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Revista Polis e Psique
versión On-line ISSN 2238-152X
Rev. Polis Psique vol.5 no.3 Porto Alegre dic. 2015
ARTIGOS
Nau da Liberdade: travessia nômade entre teatro e saúde mental em desinstitucionalização
Nau of Freedom: nomad crossing between theater and mental health institutionalization
Nau de la Libertad: cruce nómada entre el teatro y la institucionalización de la salud mental
Carolina Demaman PommerI e Cristianne Famer RochaII
I Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil.
II Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil.
RESUMO
A proposta deste artigo é a de visitar a Reforma Psiquiátrica no Estado do Rio Grande do Sul a partir do olhar sobre o grupo de teatro Nau da Liberdade, composto por usuários, trabalhadores e estudantes da Saúde Mental. A partir da narrativa sobre o processo de constituição do grupo, em 2012, são traçadas pontes entre a arte e possíveis caminhos para a desinstitucionalização, a consolidação de redes de atenção psicossocial e o cuidado em liberdade, sem desconsiderar os inúmeros desafios que a Reforma Psiquiátrica ainda encontra em sua navegação. A fim de contribuir com este processo, há a decisão de investigar – com o teatro – como um bando de atores-loucos consegue desafiar a institucionalidade dos modos de se trabalhar arte em saúde mental por um método que concebe a vida como obra de arte em processo.
Palavras-chave: Teatro; Saúde Mental; Desinstitucionalização; Work in Process.
ABSTRACT
The objective of this article is to address the Psychiatric Reform of the State of Rio Grande do Sul, Brazil, from an analysis of the theater group Nau da Liberdade, composed by mental health users, workers and students. From the narration of the process of creation of the group, in 2012, we draw connections between art and a possible path for deinstitutionalization, consolidation of psychosocial care networks and care in liberty, without disregarding the many challenges that Psychiatric Reform still finds during its journey. In order to contribute with this process, there is the decision of investigating – with theater – how a group of madmen-actors can challenge the institutionality of the ways of working with art in mental healthcare with a method that conceives life as a work of art in process.
Keywords: Theater; Mental Health; Deinstitutionalization; Work in Process.
RESUMEN
La propuesta de este artículo es visitar la Reforma Psiquiátrica en el Estado de Rio Grande do Sul a partir de la mirada sobre el grupo de teatro Nave de la Libertad, compuesto de usuarios, trabajadores y estudiantes de Salud Mental. A partir de la narrativa sobre el proceso de constitución del grupo, en 2012, se dibujaron puentes entre el arte y posibles caminos para la desinstitucionalización, la consolidación de redes de atención psicosocial y el cuidado en libertad, sin desconsiderar los innúmeros desafíos que la Reforma Psiquiátrica aun encuentra en su recorrido. Con el fin de contribuir con este proceso, hay la decisión de investigar – con el teatro – cómo una pandilla de actores-locos consigue desafiar la institucionalidad de los modos de trabajar arte en salud mental por un método que concibe la vida como obra de arte en proceso.
Palabras-clave: Teatro; Salud Mental; Desinstitucionalización; Trabajo en Proceso.
O que você lerá, a seguir, são memórias de uma viagem, em que a estrangeira (pirata, nômade, andarilha, cigana, maruja), entrega-se a construção de um percurso singular como artista ao navegar pelas águas da Saúde Mental Coletiva. Esta experiência encontra seu ponto de pico no grupo de teatro “Nau da Liberdade” do qual a viajante faz parte, como atriz, trabalhadora da Saúde Mental e pessoa que está na cidade.
Desta prática, alguns estranhamentos são lançados ao mar, como mensagens em garrafas, que talvez não sejam encontradas, de onde emergem questionamentos sobre os possíveis caminhos da Reforma Psiquiátrica no Estado do Rio Grande do Sul. Mais especificamente, a partir da cidade de Porto Alegre onde, com insistência, localiza-se o Hospital Psiquiátrico São Pedro (HPSP) que, como bancos de pedras no meio do mar, intercepta vidas, impede o fluxo de correntes (e de redes), e serve de porto para todos os tipos de almas.
Através de um caminho de per-formação, busca-se uma produção de conhecimento em Saúde Mental Coletiva que possa contribuir com as ações deste campo, mas também com vistas ao fora (per), através da trajetória percorrida por quem vem de fora – neste caso, da área da criação teatral. Desta maneira, ao mesmo tempo em que a viajante navega por dentro das instituições totais, do aparelho de Estado, e se insere no contexto das “biopolíticas públicas1”, também peregrina à margem das instituições, nos lados de fora da academia, do teatro e até da Saúde Mental instituída.
