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Revista Polis e Psique

versão On-line ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.6 no.spe Porto Alegre jan. 2016

 

ARTIGOS

 

Escrever COM: o que isso (re)significa?

 

Write with: What it reframes?

Escribir con: ¿lo que eso (re) significa?

   

 

Luciana Lobo MirandaI e Lorrana  Caliope Castelo Branco MourãoII

I Universidade Federal do Ceará (UFC), Fortaleza, CE, Brasil.

II Universidade Federal do Ceará (UFC), Fortaleza, CE, Brasil.

 

 


RESUMO

O texto tem como objetivo problematizar a escrita da pesquisa como inserida na própria política da pesquisa. Ancorada na pesquisa-intervenção e baseada em pensadores como Michel Foucault, Mikhail Bakhtin e Carlos Skliar pretendeu-se pensar a escrita da pesquisa não como representação mas como ato. O texto aborda as vicissitudes da escrita da pesquisa como uma espécie de metaanálise da própria pesquisa. Para tal, desenvolve quatro pontos de inflexão: 1- A escrita como construção de mundos; 2- O processo de escolha dos analisadores; 3- O lugar dos afetos na escrita da pesquisa; 4- O (in)acabamento do texto: o leitor.   Por fim o texto defende a possibilidade da escrita da pesquisa aproximar-se mais do ensaio, como escrita inacabada, do que um lugar de divulgação de verdades incontestáveis.

Palavras-chave: Pesquisa; Pesquisa-intervenção; Escrita da pesquisa.


ABSTRACT

Our paper aims to problematize the writing of research as implanted in the politics of research itself. Anchored in research-intervention and based on the work of Michel Foucault, Mikhail Bakhtin and Carlos Skliar, we examine the writing of research not as representation but as act. The text addresses the vicissitudes of research writing as a meta-analysis of research. To this end we develop four inflection points: 1. Writing as building worlds; 2. The process of choosing research analyzers; 3. The place of affect in the writing of research; 4. The (un)finished text: the reader. Finally, we contend that research writing as unfinished writing is more akin to the essay rather than a site for the dissemination of incontestable truths.

Keywords: Research; Research-intervention; Research Writing.


RESUMEN

El texto tiene como objetivo discutir la escrita de la investigación como insertada en la política de investigación. Anclado en pensadores basados en la investigación-intervención tales como Michel Foucault, Mikhail Bakhtin e Carlos Skliar, tenemos la intención de pensar la escritura de la investigación no como representación,  sino como un acto de investigación. El texto analiza las vicisitudes de la escritura de la investigación como una especie de meta-análisis de la investigación. Para ese fin, el texto desarrolla cuatro puntos de inflexión: 1- La escrita como construcción de mundos; 2- El proceso de elección de los analizadores de la investigación; 3- el lugar de los afectos en la escrita de la investigación; 4 – la (in)completud del texto: el lector. Finalmente, el texto apoya la posibilidad de la escrita de la investigación acercarse al ensayo, como una escrita inconclusa, sino un lugar de divulgación de verdades indiscutibles.

Palabras-clave: Investigación, Investigación-intervención, Escritura de la investigación.


 

 

O discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar (Michel Foucault)

Algumas das nossas recentes produções tem se debruçado sobre a (árdua) tarefa de problematizar as próprias condições da pesquisa. Discutindo o processo do pesquisar, o artigo “Uma câmera na mão e um dispositivo na cabeça” (Miranda, 2014) toma as oficinas de vídeos realizadas com jovens em contexto de escolas públicas como analisadoras das relações que estes jovens estabelecem com a mídia no cotidiano, ao mesmo tempo em que analisa o uso do vídeo na pesquisa. Já o texto “Juventude e Mídia: discutindo, criando e pesquisando” (Miranda, Cysne & Filho, no prelo) tem como vetor de análise o encontro com os jovens como coprodutores de dados da pesquisa. Também produzimos discussões e escritos acerca da relação que estabelecemos com as escolas pesquisadas, isto é, como a pesquisa entra na escola e como a escola entra na pesquisa1.

