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Revista Polis e Psique

On-line version ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.7 no.1 Porto Alegre Jan./Apr. 2017

 

ARTIGOS

 

O destino não pode esperar: apontamentos sobre a inelutável improrrogabilidade

 

Destiny cannot wait: notes on the ineluctably non-deferrable

El destino no puede esperar: apuntes sobre lo ineludible de lo improrrogable

   

 

Tania Mara Galli FonsecaI

I Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil.

 

 


RESUMO

O presente texto associa a noção de improrrogável ao destino que não pode esperar, ou seja, aos acontecimentos que afetam uma vida de forma intempestiva e inelutável. Aponta este momento, como próprio ao tempo kairós, que possibilita ultrapassagens e devires frente a momentos de crise e teste às potências do corpo, impessoais e indeterminadas. Corpo-esgotado e não apenas cansado. O improrrogável, assim, se torna irmão do desastre, da catástrofe, da morte e do devir. Ergue-se como um destino realizado às nossas costas e às nossas custas e pode constituir-se em ocasião de artesania de um corpo-sem-órgãos que expele elementos potenciais para além do ressentimento e da queixa.

Palavras-chave: Improrrogável; Acontecimento; Corpo-sem-órgãos; Uma Vida; Esgotamento.


ABSTRACT

This text relates the notion of the non-deferrable to a destiny that cannot wait, to events which affect a life in an untimely and ineluctable way. This moment is aligned as belonging to kairos time which facilitates surpassings and becomings in face of moments of crisis which test the impersonal and indeterminate powers of a body—of a body-exhausted and not just tired. The non-deferrable thus becomes the next-of-kin of disaster, of catastrophe, of death and of becoming. It presents as a destiny realised behind our backs and on our backs and which possibly gives rise to an artesanal crafting of a body-without-organs which releases potential elements that go beyond complaint and resentment.

Keywords: Non-deferrable; Event; Body-without-organs; A Life; Exhaustion.


RESUMEN

Este texto asocia la noción de lo improrrogable a un destino que no puede esperar, es decir, a los eventos que afectan una vida de manera inoportuna e ineludible. Se apunta este momento como proprio al tiempo kairós que posibilita más-allás y devenires frente a momentos de crisis a fin de poner a prueba los poderes impersonales e indeterminados de un cuerpo, de un cuerpo-agotado y no sólo cansado. De este modo, lo improrrogable se convierte en el hermano del desastre, de la catástrofe, de la muerte y del devenir. Se destaca como un destino realizado a nuestras espaldas y sobre nuestras espaldas y que puede dar ocasión a la artesania de un cuerpo sin órganos que expulsa elementos potenciales más allá del resentimiento y de la queja.

Palabras-clave: Improrrogable; Acontecimento; Cuerpo-sin-órganos; Una Vida; Agotamiento.


 

 

De que se trataria fazer parte da Comunidade do Improrrogável e como começar a dizer alguma coisa sobre este tema que nos parece tão importante quanto incomum em sua formulação? Roubamos de um texto de Costa (2010) o primeiro termo de nosso título. Gostamos de começar pelo título, por dar um nome ao que virá e que poderá funcionar como ímã às corredeiras do pensamento, uma aspiração de seus fluxos da qual apenas esperamos que encham de ar nossos pulmões que se encontram pulsados pelo ir e vir da espiral dos ventos. Aspiração/ inspiração/expiração, operações das quais não sabemos, ainda, se farão girar a rosca que perfura as imagens de nosso pensamento. Veredas de desassossego que não divisamos com clareza neste início em que ainda não efetuamos o passo. Encontramo-nos à espera, no limiar da escrita por vir, em busca de palavras para aquilo que talvez fosse importante ser dito para vir a desentalar o que se encontra preso na garganta e nas malhas de nossa percepção difusa e sensível.

Seria mais fácil se logo viéssemos concordar e acertar sobre o que se faz improrrogável em nosso tempo, se viéssemos aceitar dizer, até com certa ligeireza, as inúmeras coisas que precisariam ser mudadas com urgência, reconhecendo que a inadiabilidade ou impreteribilidade do que não suportamos mais aguentar diz respeito aos inextrincáveis laços de nossa vida pessoal e individual com os de nosso contexto social e político. Até confessamos que, no ímpeto de um primeiro momento, diante da página em branco, elaboramos uma lista de pistas sobre o que poderia vir a ser traduzido como improrrogável. Perguntávamo- nos, então, sobre o quê se faria improrrogável em nossos dias, colocávamo-nos como guerreiros artífices diante de um destino que não pode esperar. Naquele momento, ainda não divisávamos a última flecha que nos seria destinada, ou seja, aquela que guiaria nossa derradeira direção para contemplar o ponto de uma vida em direção ao inelutável da morte e do esquecimento. Tomávamos o improvável como o que seria preciso fazer e para o quê se deveria atentar para forçar a parede do Eu-Mundo e nela encontrar uma falha por onde fazer penetrar o vento de alguma invenção. Obtivemos, naquela ocasião, o que expomos a seguir:

