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Revista Polis e Psique

On-line version ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.7 no.2 Porto Alegre May/Aug. 2017

 

SEÇÃO ESPECIAL - TEMAS EM DEBATE 2016

 

EscreverCOM: com quem? com o quê? para quê?

 

WritingWITH: with whom? with what? For what?

EscribirCON: ¿con quién? ¿con qué? ¿para qué?

   

 

Thais Amorim SilvaI, Marcia Oliveira MoraesII, Carolina Sarzeda Reis CoutoIII , Dandara Chiara Ribeiro TrebisacceIV , Juliana Pires Cecchetti VazV , Keyte da Silva PestanaVI , Larissa Ribeiro MignonVII , Lia Paiva PaulaVIII , Lucas Nogueira Calvet CorrêaIX , Maíra de Macedo FrançaX e Rafael Bordallo de Figueiredo RaposoXI

I Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, RJ, Brasil.

II Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, RJ, Brasil.

III Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, RJ, Brasil.

IV Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, RJ, Brasil.

V Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, RJ, Brasil.

VI Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, RJ, Brasil.

VII Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, RJ, Brasil.

VIII Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, RJ, Brasil.

IX Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, RJ, Brasil.

X Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, RJ, Brasil.

XI Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, RJ, Brasil.

 

 


RESUMO

Este artigo problematiza a escrita do trabalho acadêmico. Toma por base o argumento de que a escrita é parte inerente à investigação e, a partir das considerações de Haraway (2008, 1995), afirma a escrita como prática situada e marcada. O trabalho aposta no fazerCOM como direção ética e epistemológica da pesquisa e apresenta discussão acerca da partilha da escrita de diários de campo, entre pesquisadores e pesquisados. O texto conclui indicando que a escrita partilhada dos diários de campo abre possibilidades inéditas na construção das narrativas acerca da deficiência, menos como déficit e mais como reinvenção da vida.

Palavras-chave: Escrita Acadêmica; PesquisarCOM; Deficiência Visual; Narrativas.


ABSTRACT

This paper problematizes academic writing by arguing that writing is an inherent part of research. Based on considerations of  Haraway (2008, 1995) it affirms that writing is a situated and marked practice. The work bets on doingWITH as the ethical and epistemological direction of the research and presents a discussion about the sharing of written field diaries, between researchers and researched. The text concludes by pointing out that the shared writing of the field diaries opens up new possibilities in the construction of narratives about disability, less as deficits and more as a reinvention of life.

Keywords: Academic Writing; ResearchWITH; Visual Disability; Narratives.


RESUMEN

En este artículo se analiza la escritura del trabajo académico. Se basa en el argumento de la escritura como parte inherente de la investigación y desde las consideraciones de Haraway (2008, 1995) plantea la escritura como práctica situada y marcada. El trabajo apuesta en el hacerCON como dirección ética y epistemológica de la investigación y presenta la discusión acerca de compartir los diarios de campo entre investigadores e investigados. El texto concluye indicando que la escritura compartida de los diarios de campo abre nuevas posibilidades en la construcción de narrativas sobre la discapacidad, sin tomarla como déficit sino como reinvención de la vida.

Palabras-clave: Escrita Académica; PesquisarCON; Discapacidad Visual; Narrativas.


 

 

Breve introdução

A escrita desse artigo foi disparada quando da participação de uma das autoras no evento Temas em Debate, organizado pelo Programa de Pós-graduação (PPG) em Psicologia Social da UFGRS, no ano de 2016¹. Naquela ocasião, foi-nos proposto que debatêssemos um trabalho acadêmico, ainda em construção, de autoria de doutorandos do PPG² . A questão que orientou nossos comentários durante o evento era também aquela que nos acossava em nosso grupo de pesquisa, na Universidade Federal Fluminense (UFF): a questão da escrita na pesquisa científica. Não era recente nossa inquietação com esse tema, tanto assim que também em Polis e Psiquê, no mesmo ano de 2016, havíamos publicado texto sobre o assunto (Moraes e Tsallis, 2016). Desse modo, entre o evento em Porto Alegre, no qual apenas um(a) de nós esteve presente, e o grupo de pesquisa em Niterói, na UFF, era toda uma rede de ação que se entrelaçava. A decisão de assinarmos em co-autoria esse texto não é senão a explicitação de tal rede de pesquisa: somos um coletivo que pensa e escreve em parceria.