Nesta possibilidade de “trilogia” que discute as condições da pesquisa, a ênfase está no pesquisar COM: Pesquisar COM vídeo; Pesquisar COM o jovem; Pesquisar COM a escola... Na verdade trata-se de uma divisão didática, pois as condições de produção sempre se dão com base no entrelaçamento pesquisadores- jovens- vídeo- escola. No aprofundamento da tessitura da pesquisa, trata-se de colocar em evidência esses entrecruzamentos, destacando-os como se naquele contexto alguns elementos estivessem com um faixo de luz e outros permanecessem mais sombreados.

Assim, a pesquisa se forma neste  “entre” que é composto pela rede de práticas discursivas e não discursivas, não estabelecendo, portanto, uma totalidade fechada. Este “entre”:  pesquisadores- jovens- vídeo- escola, deve ser analisado como expressão de um modo de subjetivação coletivo, no qual o que comumente as metodologias chamam de “dados coletados” e “resultados encontrados” são, na verdade, construídos/produzidos neste caldo heterogêneo, onde cabe sempre analisar as condições da própria pesquisa em sua dimensão processual. Esta problematização das condições da pesquisa é chamada de análise de implicação. Seja na discussão do pesquisar COM vídeo, seja no pesquisar COM Jovem, ou pesquisar COM a escola, o que promove a articulação entre estes “COMs” é a reflexão acerca da implicação do pesquisador com a própria pesquisa.

Oriunda da Análise Institucional francesa, a análise de implicação problematiza que na pesquisa é preciso “[…] admitir que eu sou objetivado por aquilo que pretendo objetivar: fenômenos, acontecimentos, grupos, ideias, etc.” (Lourau, 2004, p. 148). Assim, ao invés de ir em busca de uma neutralidade, impossível no duplo empírico epistemológico próprio das ciências humanas (Foucault, 1992), a análise de implicação coloca uma centralidade na cena enunciativa da pesquisa, e nos vários elementos que a compõe, que segundo Lourau (2004), inclui as implicações primárias (implicações com objeto, local, equipe e demandas sociais) e secundárias (relacionadas a questões históricas e epistemológicas que envolvem a pesquisa) (Paulon, 2005). Esta, no entanto, não deve ser confundida com apologia ao subjetivismo, com o caráter pessoal e da história de vida do próprio pesquisador. Evidenciar as condições de possibilidade da pesquisa, com base na análise de implicação, significa admitir que é com base no encontro, na análise da tessitura da pesquisa, que o pesquisador e o campo advém. Neste sentido Kastrup (2008, p. 466) afirma que:
Lourau é claro quando adverte que o que o conceito de implicação traz de mais importante é apontar que não há polos estáveis sujeito-objeto, mas que a pesquisa se faz num espaço do meio, desestabilizando tais polos e respondendo por sua transformação.

Assim, na produção da escrita da pesquisa normalmente analisamos nossa implicação com o uso do vídeo, com as relações que  estabelecemos com os jovens e com o espaço institucional escolar que é território da pesquisa. Em todos os casos o que colocamos em análise é a própria heterogeneidade da cena enunciativa da pesquisa.

Agora um novo desafio. Escrever sobre a escrita da pesquisa. Estamos chamando esse novo desafio de Escrever COM. Trata-se então de inserir como material a ser analisado, na análise de implicação, nas condições da pesquisa, a sua própria escrita. Lourau (2004) discute a inserção epistemológica do pesquisador e a própria escritura da pesquisa como Implicação Secundária.

No entrelaçamento pesquisadores- jovens- vídeo- escola, o escrever COM parece colocar em evidência o próprio pesquisador. Embora nos demais COMs o campo de relação não exclua o pesquisador, pois trata-se da análise de suas implicações com a pesquisa, o ESCREVER COM parece ter uma especificidade pois, cabe ao pesquisador, na maioria das vezes, a responsabilidade da publicação/divulgação da pesquisa. Neste sentido, é preciso colocar em xeque como nos colocamos diante desta escrita, deste processo de escrever- escrevendo, como diz Skliar (2014, p. 124): “o que é estar escrevendo, para estudantes, professores, escritores, escreventes e demais figuras que giram em torno dela, em meio a práticas de transmissão de saberes, valores, conhecimentos, matérias, currículos? ”.