A ideia de uma viajante-narradora se desfaz e se faz rizomaticamente à medida que memórias individuais-coletivas não pertencem a uma só pessoa, mas a um bando. Segundo Deleuze e Guatarri (2007), o Rizoma não é objeto de reprodução nem externa nem interna. É uma antigenealogia. Uma memória curta. Uma antimemória. É um mapa aberto. É múltiplo.
O Rizoma procede por variação, expansão, conquista, captura, picada. Oposto ao grafismo, ao desenho, ou à fotografia, oposto aos decalques, o rizoma se refere a um mapa que deve ser produzido, construído, sempre desmontável, conectável, reversível, modificável, com múltiplas entradas e saídas, com suas linhas de fuga. [...] É um sistema a-centrado não hierárquico e não significante, sem General, sem memória organizadora ou autômato central, unicamente definido por uma circulação de estados. (Deleuze e Guatarri, 2007, p. 32-33)
A partir de um olhar que mescla o “ser estrangeira” com o “pertencer a”, busco olhar para o passado e atuar no presente da Reforma Psiquiátrica no RS. O motivo em revisitar estas pistas, brota, em primeiro lugar, da necessidade desta aventureira, que iniciou recentemente sua trajetória no campo da Saúde Mental Coletiva, em (in)formar-se2. Em segundo lugar, em dar visibilidade a algumas das ações pioneiras em organizar o sistema de atenção aos que possuem sofrimento psíquico grave.
Não existe a procura por respostas ou fórmulas precisas de navegação sobre como cuidar dos loucos em liberdade e nem a intenção de apontar para um norte, mas de exibir experimentações artísticas desinstitucionalizantes. Com a Nau, entre os anos de 2013 e 2015, na cidade de Porto Alegre, criou-se uma pesquisa quase marítima entre a loucura e o fazer teatral, cuja experiência se constitui como modo de pertencimento a um bando de pessoas que antes se encontravam à deriva – condição que a própria navegadora se identificava ao propor-se artistar no universo institucionalizado da Saúde Mental. Artistar, aqui, é uma referência ao termo “artistagem” cunhado por Sandra Corazza (2006) ao sugerir que, através da escrita, possa-se fabular, escrever artisticamente, produzindo novas formas de acontecer no mundo. Neste modo de produzir conhecimentos de forma sensível, a noção de objeto sobre o qual se exerce a força se desfaz, na medida em que ele é, por si só, uma força.
A possibilidade de dar visibilidade a tal travessia, que nem sempre navega por águas calmas, é uma maneira de existir, resistir, habitar as cidades, ocupar cantos ociosos, “trans-formar” vidas. É a aposta para que as mensagens lançadas em garrafas pelos considerados loucos sejam lidas e não esquecidas. É a aposta na arte como cuidado, na saúde como resistência cultural e na educação como insurreição às amarras impostas pelos capitães que se negam a juntar-se aos piratas.
Reforma Psiquiátrica: o rio em que se navega
Já se passaram mais de vinte anos da Lei Estadual 9.716 (Rio Grande do Sul, 1992), precursora no Brasil, por determinar a substituição progressiva dos leitos nos hospitais psiquiátricos por rede de atenção integral em Saúde Mental e regras de proteção aos que padecem de sofrimento psíquico, especialmente no que diz respeito às internações compulsórias. Faz mais de dez anos da promulgação da Lei Federal 10.216 (Brasil, 2001) que visa, além das questões trazidas pela Lei Estadual, redirecionar o modelo assistencial em Saúde Mental. Se, por um lado, importantes mudanças - inclusive no modo de se compreender os processos de saúde e adoecimento - podem ser notadas, por outro lado é um curto período para uma mudança efetiva no modo de pensar e oferecer o cuidado aos que possuem algum sofrimento psíquico.
É necessário considerar que a justificativa para existência do HPSP na cidade e no Estado ainda é feita por alguns trabalhadores e corporações como lugar de acesso a internações de curta permanência e formação em Saúde Mental. Tal modelo de formação e institucionalização dificulta a consolidação efetiva das redes de atenção psicossocial e desestimula a regionalização e a melhoria do acesso aos serviços de saúde. Ao desestimular as redes, os fluxos, a regionalização e a facilidade de acesso aos serviços, reforça-se o modelo de segregação social em que o corpo daquele que é considerado louco deve-se manter excluído, distanciado de convívio social, de suas próprias redes e andanças. Por ser considerado louco, o sujeito perde o direito a participação social cidadã, que envolve desde fazer escolhas sobre os aspectos mais cotidianos de sua vida até participar ativamente de seu processo de cuidado e poder nomadizar afetos.
