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Revista Polis e Psique
versão On-line ISSN 2238-152X
Rev. Polis Psique vol.6 no.spe Porto Alegre jan. 2016
ARTIGOS
O texto científico como laboratório de fabricação de mundos
The scientific text as a laboratory to fabricate worlds
El texto científico como laboratorio de fabricación de mundos
Irme Salete BonamigoI
I Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
RESUMO
A partir da concepção de texto científico como laboratório de fabricação de mundos, este artigo procede uma experimentação mediada pela escritaCOM os coletivos que compuseram três textos sobre violências e segurança pública, cartografando os mundos que se tornaram visíveis e ganharam consistência por meio dos escritos e interrogando os mundos que ainda estão invisíveis. A conexão entre os três textos evidencia as tensões e os embates que tecem o mundo das violências e segurança pública, no qual se fabricam cotidianamente visibilidades e invisibilidades, luzes e sombras, justificativas e questionamentos, vigilantes e vigiados. Destaca-se na tessitura deste mundo o debate contemporâneo em torno das tecnologias de vigilância e a complexidade que envolve as políticas públicas de segurança quando associadas à proteção dos cidadãos. Conclui-se que a escritaCOM potencializa o transporte de múltiplas vozes que caracterizam o mundo da vida, muitas delas silenciadas em nosso cotidiano, tornando-as audíveis.
Palavras-chave: Texto Científico; Violência; Segurança Pública; Tecnologias de Vigilância; EscreverCom.
ABSTRACT
Based on the conception of the scientific text as a laboratory for the fabrication of worlds, this article examines experimentation with a writeWITH methodology involving collectives which wrote three texts on violence and public safety as a cartography of worlds that have become visible and consistent through the writings, and questioning those still invisible. The common thread of these three texts brings out the tensions and clashes that weave through the world of violence and public safety in which visibilities and invisibilities, light and shadow, justifications and questionings, overseers and the overseen are fabricated daily. Upon the fabric of this world emerges the contemporary debate on surveillance technology and the complexity involving public security policies associated with the protection of citizens. We posit that the writeWITH methodology boosts the carry of multiple voices that characterize the world of life, many of them silenced in our daily lives, making them audible once again.
Keywords: Scientific Text; Violence; Public Safety; Surveillance Technologies; WriteWITH.
RESUMEN
Desde una concepción del texto científico como laboratório para la fabricación de mundos, en este artículo se realiza una experimentación mediada por el escribirCON colectivos que han compuesto tres textos sobre el tema violencias y seguridad publica, cartografando los mundos que se han hecho visibles y ganado consistencia por médio de los escritos y interrogaciones de los mundos que aún no se pueda mirar .La conexión entre los tres textos pone de relieve las tensiones y los conflictos que tejen el mundo de las violencias y seguridad publica, desde donde se produce diariamente visibilidads y invisibilidads, luces y sombras, justificaciones y cuestionamentos, vigilantes y vigilados. Destaca en la tesitura de este mundo el debate contemporáneo en torno a las tecnologías de la vigilancia y de la complejidad que involucra las políticas publicas de seguridad cuando las asociamos con la protección de los ciudadanos Se concluye que el escribrirCON promueve el tránsito de múltiples voces silenciadas en nuestra vida cotidana que caracterizan el mundo de la vida, haciéndolas audibles.
Palabras-clave: Texto Científico; Violencia; Seguridad Publica; Tecnologías de vigilancia; escribirCON.
Introdução
Como colocar vida em meio à escrita de textos científicos? Como trazer a heterogeneidade e a polifonia do campo de pesquisa para a escritura de nossos textos? Uma possibilidade que temos discutido é a que perpassa transformar a escrita do texto científico em um laboratório. Para Latour (2006, p. 217), o texto é “um lugar para testes, experimentos e transformações” e não “uma janela transparente, transportando sem deformação a informação” resultante de um estudo. Essa concepção de escrita ultrapassa a função de comunicar os resultados de investigações à comunidade acadêmica.
Afirmar a escrita como laboratório significa nela incluir marcas, hesitações, silêncios, gagueiras. A escrita não é de modo nenhum um espaço liso, isento de conflitos. Ela é um terreno de lutas porque nela e por ela, fazemos existir certos mundos e não outros. Em nossos escritos alguns mundos ganham consistência, enquanto outros são apagados. (Moraes & Bernardes, 2014, p. 9).