Ora escrevemos sozinhos, ora, como no presente texto, escrevemos em parceria, “mas cada um de nós era vários, já era muita gente” (Deleuze & Guattari, 1995, p.11). Ora escrevemos COM prazer, ora COM pressão diante do produtivismo que atravessa o cotidiano das pós-graduações. Em todos estes COMs as cenas da pesquisa pulsam na trama da escrita que ganha uma (re)significação. O desafio de ensaiar a escrita parece ganhar uma forma: O que (re)significa ESCREVER COM?

Amorim (2001) discute a escrita da pesquisa como um momento de reclusão, isolamento, solidão, em que o campo de interlocução eu/ tu torna-se ele. Baseada na filosofia da linguagem de Bakhtin, a autora argumenta que o trabalho da pesquisa deve provocar um excedente de visão, uma exotopia, no qual o olhar do outro e com o outro se complementa. Conceito também caro para Zanella (2013), o olhar estrangeiro/exotópico  provoca “certo distanciamento do vivido” (p. 137) na escrita da pesquisa. A autora também faz referência ao escritor José Saramago citado por Zanella que diz: “Para conhecer algo é necessário dar-lhes a volta” (2013, p.147). A escrita da pesquisa deve então procurar  “dar a volta”, buscar vários ângulos, não a fim de encontrar uma vontade de verdade totalizadora e única a respeito do objeto que se propôs pesquisar, mas procurando, segundo Zanella (2013, p.147) os “sentidos vários, possibilidades próximas e remotas que nos ajudassem a entender as escolhas feitas e suas implicações, a imprevisibilidade e o medo que em nós provocou”.

Assim, encaramos o desafio da escrita acerca do Escrever COM, como uma espécie de metaanálise, em que trabalhamos sobre as vicissitudes da própria escrita da pesquisa.

Escrita como ato de pesquisa

Nossas pesquisas têm se alinhado ao que costuma-se chamar de pesquisa-intervenção. Segundo Aguiar & Rocha (2007), a concepção teórico-metodológica da pesquisa-intervenção opera na micropolítica do cotidiano, atuando no plano dos acontecimentos e buscando analisadores que problematizam eventos tidos como naturais. Paulon (2005) salienta que o momento da pesquisa é também de intervenção, no qual produção teórica, produção do objeto e daquele que conhece, só existe em relação. Intervir significa “vir-entre”, criando dispositivos de análise coletiva para a produção de acontecimentos (Paulon, 2005; Santos & Barone, 2006).

Em todas as análises, a pesquisa e a intervenção se entrelaçam, uma vez que  não apenas acompanhamos o cotidiano de algumas escolas públicas, mas temos criado um dispositivo de análise na escola, a oficina de vídeo, no qual estudantes discutem e criam vídeos que falam sobre o seu dia-a-dia2. No entanto, a pesquisa é “interventiva” não por instituir uma oficina ou qualquer outro dispositivo, inexistente no cotidiano institucional, mas a pesquisa torna-se “interventiva”, sobretudo, por produzir alterações nas formas de ser e estar dos envolvidos na pesquisa. Isto é, pesquisadores e campo se transformam neste encontro. (Carvalho, 2015).

Passamos meses nas escolas. Conversamos com diferentes sujeitos, perguntamos e somos perguntados, escrevemos diário de bordo, realizamos oficinas de vídeo, filmamos e somos filmados pelos jovens. Como transformar em palavras o que vivenciamos no campo? Como trazer para o campo da escrita, os encontros, os desencontros, as inquietações, as angústias e alegrias da experiência? Como colocar em diálogo enunciados produzidos no campo, com outros advindos das referências teóricas que também nos constituem como pesquisadores? Enfim, como trazer para a escrita este “entre” construído no processo da pesquisa COM, sem estancá-lo?

Estas várias indagações compreendem uma única questão: o problema da passagem não do ato da pesquisa à escrita, mas da própria escrita como ato da pesquisa. Para discutir a escrita inserida na política da pesquisa priorizaremos quatro pontos de reflexão: 1- A escrita como construção de mundos; 2- O processo de escolha dos analisadores da pesquisa; 3- O lugar dos afetos na escrita da pesquisa; por fim, 4- O (in)acabamento do texto: o leitor.


