de Roberto Schwarz, publicada em 1977, e "Carnavais, malandros e heróis", publicada por Roberto DaMatta em 1978. Não realizaremos um estudo exaustivo de cada escrito, mas nos deteremos em algumas passagens significativas para os propósitos desse artigo, sobretudo dando enfoque para suas respectivas concepções sobre as peculiaridades da entrada brasileira na modernidade.
Revisitando as fontes dos psicanalistas
Sérgio Buarque de Holanda, em seu livro "Raízes do Brasil", de 1936, afirma que a nacionalidade brasileira se constituiu sobretudo a partir da herança portuguesa, que apresenta como uma das características mais marcantes a ênfase sobre o indivíduo, sobre a personalidade, em detrimento da dedicação ao trabalho em prol da coletividade. Utilizando-se das construções conceituais de "tipo aventureiro" e "tipo trabalhador", Holanda (2016) afirma que as características do primeiro tipo prevaleceram sobre o segundo: o homem português, sendo prevalentemente aventureiro, é dado a empreendimentos sem racionalidade, a buscar resultados sem esforços, explorar sem planejamento. A sociedade nascente se deu sem organização, de modo que o autor a considera como um corpo amorfo e desarmônico. O predomínio da passionalidade e do aspecto afetivo do povo em formação, na visão do autor, caminhou na contramão do que se exige para a organização racional da sociedade.
O brasileiro se caracteriza, então, como um "homem cordial", que busca, na vida social, uma reprodução da intimidade familiar, na tentativa de anular as distâncias impostas pelas barreiras do formalismo e do ritualismo em prol de uma proximidade afetiva com o outro. Estabelece uma relação muito especial com a modernidade, ou seja, todas as virtudes que compõem o homem cordial como a hospitalidade, a generosidade, e a expansividade afetiva/emocional irão delinear as relações sociais do brasileiro. Para Holanda (2016, p. 322), nos caracterizamos como "um povo pouco especulativo", que faz fracassar ideais abstratos em nome do personalismo.
A predominância da família em relação à vida pública no Brasil caminha em direção oposta às "teorias modernas" (p. 248) sobre a psicologia e a pedagogia das crianças. Afirma Holanda (2016) que o indivíduo, libertando-se da comunidade doméstica, melhor se adaptará às exigências da "vida prática" (p. 248). Mas, no país, a hegemonia da vida doméstica vai de encontro ao estabelecimento de uma sociedade liberal e baseada na livre iniciativa do indivíduo em uma economia de mercado:
[...] onde quer que prospere e assente em bases muito sólidas a ideia de família - e principalmente onde predomina a família de tipo patriarcal -tende a ser precária e a lutar contra fortes restrições a formação e a evolução da sociedade segundo conceitos atuais. A crise de adaptação dos indivíduos ao mecanismo social é, assim, especialmente sensível no nosso tempo devido ao decisivo triunfo de certas virtudes antifamUiares por excelência, como o são, sem dúvida, aquelas que repousam no espírito de iniciativa pessoal e na concorrência entre os cidadãos (Holanda, 2016, p. 249-250).
Nossa família, de origem rural e patriarcal, é compreendida por Holanda (2016) como sinônimo de tradicional, não racional, subjetivo/pessoal, denotando "atraso" em relação ao meio urbano, que pressupõe modernidade, racionalidade e abstração. A modernidade, para Holanda (2016), impõe uma restrição à subjetividade: a racionalização e a organização do trabalho industrial, por exemplo, são entendidas enquanto avanços em relação ao personalismo e ao predomínio da esfera subjetiva presentes no trabalho familiar. Para o autor, a cordialidade se caracteriza como um entrave tanto ao liberalismo como a qualquer forma de organização social mais ampla, que se pretende ir além de círculos restritos.
Para Holanda (2016), as nações ibero-americanas, ao se libertarem das metrópoles europeias, se fundaram a partir dos lemas igualdade, liberdade e fraternidade, porém realizando uma interpretação a partir de seus padrões patriarcais e coloniais. O liberalismo instalou-se somente em aparência, não atingindo a essência de tais sociedades nascentes, fazendo conviver o caudilhismo junto a uma impessoalidade democrática, e "constituições feitas para não serem cumpridas, as leis existentes para serem violadas, tudo em proveito de indivíduos e oligarquias" (p. 320).
Mais de quarenta anos depois e a partir de outros referenciais, Roberto DaMatta, com sua obra "Carnavais, malandros e heróis", de 1978, revigora a dicotomia de Sérgio Buarque entre as categorias "pessoa" e "indivíduo" ao introduzir os pares opostos "casa" e "rua". Dentro de sua concepção de sociedade hierarquizada, a casa representa o lugar da manutenção da hierarquia, do controle, da família, da intimidade, e a rua simboliza a impessoalidade da "massa", a luta, a dura realidade. No caso brasileiro, a prevalência da "casa" sobre nossa vida social, ou seja, a dependência e dissolução da individualidade pelo laço dependente com a família em detrimento da "rua", que representa a imersão do indivíduo em um mundo de códigos impessoais (trânsito, mercado, por exemplo), fazem com que DaMatta (1997) afirme que eliminar o indivíduo constitui o projeto da sociedade brasileira. No Brasil, o "reino do conformismo" (p. 118), estar "fora de lugar", deslocado, é o "maior temor social" (p. 171) do brasileiro, fazendo-o reafirmar a hierarquização e a dependência de estruturas de dominação.
Os laços de intimidade, para DaMatta (1997), entrecortam as diferentes escalas sociais, reforçando o personalismo em detrimento da impessoalidade das leis na vida social. Para o autor, esses laços se estabelecem, sobretudo, verticalmente -das bases da pirâmide social para com aqueles que ocupam posições mais privilegiadas, em busca de usufruir indiretamente de seu poder -, o que interdita o confronto explícito e direto de nossas relações assimétricas e dicotômicas entre dominantes e dominados, hierarquicamente superiores e inferiores, brancos e negros, que só poderiam ser explicitados por meio de identificações horizontais, entre grupos dominados, por exemplo.
DaMatta (1997) compreende que o aparato legal do Estado é constituído por leis rigorosas e impraticáveis, fazendo sobrevir o "jeitinho" e cumprindo uma dupla função: dar sustentação aos ideais democráticos e impedir possíveis ameaças à ordem. Para os destituídos, resta a esperança de que, um dia, finalmente seja feita a justiça; para os dominantes, as leis são evocadas em momentos específicos, para destituir adversários políticos e manter suas respectivas posições sociais - as leis gerais, impessoais, são utilizadas de acordo com o personalismo das relações estabelecidas e das gradações sociais.