Um modo de fazer funcionar o laboratório do texto é proceder a uma escrita situada e focalizada, denominada escreverCOM, ação que se desdobra do pesquisarCOM: “um modo de pesquisar que se faz com ou outro e não sobre o outro e que está articulado com as perguntas que formulamos em parceria com aqueles com quem pesquisamos” (Moraes & Bernardes, 2014, p. 8). O escreverCOM é, assim, um dos planos em que se exerce o pesquisarCOM, constituindo uma experimentação que o texto se propõe a fabricar, desafiando-nos a escreverCOM outros e não sobre os outros, ativando tanto pesquisadores quanto pesquisados na produção do conhecimento (Silveira, Palombini & Moraes, 2014). Portanto, o texto como laboratório que se tece pelo escreverCOM traz o mundo da vida para a escrita, com sua polifonia, sua multiplicidade e suas conexões diversas.
As questões propostas para o encontro de nosso GT65 Tecnologias e modos de subjetivação1, vinculado à ANPEPP, em 2014, instigou-nos a escreverCOM coletivos2 que compuseram algumas pesquisas sobre violências e segurança pública, desenvolvidas nos últimos dez anos (desde 2005), colocando em análise três produções de textos: o Programa Tolerância Zero, a instalação da primeira câmera de monitoramento em Chapecó e a descrição do atual sistema de videomonitoramento fortalecido pelo Programa Bem-Te-Vi em Santa Catarina. A tessitura da escrita requereu a ação dos múltiplos participantes que, ao serem tratados como mediadores3, se tornaram atores na composição do texto, transformando, traduzindo, distorcendo e modificando o sentido da própria escrita (Latour, 2006).
Assim, tendo em vista os textos como laboratório de fabricação de mundos, o objetivo da experimentação procedida por este texto é colocar em conexão coletivos que compuseram os três textos em análise sobre violências e segurança pública de Chapecó, cartografando os mundos que se tornaram visíveis e ganharam consistência e interrogando os mundos que ainda estão invisíveis.
Acompanhando o lançamento e o declínio do programa tolerância zero
A escritaCOM o Programa Tolerância Zero foi possível no momento de seu surgimento, ao final de 2006, quando por meio da mídia operações policiais de inspeção a pessoas, automóveis e lugares suspeitos foram transformadas em acontecimentos. As operações policiais foram noticiadas na imprensa, acompanhadas por estatísticas que indicavam diminuição de práticas violentas, e as pessoas foram estimuladas a fazer denúncias anônimas. O objetivo maior do programa era produzir sensação de segurança na população e, ao mesmo tempo, sensação de perigo para os “criminosos”, no sentido de criar uma imagem de polícia de ação rápida e eficaz. A produção de subjetividades foi utilizada como dispositivo central de gestão de violências; ou seja, a produção de modos de pensar, sentir, perceber o município como “um lugar seguro” foi tratada como prioridade. No entanto, para fazer funcionar essa produção, inicialmente as práticas violentas foram tornadas espetáculo na mídia. Alardearam-se índices estatísticos e a gravidade de ocorrência de práticas violentas na cidade junto com o lançamento do programa, como bem ilustra o discurso do prefeito municipal:
O que estamos propondo é dar um basta nessa violência, que queima a vida das pessoas, coloca crianças nas drogas e você, cidadão, está correndo risco (...), quem sabe você, quem sabe eu, não seremos a próxima vítima. O que estamos propondo aqui e já fizemos um apelo a Polícia Civil e Militar, eu tenho certeza é que os bandidos ou mudam de vida em Chapecó ou mudam de cidade. (Prefeito de Chapecó, entrevista ao SBT Comunidade, 30 de nov. 2006, citado por Bonamigo, 2007, p. 127).
Ou seja, a visibilidade de práticas violentas – sejam elas alicerçadas nas vivências concretas e/ou na espetacularização das violências pela mídia – produz medo e insegurança; essas sensações levam as pessoas a suspeitar dos estranhos4, que representam perigo, e a buscar segurança por meio das polícias.
O Tolerância Zero mobilizou, quando do seu lançamento, diversos atores do município, com diferentes interesses e concepções quanto ao enfrentamento e à prevenção de violências. No entanto, em sua execução, predominaram práticas repressoras, punitivas e de divulgação midiática das operações policiais. Passados os momentos iniciais de maior visibilidade, aconteceu o declínio do Tolerância Zero, até sua substituição, em 2010, pelo Programa Chapecó Segurança Máxima, com a instalação de câmeras de monitoramento em diferentes locais da cidade, via convênio estabelecido entre o município e o governo do estado de Santa Catarina (Bonamigo e cols., 2009).