Escrita como construção de mundos

Retomemos a epígrafe pronunciada por Foucault: “O discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar” (Foucault, 2008, p.10). Em Foucault (2008, 2009), o discurso não se confunde com a fala, oratória, frases e enunciações. Ele também não se opõe à prática. O discurso é ele mesmo uma prática, ou melhor, constrói-se no interior dessas mesmas práticas. Assim, o discurso pode ser entendido como um conjunto de enunciados de um determinado campo do saber, os quais se constituem sempre como prática. A linguagem assim não representa a realidade, mas a constitui. Diz Araújo a respeito de Foucault: “ Os discursos não são conjuntos de signos (elementos significantes que reenviam a conteúdos e representações), pois fazem mais que designar: são práticas que formam os objetos que falam” (Araújo, 2008, p.  223).

Na posição de sujeito pesquisador3 que na escrita ocupamos, na rede discursiva do texto que produzimos, as experiências do campo se entrelaçam com a experiências dos nossos posicionamentos teóricos. Embora em todo o processo da pesquisa as questões teóricas balizem a relação que se estabelece com o campo, a escrita parece colocar esta relação em um outro lugar…

Não se trata de trazer para o campo da escrita os encontros realizados com as escolas, com os jovens, com os vídeos realizados, acoplando-os como apêndices das nossas matrizes teóricas, mas de provocar a tensão da desestabilização dos polos biunívocos: sujeito pesquisador - sujeito pesquisado. ESCREVER COM significa criar mundos e não representar. Mas qual(is) o(s) critério(s) dessa criação?

Zanella (2013), com base em Bakthin, defende que o relato da pesquisa, sua escrita, é discurso pois apresenta uma dimensão avaliativa, “que objetiva um posicionamento de quem o escreve e demarca a posição axiológica de seu autor” (p.132). Isto é, entre inúmeras vivências e experiências provocadas e provocadoras no encontro com o campo, acabamos por escolher algumas para criá-las na escrita. Na dimensão avaliativa, no corpus da pesquisa, em inúmeros encontros e desencontros, o que vai ser inserido no texto, o que pode a ser considerado relevante? Entramos assim no segundo eixo da discussão: O analisador.

Analisadores da pesquisa

O conceito de analisador diz respeito ao descentramento da figura do analista, para o processo do encontro, do “entre” que se forma no próprio processo de pesquisar. Segundo Rodrigues e Souza (1987) o analisador refere-se ao "acontecimento, indivíduo, prática ou dispositivo que revela, em seu próprio funcionamento, o impensado de uma estrutura social – tanto a não conformidade com o instituído como a natureza deste mesmo instituído" (p. 29). Para Aguiar e Rocha (2007) os analisadores são acontecimentos que funcionam como “catalisadores de sentido”,  pois desnaturalizam “o existente, suas condições, e realizando análise, desestabilizando a cena natural de um cotidiano que nos parece estático”  (p.656). Assim, não é necessariamente o pesquisador que faz a análise, mas o próprio acontecimento, no qual o pesquisador certamente também faz parte, sobretudo no momento da escrita.

Os analisadores também são dispositivos que micropoliticamente trazem contradições históricas, sociais, grupais, a partir da decomposição do que parece se colocar como homogêneo, estático, cristalizado. Em uma pesquisa, os analisadores podem acabar por substituir o analista, sendo assim eles quem dirigem a análise (Lourau, 2004). Para tanto, podemos deixar que os próprios analisadores escrevam por nós, ao passo que também vamos escrevendo com eles. É nesse “entre” que se encontra o acontecimento de uma escrita.

Na escrita da pesquisa os analisadores ganham relevância, funcionando como fio condutor do texto. No entanto, como construir os analisadores? Através das reuniões de pesquisa, discutimos sobre o ocorrido no campo e o que nos chamou a atenção, o que nos mobilizou e o que pareceu mobilizar o grupo. Os diários de bordo, as transcrições, as leituras teóricas, a produção de vídeo, os gestos, os olhares, os silêncios dão materialidade aos analisadores.