Assim, o presente artigo tem como objetivo retomar a discussão que apresentamos no texto anterior (Moraes e Tsallis, 2016) acerca do lugar da escrita na pesquisa acadêmica, propondo uma modulação no que foi o norte do trabalho prévio. Naquele texto afirmávamos, com Haraway (1995), que a escrita cientifica é prática local, situada e marcada. Mais do que tomar a escrita como um momento posterior à pesquisa, o que nos ocupava era afirmá-la como um dos lócus no qual a pesquisa se realizava, engendrando mundos, produzindo realidades. Que sentidos se descortinavam para os termos 'prática local, situada e marcada'? Para nós, naquela altura, importava salientar que uma das formas de marcar e localizar a escrita estava em narrar, contar as histórias nas quais a pesquisa foi feita, histórias parciais, feitas no e do encontro com os outros. Seria este um caminho para interferir em grandes narrativas que muitas vezes se constituem como hegemônicas, reiterando sem cessar certas versões em detrimento de outras. No campo dos estudos sobre deficiência, muitos autores (Diniz, 2007; Martins, 2006a, 2006b; Mascarenhas, 2016; Mello, 2016)  salientam que as narrativas da deficiência como tragédia pessoal são reiteradas e atreladas a concepções biomédicas da deficiência. São grandes narrativas que, de um lado, se impuseram como hegemônicas a partir de certas articulações sócio-históricas e, de outro lado, são colocadas em xeque pelas narrativas da deficiência levadas adiante por pessoas cujos corpos são marcados por diferenças sejam fisícas, sensoriais ou intelectuais (Franco, 2016; Manso, 2015; Martins, 2013a, 2013b, 2013c). Segundo Mascarenhas (2016) e Martins (2006a, 2006b), as ciências humanas e sociais precisam se instruir com as narrativas locais e situadas da deficiência, pois são elas que colocam em xeque as concepções hegemônicas e preconcebidas da deficiência, sejam aquelas que dela fazem uma tragédia ou as que a transformam em narrativas heróicas. O que ambas apagam é justamente a marca, a singularidade de cada experiência da deficiência. Martins (2013a, 2013c)  afirma que as narrativas situadas da deficiência são narrativas de resistência às hegemonias e aos preconceitos. Assim, mais do que tomar a escrita de tais narrativas locais e situadas como ato segundo, posterior ao trabalho “propriamente dito” da pesquisa, afirmávamos – e seguimos afirmando -  a escrita como um dos laboratórios no qual a pesquisa se realiza (Latour, 2012), no sentido de que num laboratório algumas substâncias se misturam, interagem, reagem, produzem outras e inéditas substâncias e realidades. 

As presentes linhas são ainda acossadas por essa problemática, embora nela produzam uma certa inflexão: que efeitos colhemos da/na escrita se a tomamos na radicalidade de um fazerCOM o outro a pesquisa (Moraes e Tsallis, 2016; Moraes, 2014)? Mais especificamente, perguntamos: que histórias contaríamos acerca de nossos encontros de pesquisa se nossos diários de campo fossem partilhados, abertos, escritos com os outros com quem pesquisamos? É justo essa questão que nos faz escrever este artigo.

PesquisarCOM e escreverCOM pessoas cegas e com baixa visão

Nos últimos anos temos feito pesquisas³ com pessoas cegas e com baixa visão, a fim de investigar de que modo e em que arranjos se desenham as fronteiras que separam corpos eficientes e corpos deficientes, as fronteiras que separam eficiência e deficiência4. A direção ética e política da pesquisa afirma-se num fazerCOM o outro a investigação, isto é, COM as pessoas cegas e com baixa visão . É COM e não sobre (Moraes, 2010).

O processo de cegar envolve uma reelaboração da própria existência. A perda da visão afeta a relação com o corpo e o mundo ao redor. Dessa maneira, buscamos explorar na Oficina de Experimentação Corporal5 modos de sensibilizar e mobilizar o corpo, ativando outras sensorialidades presentes e ativas nos corpos que cegam. O objetivo é propor atividades que fomentem e multipliquem as conexões do corpo com elementos díspares, como: sons, lixas, elásticos e outros actantes6, utilizados como mediadores (Latour, 2008) do processo de experimentação e de reorganização dos sentidos.