Para DaMatta (1997), a malandragem brasileira relativiza a nossa rígida hierarquia, mostrando outros eixos de ordenação de nossa sociedade. Para o autor, não se trata nem de expressão revolucionária nem de plena manutenção da ordem: a malandragem contém em si, concomitantemente, as duas funções. Quando ameaçado por este meio que pressupõe o anonimato e a impessoalidade, o indivíduo, para DaMatta (1997), evoca a pessoalidade, evidenciada pela interrogação "sabe com quem está falando?". Essa expressão rompe com a cordialidade, o jeitinho e a malandragem enquanto soluções que enevoam os conflitos, evocando explicitamente a manutenção da hierarquia e as diferentes posições sociais.
Comparando o Brasil com os Estados Unidos, o antropólogo promove uma espécie de idealização da "América", enquanto um meio social de plena ação dos indivíduos, sem mediações em sua relação no meio social (por exemplo, no uso de máquinas de "autosserviço"). O elogio ao Estado mínimo transparece no texto de DaMatta (1997), ao afirmar que o governo deve se restringir a uma administração que atue o mínimo possível. A ética protestante, afirma o autor, influenciou sobremaneira a formação dos Estados Unidos, pois a relação com o trabalho propõe a entrada do indivíduo no mundo social sem mediações. Já nos países de colonização católica, princípios como a separação corpo e alma, a renúncia ao mundo e ao individualismo em nome da comunidade vão de encontro aos princípios do liberalismo, tornando-se obstáculos à emergência do indivíduo.
Para DaMatta (1997), o Brasil se caracteriza como uma sociedade semitradicional, onde há uma espécie de retroalimentação entre a modernidade e a moralidade brasileiras: de um lado, apregoa a igualdade e a ênfase no indivíduo, sendo capitalista no eixo econômico, e, de outro, reforça as estruturas hierarquizadas.
DaMatta (1997, p. 218) expõe um esquema que diferencia as noções de indivíduo e pessoa. "Pessoa" está atrelada ao modo de funcionamento de sociedades pré-modernas - sociedades holísticas, tradicionais, hierarquizantes, segmentadas ou complementares, nomeia o autor - estabelecendo modos de relação personalistas, que buscam a diferenciação, nas quais a tradição e a família se impõe ao indivíduo. O "jeitinho" e a malandragem são expressões deste modo de funcionamento. Já a noção de indivíduo advém com a modernidade, que pressupõe a impessoalidade, a abstração, a liberdade, a igualdade e a submissão de todos à legalidade, e a capacidade de o indivíduo escolher e não ser determinado pelo social.
Roberto Schwarz (2000), em seu ensaio "As ideias fora do lugar", capítulo integrante de sua obra "Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro", de 1977, cunha a expressão "ideias fora do lugar", que se refere ao descompasso existente entre a implantação do ideário liberal no país e a sociedade brasileira assentada na escravidão. Tal distância entre as abstrações burguesas e a realidade faz o autor afirmar a existência de uma "impropriedade das ideias liberais" (p. 15) presente no pensamento brasileiro.
Para o autor, a incompatibilidade entre liberalismo e a escravidão e a instituição do favor, enquanto reguladora das relações, coexistia, contraditoriamente, junto aos ideias liberais, que pressupõem a autonomia do indivíduo e a impessoalidade da lei. O favor está baseado, para Schwarz (2000), na dependência e na pessoalidade das relações. Tais ideias importadas da Europa foram utilizadas, pelas classes dirigentes, para justificar racionalmente o exercício de seu poder arbitrário, à revelia do teste da realidade.
As ideias da burguesia se caracterizam, segundo Schwarz (2000), como mero ornamento que eleva o sentimento de superioridade das elites, que as aproxima de uma virtual modernidade, em discrepância com a realidade concreta do país. Para o autor, o mundo das ideias (advindas da Europa) permaneceu desconectado da realidade, impróprias, sem alterar a configuração de base, a dizer, a vida nacional baseada no latifúndio e na escravidão.
Em síntese, Schwarz (2000) identifica nessa impropriedade entre ideias liberais e a configuração social e das forças produtivas - as "ideias estavam fora de centro" (p. 30) - a marca da singularidade brasileira. Diante do capitalismo internacional, as práticas do favor conviventes com o liberalismo econômico se tornaram, para o autor, "o efeito local e opaco de um mecanismo planetário" (p. 30).
Pois bem, o que notamos é que os psicanalistas aqui analisados, ao recorrerem às obras desses autores, realizam uma espécie de transposição de tais teorizações para o interior da psicanálise. Não se trata de simples importação, ipsis Htteris, mas de uma apropriação dos conceitos e sua articulação com os referenciais teóricos psicanalíticos. Vejamos como isso se opera.
Com a palavra, os(as) psicanalistas
Sérvulo Augusto Figueira, psicanalista de formação bioniana, pode ser considerado o primeiro a transportar, para as discussões da psicanálise local, os impactos da modernização na constituição subjetiva nacional a partir da dicotomia arcaico/moderno. Em trabalhos publicados ao longo da década de 1980 e início dos anos 1990, entre eles a obra "Uma nova família? O moderno e o arcaico na família de classe média brasileira", de 1986, o autor lançou a compreensão de que, no Brasil, convivemos dubiamente com dois modos de subjetivação - um arcaico, outro moderno.
Isso se deve, segundo Figueira (1986), ao intenso e célere processo de modernização que o país atravessou a partir da década de 1950, que trouxe consigo uma série de transformações nas relações familiares, de gênero e geracionais. A estrutura patriarcal, verticalizada e de rígidos papéis no interior das famílias passou, em três décadas, a ser questionada por um outro ideal de família, pautada na horizontalidade das relações e na individualidade de seus membros, diluindo as marcas divisórias entre homem e mulher e sancionando a pluralidade de escolhas.
Pela velocidade que esse processo se impôs em nossa sociedade, Figueira (1986) considera que não houve superação dos modos arcaicos de existência, mas uma mera sobreposição por ideais modernos que não alteram tal essência arcaica. A esse processo o autor denomina de "desmapeamento": a coexistência de mapas, ideais, identidades e normas contraditórias, inscritos em diferentes níveis e dissociados dentro do sujeito. Em nosso país, portanto, os sujeitos ocupam essa posição dissociada: o brasileiro vivencia uma falsa modernização, na qual o conteúdo arcaico é bloqueado pelo moderno, como reação, mas o primeiro permanece ativo inconscientemente.