Por vezes ao nos depararmos com uma transcrição, uma cena que na hora não tinha nos chamado atenção, passa a atuar como um analisador. Por outro lado, um olhar ou um silêncio pode se tornar analisador logo no instante em que tal cena emerge. Assim, os analisadores são produzidos no entrecruzamento com o campo, com o grupo de pesquisa, com as transcrições, discussões teóricas, vídeos, dentre outros elementos.

Acerca desse encontro com os analisadores, podemos citar a pesquisa de mestrado intitulada “As práticas de preconceito e de tolerância: o outro como questão” (Mourão, 2014). Na oficina de vídeo que se propôs a discutir como se constitui o preconceito e a tolerância em uma escola pública estadual, o silêncio dos alunos pareceu tomar espaço em distintos momentos4. Destarte, a partir da transcrição, dos encontros orientados, das sensações experenciadas, o silêncio passou a ser um analisador que falou pela pesquisa e que também possibilitou o ato de escrever. Esse encontro foi um importante entrecruzamento que permitiu que a escrita fosse tomada pelo silêncio, ainda que o ato de escrever seja dirigido a alguém. Além disso, o conflito entre o que é dito e o que é silenciado dentro da pesquisa pode se colocar também no próprio ato de escrever: a escrita não precisa ser somente sobre a fala, mas também sobre os silêncios, os gestos, os olhares.

Através do analisador ‘silêncio’ também foi possível tornar a escrita poética, literária, e, sobretudo, afetuosa. Para Foucault (1994, p. 525) “certos silêncios podem implicar hostilidade virulenta; outros, por outro lado, são indicativos de uma amizade profunda, de uma admiração emocionada, de um amor”. O escritor Caio Fernando Abreu uma vez se questionou quanto barulho há num silêncio. Já Clarice Lispector disse “ouve-me, ouve o meu silêncio. O que falo nunca é o que falo e sim outra coisa. Capta essa ‘outra coisa’ de que na verdade falo porque eu mesma não posso” (Lispector, 1973, p. 35).

Assim no processo de (re)significação dos analisadores através da escrita, por que também não deixar esta se afetar pela poesia e pela literatura, e até mesmo pelas nossas próprias experiências? Skliar (2014, p. 129) diz que “[...] nós que transitamos pela vida acadêmica somos reprimidos fortemente ao escrever nossas próprias experiências [...] O discutível modelo da escrita acadêmica se instalou vertical e transversalmente no mundo educativo como se houvesse algum proveito decisivo nisso”.

Durante o processo de permear a pesquisa podemos problematizar os analisadores também a partir dos afetos. Durante o ato de escrever, é importante que os afetos não percam a sua potência. Escrever COM analisadores e COM afeto. Passamos para o terceiro.

Os afetos na escrita da pesquisa

Na escrita não há outra razão que não seja o amor e o desamor pelas palavras, a paixão e o desassossego pelas palavras, a atração e a repulsão das palavras (Carlos Skliar).

Na escrita da pesquisa é importante fazer uma boa discussão sobre o processo, as alegrias, os percalços, o inesperado. Os bastidores da pesquisa podem ajudar a construir o próprio texto. Neste sentido, a análise de implicação é uma ferramenta que possibilita o escritor se colocar no texto e no próprio processo da pesquisa.

No processo de analisar nossas implicações, escrevemos o que nos mobilizou e o que nos (des)estabilizou ao longo do processo da pesquisa: como chegamos ao campo? O que a nossa presença suscita nas pessoas, e vice-versa? O que acontece nas entrelinhas? Para Skliar (2014, p. 106) “há vida demais quando as palavras percorrem os lugares abandonados, os corredores escuros por onde o corpo não pode passar [...]”. E como há vida nas nossas palavras escritas! Nas entrelinhas que permeiam as nossas pesquisas, que habitam os nossos territórios.

O ato de escrever as implicações coloca em xeque a nossa vontade de produzir verdades, no sentido que analisamos que o outro também fala sobre nós, como diz Skliar (2014, p.1) “[...] escrevemos para transformar o que sabemos e não transmitir o já sabido. Se alguma coisa nos anima a escrever é a possibilidade de que esse ato de escrita, essa experiência em palavras, nos permita liberar-nos de certas verdades”. Assim, a escrita pode ser um convite para ir além de si mesmo, para abandonar um relato repetido, para livrar-se de uma identidade que teima em se colocar como centro do universo.