O por vir, o futuro incessante, o outro, o eu espelhando sua dessemelhança - o não-eu, a consciência de nossas faculdades discordantes e violentadas de seu acordo passivo e regrado pelo hábito, o esgotamento e não o cansaço, o querer por inteiro o que se deseja até seu último grau de revelação, o devir como essência do ser, a noite antes do dia e também durante e depois, a ‘esquize’ antes da unificação psíquica coerente, a clínica e a crítica como disruptoras de modos de ver, sentir, de ser e estar no mundo, a coragem da verdade a contrapelo da ilusão das verdades conhecidas e repisadas, um pouco de ar para não sufocar, outro pouco de água para lavar feridas e levar ao esquecimento feliz, o fogo para fazer arder os braseiros do imaginário e das origens perdidas, o dizer e expressar para não esquecer o que pede elaborações intermináveis, o texto ainda ilegível, a imagem tornada visualidade, a lógica estilhaçada e destronada, a faca afiada para as incisões necessárias, a dupla realidade do agora, sempre agora e também ontem e amanhã, a crença nas insignificâncias, nos fragmentos e no não-explícito cifrados em impressões inconscientes, um para-além da memória da vontade de verdade e da consciência em direção ao pensamento que aprende com os signos e produz conhecimento para além das vivências de um eu, a quebra das belas formas canônicas...

Poderíamos alongar as pistas, mas, na direção a que as deixamos levar e em nossa releitura das mesmas percebemos que estas ainda parecem indicar uma espécie de denegação daquilo que é essencialmente improrrogável. Compreendemos que nossa lista primeira referiu-se antes de tudo a uma luta premeditada pela nossa consciência empreendida enquanto estávamos ainda protegidos do choque da fatalidade, do eterno óbvio da morte e do esquecimento, este estado que, pelas palavras de Artaud (2004. p.190) poderia ser dito como ―uma muralha de identificação impossível‖ e que nos cega diante da imutável afirmação ―todos morreram ou morrerão. Sempre será assim‖ (Costa, 2010, p. 61). Confundíamos desta maneira, nossa própria agência com as impiedosas forças dos acontecimentos que nos fazem declinar do prumo rotineiro, desviando-nos do que nos é familiar e conhecido. Invertíamos os elementos pela ilusão egóica e espiritualizada de que a potência de nosso corpo se manifestaria antes do fato do mesmo ter sido colocado à prova. Consequentemente, elidíamos, como mostra Lapoujade (2002, p. 82), que ―é depois do ato, ou melhor, depois do agente que a potência [do corpo] é revelada como tal‖. Não nos restam dúvidas, entretanto, de que em frequentes momentos dizemos para nós mesmos ―eu não aguento mais‖ e que neste estado de cansaço e mesmo de desespero e impotência, simultaneamente já não conseguimos impressionar, pelo pensamento, o nosso próprio corpo não pensante e que não está jamais no presente.

Que pode o corpo diante do que não aguenta mais? Nosso cansaço, nosso rastejar, nosso revirar-se para ficarmos sentados a maior parte do tempo, tudo se passando como se não pudéssemos mais agir ou responder em ato, como se não tivéssemos mais controle sobre o que se passa em nós e que nos faz derivar para a evidência que aponta ―que todos estes corpos são dotados de uma estranha potência, mesmo no esmagamento, uma potência sem dúvida superior àquela da atividade do agente‖ (Lapoujade, 2002, p. 83). Referimo-nos a um corpo animal que é preciso adestrar e a um corpo anômalo que é preciso disciplinar através de um verdadeiro sistema de crueldade que se impõe e age do exterior. Não seria, pois, desta imersão de nosso corpo nas forças que o submetem e o fazem sofrer desde uma exterioridade que poderia advir a sua potência de resistir ao cansaço e ao sofrimento? Do mesmo modo, devemos evidenciar que o corpo não aguenta mais também aquilo que o submete de dentro, ou seja, não suporta a própria

―alma‖ que lhe foi criada e que se traduz como efeito do recalque de sua vitalidade. Agora, é esta ―alma‖ - humana, demasiado humana -, como nos diria Nietzsche em sua Genealogia da Moral (1887/1998), que se torna o agente, sendo que devemos reconhecer que o nosso cansaço ao insuportável traduz-se, pois, tanto pela exterioridade que nos afeta e nos impõe o sofrimento de pertencer a um certo mundo, quanto pelo que nos foi possível constituir como um si próprio, ou seja, pela nossa subjetividade, erigida segundo os modos de virmos fazer ponte entre as pulsões instintivas e os ditames histórico-afetivos de nosso meio associado. Em nossas pistas iniciais, podemos perceber que falávamos a partir de uma forma-homem como moldagem civilizatória, apequenamento e domesticação, investida do grande cansaço do niilismo reativo. Este, por sua vez, correspondendo

a um enfraquecimento de Deus como norteador, [...] e à ascensão do homem ao lugar do fundamento. [...] niilismo burguês que aposta no futuro como sendo uma compensação das fraquezas e imperfeições do presente e que tem o homem como mestre e dominador da natureza (Henz, 2010, p.85).

É desta maneira que concluímos que deixávamos de lado a sombra deste incessante-não pensante-inorgânico que nos advém e que se refere ainda a tudo que revém como filiação do eterno retorno; também elidíamos o morrer das situações que pré-julgamos como inesquecíveis em nossa vida. Enfim, recusávamos o próprio esquecimento a que estamos destinados, apesar de tudo o que viermos fazer quando ainda premidos pela ideia de uma vida que julgamos infindável. Assim, lemos, agora, que nossas iniciais pistas concernem, em último grau, a uma negação do inelutável da morte incessante que nos assedia, indicam nossa atitude de rejeitá-la como se deveria recusar o veneno impingido pelo inimigo. Ao nos propor tão somente ao combate artesão, consciente e voluntarioso, deixávamos de lado a questão de nossa inumanidade, profunda e escura, nunca presente em nosso presente e que, por suas próprias artimanhas, contém e se utiliza de uma vida, de uma vitalidade, sem requerer a nossa intervenção e juízo.