Sua inspiração em Roberto Schwarz é manifesta em um escrito de 1991, expressivamente intitulado "Machado de Assis, Roberto Schwarz: psicanalistas brasileiros?". Para o autor, o escrito de Schwarz "ilumina a organização da subjetividade dos setores dominantes de nossa sociedade (...) deixa esboçada uma 'econômica', uma 'tópica' e uma 'dinâmica', por assim dizer, da organização subjetiva brasileira" (p. 182), "mesmo que isso soe, com razão, reducionista para nossos ouvidos psicanalíticos" (p. 184). Considerando a compreensão de que o Brasil é um país dividido entre "arcaico" e "moderno" como uma constatação "óbvia para qualquer observador mais atento da cena brasileira" (p. 183), Figueira (1991) pensa que a análise de Schwarz de nosso descompasso histórico entre ideais liberais conviventes com um regime escravocrata pode nos auxiliar a compreender uma divisão subjetiva interna.
(...) esta matriz histórica que Schwarz analisa está correlacionada a uma divisão dentro do sujeito entre ideais que estão duplamente deslocados em relação ao ego: porque enquanto ideais são inerentemente inalcançáveis, mas também porque são ideais de outro mundo, vale dizer, ideais dos quais só podemos precariamente tentar nos aproximar pois a realidade social em que vivemos nos impede, no fundo, de persegui-los por muito tempo (Figueira, 1991, p. 184).
Para Figueira (1991),Schwarz também contribui para pensarmos em outras duas características da subjetividade brasileira: o desejo de sentir-se superior aos outros e a arbitrariedade, a conveniência no uso das normas e regras ao seu bel prazer. Embora alerte que não se pode atribuir um diagnóstico ao brasileiro de "narcisista", compreende, a partir da obra de Schwarz, que o brasileiro se encontra organizado psiquicamente em função da satisfação do desejo em detrimento das normas. Somos desviantes, sobretudo, em relação à "norma burguesa da subjetividade exigente" (p. 186), que diz respeito ao ideal de sujeito moderno, assentado sobre a diferenciação entre mundo privado e público, na razão, na formação de projetos individualizados, entre outras características apontadas pelo autor. Segundo o psicanalista:
No Brasil, é possível afirmar com base no trabalho de Schwarz e de outros, a lei nunca foi interiorizada com firmeza e estabilidade na organização subjetiva dos homens em várias classes sociais. O desrespeito à lei, a corrupção, o nepotismo, o peculato, etc., são, portanto, figuras de superfície, ataques a uma lei (...) que nunca foi profundamente implantada dentro dos sujeitos pelos processos de disciplinarização sócio-política como ocorreu no modelo europeu e norte-americano que tomamos como inspiração primeira e sempre renovada (Figueira, 1991, p. 185).
Já na obra "Hello, Brasil!", o psicanalista italiano Contardo Luigi Calligaris também teoriza sobre a coexistência de duas formas de constituição da subjetividade nacional, a partir de duas figuras/espectros que se fariam presentes no discurso dos brasileiros, independente de sua classe, credo, cor: a figura do colonizador e do colono - a nosso ver, desdobramentos do binômio arcaico/moderno.
Para o psicanalista, o colonizador, historicamente a figura do português que desembarcou no Brasil a partir do século XVI, se caracteriza como aquele que carrega o lema "goza Brasil", pois seu único objetivo, em terras tupiniquins, era explorar a terra, as mulheres e os homens sem interditos, sem restrições, para satisfação de suas vontades e objetivos. Impôs sua língua (a língua do pai) à terra-mãe, invadida e renomeada. Já o colono consiste no migrante que veio ao Brasil em busca de reconhecimento, propriedade e cidadania, porém logo sofreu os efeitos da lei imposta pelo colonizador: foi enganado e explorado, como escravo, pelos senhores donos das propriedades e pelas autoridades. O colono, diante de um pai que não impôs interditos ao gozo dos colonizadores, implora pela "ordem e progresso"; em contraponto ao lema colonizador "goza Brasil", nutrem esperança no lema "muda Brasil".
A inspiração em Sérgio Buarque de Holanda e os tipos "aventureiro" e "trabalhador" são evidentes, mesmo que o autor não cite diretamente tal referência em seu livro - podemos encontrar tal referência sendo citada pelo psicanalista em diversas entrevistas e artigos publicados em jornal. O espectro colonizador proposto por Calligaris (2017) em muito se assemelha ao tipo aventureiro de Holanda (2016). Se neste autor o português é marcado pelo imediatismo, ousadia, pela falta de planejamento, pelo predomínio da emoção e do sentimento sobre a racionalidade, entre outros, o "colonizador" do psicanalista visa o gozo, a satisfação - uma personagem dominada pelas paixões sexuais e agressivas, pela sede de domínio, sem interdições ao seu desejo - em suma, um personagem com suas capacidades racionais, diríamos egoicas, pouco eficazes em estancar ou dar outros destinos aos seus "instintos" mais primitivos.
Colonizador e colono, para Calligaris (2017), não são excludentes entre si; coabitam a alma brasileira e manifestam uma dificuldade em relação à lei do pai: a lei, para ambos, não se instaurou de maneira adequada. No colonizador, a lei não interdita; no colono, a lei não o reconhece e o violenta. Esse fracasso da instauração da lei, pensa o autor, se manifesta na falta de "umtegração", de um laço simbólico que estabeleça uma filiação, que organize o quadro social por meio de interditos e reconhecimento, o estabelecimento de um traço identificatório entre a nação e seus membros que os torne cidadãos. Para o autor, os Estados Unidos seriam um exemplo de sucesso na "umtegração", considerando que a revolução americana consistiu em um movimento de base popular superior em relação às revoltas brasileiras, que, para o autor, foram parciais, incapazes de mobilização e transformação social significativa.
Diante dessa lei do gozo sem impedimentos, o brasileiro, na visão de Calligaris (2017), nutre uma espécie de cinismo em relação às autoridades, "uma impossibilidade de levar a sério as instâncias simbólicas" (p.51). Segundo o autor, em síntese, o Brasil seria marcado por uma frágil lei paterna, mais assemelhada a uma lei materna, e seus filhos se encontrariam sob o mandato do gozo sem esforços.