EscreverCOM o Programa Tolerância Zero possibilitou dar visibilidade ao coletivo que o constituiu e perceber como os vínculos entre os atores das redes podem ser provisórios, fazendo-se e desfazendo-se quando seus interesses são ou não traduzidos. Esta escrita só foi possível porque composta de múltiplas vozes: da mídia impressa e televisiva; das entrevistas realizadas; inscritas pelo registro dos movimentos observados; decorrentes do registro de imagens que traduziram acontecimentos; e das reflexões veiculadas por textos científicos.
Colocar este texto em análise permite dar visibilidade ao quão possível e fugaz são a produção e a existência do mundo da espetacularização das violências e da segurança. Evidencia o quanto são necessários envolvimento e ação de coletivos para manter a consistência desse mundo, de modo que as múltiplas concepções de segurança pública sejam reduzidas a uma predominante: fundada na lógica militarista, com o uso predominante de violência e punição como forma de dominação e controle das violências5. Ainda, gera visibilidade à emergência do mundo do videomonitoramento, no qual os dispositivos de vigilância são amplamente difundidos e diretamente associados à promoção de segurança por permitirem que as polícias tenham olhos em locais em que não estão fisicamente presentes – movimentos que serão descritos nas próximas seções.
Seguindo uma câmera experimental de videomonitoramento
Em 2005, uma câmera experimental de videomonitoramento foi instalada na avenida central de Chapecó. Acompanhar e escrever sobre essa tecnologia de monitoramento eletrônico, que ganhava relevância e sentido na cidade, por meio da Teoria Ator-Rede (TAR), foi objetivo da pesquisa que realizamos e do texto escrito6 que ora colocamos em análise. A instalação da câmera experimental configurou um coletivo composto por governo municipal, Polícia Militar (PM), Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL), Associação Comercial e Industrial de Chapecó (ACIC), empresas privadas ligadas ao videomonitoramento, Ministério Público, Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), dentre outras entidades.
A instalação da câmera experimental teve por objetivo mobilizar pessoas e recursos para viabilizar a implantação de projeto de videomonitoramento; “está direcionada (...) ao trânsito, (...) ao problema dos furtos, mas juntando o problema do trânsito e o problema dos furtos, você tem que ver que isso está direcionado aos empresários de Chapecó” (Entrevista citada por Bonamigo, 2013, p. 665). Ainda não havia um consenso sobre os efeitos da nova tecnologia, nem sobre a disponibili¬zação de recursos públicos e privados para a execução do projeto.
Após um mês de experimentação do dispositivo tecnológico, o projeto foi apresentado à população pela mídia. As TVs e a imprensa escrita no¬ticiaram o acontecimento: “Chapecó agora é vigiada 24 horas. Câmera instalada (...) tem capacidade para gerar imagem em uma distância de 600 metros, girando 360 graus” (Diário do Iguaçu, 26 abr. 2005, citado por Bonamigo, 2013, p. 667) e “Sistema de monito¬ramento é experimentado em Chapecó (...) as imagens obtidas são transmitidas por cabo telefônico, sendo revertidas para o sistema digital [que] não permite que as imagens sejam deturpadas” (Sul Brasil, 26 abr. 2005, citado por Bonamigo, 2013, p. 668).
Apesar de toda a mobilização envolvida no projeto, o coletivo não conseguiu recursos nem do Estado e nem da iniciativa privada para a aquisição e instalação das câmeras de mo-nitoramento. Houve uma tentativa, por parte de seus articuladores, de apresentação do projeto para financiamento na Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP), mas sem êxito.Podemos analisar que escreverCOM a câmera de videomonitoramento possibilitou marcar os traços de sua passagem e registrar movimentos iniciais quando discursos e ações ainda estavam se configurando e controvérsias podiam ser acompanhadas. No texto analisado, diferentemente do que se passou nos escritos midiáticos, o que ganhou consistência foi o mundo composto por controvérsias e negociações. Nas experimentações produzidas pelo texto, foi possível conectar discursos da mídia, como os anteriormente registrados, com vozes de moradores de Chapecó, enunciadas durante as entrevistas – como a da entrevistada que avaliou que as câmeras invadiriam a privacidade das pessoas e controlariam apenas alguns tipos de crimes, deixando a descoberto outros tipos de roubos e de infrações; também a do entrevistado que denunciou a ocorrência “de forma silenciosa” do corte das árvores que produziam “sombras” no monitoramento.