Sabemos que nosso corpo é silencioso nos hábitos normais de nossos dias e que apenas lhe damos atenção apenas quando, por fim, ele colapsa e entra em crise, momento em que sentimos, igualmente tudo o que falta como condições às ações de nosso espírito ou pensamento. O pensamento começa com e no corpo, através de sensações. Havíamos esquecido este detalhe em nossa agenda ativista. O corpo, este velho corpo que está colado a nós e que nos envelopa, manda mais do que o grau máximo de nossa vontade consciente. Estamos imersos em seu mundo, submergidos por seu regime silencioso, vagaroso e insidioso. No corpo formam-se condições para as sensações, para as percepções, uma base, uma terra que viremos agrimensurar a posteriori. Assim, preferíamos ainda pensar que, frente a qualquer impiedoso acontecimento, haveriam negociações possíveis para a reversibilidade do acontecido. Evitávamos o inevitável, adiávamos o inadiável e impreterível e, sobretudo, confrontávamos nossas próprias forças com as do evento que se abateu sobre nossas vidas, desejando sobrepô-las ao modo de uma oposição, de um contra- ataque.

O cotidiano, este estado que sempre nos escapa, situava-se, diante de nós, como uma necessidade a ser restabelecida e reposta. Hábito e memória nos acionavam a agir em prol de tal recuperação. O tempo estilhaçado resultante de seu esboroamento, disjuntava a nós próprios como perdidos náufragos, tornando urgentes as ações de sua reconciliação com o que havia sido até então. É certo que divisávamos situações graves e incendiárias que nos inoculavam, por sua violência, os germes de um estranhamento frente a tudo o que até então havia sido reconhecido como nosso mundo familiar. Enfrentar a crise e seus efeitos disruptores exigia como que um bombeamento do tempo ao mesmo para trás, em direção à sua retroação com vistas à restauração do equilíbrio perdido, e para diante, como que se quiséssemos transpor com um pulo aquilo mesmo que se apresentava como presença improrrogável, como um destino que não pode esperar. O amanhã obscuro tornava-se também temível diante da fratura e do colapso das condições de nosso hábito. Preferíamos dizer não ao destino que não pode esperar, que nos deixou sem proteção e declinou sobre nossas cabeças como raio fulminante ao nosso modo de viver e estar no mundo. Desalojados pelo acontecimento de tal perda, ainda pensávamos em buscar em nossa vontade e coragem alguma âncora, algum fiapo de ânimo para restabelecer a ordem de um mundo que relutávamos em perder. Lutar contra o improrrogável nos situava em cenas, mesmo que ainda somente imaginadas e desejadas, de um combate entre um anão e um gigante, desparelho, disparatado e inconsolável. Retardando a elaboração da ação de tais forças violentas em nós, nossa luta elidia o luto pela perda e negava, sobremaneira, os devires possíveis imanentes ao que perdíamos. Desejar o passado e voltar as costas para futuro devir, eis a posição em que nos situávamos. Aquele improrrogável que escorregou sobre nós com sua intempestividade já não podia vir a ser percebido a não ser com lástima e ressentimento. Roubava-nos a potência de agir de forma inventiva, atirando-nos ao plano de um desejo de tudo fazer retornar idêntico ao que havia sido. Ali, no momento do desastre, desse limiar que nos escancara o real, nesse ponto de passagem onde a vida se torna mais exposta e para a qual é inútil qualquer reinvindicação, erguíamos a barreira contra o que nos afetava, em oposição e contra-ataque aos blocos de sensação disparados pelo tremor do solo sob nossos pés, pela vertigem do corpo experimentando o fim de um mundo em que nos assentávamos até então. Diante de um morrer ou de um fim de um certo mundo, estendia-se como aparição o fim da própria vida e do desejo que a impulsiona. Julgávamos estar também morrendo quando tudo morria em nosso mundo.

Tomando uma nova direção, nosso pensamento nos conduz, agora, para uma lucidez absurda que faz relampejar a ideia do improrrogável de uma outra maneira. Não sabemos os efeitos desdobrados desta outra e segunda direção que, em verdade, consideramos sempre ser justo que seja colocada como primeira, e nos perguntamos se, então, não estaríamos nos situando numa posição de resignação à morte? Se assim fosse, seria preciso largar a página que está sendo escrita para que a mesma já não porte sequer um sinal de nossa posição contra o desastre do esquecimento e da morte. Teríamos de nos convencer de que nada mais nos resta a não ser esperar este destino que não pode esperar, que foi impreterível. A quê e a quem se destinariam nossas palavras, impulsionadas pelo nosso escrever incessante e sempre por vir? De que se trata este destino que não pode esperar e frente ao qual a vida sangra em nós como ferida inelutável?