Apostamos numa pesquisa afinada com as histórias singulares, vividas por cada participante da oficina. Como dito, se a deficiência se constituiu, historicamente, por meio de uma narrativa hegemônica que fez da diferença um deficit, nosso objetivo está na contramão dessa história hegemônica. Seguindo as pistas abertas por Franco (2016) , Conti (2015) e Adichie (2009) investimos nas histórias únicas, tomando o adjetivo “única” não no sentido de padrão, como dizemos quando falamos no “tamanho único”, mas antes, no sentido de singular. Ou, poderíamos avançar dizendo que nos ocupamos das histórias únicas no sentido de que são marcadas, são locais, do mesmo modo que são locais e marcados os encontros que dissemos que foram únicos, isto é, foram singulares. É precisamente nesse sentido que, por meio das Oficinas de Experimentação Corporal, colhemos (Manso, 2015) histórias únicas da deficiência visual e da cegueira, histórias situadas, histórias que para nós operam como ferramentas que nos permitem desarmar e colocar em xeque as narrativas deslocalizadas da deficiência. É por meio de tais histórias locais que seguimos os arranjos em que a deficiência é tecida. Nossa proposta é produzir um conhecimento no campo da deficiência visual conectado aos saberes daqueles que experimentam na pele o cegar. Isso implica tomarmos as pessoas cegas e com baixa visão com quem pesquisamos não como alvos de nossas ações, mas como parceiros delas, como experts (Despret, 2011, 2004; Franco, 2016) que nos orientam nos caminhos que vamos seguir na Oficina de Experimentação Corporal. 

PesquisarCOM (Moraes, 2010), tomado como direção ético-política da pesquisa, implica produzir um modo de fazer pesquisa imanente aos encontros com quem pesquisamos. Assim, a investigação acontece num duplo movimento, ambiguamente bonito e árduo: entre as oficinas e as reuniões de equipe, a pesquisa vai sendo construída, uma ação não se faz sem a outra, são indissociáveis. Planejamos as oficinas semana a semana, tomando como base as pistas e direções fiadas em cada encontro, a partir das questões e impasses levantados pelas pessoas que dele participam. Os planejamentos só são feitos a partir do quê, nas oficinas, nos convoca e nos instiga. Nas reuniões da equipe, com todo o grupo, lemos os diários de campo escritos pela/os pesquisadora/es presentes em cada oficina e, coletivamente, decidimos o que levar adiante no encontro seguinte. A escrita do diário de campo foi se tornando mais do que um lugar de registro que se pretende neutro e objetivo, antes se constituiu como um dispositivo7 importantíssimo de pesquisa, no qual testemunhamos8 as narrativas colhidas durante a Oficina e no qual nos incluímos como actantes.

Considerações finais (para abrir mais perguntas): Escrever com quem? Com o que? Para que? Para quem?

Agitada/os, portanto, em pensar o lugar da escrita como uma forma de encarnar, prolongar e reafirmar a preposição COM do pesquisarCOM, decidimos, em 2016, fazer uma nova aposta: coletivizar e pactuar também a escrita do diário de campo com as pessoas cegas e com baixa visão. A partir desse ano, a escrita dos diários de campo deixou de ser feita de memória, após cada encontro, passando a se fazer em ato, no momento da oficina e de modo aberto e coletivo, contanto com a participação daquela/es com quem pesquisamos. Por esta via, nosso investimento foi aproximar o dispositivo do diário de campo dos participantes das oficinas, que foram convidados a interferir diretamente nele, indicando-nos o que deveríamos anotar, o que seria interessante levarmos adiante a partir do nosso encontro. Junto a esse modo de lidar com o diário de campo, fizemos também devoluções das escritas, sempre de forma imanente, no cotidiano dos encontros , no dia a dia das oficinas e não em momentos formais de devolução do material já “pronto”. As chamadas devoluções eram antes ocasiões de partilha do que tínhamos escrito até aquele momento em forma de diários.  O que se constituía era, portanto, uma relação circular em torno da escrita já que a devolução era também mais um momento de colher, e recolher, as tantas e ricas minúcias que surgiam nos encontros. 