O HPSP iniciou seus trabalhos em 1884 com 25 “pacientes” e não parou de crescer até a década de 1970, quando chegou a ter cinco mil internos (Oliveira e Saldanha, 1993). Foi fundado como forma de contenção e aprisionamento de desordeiros, marginais, transgressores das regrais morais vigentes em geral. Sua clientela de “alienados” era predominantemente formada por gaúchos mestiços que, com a crise da produção de charque pela falência econômica regime escravagista e aumento do movimento abolicionista e republicano, fez com que houvesse uma migração intensa de gaúchos “desgarrados” para as cidades maiores. Com a emergência do modo capitalista de produção e o processo de industrialização da cidade, essas pessoas do campo não encontravam seu lugar de pertencimento cidadão (Oliveira e Saldanha, 1993).
São conhecidas em diversas regiões [do Estado] as histórias do “Trem dos Loucos”, que de Uruguaiana vinham num determinado dia do mês recolhendo gente em cada cidade do percurso; dos camburões, caçambas, em viagens na maioria das vezes sem retorno. (Oliveira e Saldanha, 1993, p.41)
De acordo com Fagundes (1993), descentralização da atenção aos doentes mentais é um tema no Rio Grande do Sul desde 1925, quando o HPSP já mostrava sinais de fracasso, superlotação e cronificação das condições de saúde dos usuários. Somente a partir da metade do século passado, vão ser construídos serviços extra-hospitalares, ambulatórios públicos vinculados a universidades. A partir dos anos 1970, com o milagre econômico e com maior destinação de verbas para a área da assistência psiquiátrica no país, é que vão ser implantados serviços de ordem comunitária, tanto na atenção primária quanto na atenção especializada em Saúde Mental (Fagundes, 1993). No RS, é pactuado o Plano Estadual de Saúde Mental, elaborado pela Secretaria Estadual de Saúde do Estado do Rio Grande do Sul (SES/RS) e pela Superintendência Regional do INAMPS3. A partir dele é constituída a Comissão Interinstitucional da Saúde Mental, e a política específica passa a ser regida pela lógica de Programas (Fagundes, 1993).
É, portanto, em plena ditadura (civil) militar no Brasil, em meio a inúmeros crimes contra os direitos humanos, que os movimentos de Reforma começam a erguer-se. Com a abertura política, a partir da década de 1980, durante o processo de redemocratização do país, mudanças políticas, estruturais e culturais podem ser realizadas de maneira mais ampla, incidindo sobre a população dos grandes hospitais psiquiátricos.
O movimento instituinte de Reforma Psqiuiátrica no Rio Grande do Sul teve sua representação máxima no governo de Olívio Dutra (1999-2003), ainda que tenha sido iniciado anteriormente e, principalmente, em processos exteriores à máquina Estatal, que se encontrava em transição política, através dos movimentos sociais.
Foram estes movimentos sociais, compostos, sobretudo por trabalhadores, estudantes e usuários da saúde mental, que, inseridos no processo de construção democrática e coletiva dos assuntos de saúde, de cultura e de produção de cidadania, que provocaram insurreições no modo de se pensar e agir em saúde. O maior exemplo disto, inerente ao campo da Saúde Mental, é a desinstitucionalização dos hospitais psiquiátricos no Brasil, processo que iniciou, teve seu momento de pico, mas que ainda não completou seu ciclo e por isso ainda se faz atuante na militância por uma sociedade sem manicômios. Foi com apoio e vontade política que os movimentos sociais de Luta Antimanicomial pela Reforma Psiquiátrica puderam ter voz.
Afinal, tais lutas estão inseridas dentro de um contexto histórico-político que buscava importantes transformações sociais, não somente da ordem da saúde, mas que tentava democratizar o país a partir da mudança de antigas lógicas de dominação que as classes mais pobres sofrem. O movimento de Reforma no Rio Grande do Sul estava em sinergia com movimentos semelhantes no Uruguai e na Argentina, bem como com o movimento de luta por abertura política. Com grande influência - e influenciando também estes países - iniciou-se um processo de regionalização e descentralização dos serviços de saúde.