Sem dúvida, o improrrogável diz-nos respeito e fala-nos de um tempo de urgência, de tensões das quais gostaríamos de nos livrar e para as quais desejaríamos resoluções. Coloca-nos em um estado de luta contra algo, e, provavelmente, contra nós próprios, invadindo-nos com sua estridente sirene, como um grito de perigo lançado no meio da noite, alagando de medo, dor e sofrimento os espaços de nossa existência. Levanta-nos das cômodas poltronas, produz aguilhões em nossa consciência, distende nervos e músculos, eriça a pele e faz ranger os dentes, chega-nos como um invasor incômodo e mal comportado enquanto se torna suplício insistente em busca de uma curva desviante que viria aliviar certas visões oferecidas nas situações presentes. O improrrogável se faz inteiro à percepção quando o sentimos sob a condição de abalo. Neste tempo kairós, tempo da oportunidade e do agora-já, vemo-nos, em um lance, habitando tempos diversos, épocas díspares que coexistem e se embaralham, nossos instantes se tornam infindáveis cargas de visões pretéritas- futuras, tendo-nos sido possível juntar, em pensamento, impressões de temporalidades díspares que estiveram tão bem separadas e cindidas no ritmo cronológico de nosso cotidiano. Uma disjunção inclusiva opera um momento de suspensão do tempo que nos coloca em uma zona liminar, indiscernível em sua marcação de início, meio e fim. Deslocados por tal experiência, vimo- nos recobertos por seus efeitos que colorem e marcam todo o nosso ser distinguindo-o como mais ou menos potente, como mais ou menos aguerrido, como dotado, enfim, de atributos mais ou menos eficazes na preservação e na ampliação da vida que sentimos morrer. Momento em que somos testados diante do que simplesmente eclode diante de nós como uma imagem sangrenta e sacrificial e que, no entanto, exigiu muito tempo para a sua apresentação sob o modo de um acontecimento. Momento de prova de nossas forças em que, sem mesmo sabermos de onde e como, buscamos potências para resistir ao que nos abala e afunda. No instante improrrogável, situamo-nos diante da presença de um outro daquele mesmo mundo que nos foi, até então, habitual. Tornamo-nos estranhos a nós e disjuntados, restamos diante do que nos aparece com a aparência de um animal com vísceras à mostra, detido no solo, com seu ventre aberto. O improrrogável, desse modo, se torna irmão do desastre, da catástrofe, da morte.

Assim, para dizer alguma coisa, foi-nos importante perscrutar a palavra Improrrogável, tão incomum em nosso léxico cotidiano. De que se trataria algo improrrogável nos nossos dias? Não desejávamos nos deixar ir em direção a uma retórica de deveres para colocar o mundo e a vida em linha reta e nos trilhos; não suportaríamos nos proteger em respostas dirigidas facilmente a domínios de saberes e práticas que não dominamos, como o das artes, por exemplo, fazendo repousar no mesmo toda uma utopia que nunca vemos concretizada. Micropolítica, pormenores insignificantes, memórias inventadas em prol de uma história a contrapelo, poesia como recurso metafórico ao sentido do discurso crítico, revirações do habitual em acontecimentos intempestivos, e poderíamos prosseguir elencando tentativas que, após terem sido feitas e concretizadas, em geral nos deixam ainda o vazio das respostas. Vivemos tempos condicionais: tudo se passa através de um ―se fosse assim, de um ―poderia ter sido, de um― gostaríamos que fosse‖. Este ―se‖ que se aloca junto ao nosso saber e ao nosso desejo, que se junta à ilusão de estarmos em posição favorável de enunciação, que é, enfim, fruto de muitas de nossas pesquisas e estudos, transforma-se em fio de vertigem quando somos inquiridos a dizer sobre o que nos seria improrrogável hoje. Pendurados neste fio, que é quase um fim que nos aproxima da queda, tentamos equilibrar por palavras, as sensações que nos possuem diante do que seria Improrrogável.

No dicionário, encontramos que o termo se refere ao que não se pode prorrogar, como um prazo jurídico inadiável, como aquilo que seria impreterível, improtelável e impostergável, urgente; seu antônimo, o prorrogável, se diz como aquilo que é adiável, como o que faz durar além do tempo estabelecido, dilatando-o ou alongando-o. Sabemos de prazos inadiáveis quando estamos em situação de concursos, de prestação de contas e outras cujo término se mostre fixado em um dia e hora definidos pelos cânones legais. Pagamos juros de mora ou mesmo temos direitos suspensos quando este tipo de improrrogável nos chega como cobrança e dívida. Ele se refere a algo palpável e mensurável e se concretiza em uma linha de contas a pagar ou a receber que também constitui nossa existência cotidiana e fixa-se no estrito senso de assujeitar qualquer um a um desígnio estipulado em termos legais. Mas não seria este o sentido de improrrogável que aqui interessaria desenvolver. Gostaríamos de nos enredar nos improrrogáveis sem prazo de validade e que, apesar de serem alongados em sua duração, ainda assim, se mostram urgentes e inadiáveis. Algo que é da ordem de uma urgência, mas que ao mesmo tempo, por sua complexidade, não encontra solução única e final suficiente para resolvê-lo de uma só vez. Falamos de algo que se constitui como uma espécie de busca, de um por vir, de uma travessia sem garantias e inesgotável, de um direito ao devir. Quando a tempestade com seus ventos e raios violenta árvores e as arranca de seu solo, quando um acidente de trânsito se torna fatal, quando algum bebê nasce sem a suficiente capacidade respiratória, quando alguém de 90 anos falece em sua cama doméstica, quando um coração enfarta enquanto seu portador, sentado em alguma poltrona, vê TV, quando, pela manhã, à mesa do café, alguém sofre um AVC grave, quando as vidas na UTI penduram-se por um fio que toda a ciência não consegue reter, quando um incêndio ou inundação consome todos os bens de uma família qualquer, quando, ao despertar, sentimo-nos como saindo de um túmulo devido aos nossos estranhos sonhos, quando isso e mais aquilo se comportam como um raio fulminante que corta nosso cotidiano rotineiro, é o instante que nos empurra às fronteiras do abismo (Costa, 2010). Diante do impiedoso acontecimento, restamos abaixados aos efeitos do mesmo sobre nós. Servimos-lhe de modos de passagem, emprestamos-lhe nosso corpo para dar a ver a dimensão de sua efetuação. Diante do tsunami ocorrido no Japão anos atrás, dos frequentes desastres aéreos, dos atuais jogos bélicos do terrorismo mundial, das balsas afundadas de refugiados, da violência das guerras de nossos dias e seus inocentes mortos, enfim, tantos eventos grandes demais para caber em nossas emoções e em nossa intellingenza stato i particolari, o que nos resta senão acolher à altura aquilo que nos acontece como um improrrogável, já acontecido, já posto como um envelope no qual nos situamos imersos e adentrados?