Aos poucos os participantes vão chegando e explicamos a nossa ideia de manter a escrita naquele espaço, estando aberta para eles interferirem diretamente nela. Passando rápido pelo PesquisarCom e sobre a devolução que queremos dar a eles, fica um mal entendido no ar. Tudo bem gente? Pergunto. Rose responde na lata: “Tudo bem, se faz parte do trabalho, da pesquisa de vocês, nos analisar. É assim que [a instituição] faz, né? Analisa a nossa evolução”. Tentamos explicar que o diário não pretende analisar, avaliar certo ou errado, mas perceber o que se produz nos encontros, no trabalho corporal. O que surge de interessante, por onde seguir... Sem muito ânimo eles concordam, me deixando a dúvida se a contragosto ou não. Digo então que fico de fora da roda, escrevendo, mas que estou ali, sendo parte desta oficina (Notas de diário de campo, Pesquisa Perceber sem Ver, junho de 2016)9.

Despret (2011, 2004) sinaliza que o encontro com o outro em um dispositivo de pesquisa é uma experiência arriscada porque o outro com quem pesquisamos nos interpela, nos ativa e nos transforma. A autora afirma que pesquisar é uma experiência arriscada justamente porque no encontro com o outro a transformação é recíproca e porta um vetor de indeterminação, fazendo de ambos – pesquisadores e pesquisados, a um só tempo, autores do processo em curso. Assim, compreendemos que não ocupamos o lugar isento ou distante de observadora/es.

Assumimos uma posição de risco, e este desafio, acompanha a nossa escrita. Não há, portanto, uma escrita neutra. Ela sempre revela os posicionamentos de quem escreve. Porém, esta escrita não se encerra na/o pesquisadora/or, inclui também nossas reuniões, as conversas entre nós e os participantes, entre os próprios pesquisadores, entre os próprios participantes. O diário de campo é um texto endereçado a um outro – o grupo de pesquisa que o lerá, e com ele irá se transportar mais uma vez ao campo e aos seus impasses. É endereçado ao outro no sentido de abraçar a particularidade de cada oficina, sendo permeado por um coletivo ao invés de ser uma mera formalidade finalizada no papel.

A escrita do diário de campo comporta a possibilidade de se repensar o próprio lugar do pesquisador em campo e inventar outros modos de se fazerCOM. Segundo Franco (2016), “não podemos discordar que o modo como o pesquisador está em campo, colhe os dados, os registra e analisa é o próprio método – impossível desvencilhá-lo da escrita” (p.15).

Uma outra obra é elaborada no papel, diferente da que ocorreu em campo, incluindo as perdas que sempre acontecem nessa passagem. No entanto, há aí algo que se ganha: são esses nossos escritos que permitem deslocar a pesquisa, fazendo-a circular em outros espaços, trazendo mais actantes para a cena. Ao escrevermos, passamos por um processo de tornar mais plana a complexidade (Latour, 2001) que está em jogo no campo, mas ao mesmo tempo deixando aparecer as tensões, os impasses, os manejos, as hesitações.

Conhecemos a partir dos encontros e isso é parte do modo como pensamos nosso método, como aponta Conti (2015). Uma maneira de fortalecer e reposicionar a pesquisa é fazer da escrita o seu próprio método. É apostar numa escrita corporificada, situada e localizada, possível de subverter pesquisas sem corpos, cheiros e sabores.

Após uma oficina em que trabalhamos as sensações despertadas pelos alimentos10 Mariana11 disse para botarmos no diário de campo, a experiência dela com o kiwi “Se não fosse aqui, eu nunca comeria kiwi. Sempre pensei em comprar, mas pensava “e se eu não gostar?”. Agora sei que gosto (Notas de diário de campo, Pesquisa Perceber sem Ver, julho de 2016).