Também inspirado em Sérgio Buarque de Holanda, Octavio Souza, na obra "Fantasia de Brasil", de 1994, afirma que a constituição identitária do brasileiro se encontra fixada na encarnação da diferença, do exotismo. As raízes desta fantasia, para Souza (1994), se encontram no espírito do colonizador europeu que desembarcou nas Américas, que nutria uma fantasia, a de reencontrar, em algum lugar do globo, o Éden, o paraíso perdido. Um projeto utópico, diz-nos o autor, portador de expectativas e desejos que, devido à sua magnitude, se impuseram como imperativos na concepção do Brasil. Ao país foi imposto, pelo desejo do europeu, que encarnasse a diferença, ser a própria diferença.
O "português aventureiro" e seu imperativo do gozo deixaram suas marcas em nossa constituição subjetiva. Dominados pelo gozo, identificados ao paraíso do prazer transbordante, Souza (1994) considera que as vias sublimatórias e de transformação da realidade ficaram prejudicadas no Brasil, ocorrendo um maciço investimento erótico nas relações pessoais. Temos, então, somado ao personalismo conceituado por Sérgio Buarque de Holanda, uma desinibição do erotismo, como observado por Gilberto Freyre, como marcas da formação social brasileira.
Assim como Calligaris (2017), Souza (1994) considera que padecemos de um fracasso da função paterna, mal inscrita em nosso corpo social. Nossa carência fundamental consiste em nossa condição de filhos bastardos em relação ao pai europeu, um pai que não interditou o acesso ao gozo e relegou-nos a incorporar a fantasia de exotismo.
Luis Claudio Figueiredo, com a obra "Modos de subjetivação no Brasil e outros escritos", de 1995, retoma a dicotomia arcaico/moderno apoiando-se, sobretudo, nas teorizações de Roberto Schwarz e de Sérgio Buarque de Holanda, "cujo livro Raízes do Brasil é ainda, no meu entender, o grande marco na literatura sobre os modos de subjetivação brasileiros" (p. 18), que apresenta um "frescor das análises que enfocam aspectos que permanecem atuais nos nossos modos de sentir, pensar e viver no Brasil" (p. 42).
Partindo do pressuposto de que o Brasil ocupa uma posição excêntrica dentro da cultura ocidental desde o século XVI, pertencendo, ao mesmo tempo, ao Ocidente Moderno (racional, individualista, capitalista) e ao mundo tradicional (pré-moderno, arcaico, patriarcal, personalista, "afetiva"), Figueiredo (1995) afirma coexistirem, no país, três modos de subjetivação: "pessoas", "meros indivíduos" e "sujeito". O primeiro se refere ao modo de subjetivação pré-moderno, no qual se sobressaem a tradição, a sobredeterminação do social sobre o indivíduo, a imposição hierárquica. Os "meros indivíduos" e o "sujeito" são possibilidades de subjetivação presentes na modernidade. O que os diferencia é que os meros indivíduos continuam determinados por uma coerção externa, não mais a força da tradição de uma sociedade holista, mas por vínculos, obrigações e leis que não partem de um senso íntimo de comprometimento, mas que os constrangem e que são cumpridas a partir do exercício de uma autoridade. Já o modo de subjetivação moderno, por excelência, consiste no "assujeitamento" - um "sujeito auto-subsistente e auto-sustentado, ou bem enquanto autonomia racional diante de um mundo de objetos plenamente 'objetivos', ou bem enquanto autonomia expressiva de forças naturais e/ou históricas (Figueiredo, 1995, p. 39, destaques do autor).
Figueiredo (1995) afirma que as sociedades modernas devem manter preservadas estruturas pré-modernas, que garantam, primeiramente, a condição de pessoa (de pertença a uma coletividade, que receba um nome, um sobrenome, um título, um lugar), para que, a partir desta base, caminhe em direção ao assujeitamento. Por isso a modernidade institui a separação entre as esferas privada e pública, sendo a primeira o espaço relacional (família) no qual uma "pessoa" é cultivada, gerada, para que adentre a esfera pública, o espaço para a ação enquanto "sujeito".
Baseado nas teorizações de Roberto DaMatta, Figueiredo (1995) afirma que, no caso brasileiro, os indivíduos transitam entre os dois regimes de sociabilidade -pré-moderno e moderno -, não se estabelecendo nem a lei dos vínculos pessoais (sociedade tradicional) nem a lei impessoal (sociedade moderna), mas uma "lei do sucesso instrumental" (p. 45), a "lei de Gérson", propiciando a emergência de um "supersujeito insubmisso, de um sujeito não assujeitado, não comprometido, livre de contradições íntimas, sem culpa e sem vergonha" (Figueiredo, 1995, p. 46). A modernidade brasileira estaria, como teorizado por Roberto Schwarz, "fora do lugar", utilizada como mero ornamento intelectual, na medida em que lhe falta, na base de nossa formação social, o sujeito que a sustenta.
Porém, diferentemente do lacanismo de Contardo Calligaris e Octavio Souza, que atribuem à sociabilidade brasileira um déficit na inscrição da "Lei do Pai", Figueiredo (1995) afirma que, no país, há não uma atitude de desafio ou aceitação da lei - uma perversão - mas sim uma "lei de transgressão" regulamentadora e legitimada na vida social, a qual o sujeito se submete como à lei do pai. Por meio dessa lei, a transgressão é aceita em certos casos, até mesmo incentivada em determinadas circunstâncias. Enquanto lei consensual, os sujeitos estariam a ela submetidos - não caracterizando, portanto, perversão, por não haver afronta, desafio ou tentativas de burlar a mesma (Figueiredo, 2000).
Outro psicanalista que dedicou uma obra com suas reflexões sobre o Brasil é Christian Ingo Lenz Dunker, com seu livro "Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros", de 2015. A hipótese do autor é a de que, desde a década de 1970, época de implantação das experiências neoliberais pelo mundo, estabelecia-se no Brasil o que ele denomina de "lógica do condomínio", na medida em que se espalharam os empreendimentos imobiliários "entre muros" que se ofereceram, segundo o autor, enquanto um modelo de felicidade, cumprimento de um ideal modernizador (controle, planejamento, uso racional do espaço), porém mantendo, ao mesmo tempo, uma estrutura arcaica, não universal, segregadora.
Essa alegoria do condomínio é utilizada pelo autor para compreender o país em uma nova relação com a autoridade e com a inscrição da imago paterna, que persiste até os dias atuais. Se em outros tempos a impessoalidade da lei era encarnada por meio da "autoridade", em um contexto de valorização da "pessoa", Dunker (2015) pensa na decaída do autocrata arrogante pela figura do síndico cínico, que não se impõe pela autoridade personalista, baseada na relação hierárquica senhor-escravo, mas evoca, cinicamente, as regras, as normas, como representante impessoal da lei, a fim de oferecer segurança em troca da submissão ao regulamento. Porém, como base ainda permanece um substrato cordial e intolerante - resquícios de uma subjetividade pré-moderna.