É desta maneira que a rosca de nosso pensamento nos dirige a uma situação ambígua em relação à questão do que seria este improrrogável de que nos ocupamos neste texto: ao mesmo tempo, o improrrogável ergue-se como um destino realizado às nossas costas e às nossas custas. Uma vez tendo acontecido, o acontecimento já se faz como dito e inscrito, sem salvação possível e torna-nos apenas testemunhas impotentes. Por outro lado, se tivermos sorte, continuamos a viver após seu ocorrido. Se morrer é um mantra necessário ao que nos acontece, também, o viver com e após o desastre, se impõe para além de uma queixa ressentida.

Se, como nos diz Sartre (1971/1988), entramos na morte como num moinho, então compreendemos que se voltar para onde a vida se encontra mais definhada, não significa curá-la. A cura, a recuperação refere-se a uma pretensão tão inútil quanto o desejo de governar, assevera-nos Costa (2010). Enquanto a morte nos assombra em qualquer momento, nossas vivências nos mais intensos momentos contemplam apenas o que pode ser conservado à distância, reservam-se apenas como imagens rememoradas ou, então, esquecidas. A perda é sua marca e a sua incerta recuperação sempre se mostra irreconciliável com o que foi. Mas, diante dessa vida que se esgota na ampulheta do tempo, que se desfaz em pó de areia, deixando-nos tão somente rastros e vestígios, ainda podemos dizer que o destino não pode esperar?

Destino, de que se trata esta palavra tão massacrada por horóscopos e cartomantes e que, aqui, recebe nosso contragolpe quanto ao seu sentido ordinário de apontar as direções de um futuro previamente determinado e reconhecível. Diríamos que a palavra destino já não serve para antecipar o grau de sorte ou azar que nos espera, torna-se opaca demais para a cristalina bola de vidro através da qual os humores gasosos dos astros traçariam linhas que, apesar de incertas e efêmeras em suas tendências, ainda assim se tornariam imagens suficientes para alimentar, nos crédulos, a crença de sua interferência e controle sobre o futuro de suas vidas. Nosso contragolpe atinge em cheio estes tipos de homem que poderiam vir a ser chamados - o da tautologia e o da crença. O homem da tautologia, como nos mostra Didi- Huberman (1992/1998, p.39), vê o destino como uma profecia, o destino é sempre depois, nada mais se pode esperar deste tempo presente. Ele ―terá fundado seu exercício da visão sobre uma série de embargos em forma de (falsas) vitórias sobre os poderes inquietantes da cisão‖. Poderíamos imaginar que tal incrédulo diria: ―o que vejo é aquilo que é, nada mais‖. Há, aqui, uma aposta na recusa da temporalidade daquilo que vê, uma recusa à aura jacente do mundo e de si e, ele, como incrédulo, se contenta com isso. Quando, por exemplo, diante de uma tumba tal homem se detém, não quer ultrapassar a cisão aberta pelo que o olha no que vê. Já no segundo caso, referido ao homem da crença, encontramos um querer dirigir-se para além da cisão inelutável do ato de ver, pois, em sua crença, ele quer superar – imaginariamente- tanto o que vê quanto o que o olha. Sua crença é a de que pode continuar a viver um grande sonho acordado; para ele, a vida, mesmo quando morta e enterrada, vive em uma outra parte, em um alhures; este homem torna sua experiência de futuro como um exercício da crença: trata-se, entretanto, de uma vitória tão miserável quanto aquela do homem da tautologia. Diante de humores gasosos, diante de algo que se esvai e compõe como nuvens, sua crença ainda reitera um além do que está posto, e será sua própria vida com suas vicissitudes que se verá eclipsada, relegada por uma instância invisível a prever. Toda a concretude de uma existência colocada sob o prisma do tempo ver-se-á, diante de sua negação, preterida por um alhures mais ou menos grandioso e metafísico.

Diante do destino que não pode esperar, qualquer um pode ter estes tipos de escapes. No primeiro caso, o da tautologia, aquilo que é visto eclipsa aquilo que o olha, evita a inelutável cisão do próprio ver. Trata-se de um viver na aparência daquilo que a visão percebe, sem aura, sem longínquos, sem a espessura dos tempos. No segundo caso, aquilo que é visto necessita de um desvio ainda maior, de uma negação, poderíamos dizer, pois o que é visto não se trata mais de uma perda aqui e agora, como se imaginássemos alguém diante de um morto que fora querido e amado. Este viverá em outro lugar, além desse nosso, sobreviverá ao preço de que o livre da face pior, a de sua perda. Em troca, prefere nada ver para crer em tudo. Constatam-se, assim, por toda a parte, tentativas de escape à morte, ao desaparecimento e ao esquecimento. Para o crédulo, uma tumba se torna tão somente em ―caixa de ressonância para uma maravilhosa – ou temível- sinfonia de trompas celestes. (...) as tumbas deviam esvaziar-se de seus corpos para se encher de algo que não é somente uma promessa – a da ressureição‖ (Didi-Huberman, 1992/1998, p. 43). No crédulo, uma construção consoladora sustenta um tempo que é rejeitado como perda, e no incrédulo, o nada a ver a não ser o que se apresenta aos olhos, estaria privado de imagerie e de toda a ficção possível. Posicionamentos binários,