A aposta em um modelo de formação implicada com a Reforma, através de cursos e especializações em Saúde Mental Coletiva em parceria com universidades, facilitou o processo de mudança no modelo assistencial. Saúde Mental Coletiva é o conceito proposto por Sandra Fagundes (1993) que, através da construção de sujeitos sociais desencadeadores de transformações no modo de pensar, sentir, fazer política, ciência e gestão no cotidiano das estruturas de mediação da sociedade, visa orientar as práticas em Saúde Mental para a produção de vida, extinguindo e substituindo as práticas então tradicionais por outras capazes de contribuir com a criação de projetos de vida.
Estas experiências, tal qual usinas de processo criativo-estratégico, produziram mudanças éticas, políticas e conceituais que culminaram com a invenção de serviços de atenção integral à Saúde Mental com possibilidade de legitimação e de enraizamento nos municípios. Desta maneira, o movimento de Reforma foi qualificando-se, tendo como municípios referência deste processo Santa Maria, Bagé, São Lourenço do Sul, Alegrete e Porto Alegre.
São exemplos do novo modelo de atenção em Saúde Mental, em substituição e superação ao modelo manicomial, a criação de serviços substitutivos como o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) Nossa Casa em São Lourenço do Sul, em 1988, precursor no RS, a Pensão Protegida Nova Vida, em 1990, em Porto Alegre, ou mesmo a experiência de inclusão pela arte das “oficinas de criação coletiva” em Bagé. Todas estas ações apontavam para uma questão fundamental: outros espaços para o cuidado em Saúde Mental e outros olhares para o sofrimento psíquico eram necessários.
A criação destes serviços, bem como de uma rede de cuidados continuou tomando força com a ampliação de vagas em hospitais gerais, ampliação do número de CAPS e a criação de Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), como o caso do Morada São Pedro, inaugurado em 2002 em Porto Alegre e do Morada Viamão, na cidade de mesmo nome em 2005. A desinstitucionalização dos moradores do HPSP ainda não foi concluída, tendo sido abandonada por diferentes projetos de governo, como se não fosse um projeto de Estado.
Mas um novo desafio foi posto na jornada dos militantes da Reforma Psiquiátrica: a “epidemia do crack”, como a mídia de massa e algumas corporações profissionais da área da saúde chamam, de maneira sensacionalista, o aumento do consumo desta droga, ainda que o uso de drogas sempre tenha sido uma questão de saúde pública dentro do horizonte da Saúde Pública. A ideia de epidemia, portanto, foi criada e alardeada com propósitos claros de fazer um movimento de Contrarreforma, cuja pretensão é a de rever e fazer retroceder a Lei da Reforma Psiquiátrica. Este movimento afirma o hospital psiquiátrico como lugar de formação descomprometendo-se com a consolidação das Redes de Atenção Psicossocial (RAPS). Desta maneira, sustenta a afirmação do modelo biomédico, especialista e corporativista de tratamento em Saúde Mental, em detrimento de formas mais amplas de compreensão do adoecimento psíquico, cujas causas estão relacionadas não apenas a questões biológicas, mas também a questões de natureza social, econômica e cultural.
Entre 2011 e 2014, houve a retomada da pauta da Reforma Psiquiátrica no Estado, amparada pelos encaminhamentos da IV Conferência Nacional Intersetorial de Saúde Mental, realizada em 2010, e que reforça o entendimento da sociedade de que o cuidado das pessoas em sofrimento psíquico, bem como das pessoas que usam álcool e outras drogas, deve ocorrer em rede, destacando-se a intersetorialidade. Atenta às exigências dos movimentos sociais, a SES/RS buscou ampliar e qualificar consideravelmente a rede de atenção psicossocial em todo o Estado bem como investir na Política de Redução de Danos enquanto diretriz de trabalho em relação ao uso problemático de drogas.
Assim, foi preconizado pela SES/RS projeto estratégico O cuidado que eu preciso. Tal ação é estruturada a partir do Projeto Terapêutico Singular de cada usuário portador de sofrimento psíquico ou de dependência em álcool e drogas, desde a primeira consulta até a continuidade do cuidado em outros níveis de atenção. O Projeto Terapêutico Singular (PTS) é um conjunto de propostas de condutas terapêuticas articuladas, resultado da discussão coletiva de uma equipe interdisciplinar e busca a singularidade (a diferença) como elemento central de articulação, já que os diagnósticos tendem a igualar os sujeitos e minimizar as diferenças (Brasil, 2008). Tem, portanto, o objetivo de ampliar e qualificar a rede de atenção às pessoas portadoras de sofrimento psíquico com enfoque no fortalecimento da Atenção Básica, na desinstitucionalização e na regionalização da oferta de serviços de saúde.