A análise ao longo dos dez anos possibilita identificar que a mobilização gerada por essa primeira câmera de monitoramento, apesar de não obter os recursos pretendidos, não foi em vão, pois permitiu que fossem lançadas as justificativas da importância do monitoramento eletrônico em Chapecó e a legitimação da sua existência ao associá-lo à vigilância e ao controle de práticas violentas (Bonamigo, 2013). A efetivação do projeto aconteceu seis anos depois, em abril de 2011, por meio de um convênio estabelecido entre o município e o governo do estado de Santa Catarina que instituiu o Programa Chapecó Segurança Máxima7. O fortalecimento do sistema de videomonitoramento aconteceu via Programa Bem-Te-Vi e será descrito no próximo item.
O atual sistema de videomonitoramento em chapecó fortalecido pelo Programa Bem-Te-Vi de Santa Catarina
A escrita do texto em análise, de 20148, foi composta de diferentes vozes veiculadas em diferentes momentos pela mídia. A experimentação procedida pelo texto colocou em conexão as vozes dos gestores com as vozes da população de Chapecó quanto às expectativas e avaliações relacionadas ao videomonitoramento. EscreverCOM a mídia foi uma estratégia que tornou possível discutir o atual sistema de videomonitoramento em Chapecó e em Santa Catarina, já que não se encontraram outras fontes documentais de informação. Mapeamos na mídia escrita e televisiva a veiculação tanto dos discursos dos gestores que buscam legitimar o videomonitoramento como dos questionamentos sobre a eficácia dessa tecnologia enunciados por pessoas que vivem na cidade.
Em Chapecó, a significativa ampliação do sistema de videomonitoramento ocorreu principalmente no fim de 2012 e início de 2013, pois antes havia apenas 35 câmeras em funcionamento (Kassburg, 2013), viabilizadas pelo Programa Chapecó Segurança Máxima, como citado anteriormente. Essa ampliação do sistema aconteceu vinculada ao Programa Bem-Te-Vi, do governo de Santa Catarina.
O projeto tem um investimento de recursos do governo do estado (Pacto pela Segurança) e governo federal (Ministério da Justiça) (Governo de Santa Catarina, 01 out. 2013) e prevê parcerias com as prefeituras municipais, por meio de contrapartidas financeiras e integração de esforços (Governo de Santa Catarina, 02 out. 2013).
O nome Bem-Te-Vi faz alusão ao pássaro “que costuma fazer barulho quando presencia algo de anormal em seu território, e à etimologia das palavras, que podem ter também sentido de vigilância, ao serem lidas ‘te vi bem’” (Secretaria de Segurança Pública, fev. 2012). A Secretaria de Segurança Pública do estado de Santa Catarina realizou o lançamento do programa no dia 27 de fevereiro de 2012, visando “melhorar as possibilidades de uso das câmeras já instaladas e ampliar o número de cidades monitoradas”. Para a respectiva secretária, o sistema de videomonitoramento possibilita o acesso concomitante das imagens à Polícia Militar e à Polícia Civil, tornando Santa Catarina o único estado do Brasil a promover o acesso integrado das imagens entre as diversas cidades monitoradas. Assim, é considerado “(...) um meio eficaz para prevenção, repressão e investigação dos delitos. O sistema funciona como uma importante ferramenta de apoio ao policiamento, que agrega tecnologia e modernidade”. (Clicrbs, 25 set. 2012).
Em uma publicação veiculada pela prefeitura de Chapecó, o secretário de Defesa do Cidadão afirmou que, em Chapecó, “a instalação dos equipamentos trouxe segurança para os moradores e comerciantes (...) são mais uma ferramenta para coibir o número de furtos e roubos registrados pela comunidade. E é também uma forma de fiscalizar o trânsito” (Prefeitura de Chapecó, 2013).