pensamentos do dilema [que] são portanto incapazes de perceber seja o que for da economia visual como tal. Não há o que escolher entre o que vemos (com sua consequência exclusiva num discurso que o fixa, a saber a tautologia - e o que nos olha (com seu embargo exclusivo no discurso que o fixa, a saber: a crença). Há apenas que se inquietar com o entre. (Didi- Huberman, 1992/1998, p.77).

Diástole e sístole, dilatação e contração, fluxo e refluxo do mar que bate, do ar que vem, entra e sai, da aspiração/inspiração/expiração como tríplice operação do encontro com as forças da vida e com esse entre que nos inquieta, como uma rachadura na parede que a cada vez que olhamos ganha um novo traço. Eis a que se referem estes momentos em que o que vemos começa justamente a ser atingido pelo que nos olha, momento sem excesso e sem ausência de sentido que se abre naquilo que nos olha no que vemos. Descentrar-se como o pivô do que nos acontece, perceber o acontecimento como aquilo em que nos encontramos mergulhados em todas as direções de nossa espacialidade no mundo, abjurar a reversibilidade, nutrir-se de uma única crença: a de que estamos destinados ao nosso destino. Tratar-se-ia, então, de virmos, em genuflexão, saudar nosso sofrimento pelas perdas como saudamos algo que nos daria uma salvação em outra vida? Poderíamos alimentar a posição de sofrer os acontecimentos de um destino que não pode esperar, sem vir a jogar a alhures os seus efeitos e sem negá-lo como o que contrai tantos insuspeitos efeitos? O que podemos em relação ao que se encontra nomeado como o incontrolável, como o incessante morrer das formas de nosso mundo, como o inadiável voltado para o esgotamento e que, por estranhas forças, nos faz viver estados de mutação e de estranhamento?

Junto a Deleuze (1968/2006, p. 128), buscamos a acepção de destino que nos fascina e que, no momento, vem a calhar:

O destino não consiste em relações de determinismo que se estabelecem pouco a pouco entre presentes que se sucedem conforme a ordem de um tempo representado. Entre os presentes sucessivos, ele implica ligações não localizadas, ações à distância, sistemas de retomada, de ressonância e de ecos, de acasos objetivos, de sinais e signos, de papéis que transcendem as situações espaciais e as sucessões temporais. Dos presentes que se sucedem e exprimem um destino, dir-se-ia que eles vivem sempre a mesma coisa, a mesma história, apenas com uma diferença de nível: aqui mais ou menos descontraído, ali mais ou menos contraído.

Poder-se-ia pensar o destino, portanto, como o acontecimento de Uma Vida em nós, que operando como campo transcendental imanente, se distingue da experiência, na medida em que não remete a um objeto nem pertence a um sujeito. Destino/Uma vida que se apresenta, nas palavras de Deleuze (2002, p.10), ―como pura corrente de consciência a-subjetiva, consciência pré-reflexiva impessoal, duração qualitativa da consciência sem um eu.‖ Puro campo de imanência que se reporta a algo que está em toda a parte e em todos os momentos e que, transporta sua singular neutralidade de virtuais para sujeitos e objetos. Uma vida que acontece num tempo vazio no qual se vislumbra o acontecimento por vir e o já ocorrido que coexistem com os acidentes d‘a vida correspondente. Destino/Uma Vida que se atualiza em um estado de coisas e em um estado vivido que fazem com que ele aconteça em algo ou em alguém, pois o destino de uma vida somente se faz formalizado em um sujeito ou em um objeto que são indispensáveis à sua atualização. Diz- nos Deleuze (2002, p.16): ―Uma ferida se encarna ou se atualiza em um estado de coisas e em um vivido; ela própria, entretanto, é um puro virtual sobre o plano de imanência que nos transporta uma vida. Minha ferida existia antes de mim...

Se um destino/uma vida nos precede enquanto sujeitos constituídos, de que se trataria esta espera à qual nos referimos senão àquela em que nos situamos como artesãos do corpo-sem- órgãos que nos habita e do qual procedemos? Aparece-nos, aqui, algo de selvagem e potente que age em nós em graus variados segundo nossos modos de lidar que, ao final, vem traduzir-se como aumento ou diminuição de nossa potência vital. Os enunciados de Deleuze nos remetem ao fato de que nossa liberdade é a de uma escolha de nível, uma vez que entendemos que a sucessão dos presentes atuais é apenas a manifestação de algo mais profundo: diz respeito ao modo como cada qual retoma toda sua vida, mas a um nível ou grau diferente do precedente, todos os níveis em coexistência e se oferecendo à escolha, emergindo de um fundo do passado que jamais foi presente. A artesania de um modo de existência a partir destas reservas não organizadas e de natureza selvagem implica, pois, em um processo de subjetivação mobilizado pelo devir do ser, premido pelo signo da urgência e da insuportabilidade em relação ao tédio identitário em que tendemos a nos encontrar. ―Ser sem ser‖, ―ser sem nada dever ao ser‖, ―ser isso que nada deve ao ser‖, é o que Blanchot (1955/2011, p.275) nos assevera quando nos fala do ―absolutamente desnaturado‖, do ―absolutamente absoluto.