Ao longo do texto, Dunker (2015) adere às noções de "capitalismo tardio", do país enquanto ocupando uma "periferia do capitalismo", do "liberalismo à brasileira" caracterizado como "suspeito", "fora do lugar", "liberalismo mal implantado". Sustenta a ideia basilar de uma não conformação de nossa subjetividade com um ideal de modernidade, devido ao descompasso histórico que nos deixou deslocados na história, em modos de convivência e sociabilidade avessos ou em desarranjo, de tal modo que, para o autor, o liberalismo, em sua forma clássica, não se instalou, no país, "sem ressalvas" (Dunker, 2015, p. 34).
Maria Rita Bicalho Kehl publicou, em 2018, "O bovarismo brasileiro". No livro, a autora adota um conceito já citado por Sérgio Buarque de Holanda em "Raízes do Brasil": o bovarismo. Neste autor, o conceito diz respeito ao apego a ideias e ficções que distanciam o brasileiro de si mesmo, adotando referências que vêm "de fora para dentro", buscando conformar-se a uma imagem que fosse admirável ao olhar do outro, do estrangeiro.
Kehl (2018) toma o bovarismo enquanto adoção de uma imagem de si que não corresponde à realidade, ou seja, a assunção de uma outra identidade, falseada, idealizada, sem correspondência com a sua essência, característica presente na paranoia. Porém, a autora compreende que o bovarismo consiste em uma característica advinda com a modernidade. Nesta, o investimento na categoria "indivíduo" oblitera os sujeitos de seus laços coletivos, de sua inscrição em uma tradição, ou em uma "dívida simbólica" (p. 24) para com as gerações antecessoras. A modernidade pressupõe um sujeito autônomo, autor de seu próprio destino, de sua própria linhagem, soberano, livre, concepção forjada pela burguesia no século XIX para negar e se desligar das tradições.
Se o bovarismo, a dizer, o amálgama contraditório entre a crença na autodeterminação do indivíduo e a impossibilidade de cumprimento deste ideal -uma espécie de autoengano -, se caracteriza como um traço da modernidade, em terras tupiniquins encontramos o que a autora nomeia como "bovarismo brasileiro".
Segundo Kehl (2018), as sociedades periféricas adentraram na modernidade importando o ideário liberal dos países europeus sem passar pelos processos históricos das revoluções industrial e burguesa ocorridas no Velho Mundo. Sem realizar tais revoluções, essas sociedades passaram a sustentar um ideal que lhe era estrangeiro, ao mesmo tempo mantendo uma estrutura pré-moderna. Para a autora, o bovarismo obstaculizou a entrada dos países periféricos na modernidade, na medida em que a fantasia de "tornar-se outro" inatingível, europeu ou estadunidense, ao invés de impulsionar à modernização, os impediu de encontrar caminhos mais condizentes com suas particularidades, perpetuando sua dependência em relação aos países ricos.
Kehl (2018) afirma, ainda, que o bovarismo brasileiro se manifesta por meio da "pose, a farsa, a subserviência ou o domínio do semblant (Kehl, 2018, p. 49) ou, ainda, por meio da "malandragem", do "jeitinho", forma de ascensão social possível aos homens livres despossuídos. A autora também conjectura sobre uma possível cisão do eu que permite ao brasileiro cinicamente conviver e rir com as desigualdades e injustiças que o atingem, como se as enxergasse à distância, bem como sobre a existência de uma possível identificação com o opressor no âmago de nosso bovarismo.
Ao fim desse percurso, no qual pretendemos abordar as principais ideias produzidas pela psicanálise local a respeito do brasileiro das últimas três décadas, tomando como objeto os trabalhos de alguns dos principais psicanalistas do período, caminhemos para nossas reflexões sobre seus escritos.
Problematizando "modernidade"
Segundo Outhwaite e Bottomore (1996), o conceito de modernidade possui múltiplos significados. Historicamente construído ao longo dos séculos para designar uma separação entre tempos: no Renascimento (séculos XIV a XVII), foi utilizado para diferenciar sociedades "antigas" de "modernas", ao que foi acrescida, com o Iluminismo (século XVIII), a ideia de "medieval" entre ambas e a equivalência entre "moderno" e "atual". Com isso, afirmam os autores, as sociedades ocidentais passaram a se autodenominar enquanto "modernas", compreendendo-se, dentro de um plano linear de estágios sucessivos de evolução histórica, em um nível qualitativamente superior de desenvolvimento em relação a sociedades antigas ou outras sociedades. "Modernizar" consiste, portanto, em um sinônimo para "ocidentalizar".
O sentido corrente e majoritariamente reproduzido para o conceito de modernidade pode ser compreendido, como afirma Nascimento (2009), em três níveis: um histórico, como o período histórico que abrange uma série de transformações - como as Reformas Protestantes, o Iluminismo e a Revolução Francesa - ocorridas entre os séculos XVI e XVIII, inicialmente em países como Inglaterra, França e Alemanha, se irradiando para o que se convencionou denominar de mundo ocidental; um filosófico, a partir da caracterização do "homem", no uso de sua racionalidade, como agente promotor da ordem e do conhecimento sobre a natureza; e um sociológico, no qual a modernidade é atrelada ao nascimento da instituição racionalizada - o Estado -, pela especialização do conhecimento e pelas modificações na vida social resultantes da dinâmica globalizada, entre outros aspectos. Para Nascimento (2009), é na articulação entre esses três níveis que se constitui a modernidade enquanto uma imagem de mundo - "ordenado, racional, previsível e em constante progresso" (p. 4).
Esse processo histórico eminentemente europeu, de rompimento com a tradição, com o passado, para a construção de algo novo a partir de um ideal de racionalidade, de imposição do conhecimento científico sobre outras formas de saber, do rompimento com a tradição, entre outros aspectos, que propulsionou os europeus à construção de um futuro, segundo Soares (1991),no Novo Mundo desceu das caravelas portuguesas, espanholas e inglesas sob a forma de colonização.