Muitas vezes é com base na escrita, através do diário de bordo, que a análise de implicação vai tomando contorno. Por que não colocar o próprio ato de escrever como uma análise de implicação? Esse exercício tão caro e tão difícil aos pesquisadores, escrever às vezes pode ser um tanto quanto ambíguo: tanto pode trazer prazer quanto dor. Para Skliar (2014), o ato de escrever em uma pesquisa pode ser um pedido, no sentido que é solicitado para relatar o que é próprio ao autor; para responder um texto alheio; para comentar ou definir; para elaborar ou pontuar. Essa escrita-petição é um argumento de autoridade que faz calar as perguntas.

No entanto, o ato de escrever também pode ser uma forma de resistir ao que está sendo pedido. Escrever pode ser um dispositivo que desnuda os afetos, que coloca em xeque o que foi experenciado no momento da pesquisa, que questiona o quanto foi difícil escrever ou não sobre determinada cena. Esse processo implica destituir o que uma vez nos foi constituído, e como um exercício doloroso às vezes fraquejamos. Abreu (2005, p.341) uma vez disse que “[...] escrever é enfiar um dedo na garganta. Depois, claro, você peneira essa gosma, amolda-a, transforma. Pode sair até uma flor. Mas o momento decisivo é o dedo na garganta”. Como é difícil enfiar esse dedo e descobrir o que vem depois! Escrever é inventar, é criar, é perguntar, antes de pedir, comentar, definir. Porém, como escrever? Skliar (2014) diz que a escrita é ensinada na própria escrita, independente dos métodos e das práticas.

No abismo da escrita, durante esse momento decisivo do dedo na garganta, por vezes encontramos labirintos tão difusos que nos perdemos. Ainda assim, perder-se também é um caminho. Decididamente, a escrita-pergunta, a escrita COM, implica aceitar que o caminho é feito ao andar, e que devemos questionar como lidamos com as nossas experiências e afetos, ao contrário de escrever SOBRE a realidade de outras pessoas e outros espaços.

Escrever é estranhar, é se sentir perplexo diante daquilo que narramos. Neste labirinto, toda a angústia de ser reprimido ou de não ser compreendido pode se transformar em combustível para escrever. O ato de escrever também é se destituir desses lugares de autor que explica e do leitor que compreende. Portanto, não existe um lugar a chegar ou uma missão, e assim é preciso “[...] não deixar de pensar que o mundo acontece entre brumas e que estamos sempre expostos numa nudez extrema. O que nos transborda é o incompreensível e o lugar de fragilidade é o lugar onde nos encontramos” (Skliar, 2014 p. 132). Quem dera permitíssemos que o incompreensível e o frágil penetrasse em nossa escrita, mesmo correndo todos os riscos possíveis. Entre o dedo na garganta e a nudez extrema, deveríamos evocar mais escritas-perguntas do que escritas-petições. Escrita afeto-pergunta. Passemos ao quarto e último ponto.

O (in) acabamento do texto

Seria a escrita do texto da pesquisa o seu possível encerramento? Seria a paralização do vivido, experenciado, interpretado, discutido, descartado encerrada na publicização da pesquisa após sua escrita?

A escrita pode ser um ensaio, no sentido que não precisa estar submetida às regras metodológicas científicas que corroboram para o início, o meio e o fim de cada texto. Esse ensaio é, de certa forma, uma atitude de suspeita daquilo que é entendido como ciência. O ensaio não trabalha com categorias, mas sim com a experiência. Para Larrosa (2002, p. 21), a experiência é:

... o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca [...] Walter Benjamin, em um texto célebre, observou a pobreza de experiências que caracteriza o nosso mundo. Nunca se passaram tantas coisas, mas a experiência é cada vez mais rara.

Ao pensar num texto implicado, carregado de afetos e rigoroso com o próprio processo da pesquisa, a escrita aproxima-se do ensaio como experiência, assumindo um caráter antissistemático, pois “não pode obedecer nem se submeter às regras de jogo da ciência e da teoria organizada, segundo as quais a ordem das coisas é a mesma que a das ideias” (Skliar, 2014, p. 104). O ensaio não inicia a partir de um princípio, nem culmina em um veredito final.