Com Simondon (1964), aprendemos que a vida se processa por individuações, o que significa uma processualidade de estados que se sucedem quando o campo de forças de qualquer situação dinâmica venha a entrar em saturação. O autor nos leva a rejeitar a linha reta do desenvolvimento humano e social, faz-nos ver que ele se dá por saltos entre o passado e o futuro, sempre imanente ao plano de forças originário. E, adicionando Beckett (1951/1988) ao nosso argumento, podemos mencionar o conceito de esgotamento o qual difere de sentir-se cansado. O cansado não aguenta mais estar exposto à exterioridade que o golpeia incessantemente. Para fazer frente às demandas advindas de seu mundo exterior e que nele atuam como palavras de ordem, ele necessita de adestramento e disciplina, ou seja, de autodisciplina. Vê-se impelido a pagar dívidas das quais, como sujeito, tornou- se herdeiro. Pode ele suportar todas as demandas que lhe são advindas do socius? Ou poderia o cansado, como personagem conceitual, ainda cogitar que um fim vem de ―uma lama molecular [que] é o último estado do corpo e de que o espírito o contempla com uma certa atração, porque nele encontra a segurança de um último nível que não se pode ultrapassar?‖ (Lapoujade, 2002, p. 84).

Torna-se importante ressaltar, neste ponto, que estamos a examinar duas vertentes que incidem sobre o sujeito: uma vinda de sua exterioridade, que denominamos de socius e que se refere, ao final, à máquina abstrata de subjetivação à qual um qualquer está permanentemente exposto, e outra, referente à sua interioridade, ou seja aos seus modos de resolver tal conexão, poderíamos dizer, ao estilo subjetivo de fazer frente às mesmas. Ou seja, demandas que partem de uma exterioridade ampla e irrestrita que abarca qualquer um versus modos singulares de existir e resistir frente às mesmas. Tem-se assim, de forma simultânea, as duas faces do confronto: uma dirigida para aquilo que nos faz sofrer e que se situa fora de nós e outra, que se dirige à nossa própria interioridade constituída. Poderíamos vir a pensar como Artaud que nos mostra que o próprio sujeito constrói no corpo um organismo que pode subordiná-lo? Como impomos ―uma alma‖ àquilo que o corpo exprime? Teríamos, diante de tais questões, de assentir que o corpo sofre de um sujeito, ou melhor, de um modo de subjetivação pautado sob a autoridade do sistema de juízo e de Deus? Que estamos crivados pela culpa cristã que torna o doente ainda mais doente? Que nossa missão deveria ser transformada em sacerdócio e fardo? Doença da morte, ou melhor, doença do cadáver...

Nas palavras de Beckett que recolhemos do texto de Lapoujade (2002, p. 86):

Com efeito, do grande viajante que fui, de joelhos nos últimos tempos, depois arrastando e rolando, resta tão-somente o tronco (em miserável estado) encimado pela cabeça que se conhece, eis a parte de mim cuja descrição eu apreendi e retive melhor. Embora eu não ande exatamente na linha, a polícia me tolera.

Neste ponto, gostaríamos de colocar em análise o que segue: ―Sofrer é a primeira condição do corpo. Sofrer é a condição de estar exposto ao fora. Um corpo sofre de sua exposição à novidade do fora, ou seja, ele sofre de ser afetado‖ (Lapoujade, 2002, p.86). Assim, entendemos que estamos incessante e irremediavelmente submetidos à erupção contínua dos encontros e que um corpo é primeiramente encontro com outros corpos, é o sofrimento da impressão e o reconhecimento de uma potência estrangeira. Constatamos que perguntar sobre o que pode o corpo diante do destino que não pode esperar, só se torna possível a partir desse sofrimento primeiro. Mas, sabemos que nossa tendência diante do que nos afeta é a de interpretar defensivamente as experiências como dores e, então, desejamos nos proteger de tais ferimentos, seja pela fuga, pela insensibilidade, assim como pela imobilização. E, restaria ainda acrescentar, pela confrontação oponente, que se expressa como um ativismo calcado na esperança, essa ―disposição infernal por excelência‖ (Beckett, 1951/1988, p. 130), essa lógica fatigada e em declínio que nos torna ―os cansados demais‖ para as combinatórias possíveis ainda não experimentadas e calculadas. Tornamo- nos cansados em função de certos objetivos, projetos e preferências que não cogitamos criticar como se a eles devêssemos a obediência de realização. Esta se faz sempre por exclusões, pois supõe variações que anulam/ substituem as precedentes. Tentamos e tentamos, e... cansamos porque esgotamos a realização a que nos remetíamos. Nada mais podemos realizar. Resta-nos esperar deitados, passivamente, o golpe final. Fim da partida com a vida, fim de jogo. Fomos vencidos pelo cansaço.