É importante destacar o aspecto ideológico deste uso do conceito. Segundo Dussel (2005), essa compreensão de modernidade, que a toma como saída da humanidade de um estado anterior de maturidade rumo a um estado superior de saber e ação sobre o mundo graças ao triunfo da razão, oculta um conteúdo secundário: o eurocentrismo. Ao tomar a modernidade enquanto um avanço na história da humanidade em consequência de processos históricos internos à Europa, uma profunda violência se exerce em relação às culturas e sociedades não-europeias, que passam a ser caracterizadas como aquém deste estágio de superioridade de desenvolvimento humano, restando-lhes caracterizações como "primitivas", "atrasadas", "arcaicas", "tradicionais", "pré-modernas", "subalternas". Este seria, para o autor, o lado "irracional" da racionalidade moderna.
Desta forma, a modernidade se impõe enquanto padrão-ideal que estabelece a Europa como centro da história mundial, o que é inseparável da relação de colonização que se exerceu sobre a América Latina, África e Ásia. Segundo Quijano (1992), mesmo com o fim do colonialismo, a cultura europeia continuou exercendo seu domínio sobre os colonizados por meio da repressão de crenças, ideias, símbolos e conhecimentos locais que se opusessem à dominação colonial, bem como pela imposição de padrões de conhecimento validados pelos dominantes, caracterizadas como superiores e universais.
As ciências sociais, que se constituem enquanto formas sistematizadas de conhecimento com o advento da modernidade, segundo Lander (2005) nascem com o eurocentrismo em seu interior, estabelecendo a experiência ocidental europeia como natural, universal e superior às demais. Dentro dessa lógica colonial, a modernização consistiria em um processo de possibilitar às culturas tidas como atrasadas, inferiores, arcaicas, primitivas, tradicionais ou pré-modernas o acesso à civilização, à forma mais avançada de organização humana - a sociedade capitalista liberal. De acordo com o autor, a modernidade pode ser compreendida, então, como um complexo de representações que se articula em torno de quatro dimensões básicas:
[...] 1) a visão universal da história associada à ideia de progresso (a partir da qual se constrói a classificação e hierarquização de todos os povos, continentes e experiências históricas); 2) a naturalização tanto das relações sociais como da natureza humana da sociedade liberal-capitalista; 3) a naturalização ou ontologização das múltiplas separações próprias dessa sociedade; e 4) a necessária superioridade dos conhecimentos que essa sociedade produz (ciência) em relação a todos os outros conhecimentos (Lander, 2005, p. 13).
Assim, quando se toma o modelo cultural europeu enquanto modelo único de modernidade, capitalismo e liberalismo, diante do qual todas as outras sociedades devem perseguir, adequar-se, adaptar-se, perde-se de vista, segundo Soares (1991),as configurações assumidas pela modernidade nos países latinos, nas quais se articulam o europeu, o indígena, o africano, o racional, o mágico e o religioso, dando origem a uma outra forma de modernidade. Nossa experiência moderna repousa na "articulação do tradicional com o moderno; é a convivência do mágico-real com a racionalização de todas as esferas da vida" (Soares, 1991, p. 28).
Nos estudos das ciências sociais no Brasil, Feres Junior (2010) assinala a presença de uma concepção naturalizante e universalizante de modernidade, apresentando uma compreensão evolucionista e linear da história, cujas determinações históricas, sociais e culturais são apagadas; a modernidade acaba resumida à racionalidade e à sociabilidade ocidental, mais precisamente à democracia liberal capitalista. É a partir deste modelo de sociedade (na maioria das vezes, a estadunidense) que as demais são comparadas, como uma meta a ser atingida. Com isso, o Brasil passa a ser compreendido a partir do que lhe falta, do que ele não atingiu, do que ele não conseguiu ser em relação a esse padrão ideal.
É o que podemos prescindir das obras de Sérgio Buarque de Holanda, Roberto Schwarz e Roberto DaMatta. Nas obras desses autores, somos confrontados com um ideal de modernidade e, como resultado, terminamos caracterizados como cordiais, personalistas, ornamentais, "fora do lugar". O modelo europeu ou estadunidense é constantemente evocado a fim de estabelecer comparações entre um modelo de sociabilidade fracassado em relação a um ideal de sociedade moderna e liberal, enquanto centro produtor da história.
O paradigma da modernidade atuou de maneira decisiva nas interpretações sobre o Brasil e, consequentemente, na forma assumida pela imagem que o brasileiro faz de seu país e de seu povo. Se Feres Junior (2010) conclui que a sociologia brasileira tem tomado o conceito de modernidade de maneira a-histórica, pensamos que, quando a psicanálise se debruçou sobre o país na tentativa de compreendê-lo e lançar suas interpretações, também não passou incólume a essa tendência. Na verdade, pensamos que grande parte das análises feitas por psicanalistas sobre o Brasil carrega, em seu âmago, o paradigma da modernidade, sem que o mesmo seja problematizado, criticado ou superado.
A modernidade nas entranhas da psicanálise brasileira
Como o(a) leitor(a) pode notar, os analistas que trouxemos para nossa discussão possuem diferentes formações e filiações teóricas. Embora em sua maioria lacanianos (Contardo Calligaris, Octavio Souza, Christian Dunker e Maria Rita Kehl), também procuramos trazer analistas bionianos (Sérvulo Figueira) e independentes (Luís Cláudio Figueiredo) para demonstrar que o discurso hegemônico construído pela psicanálise das últimas décadas não se caracteriza como uma produção específica e delimitada a determinada escola de psicanálise, mas atravessa os diferentes escopos teóricos dos autores. Ou seja, mesmo com as significativas diferenças teóricas entre esses psicanalistas, suas leituras sobre a realidade brasileira são muito próximas entre si, na medida em que adotam o que supomos ser uma mesma perspectiva, advinda das ciências sociais, para suas respectivas interpretações dos dilemas do país.
Dessa forma, Figueira (1986) estipula o brasileiro enquanto um sujeito dissociado entre o arcaico e o moderno; Calligaris (2017) constrói as metáforas do colonizador (arcaico) e do colono (moderno) como categorias a-históricas, independentes de classe, raça, região, enquanto constitutivas de nossa vida social; Souza (1994) vislumbra o brasileiro encarnado em uma fantasia de exotismo, ocupando um lugar excêntrico na modernidade; Figueiredo (1995) teoriza um Brasil ocupando uma zona entre o arcaico e o moderno, fazendo emergir um sujeito insubmisso regido pela "lei da transgressão" e pela "impropriedade como modo de ser"; Dunker (2015) nos apresenta uma mudança em nossa vida social, de estruturas hierárquicas verticalizadas (arcaicas) para uma maior horizontalidade das relações (modernas), mas preservando o modo de funcionamento das primeiras no interior dessas últimas; em Kehl (2018), esse descompasso entre o arcaico e o moderno se manifesta no bovarismo, muito próxima de uma cisão do eu.