Ensaiar a própria escrita é abri-la para a experiência. Nesta, não existe uma pretensa vontade de verdade, nem uma rígida precisão de conceitos pré-fabricados; mas, ao contrário, abre-se para a perplexidade, para o incompleto.

Além disso, a escrita é um ato que se volta para o outro para que sua ficção termine, como diz Skliar (2014, p. 130) “o escritor não fecha a palavra, ao contrário, dá a possibilidade para ao outro de fechá-la”. A escrita, dessa forma, acaba transbordando a própria obra, deixando que os outros possam fechar por si mesmos a palavra de alguém (Barthes, 2003). Neste sentido, é possível afirmar que o texto fica (in)acabado para que o outro possa (re)significá-lo.

Zanella (2013), baseada em Bakthin, discorre o outro como leitor, que ela chama de expect-ator. Este, constrói novos contornos, novos caminhos para o texto. Mesmo que a escrita da pesquisa tenha a sua especificidade em relação ao gênero literário, este último mais aberto à criação e às inventividades estéticas, há também no texto acadêmico um ESCREVER COM o leitor. Assim o expect-actor é co-criador do texto. Sua leitura também poderá provocar uma experiência não planejada no ato da escrita.

Por fim?

Que seja possível, então, ESCREVER COM quem nos lê, com o outro que habita o nosso texto. Que a escrita como ensaio abra novos possíveis, construa uma linguagem que se distancie da pretensa vontade de verdade que muitas vezes percorre os textos acadêmicos. Que as nossas pesquisas possam ensaiar mais do que descrever, comunicar e pedir. Cabe, por fim, os questionamentos que esta metaanálise tentou construir: quais contornos você(s) leitor(es) farão com base em nossas problematizações? Quais análises, críticas e (in)diferenças produzimos, ao trazermos como discussão a própria escrita da pesquisa?




Referências

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Data de submissão: 30/07/2015
Data de aceite: 15/09/2015

 

1 Fazemos referência ao grupo de pesquisa coordenado pela Profa. Dra, Luciana Lobo Miranda: “Modos de Subjetivação, Educação, Mídia e Juventude” que reúne estudantes e graduação e pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC), dentre os quais a dissertação “As práticas de preconceito e de tolerância no contexto escolar: o outro como questão” de Lorrana  Calíope Castelo Branco Mourão  também faz parte. 

2 As oficinas de vídeo das pesquisas “Juventude, Mídia e Sexualidade” (Miranda e cols., 2013; Miranda, 2014), “Juventudes e Mídia: Um estudo sobre o consumo, apropriação e produção de mídia por jovens estudantes de Escola Pública de Fortaleza” (Miranda, Cysne e Filho, no prelo), “As Práticas De Preconceito E De Tolerância No Contexto Escolar: O Outro Como Questão” (Mourão, 2014) são sempre planejadas de acordo com o tema e com a singularidade do cotidiano de cada escola envolvida.

3 Para Foucault (1995), o sujeito não é uma substância ou identidade, mas sim um efeito das relações de saber e de poder. Assim, em determinados contextos sócio históricos, o sujeito se posicionará de formas diferentes, tendo, portanto, distintas posições de sujeito de acordo com os diversos jogos de verdade. Mais do que discutir uma identidade, o que importa é analisar os diferentes modos pelos quais os seres humanos se tornaram sujeitos.

4 Algumas cenas em o que silêncio surgiu foram: quando perguntamos aos alunos se eles gostariam de falar sobre situações em que os colegas sofriam preconceito; quando questionamos acerca da política da escola de lidar com os casos de preconceito; e, por fim, quando conversamos sobre o preconceito que uma aluna assumidamente lésbica sofria.

I Doutora em Psicologia pela PUC-RJ. Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC). Membro do Laboratório em Psicologia, Subjetividade e Sociedade (LAPSUS) e Coordenadora do Programa de Extensão TVEZ: Educação para o uso Crítico da Mídia. Email: lobo.lu@uol.com.br e loccbm@gmail.com

II Mestre em Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC). Membro do Laboratório em Psicologia, Subjetividade e Sociedade (LAPSUS). Professora da Faculdade Leão Sampaio. E-mail: lorranamourao@leaosampaio.edu.br

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