A estruturação das RAPS e das Linhas de Cuidado nos municípios e macrorregiões do RS implica a implantação de novos serviços de saúde, a qualificação dos serviços já existentes, a pactuação de fluxos nos níveis municipal e regional entre os mesmos, a articulação com as redes intersetoriais, bem como a implantação de uma política de educação permanente para os profissionais.
Se a efetiva consolidação da Reforma não foi finalizada, talvez, seja interessante compreendermos seu caráter processual, as repetições, os levantes que a engendram, fazendo aparecer e desaparecer momentos de pico em que o direito à cidadania aos loucos parece ter mais sentido socialmente. O fato é que, ainda hoje, se faz necessário desinstitucionalizar manicômios (principalmente os mentais) e consolidar redes de atenção integral, organizando artesanalmente projetos (terapêuticos) singulares centrados nos usuários e no trânsito de vida de qualquer pessoa que acessa/ é acessado por um serviço de saúde.
A valorização da cultura e da arte sempre esteve, de alguma forma, ligada aos processos de desinstitucionalização, seja a partir de ações artísticas provocadoras de movimento e desacomodação, ou da arte enquanto ação direta, intervenção, e até como maneira de cuidado, vínculo, pertencimento. Sobretudo, é no direito à criação artística, à construção de cidadania que a arte parece funcionar para a Reforma Psiquiátrica como uma possibilidade de democratização do direito de experimentar as cidades para além dos muros institucionais dos hospitais psiquiátricos ou até mesmo dos serviços substitutivos a este modelo de saúde.
Neste sentido, o grupo de teatro “Nau da Liberdade” nasceu a partir do projeto “São Pedro em Movimento”, parte constitutiva da desinstitucionalização dos moradores do HPSP.
O bando de teatro Nau da Liberdade
A “Nau da Liberdade” surgiu a partir de uma residência artística com a companhia italiana de teatro Accademia Dellla Follia, que, entre fevereiro e maio de 2013, uniu atores-loucos do Brasil e da Itália na criação do espetáculo “Azul como Liberdade”. Como parte da tripulação desta Nau, fizeram parte residentes em Saúde Mental Coletiva da Escola de Saúde Pública (ESP/RS) e do Educasaúde (UFRGS), moradores do SRT Morada São Pedro, do HPSP, do SRT Casa da Praça (inaugurado em 2013) e de outros locais na cidade de Porto Alegre e da Região Metropolitana, ou seja, todos trabalhadores e/ou usuários da Saúde Mental. Os tripulantes são nômades, por vezes à deriva, por vezes comandando lemes, atracando em portos inseguros.
A continuidade do grupo, após a experiência de residência artística com os italianos aconteceu, em grande parte, em função do desejo dos usuários-atores que insistiam em querer continuar a fazer teatro. Atenta a isso, a Coordenadora do Projeto São Pedro em Movimento, que foi responsável pela parceria entre a Accademia Della Follia, a SES/RS e o Projeto de Desinstitucionalização, rapidamente tratou de marcar uma assembleia com aqueles que queriam continuar. Assim, ficaram combinados três ensaios semanais, pelas manhãs, dinâmica que segue assim e que só varia em função de apresentações e viagens. Os ensaios acontecem no HPSP e em alguns lugares da cidade, como a Usina do Gasômetro e o Parque da Redenção. No fim do ano de 2014 o grupo conseguiu montar uma Casa de Teatro, alugada pelo Estado, mas que foi desalugada com a mudança de governo em 2015.
O nome do grupo, Nau da Liberdade, surgiu nesta retomada, quando procurávamos referências para a continuidade do trabalho com teatro. Dentre estas referências, são citadas, a Nau dos Loucos que Foucault (1972) traz a cena no primeiro capítulo de A História da Loucura e ao filme italiano E La Nave Va, dirigido em 1983 por Frederico Fellini. Nele são mostrados os eventos ocorridos a bordo de um navio luxuoso, onde os amigos de uma falecida cantora de ópera se reúnem para o funeral dela.
Além disto, durante as primeiras edições do Fórum Social Mundial que foram realizadas em Porto Alegre, alguns representantes do movimento de Luta Antimanicomial realizavam imersões a bordo do barco Cisne Branco, que navega pelas águas do Rio Guaíba, trocando ideias e afetos estratégicos para a mudança de modelo de atenção em Saúde Mental. Esse acontecimento também era chamado de Nau da Liberdade. No fim de 2014 foi lançada a Associação Cultural Nau da Liberdade a bordo deste mesmo Barco.