Por este esquema interpretativo, quase todos os fenômenos de nossa realidade passam ser explicados pela lógica tradicional/moderno, pessoa/indivíduo/sujeito. Como o brasileiro está, por este viés analítico, de antemão paralisado entre pares dicotômicos, assumindo formas arcaicas ou modernas de acordo com a conveniência, assumimos uma posição "estranha" ou "cínica", nas palavras de Calligaris (2017), "exótica", nas palavras de Souza (1994) "excêntrica", no entendimento de Figueiredo (1995), "bovarista", de acordo com Kehl (2018). "Fora do lugar", nossas produções se alternam entre manifestações de um "espírito arcaico" ou de uma inautenticidade, pois não passariam de ornamentos, como se o plano das ideias consistisse em uma abstração, e não se articulasse, ou melhor, não se produzisse nas relações sociais e a partir das condições materiais de vida.
Se as primeiras produções inspiradas na psicanálise realizadas para compreender e interpretar o Brasil, pelas mãos da psiquiatria do início do século XX, apontavam para uma nação dominada por seus impulsos avessos à civilização e para a necessidade de se auxiliar, por meio de processos educativos, a constituição de um eu civilizado (Castro, 2015), nossas produções mais recentes parecem apontar para uma falha não apenas a nível egoico, mas também na constituição das instâncias ideais. A falha se encontra, digamos, não em um id hipertrofiado, mas nos processos históricos que impossibilitaram processos sublimatórios, repressões e o estabelecimento de ideais mais elevados. Em alguns autores, como Calligaris (2017) e Souza (1994), por exemplo, os mais altos valores civilizatórios ou não foram instalados ou sucumbem diante da força de nossa dimensão "arcaica", na medida em que o "pai" europeu não reprimiu o acesso ao gozo. Para esses autores, somos marcados pela falta de Lei ou regidos pela lei do gozo; já Figueiredo (1995a) aponta não para a falta da lei, mas para sua impropriedade - a lei é uma "lei da transgressão", implantada pelos senhores que, da mesma forma como encaram Calligaris (2017) e Souza (1994), guiavam-se exclusivamente pela exploração desenfreada. Em Figueira (1986), Dunker (2015) e Kehl (2018), os ideais modernos são meramente virtuais, ornamentais - não alteram o núcleo "arcaico" da subjetividade do brasileiro, que permanece caracterizado, pela psicanálise local, como um indivíduo que não ascendeu totalmente à condição de sujeito.
É certo que podemos encontrar, em Freud, a ideia de que onde há id, deve haver ego, não como possibilidade de controle total do eu sobre suas pulsões (ideia abandonada desde 1897, em sua Carta 69 a Fliess), mas, tomando a alegoria de Freud (1923/1996b), que o eu tenha condições de assumir suas funções de mediação entre princípio do prazer e princípio de realidade, tal como um cavaleiro em seu cavalo encilhado.
De certa forma, nossos psicanalistas têm identificado, no sujeito brasileiro, um cavaleiro pouco habilidoso ou mal equipado, talvez montado sobre um cavalo selvagem; altivamente vestido com elegantes trajes de montaria, à moda europeia, mas quando perguntado para onde vai, pede para que se pergunte ao cavalo.
Na edição mais atual de sua obra, Calligaris (2017) reconhece que, na época de sua escrita, há quase vinte anos, se tratava de um europeu em um momento de chegada ao país, sendo o choque cultural algo esperado desse encontro. O subtítulo original, de 1991, "notas de um psicanalista europeu" foi substituído por "psicanálise da estranha civilização brasileira". Para o estrangeiro, tudo soa estranho. E o estranho só o pode ser se a referência ou o parâmetro para sua análise lhe é externa.
Figueiredo (1995) critica Contardo Calligaris por estabelecer uma espécie de "julgamento" dos brasileiros e nos reprovar de acordo com seus parâmetros europeus. Porém questionamos se os brasileiros, tal como caracterizados por Figueiredo (1995), também não acabam sendo "reprovados" diante de um ideal de sujeito e sociedade modernos. Toda sua análise está ancorada no pressuposto básico de que o Brasil ocupa uma posição "excêntrica" (do grego eccentricus, "fora do centro, descentrado") e "peculiar" no mundo ocidental moderno. E esta posição "fora do centro", portanto, periférica, e "fora da norma" se estabelece a partir de um referencial, adotado como ideal: a modernidade.
Sérgio Buarque de Holanda, seguido de Roberto Schwarz e, em menor grau, Roberto DaMatta, aparecem, nessas obras, enquanto fundamento de suas respectivas visões sobre o Brasil e o brasileiro, impregnando as formas como os psicanalistas compreendem os modos de subjetivação no país, reservando-nos uma posição de um sujeito não-assujeitado, um quase sujeito, em relação ao mundo da modernidade ocidental.
Pensamos que a psicanálise, ao recorrer a esses consagrados autores para entender o Brasil, busca, nessas fontes, "materiais" para análise, tal como Freud buscou, em seus escritos extra-clínicos, o recurso a etnólogos e historiadores. E é neste ponto que, pensamos, encontra-se um dos "nós", ou um dos desvios, que leva a escuta psicanalítica ao que estamos denominando de divã de Procusto.
Se a fala do paciente é ouvida pelo psicanalista não necessariamente como "fato em si", mas como uma "fabricação", afirma Certeau (1982) que o mesmo não ocorre quando o psicanalista recorre a materiais de outras áreas do conhecimento. O autor traça, assim, um interessante paralelo entre os fatos do historiador e os fatos do neurótico: ambos se constroem a partir de tensões que organizam um discurso, mas que deixam restos. Segundo o autor:
O analista, tendo confessado sua dependência em relação a esta linguagem (assim como frente à linguagem do seu cliente) é necessário antes perguntar como a trata (como significante ou como realidade) e por outro lado como situa seu trabalho interpretativo em relação a esta falha (Certeau, 1982, p. 265).
Nesta busca por apoio em outros campos, fora do domínio psicanalítico, notamos que o real postulado pelo intérprete (resultado da análise do passado a partir do presente) é, muitas vezes, tomado literalmente como realidade factual pelo pesquisador em psicanálise. As interpretações psicanalíticas, "emprestando" tais materiais e tomando-os não como produtos, mas como verdades, tendem a reproduzir os mesmos movimentos do pensamento social brasileiro. Se neste podemos encontrar vozes que afirmam que o Brasil se desenvolveu em descompasso com a história mundial, encontraremos esses "ecos" nos escritos psicanalíticos, por vezes, em interpretações que nos colocam diante de uma desvantagem estrutural: somos um povo com dificuldades diante da Lei, dados a um laço perverso, ou cuja lei é a da transgressão.