[A pesquisadora] serve agora um docinho de coco e lê o poema12. Mariléia diz enquanto experimenta o docinho: “Antes a gente comia correndo e nem sentia o gosto, agora a gente tem que sentir o cheiro e ficar encostando a comida no nariz.” Alberto completa: “Agora com a falta da visão eu sinto muito mais as coisas, chego perto da pessoa e sinto que ela está triste…” Adelino continua: “Antigamente a gente era guloso, comia correndo para trabalhar e nem sentia o paladar da comida. Agora não, agora sem a visão nós não temos mais pressa.” (Notas de diário de campo, Pesquisa Perceber sem Ver, junho de 2016).

Haraway (1995) pontua que só conhecemos o mundo através de mediações, ou seja, só conhecemos por meio das relações e conexões que criamos com pessoas, objetos, lugares, etc.  Esta dimensão encarnada nos permite equivocar as únicas histórias (Conti, 2015) da cegueira que são descorporificadas, que são de lugar nenhum. Como salientamos, entre narrativas ora trágicas, onde só comparecem a dor, e ora super-heróicas, onde só revelam a superação, existe a experiência singular com que cada corpo vive o cegar. Nosso método de pesquisa é pensado a partir das cenas dos diários de campo, ou seja, a partir dos afetos em jogo no encontro com os participantes. Construímos um modo de fazer pesquisa que pactua e negocia as decisões com aqueles que fazem parte dela. Afinal, herdamos de Haraway (2008) um ensinamento de seu pai:  “Escrever é uma forma muito fina de fazer uma vida”. Quais vidas fazemos existir com as narrativas que escrevemos?

Adelino, Mariléia, Mariana e tantos outros indicam que o cegar é um modo de estar no mundo que envolve o adensar de outros sentidos, de outras sensorialidades. Circunscrever o cegar ao domínio da perda é, em última instância, empobrecer a paisagem corporal que nos faz humanos: heterogênea, múltipla, tecida com dores e delícias, enredada em laços que vinculam bengalas, óculos, olhos, mãos, sabores e mais tantos e tantos actantes. Nossa paisagem corporal é marcada por tais conexões. Tecida nelas e com elas. Empobrecê-la é empobrecer o mundo em que vivemos. Como salientou Flávia Fernando Lima Silva, doutoranda em Psicologia na Universidade Federal Fluminense, vidente13, em postagem do facebook datada de novembro de 2016: “O tempo passa e a gente ganha em paladar. Nunca pensei que aprenderia a apreciar o amargo. Café sem adoçar, chocolate 85% cacau. 
Acho que o próximo passo será jiló”. Pois nós, pesquisadora/es COM pessoas cegas e com baixa visão, nunca pensamos que o fazer COM os outros a pesquisa nos faria também ganhar porções de mundo que desconhecíamos, jamais saberíamos que é possível experimentar os alimentos no modo do tato, parte a parte, no contato, sem pressa, sem correria, sentir a comida com o nariz. É um mundo de sensorialidades que se descortina. No campo dos estudos da deficiência, nos engajamos a povoar o mundo com vidas mais densas, ricas e heterogêneas, é para isso que escrevemos.


Referências

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Data de submissão: 21/10/2016
Data de aceite: 27/04/2017


1 Registramos nossos agradecimentos à Professora Rosane Neves e aos corpos docente e discente do PPG de Psicologia da UFGRS, pelo convite para participarmos do encontro.

2 O trabalho em questão, de autoria de Carolina Chassot, Lívia Zanchet e Mateus Cunda, integra o presente número da Revista Polis e Psiquê.

3 Moraes, Simbine, Lopes et al, 2016; Moraes, 2010, 2011.

4 Em nossas pesquisas temos discutido a questão da deficiência nos perguntando onde e em que arranjos sociomateriais se desenham as fronteiras entre eficiência e deficiência (Moraes, 2010). Fronteiras porosas, móveis, articuladas politicamente. Consideramos relevante sublinhar que não tomamos eficiência e deficiência como dois polos opostos, mas como modos de ordenar corpos, modos de fazer existir corpos que podem se tecer em gradações, nas quais cada um de nós se constitui com graus distintos de eficiências e deficiências. Concordamos com Mello (2016) quando salienta, com astúcia, que o que se opõe à deficiência é o capacitismo, preconceito que marca socialmente certos corpos como mais capazes do que outros.