Mas como seguir? O que significava continuar a criar, agora sem os mestres italianos? Inventar um grupo. Quem faria o que? Quais os princípios teóricos, práticos, técnicos que norteariam o trabalho? Repetíamo-nos estas e outras perguntas a esmo e, sem respostas fáceis, nos colocávamos em um labirinto sem fim. Seguíamos praticando exercícios, inventando e brincando com cenas, experimentando musicalidades sem saber onde aquilo iria chegar.
Por vezes, alguém tentava chegar com uma proposta pronta, que não necessariamente tinha a ver com a temática marítima que estávamos investigando. Ou aparecia a concepção de que teatro é qualquer livre expressão dos sentimentos internos: passagem ao ato, atuação psicológica. Havia diversas confusões transferenciais que se revelavam na relação entre as pessoas do grupo, que afinal, não era um grupo comum de teatro.
A ideia de construção de “máscaras” a partir de uma atenção prematura aos personagens, também, frequentemente aparecia, demonstrando que a página em branco estava repleta de clichês. Antes do corpo em ação, aparecia a roupa da cena (mais como fantasia do que como figurino), a máscara, o objeto, o adereço, sem relação criada a partir do jogo com estes. A ideia antes do corpo em cena, antes do corpo em relação, induzia uma ação mecanizada, extremamente verbal e racional, hermeticamente pensada, fechada: um produto.
Percebíamos que tínhamos ainda muito que avançar e principalmente nos livrar de uma metodologia mais “adestradora”, mas, ao mesmo tempo em que tentávamos instigar a criação coletiva havia por parte de alguns uma dificuldade em se entregar para o desconhecido. Toda a ação precisava de uma explicação racional, toda a cena precisava de uma lógica concreta, toda a escolha necessitava ser justificada. E se descobríssemos juntos, os sentidos possíveis de existência do corpo-voz, partindo do ponto de que todo mundo é ator-navegador, todos podemos atuar? Sim, atores, loucos, trabalhadores, residentes, pacientes, sobreviventes, todo mundo é ator!
Eis que surge um convite para uma apresentação em Santa Maria em um encontro da rede de saúde que aconteceria dali a pouquíssimo tempo, encontro que acabou não acontecendo. Os usuários-atores logo começam a criar: “- quem sabe usar aquela musica do Toquinho? Aquarela. Fazer uma coreografia. ”
Certo dia, um dos atores traz a ideia de um resgate: uma cena em que os viajantes estão caminhando, à deriva. Ele começa o trabalho de resgate, com um pedaço de tecido como isca, espécie de pesca das pessoas que estavam à deriva. Assim, quando todos se encontram no mesmo barco, forma-se a Nau que irá viajar por mares, aportar em ilhas desconhecidas e, sobretudo, investigar o universo onírico dos próprios atores. A cena do resgate foi a primeira cena que criamos e nomeia o espetáculo em processo.
Passamos então a propor alguns exercícios e vivências criativas a fim de “abrir” o corpo, os sentidos e as sensações, a partir de um trabalho com os elementos da natureza enquanto imagem e base ao corpo criativo. A partir deste estudo, foram criadas as cenas iniciais e a atmosfera geral do espetáculo.
É importante citar que à medida que estávamos iniciando essa criação de cenas já recebíamos convites para apresentações. O primeiro foi em ocasião da inauguração de um novo CAPS no município de Farroupilha, no interior do Estado. Ao optarmos por colocar as cenas em mostra, mesmo que não estivessem prontas foi fundamental para que conexões rizomáticas, novos fluxos, ideias, surpresas pudessem aparecer.
A cena nômade da Nau não é uma fragmentação esvaziada de sentido, é uma fragmentação estratégica. A recusa pelas explicações de origem e pela linearidade de tempo cronológico, pelos fios condutores de espaço, pelos corpos perfeitos criadores de signos a serem decodificados. Não são signos a serem decodificados. São signos abertos. São mapas abertos. São rizomas, intercessões, pontes, travessias nômades: o sentido se faz navegando.
A Navegação como método
O entendimento deste teatro como obra aberta, mapa aberto, espaço aberto ao tempo, sem a centralidade no texto pré-concebido por um autor único e que acontece de maneira coletiva que busca respeitar e evidenciar as singularidades, vai ao encontro em alguns pontos, à forma que alguns autores pensam a cena contemporânea, de maneira performativa. Portanto, ao invés de buscar uma construção de personagens, protagonistas e antagonistas, investimos em certa performatividade, em que a ação executada, por vezes mistura ficção e realidade, se configura com um espaço aberto a múltiplas e livres interpretações.