Notamos, portanto, que o discurso psicanalítico sobre o brasileiro tem se apoiado significativamente sobre esse paradigma, desde o início do século XX até os dias atuais. A presença, nos escritos produzidos por parte de nossa intelectualidade, do paradigma da modernidade, tem sido reproduzida por nossa psicanálise em suas interpretações sobre a realidade e a história local, estas passando a ser habitadas pelo espectro da modernização mesmo que de maneira implícita, por meio de proposições como "colonizador" e "colono", "patriarca" e "síndico", "pessoas", "meros indivíduos" e "sujeitos", "bovaristas".
A psicanálise, reproduzindo o paradigma da modernização presente no discurso hegemônico do pensamento social brasileiro, acaba por criar novos mitos -psicanalíticos - e reforçar ideologias a respeito de uma suposta subjetividade brasileira, historicamente compreendida enquanto em desacordo com um ideal de sujeito e de sociabilidade modernos, desempenhando um papel, no país, de contribuição ao cumprimento de um ideal de fundo colonizador, o que se evidencia no discurso psicanalítico não apenas em suas primeiras décadas no Brasil, mas que vem sendo reproduzido até os dias atuais.
Após essas considerações, cabe perguntarmos: é possível, então, realizar uma psicanálise extramuros do Brasil e do brasileiro? Se sim, como fazê-la?
A longa tradição dos estudos extraclínicos da psicanálise não deixam dúvidas sobre a primeira questão. Os trabalhos de Freud sobre a religião, sobre a repressão sexual da sociedade vitoriana, sobre a formação de coletivos humanos em exércitos e igrejas, e mesmo seu controverso mito científico presente em Totem e Tabu, de 1913, estão entre os mais significativos de sua obra, pelo que fazem movimentar dentro da teoria psicanalítica. O número significativo de obras de psicanalistas que se desafiam a pensar e compreender o país aponta para a presença de um certo mal-estar ou estranhamento que os interpela e os convocam para a elaboração. Deste trabalho autotransferencial, estabelecido entre o psicanalista e seu material (Mello Neto, 1995), advindo não apenas dos referenciais sociológicos, mas inevitavelmente entremeado com suas percepções, experiências e vivências enquanto "brasileiro", são produzidas as interpretações. A nosso ver, como toda produção que se propõe a ordenar, pôr em palavras, racionalizar, propor fechamentos e sínteses, elas se oferecem enquanto recursos mitosimbólicos (Laplanche, 2015), ou seja, enquanto narrativas e códigos elaborados culturalmente e que nos servem, tal como as teorizações presentes no pensamento social brasileiro, como auxiliares de tradução, oferecendo sentidos e lógicas para nossa vida social. Não estão do lado do recalcado (como se oferecessem um acesso direto a uma "verdade"), mas do lado do recalcamento (oferecendo traduções para nossa história e sentido para a vida coletiva). Se tratando, ainda, de um trabalho autotransferencial, o que estará em jogo é menos um Brasil ou um brasileiro "real", concreto, mas o brasileiro que habita o próprio psicanalista, e que pode fazer sentido, ou não, para os demais brasileiros.
A inevitável dependência do material extraclínico para a produção da interpretação psicanalítica sobre nosso corpo social nos faz pensar que tais trabalhos sempre trarão as marcas de seu tempo, como o já citado Totem e Tabu se encontra impregnado pela antropologia evolucionista da virada do século XIX para o século XX (Augras, 1995), ou como os trabalhos dos primeiros psiquiatras-psicanalistas que, marcados pelas teorias eugenistas de sua época, hoje são reconhecidamente obsoletos em muitos aspectos. Os trabalhos mais recentes não escapam a essa vinculação ideológica advinda da escolha de seus materiais para "escutar" o Brasil. Além disso, ao estipularem certas características psíquicas desse suposto sujeito brasileiro, nossos analistas reproduzem algo que há muito fora abandonado por nossa antropologia ou sociologia - a busca por traços e características próprias de um hipotético caráter nacional, cuja função ideológica fora estudada por Leite (1983) e que Backes (2000) nota sua sobrevivência nos estudos contemporâneos da psicanálise sobre o Brasil.
O reconhecimento desta dependência e da historicidade de sua prática pode resguardar o psicanalista em não tomar o material extraclínico como "verdade", mas como uma interpretação possível em dado momento histórico e nunca dotada de neutralidade. O reconhecimento de que a tradição intelectual brasileira é marcada pela pluralidade, pelas contradições, como "uma arena de conflitos interpretativos e disputas sobre, ao fim e ao cabo, o que é o Brasil" (Botelho & Schwarcz, 2009, p. 13), ou seja, não está imune a tomada de posições ideológicas - sobretudo aquelas teorizações que se tornam hegemônicas - pensamos que cabe, ao psicanalista interessado em realizar uma "escuta" desse país, a busca não somente pelos discursos já consagrados, mas, também, por contrapontos, vozes dissonantes e menos conhecidas ou, como pontua Walter Benjamin (Lowy, 2005), que foram soterradas pela marcha do "progresso".
Essas recomendações, se é que podemos assim chamá-las, podem possibilitar a emergência de novos caminhos interpretativos para a psicanálise sobre o brasileiro, tendo em seu horizonte menos o estabelecimento de interpretações totalizantes sobre uma sociedade tão complexa e múltipla, mas em recortes específicos e precisos que a psicanálise é capaz de realizar para a compreensão dos fenômenos humanos.
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Recebido em: 30/04/2020
1ª revisão em: 08/06/2020
Aceito em: 09/07/2020
CONFLITOS DE INTERESSES
Não há conflitos de interesses.
SOBRE OS AUTORES
Mauricio Cardoso da Silva Junior é psicólogo (UEM, 2005), mestre em Psicologia (UEM, 2009) e doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Maringá (2020).
E-mail: mauricio_cs@hotmail.com
https://orcid.org/0000-0001-6517-4552
Gustavo Adolfo Ramos Mello Neto é psicólogo (UNESP, 1981),mestre em Psicologia Social (PUC-SP, 1988), doutor em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano (USP, 1993), com pós-doutorado em Psicanálise (Université Paris-VII). Professor associado do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Maringá.
E-mail: garmneto@gmail.com
https://orcid.org/0000-0001-6210-8218