Entretanto, é desde esse limite máximo do cansaço e do negativo que poderemos ouvir o trovão e ver seu relâmpago que anunciam que, apesar de nosso cansaço e do nosso não mais aguentar, o possível ainda não foi esgotado por inteiro. Resta como uma reserva subterrânea, escondido e refugiado no fundão de nosso corpo inorgânico, como força que soube se proteger das grosseiras crueldades e ferimentos imediatos. Neste momento, compreendemos, diante de nossas mãos paralisadas, que o possível não se realizaria tão somente através de nosso incessante sensório-motor, de nossa agitação constante, de nossa velocidade. Sutil, ele não mais se situa no plano de nossa interioridade, situando-se além da mesma, além dos estratos humanizados que nos constituem, tornando-se ocasião de uma percepção de nossa animalidade e inumanidade, apontando o silêncio e a acídia como armas de uma política que dissemina combinatórias e eus parasitados. Abre-se o jogo de um uso astucioso da abulia e de um silêncio que precisa de muitas palavras e, que se faz de vacúolos e interrupções. Como nos diz Henz (2010, p.87)

sobriedade inventiva, (...) silêncio dos componentes finitos e das recombinações ilimitadas. Não mais o cansaço da pausa, ou recolhimento solipsista, nem mesmo aquele que já teria dito o que havia de ser dito, é o silêncio esgotado que se adensa [...], um uso do silêncio para que as imagens se intensifiquem.

Acreditamos que é ali, naquele plano impessoal do corpo, fundão que não tem fundo nem memória, feito de esquecimentos, que se encontram as sutis forças inumanas que nos possibilitariam ultrapassar o último dos homens. Compreendemos que nossas tentativas voluntariosas frente às afecções que exigiam nosso ―não‖ por nos impingirem sofrimento, ainda se situavam num plano premeditado demais para virem a estar à altura da complexidade do que nos havia acontecido ou do que estava nos acontecendo. Algo restava de intocado porque mais profundo do que a razão e todo nosso psiquismo. Conversão a uma vida imperceptível que implica uma política para além do cansaço.

Não seria demasiado lembrar o modo como Beckett especializa seus personagens como rastejantes ou apenas sentados. Em gestos radicais, ele ainda os enterra até o pescoço em buracos, ou planta-os como vegetais, em potes, de modo a lhes cercear o nível operatório motor, restando-lhes a possibilidade de apenas revolver a mente, em busca de imagens do pensamento e de reminiscências involuntárias.

Talvez possa parecer um tanto covarde e passiva essa atitude do esgotado que aqui expomos. Contudo, ela ainda preside o revém do impossível no possível, aponta para uma última cena, improrrogável para nós e para aqueles que já não se tomam como um centro causador e causante dos acontecimentos e que, ao invés de nutrir esperanças em relação a alguma de suas preferências e objetivos, colocam sua disposição de deixar-se afetar pela exterioridade sem necessariamente virem-se compelidos a respondê-la como algo que deva vir a ser contrafeito ou realizado. ―Preferiria não‖, talvez fosse a frase que poderiam vir a emitir e que saltaria de sua garganta descrente e desinteressada em querelas retóricas e palavreadas demais. Trata-se da fórmula que mantém o improrrogável em suspenso, sem realizar sua efetivação, apresentando-se como um possível no reservatório do esgotamento, como uma maçaneta onde repousamos a mão, sem nos movimentar ao encontro da total da abertura da porta. Se é verdade que o homem refere-se a uma construção, aqui se firma uma outra política do improrrogável, a da conversão do demasiado humano para o homem que enfrenta a finitude e o ilimitado que se lhe apresenta através de seu próprio esgotamento; que coloca em crise os valores que pautam sua vida diária preenchida de agitações e velocidades movidas pelo desejo de ser homem bem situado na escala dos herdeiros de uma cultura que vampiriza as forças de seu desejo em direção a interesses diante dos quais deveria apenas dizer ―preferiria não.


Referências

Artaud, A. (2004). Oeuvres/Artaud. Paris: Gallimard.         [ Links ]

Beckett, S. (1988). Molloy. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.         [ Links ]

Blanchot, M. (2011). O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco.         [ Links ]

Costa, L.B.da. (2010) O destino não pode esperar ou o que dizer de uma vida. In T. M. G. Fonseca;         [ Links ] L. B. da Costa. (Orgs). Vidas do Fora. Habitantes do silêncio. (pp. 47-70). Porto Alegre: Ed. UFRGS.

Deleuze, G. (2006). Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal.         [ Links ]

 _____. (2002). L‘immanence: une vie... Revista Educação & Realidade, 27 (2), 10-18.

Didi-Huberman, G. (1998). O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34.         [ Links ]

Henz, A. (2010). L‘épuisé. Uma política em Beckett e Deleuze. Artefilosofia, Ouro Preto, 9. 77-92.

Lapoujade, D. (2002). O corpo que não aguenta mais. In D, Lins; S. Gadelha. (Orgs.) Nietzsche e Deleuze. Que pode o corpo (pp. 81-90). Rio de Janeiro: Relume- Dumará; Fortaleza- CE/Secretaria da Cultura    e Desporto.         [ Links ]

Nietzsche, F. (1998). Genealogia da Moral – uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras.

Sartre, J.P. (1988). L’idiot de la famille: gustave Flaubert de 1821 a 1857. Paris: Gallimard.

Simondon, G. (1964). L’individu et sa genèse psysico-biologique. Paris: Presses Universitaires de France.



Data de submissão: 20/09/2016
Data de aceite: 25/11/2016

 



I Tania Mara Galli Fonseca: Professora titular do Instituto de Psicologia da UFRGS, docente do Programa de Pós- Graduação em Psicologia Social e Institucional/UFRGS, pesquisadora CNPQ, coordenadora do grupo de pesquisa Corpo, Arte e Clínica inscrito no Diretório de Grupos de Pesquisas do CNPQ. E-mail: tgallifonseca@gmail.com

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