A performance não se apresenta como um ato autoral, mas como resultado de uma confluência de sentidos, de fluxos. Estes fluxos são potencializados pelo performer e confluem no seu corpo no momento em que são atualizados. A arte torna-se então performativa. Na linguística, o termo “performativo” faz referencia a um enunciado que se realiza ao mesmo tempo que ele é proferido. A arte acontece ao mesmo tempo em que ela é realizada, ela é o que Cohen chama de work in progress, literalmente de “trabalho se dando à medida que ele acontece” (Alice, 2010).
O sentido, os fios condutores e os panos de fundo destas cenas não são criados somente durante o processo de ensaio-criação e menos ainda em encontros fechados de criação de dramaturgia. Fazem-se pelo que aparece, pelos sentidos que um gesto comum passa a ter em cena, pelas imagens que suscitam no encenador. Fazem-se, finalmente, com os sentidos que o espectador cria. Ainda que tenhamos alguns encontros de dramaturgia, em que pensamos o componente mítico que sirva de pano de fundo para a navegação, o que se busca na Nau é apresentação de signos abertos, não estratificados, não “mastigados” aos olhos e estômagos de quem assiste.
Os muros do teatro tradicional, representativo, como obra fechada, acabada, cheio de personagens e atores protagonistas podem ser tão duros como os do hospício. Um grupo de teatro com loucos parece transgredir tanto a ideia de um teatro tradicional – se é que ele existe – quanto o tradicional tratamento em Saúde Mental, medicamentoso, comportamental ou mesmo “psi”. Transgride tanto o teatro e a Saúde Mental pela experiência do corpo presente, que, enquanto obra de arte, não pode ser capturado.
A transição entre um teatro tradicional, com o qual começou o grupo para um teatro mais performático é um processo que se constitui aos poucos, na estrada, a partir dos encontros com outros grupos, nos encontros com a cidade e diretamente durante os ensaios. Assim, procurando apontar para os princípios operadores do work in process, como uma rosa dos ventos aberta a vários nortes, tentamos ter encenadores ao invés de diretores, atuadores/performers ao invés de atores protagonistas.
Renato Cohen (2006) propõe o work in process como um procedimento de criação cênica que não se faz como obra acabada, mas como obra em processo, em ressonância com aqui e agora, com o devir, em que a incompletude passa a ser virtude expressiva e não uma carência de conclusão, de acabamento. A obra em processo rompe, em alguns aspectos, com séculos de tradição artística ocidental, baseada na representação. Não rompe, talvez, com a própria noção de obra, mas entende o próprio “produto” como algo que “está sendo”. É considerado um método cartográfico de pesquisa e também uma linguagem:
Conceitualmente a expressão work in process carrega a noção de trabalho e processo: Como trabalho, tanto no termo original quanto na tradução acumulam-se dois momentos: um de obra acabada, como resultado, produto; e, outro do percurso, processo, obra em feitura. Como processo implica interatividade, permeação; risco, este último próprio de o processo não se fechar enquanto produto final (Cohen, 2006, p. 20-21).
O bando procura acolher as diversas expressões da loucura ou da institucionalização quando estas invadem o processo. E assim, acolhendo eventuais “desorganizações” tentamos resolvê-las através da relação de jogo. Neste trabalho de criação coletiva, em que todos contribuem com o que podem, como podem, com o que pensam, sonham e como vivem, buscamos utilizar a subjetividade dos atores como matéria prima para a criação e tentar instaurar um teatro enquanto ritual e não como obra fechada.
A escolha pela performance, pelo work in process, pela cena aberta, serve como analisador da relação com o cuidado. Assim como a cena que não é pré-estabelecida pelo profissional artista, detentor do saber-poder, o projeto terapêutico singular não dever ser concebido pelos profissionais sem a participação, ou melhor, sem as indicações de caminho que este usuário deseja seguir para a sua vida. O modelo de cuidado em que acreditamos e disputamos é o de estar junto com o usuário em seus processos de produção de subjetividade, em suas escolhas de vida, em suas possíveis imprecisões, inconstâncias e desequilíbrios.
Bey (2011) propõe que, já que a arte se tornou mercadoria, e que é vendida como um produto, sua possibilidade de existência estaria em romper com a mediação, que no caso da arte, se dá pela representação. Na concepção deste autor, a arte como uma mercadoria é impossível. Ao contrário, a arte é uma condição de vida. A mediação é difícil de ser superada, mas a remoção de todas as barreiras entre artistas e "usuários" da arte tenderá a uma condição na qual o artista não é um tipo especial de pessoa, mas toda pessoa é um tipo especial de artista.