5 Oficina de Experimentação Corporal é oferecida a pessoas cegas e com baixa visão, em processo de reabilitação, em dois campos de pesquisa distintos. Um, vinculado a um Centro de Atendimento em Reabilitação do Sistema Único de Saúde/Minstério da Saúde, na cidade de Niterói / Rio de Janeiro / Brasil. Já o outro, faz parte do equipamento de educação da pessoa cega e com baixa visão, vinculado ao Ministério da Educação, localizado na cidade do Rio de Janeiro / Brasil. A Oficina integra o conjunto de atividades da Pesquisa Perceber sem Ver, coordenada pela professora Marcia Moraes. Para conhecer mais sobre esse trabalho, cf. Moraes, 2010; 2011; Moraes, Simbine, Lopes et al. 2016.

6 Latour utiliza a noção de actantes no sentido semiótico: um ator ou actante se define como qualquer pessoa, instituição ou coisa que tenha agência, isto é, produza efeitos no mundo e sobre ele. É importante diferenciar o sentido atribuído por Latour do sentido sociológico tradicional porque, neste último caso, ator se confunde com a noção de fonte de ação atribuída a um humano. Na acepção de Latour, um actante é caracterizado pela heterogeneidade de sua composição; ele é, antes, uma dupla articulação entre humanos, e não humanos e sua construção se faz em rede. Cf. Latour, 2001, 2008. 

7 Definimos dispositivo de pesquisa como um arranjo heterogêneo de elementos, um amálgama que reúne humanos e não humanos, e que ativa a todos que nele se articulam. Um dispositivo de pesquisa é, conforme Despret (2004) performativo, isto é, faz existir realidades não dadas previamente.

8 Conforme Gagnebin (2006), “ (…) testemunha não seria somente aquele que viu com seus próprios olhos (…) a testemunha direta. Testemunha também seria aquele que não vai embora, que consegue ouvir a narração insuportável do outro e que aceita que suas palavras levem adiante, como num revezamento, a história do outro: não por culpabilidade ou por compaixão, mas porque somente a transmissão simbólica, assumida apesar e por causa do sofrimento indizível, somente essa retomada reflexiva do passado pode nos ajudar a não repeti-lo infinitamente, mas a ousar esboçar uma outra história, a inventar o presente” (p.57). Gagnebin nos leva a perguntar: que outra história contamos acerca da deficiência se nos colocamos como testemunhas das narrativas das pessoas com deficiência? Se não vamos embora, se não nos deixamos seduzir pelas histórias hegemônicas que outros presentes fazemos existir? Que outros futuros esboçamos?

9 Os diários de campo da pesquisa Perceber sem Ver são escritos, como salientado, nas Oficinas de Experimentação Corporal e são lidos em voz alta e em grupo, nas reuniões de equipe da pesquisa. Por ocasião da leitura dos diários de campo, nas reuniões de equipe, os diários de campo são debatidos, problematizados, discutidos. Neste artigo optamos por assinar coletivamente esses diários de campo a fim de marcamos que na produção desse artigo, assim como na produção dos diários, há um coletivo autor, um coletivo que pensa e trabalho as questões acerca da cegueira e da deficiência visual. 

10 Como já dito neste texto, as Oficinas de Experimentação Corporal têm como finalidade mobilizar o corpo das pessoas cegas e com baixa visão tomando por base os sentidos e sensorialidades ativos: tato, olfato, paladar, audição, propiocepção, visão (parcial, para algumas pessoas do grupo). Assim, no ano de 2016, realizamos uma série de Oficinas multisensoriais, isto é, com a mobilização e ativação de diversos sentidos. Nestes trechos de diário de campo são mencionadas as Oficinas que envolveram experimentar alimentos, muitas vezes levados e preparados pelos próprios participantes das Oficinas. Alimentos que eram não apenas comidos, mas cheirados, tateados, manuseados, vivenciados por cada um a partir de uma gama de sensorialidades que cada alimento convocava e ativava. Os participantes das Oficinas são pessoas adultas que adquiriram a cegueira tardiamente ou que possuem baixa visão e tem a cegueira como um horizonte possível de suas vidas, em função de doenças progressivas que lhes atingem os olhos. Assim, o que estava em jogo era menos “adivinhar” qual era o alimento que estava na roda, mas deixar-se afetar por ele, deixar-se mover pelo conjunto de experiências que cada alimento suscitava.