Em paralelo às notícias descritas, outras reportagens que colocaram o videomonitoramento em questão foram publicadas no mesmo período. A TV Ric, no Jornal do Meio Dia, em abril de 2013, afirmou que Chapecó é o município de Santa Catarina que mais recebeu investimento para a instalação desse tipo de equipamento, ressalvando que as pessoas têm dúvidas sobre o funcionamento da tecnologia e a forma de acesso às imagens registradas pelo sistema de videomonitoramento e lançando a seguinte pergunta: “como está o videomonitoramento em Chapecó?” (Ric Mais, 03 abril 2013).
Outra reportagem, veiculada no Portal Chapecó, também questionou a eficácia das câmeras de monitoramento – questionamento levantado pelos vereadores de Chapecó. Relatou que um requerimento foi apresentado por um vereador solicitando a presença do Comando do 2° BPM em sessão da Câmara para falar sobre os resultados obtidos. Os argumentos levantados foram os de que “a sociedade não tem informações sobre o que mudou na segurança em face da instalação destes equipamentos. Diz não conhecer e acredita que a população também não tem conhecimento sobre o que mudou na segurança com essas câmeras.” Ainda, enfatizou que outro vereador “foi até o Comando para saber sobre as câmeras e diz ter informação que elas ainda não cumpriram com o objetivo” (Portal Chapecó, 4 abr. 2013).
Em sessão da Câmera dos Vereadores, o comandante da Polícia Militar da região de Chapecó teceu alguns esclarecimentos sobre o videomonitoramento no município, afirmando que “o sistema não foi bem aceito por marginais e equipamentos passaram a ser alvo de vandalismo como disparos de arma de fogo, pedradas e carros furtados jogados contra os postes”. Descreveu, àquela ocasião, que, das câmeras instaladas, “16 sofreram algum tipo de vandalismo e outras 19 foram danificadas por acidentes de trânsito. Outras com danos pequenos foram reparadas. Atualmente 35 dependem de reparos e devem ser religadas, talvez com remanejamento”. (Junior Spindula, 19 mar. 2014).
Em agosto de 2013, houve uma polêmica envolvendo as câmeras de videomonitoramento, que não gravaram as imagens de entrada e saída dos autores da tentativa de homicídio sofrida pelo assessor parlamentar Patrick Monteiro (Redecomsc, 16 ago. 2013). Esse fato levou novamente o comandante da Polícia Militar a prestar esclarecimento público, inclusive com detalhamentos sobre o funcionamento da tecnologia de monitoramento à proteção do cidadão.
O sistema de câmeras estava em manutenção no dia 19 próximo passado, e todas as câmeras por alguns instantes foram desligadas para que fosse feita a integração estadual do sistema Estadual do Circuito Fechado de Televisão (CFTV) com o Comando Geral, através da Sala de Situação. Trabalho previamente agendado conforme registro das comunicações via e-mail. Assim, em Chapecó, durante todo o dia as câmeras foram reorganizadas numa nova sequência de endereços, havendo 156 câmeras em funcionamento. (Comandante do 2º Batalhão da PM/Fronteira de Santa Catarina, 19 ago. 2013, citado por Prado, 2013).
Percebe-se, a partir das vozes veiculadas pela mídia nas diferentes reportagens, que o sistema de videomonitoramento é uma tecnologia cuja aquisição requer um grande volume de recursos; além disso, cria expectativas de efeitos de segurança, sua presença modifica a interação e o comportamento das pessoas e demanda constante esclarecimento quanto a seu funcionamento e legitimação de sua ação e eficácia. Assim, pode ser considerado “um dispositivo ainda em franco debate, sujeito a diferentes traduções e questionamentos” (Castro & Pedro, 2013, p. 356). A eficiência e a eficácia do sistema na produção de segurança dependem da “articulação a um banco de dados, a softwares de identificação e reconhecimento, bem como a uma política de segurança adequada”. Portanto, a promessa de segurança que esses equipamentos oferecem é “uma espécie de virtualidade que raramente se atualiza” (Castro & Pedro, 2013, p. 356).
A experimentação do texto por meio da conexão das vozes dos gestores com as vozes de pessoas que vivem na cidade, quanto às expectativas e avaliações relacionadas ao videomonitoramento, deu visibilidade ao debate público em torno da modernização da segurança pública em Santa Catarina: de um lado, os gestores dos órgãos de segurança pública defendem o aumento do aporte tecnológico como sinônimo de segurança; de outro, a população questiona a sua eficácia, diante da continuidade dos acontecimentos violentos. Ambas, quando conectadas com as vozes dos autores de artigo científico, colocam em evidência o debate contemporâneo em torno dessa tecnologia e a complexidade que envolve as políticas públicas de segurança quando associadas à proteção dos cidadãos.