Desta forma, o método de navegação da Nau consiste em tentar não meramente repetir o que está instituído enquanto arte e enquanto cuidado em saúde mental, mas produzir uma nova micro desinstituicionalização a cada dia. Não há a preocupação em reprodução de um método em teatro, mas uma invenção híbrida, nômade, errante.
Mantendo os laços do bando (mesmo com disputas, medos, brigas, sumiços, atrasos, boicotes institucionais, medicamentosos, entre outros inerentes a todos os grupos de seres humanos), a amizade, o vínculo, a afinidade em trabalhar com as diferenças, em produzir alteridade funciona como agregadora – facilitadora de processos de desinstitucionalização, de confiança, de pertencimento, de saída de representação enquanto profissional, ou usuário.
A Nau é uma busca, mais do que uma resposta e nunca uma fórmula. Busca espaços de vizinhança, de apoio mútuo, de livre circulação, de autogestão. Busca ocupação de espaços de invisibilidade. Busca a música, o bando, a amizade, o fluxo das existências como princípio organizador – fios condutores com efeitos de cena, de produção de vida, como agregador de afetos. As inspirações mitológicas apresentam o herói como guerreiro, aquele que vive as feridas da existência como máquina de guerra que se opõe ao amortecimento da existência. A questão de presença e do desaparecimento se revela na medida em que a efemeridade em ser ator, criador de trabalho imaterial, em um mundo produtivista que exige materialidade.
Pelbart (2000) sustenta como trabalho imaterial, que, ao mesmo tempo em que mexe com a matéria, produz coisas imateriais, mexe com os afetos, com os devires-femininos, já que é criativo, não necessariamente de produtos.
O trabalho imaterial é trabalho afetivo no sentido de que seus produtos são intangíveis: um sentimento de tranquilidade, bem estar, satisfação, excitação, paixão – ou até mesmo a sensação de estar simplesmente conectado ou de pertencer a uma comunidade (p. 36).
A Nau busca desinstitucionalizar a Desinstitucionalização: se a Reforma Psiquiátrica obteve seu ponto de pico quando ousou conversar com a cidade, inserir aqueles que estavam condenados a não participar dela em processos de responsabilização de si e com a vizinhança, com o uso do dinheiro, com a vida; ela foi retrocedida ficando segregada a um debate apenas no campo da Saúde (Mental).
A nomadização aqui é profissional, é cênica, é existencial! No movimento da existência nômade, percorrer diferentes trajetórias de construção de conhecimento e de produção do cuidado significa evitar ao máximo as forças de captura, as institucionalizações, as verdades absolutas, as obras prontas, acabadas e vendidas sob forma de produto. Sobretudo, nomadizar na Nau é permitir-se uma errância produtora de novas subjetividades e estilísticas de existência.
Referências
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Data de submissão: 09/07/2015
Data de aceite: 03/11/2015
1 Esta expressão é uma ironia com os termos “política pública” e “biopolítica”, este calcado por Foucault (2010) para designar o controle que se imprime sobre os corpos com a ascensão do capitalismo, ao analisar o desenvolvimento da medicina social. Utilizo tal expressão a fim de, sutilmente, exibir a contradição do Estado em seu dever de garantir direitos ao mesmo tempo em que exerce controle, repressão e retirada de direitos de alguns grupos populacionais específicos, enquanto garante privilégios a outros.
2 Tal trajetória teve seu ponto inicial na vida da artista, através da formação em serviço em caráter de Residência Integrada em Saúde (ESP/RS), em 2009. No entanto, como é uma andarilha atenta à polifonia da cidade, o universo da saúde mental lhe é familiar desde muito antes.
3 O INAMPS foi criado pelo regime militar em 1974 pelo desmembramento do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), que hoje é o Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS); era uma autarquia filiada ao Ministério da Previdência e Assistência Social (hoje Ministério da Previdência Social), e tinha a finalidade de prestar atendimento médico aos que contribuíam com a previdência social, ou seja, aos empregados de carteira assinada. INAMPS passaria por sucessivas mudanças com universalização progressiva do atendimento, já numa transição com o SUS.
I Mestre em Saúde Coletiva pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2014), possui Graduação em Teatro, ênfase em Interpretação Teatral. Realizou Residência Integrada em Saúde, ênfase em Saúde Mental Coletiva, na Escola de Saúde Pública/RS. E-mail: carolinapommer@yahoo.com.br
II Doutora em Educação, Professora da Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, junto ao Curso de Bacharel em Saúde Coletiva e ao Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva. E-mail: cristianne.rocha@ufrgs.br