11 Os nomes das pessoas são fictícios. Como o trabalho ainda está em andamento, não pactuamos com os participantes das Oficinas de Experimentação Corporal como cada um deles ou delas gostaria de ser nomeado/a nesse texto.

12 “Lembra o tempo / em que você sentia / e sentir / era a forma / mais sábia de saber / E você nem sabia ?” (Ruiz, s/d).

13 No campo dos estudos sobre deficiência visual, “vidente” é o termo que se utiliza para designar as pessoas que enxergam.

I Thais Amorim Silva: Psicóloga graduada pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Pesquisadora integrante da equipe da pesquisa “Perceber sem Ver: corpo percepção entre pessoas cegas e com baixa visão”, vinculada ao Departamento de Psicologia/UFF. E-mail: thaisamorim@id.uff.br

II Márcia Oliveira Moraes: Psicóloga graduada pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Doutora em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo (USP). Professora Titular do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense. Pesquisadora CNPq (Bolsista de Produtividade Nível 2). E-mail: mazamoraes@gmail.com

III Carolina Sarzeda Reis Couto: Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense. Pesquisadora de iniciação científica  no projeto de pesquisa“Perceber sem Ver: corpo percepção entre pessoas cegas e com baixa visão”, vinculado ao Departamento de Psicologia/UFF. E-mail: carolinasarzeda@gmail.com

IV Dandara Chiara Ribeiro Trebisacce: Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense. Pesquisadora de iniciação científica  no projeto de pesquisa “Perceber sem Ver: corpo percepção entre pessoas cegas e com baixa visão”, vinculado ao Departamento de Psicologia/UFF. Bolsista Faperj / IC. E-mail: dandarachiara@gmail.com

V Juliana Pires Cecchetti Vaz: Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense. Integrante da equipe da pesquisa “Perceber sem Ver: corpo percepção entre pessoas cegas e com baixa visão”, vinculada ao Departamento de Psicologia/UFF. Bolsista de Extensão / UFF/PROEX. E-mail: juliana.cecchetti@hotmail.com

VI Keyte da Silva Pestana: Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense. Pesquisadora de iniciação científica  no projeto de pesquisa “Perceber sem Ver: corpo percepção entre pessoas cegas e com baixa visão”, vinculado ao Departamento de Psicologia/UFF. Bolsista de Cnpq/IC. E-mail: keytepestana@gmail.com

VII Larissa Ribeiro Mignon: Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense. Integrante da equipe da pesquisa “Perceber sem Ver: corpo percepção entre pessoas cegas e com baixa visão”, vinculada ao Departamento de Psicologia/UFF. Bolsista de Extensão / UFF/PROEX. E-mail: larissamignon@id.uff.br

VIII Lia Paiva Paula: Mestranda em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense. Integrante da equipe da pesquisa “Perceber sem Ver: corpo percepção entre pessoas cegas e com baixa visão”, vinculada ao Departamento de Psicologia/UFF. Bolsista Capes. E-mail: liapaiva@id.uff.br

IX Lucas Nogueira Calvet Corrêa: Graduando em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense. Integrante da equipe da pesquisa  “Perceber sem Ver: corpo percepção entre pessoas cegas e com baixa visão”, vinculada ao Departamento de Psicologia/UFF. Estagiário no GT de Acessibilidade do Educativo do CCBB/RJ. E-mail: lucascalvet@id.uff.br

X Maíra de Macedo França: Psicóloga graduada pela Universidade Salgado de Oliveira/UNIVERSO. Integrante da equipe da pesquisa “Perceber sem Ver: corpo percepção entre pessoas cegas e com baixa visão”, vinculada ao Departamento de Psicologia/UFF. E-mail: franca.maira@gmail.com

XI Rafael Bordallo de Figueiredo Raposo: Graduando em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense. Integrante da equipe da pesquisa  “Perceber sem Ver: corpo percepção entre pessoas cegas e com baixa visão”, vinculada ao Departamento de Psicologia/UFF. Bolsista de Extensão. UFF/PROEX. E-mail: rafael.bordfig@gmail.com

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