Efeitos da experimentação na escrita deste texto: que mundo fabricamos?
EscreverCOM revisitando três textos científicos, produzidos em diferentes épocas, ao longo de dez anos, para com eles compor nova experimentação sobre o tema violências e segurança pública, permite alguns questionamentos: quais mundos foram tornados visíveis e ganharam consistências com a escrita?
O primeiro texto dá visibilidade a movimentos de espetacularização das violências e da segurança e à sua fugacidade. Permite acompanhar um processo que objetivou manter a univocidade de um discurso denominado Tolerância Zero, com a tessitura de uma rede que se fortalece com o interesse comum de diferentes atores na produção de segurança, mas se desfaz quando as múltiplas compreensões relacionadas às situações que produzem violências são reduzidas às práticas de controle por meio de inspeção e punição.
O segundo texto torna visível um projeto que parece fracassar em um primeiro momento – já que a câmera experimental de videomonitoramento em curto prazo não atinge o alvo da mobilização dos recursos para aquisição desses equipamentos para instalação na cidade –, no entanto alcança sucesso em longo prazo ao lançar as bases para a legitimação da tecnologia associando a vigilância ao controle de práticas violentas.
O terceiro texto, tomando a mídia como fonte de circulação de discursos, dá visibilidade a controvérsias sobre videomonitoramento e segurança pública, produzindo rupturas no discurso homogêneo dos gestores. Percebe-se um deslocamento relativo à posição da população chapecoense: de vigiada passa a pôr-se vigilante, provocada por uma sensação de desconfiança e necessidade de vigília quanto às decisões político-institucionais (Bonamigo & Chaves, no prelo).
A conexão entre os três textos evidencia as tensões e os embates que caracterizam o mundo da vida povoado por múltiplas vozes. No caso das violências e segurança pública, mundo no qual se conectam e desconectam visibilidades e invisibilidades, luzes e sombras, justificativas e questionamentos, vigilantes e vigiados.
Se considerarmos que os textos científicos “circulam em redes práticas e instituições que nos ligam a situações” (Latour, 2004, p. 45), poderemos vislumbrar a possibilidade de eles se tornarem atores nas redes pelas quais circulam, agindo sobre o mundo. Nesse sentido, podem ser potencializados pela escritaCOM, transportando múltiplas vozes que caracterizam a vida, muitas delas silenciadas em nosso cotidiano, tornando outros mundos visíveis. Assim, findamos o escrito com a abertura de outra reflexão inspirada por Skliar (2014, p. 108): como colocar nossos textos em meio à vida?
Referências
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Data de submissão: 30/07/2015
Data de aceite: 15/09/2015
1 Quais os desafios e riscos de fazer pesquisa com o outro e não sobre o outro? Quais são os jogos de força nos dispositivos de pesquisa? Como construir processos por meio de devolutivas e narrativas com quem pesquisamos?
2 Definimos coletivo, com base em Latour (2001), como as associações que se estabelecem entre humanos e não humanos. Utilizamos o termo não humano para designar equipamentos, materiais, artefatos de inscrição, dispositivos tecnológicos, entre outros. Para Latour (2001), esse conceito só significa algo em suas relações com os humanos. "Associações de humanos e não humanos aludem a um regime político diferente da guerra movida contra nós pela distinção entre sujeito-objeto." (Latour, 2001, p. 352).
3 Latour (2001) diferencia os termos intermediário e mediador: intermediários são as entidades que transportam significados e informações sem as transformar; mediadores, por sua vez, são as entidades que transportam significados transformando-os, traduzindo-os, distorcendo-os, enfim, modificando-os e fazendo outras entidades agirem.
4 Como estranhos são frequentemente considerados os pobres, os negros, os bandidos, entre outros públicos.
5 Ver Bonamigo e Chaves (2014).
7 Lei n. 5989, de 26 de abril de 2011.
8 Bonamigo e Chaves (no prelo).
I Psicóloga, Doutora em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Docente do Mestrado em Políticas Sociais e Dinâmicas Regionais e do Curso de Psicologia da Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó), Chapecó, SC – Brasil. E-mail: bonamigo@unochapeco.edu.br