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Revista Polis e Psique
versão On-line ISSN 2238-152X
Rev. Polis Psique vol.8 no.3 Porto Alegre set./dez. 2018
https://doi.org/10.22456/2238-152X.88114
ARTIGOS
A Política de Assistência Social: relações entre vulnerabilidade, risco e autonomia
The Social Assistance Policy: relationships between vulnerability, risk and autonomy
La Política de Asistencia Social: relaciones entre vulnerabilidad, riesgo y autonomía
Ana Cecília SilvaI, Carolina SilvaII, Juliano BonfimIII
I Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Maceió, AL, Brasil.
II Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Maceió, AL, Brasil.
III Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG, Brasil.
RESUMO
O objetivo deste artigo é apresentar os resultados da análise documental realizada a partir dos documentos que legislam e orientam a Política de Assistência Social. A análise pautou-se no rastreio de como as expressões ‘vulnerabilidade’, ‘risco’ e ‘autonomia’ emergem e são operados na política em questão. A análise aponta que, inicialmente, as expressões vulnerabilidade e risco aparecem frequentemente juntas e sem discernimento. Ao longo dos anos vulnerabilidade para a ser conceituada; já a situação de risco se mantém caracterizada apenas a partir de exemplos. Autonomia também não é conceituada e ganha maior importância em 2013, onde é enfatizado que está atrelada a garantia dos direitos básicos. Finalizamos com problematizações quanto à homogeneização da população pobre, bem como com a possibilidade da universalidade nas políticas públicas sustentar as desigualdades sociais que deveria combater.
Palavras-chave: Assistência Social, Vulnerabilidade, Risco, Autonomia.
ABSTRACT
The purpose of this article is to present the results of the documentary analysis done from the documents that legislate and guide the Social Assistance Policy. The analysis was based on the screening of how the expressions 'vulnerability', 'risk' and 'autonomy' emerge and are operated in this policy. The analysis points out that, initially, the expressions vulnerability and risk often appear together and without discernment. Over the years, vulnerability becomes conceptualized while the risk situation remains characterized only by examples. Autonomy is also not conceptualized, but gains more importance in 2013, where it is emphasized that it is linked to the guarantee of basic rights. We conclude with problematizations regarding the homogenization of the poor population, as well as with the possibility of universality in public policies to sustain the social inequalities that it should combat.
Keywords: Social Assistance; Vulnerability; Risk; Autonomy.
RESUMEN
El objetivo de este artículo es presentar los resultados del análisis documental realizado a partir de los documentos que legislan y orientan la Política de Asistencia Social. El análisis se baseó en el rastreo de cómo las expresiones 'vulnerabilidad', 'riesgo' y 'autonomía' emergen y son operadas en la política en cuestión. El análisis apunta que, inicialmente, las expresiones vulnerabilidad y riesgo aparecen frecuentemente juntas y que sean discernidas. A lo largo de los años la vulnerabilidad pasa a ser conceptuada; ya la situación de riesgo se mantiene caracterizada sólo a partir de ejemplos. La autonomía tampoco es conceptuada, pero gana mayor importancia en 2013, donde se enfatiza que está vinculada a la garantía de los derechos básicos. Finalizamos con problematizaciones sobre la homogeneización de la población pobre, así como la posibilidad de que la universalidad en las políticas públicas sostenga las desigualdades sociales que debería combatir.
Palabras-clave: Asistencia social, Vulnerabilidad, Riesgo, Autonomía.
Introdução
Este artigo é um recorte da pesquisa “Práticas Psicológicas e Políticas Públicas de Assistência Social: entre o risco e a normalização” e visa apresentar os resultados construídos a partir da análise de documentos relevantes para a Política de Assistência Social no Brasil. O objetivo deste artigo é discutir como as expressões ‘vulnerabilidade’, ‘risco’ e ‘autonomia’ emergem e são operados na Política em questão a partir do rastreio de sua aparição nos principais documentos da assistência social.
A realização da análise documental ocorreu a partir da escolha dos documentos, leitura e organização dos mesmos conforme os termos emergem e como se relacionam. Primeiramente foi realizada a busca pelas expressões “vulnerabilidade” e “risco” nos seguintes documentos: Política Nacional de Assistência Social (2004), Norma Operacional Básica/SUAS (2012), Referências Técnicas para atuação do/a psicólogo/a no CRAS/SUAS (2008), Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais (2009), Orientações Técnicas Sobre o PAIF - Volume 1 e Volume 2 (2012) e Concepção de Convivência e Fortalecimento dos Vínculos (2013). Para rastrear a expressão “autonomia” utilizamos os documentos: Política Nacional de Assistência Social (2004), Referências Técnicas para atuação do/a psicólogo/a no CRAS/SUAS (2008), Orientações Técnicas Sobre o PAIF - Volume 1 e Volume 2 (2012), Concepção de Convivência e Fortalecimento dos Vínculos (2013) e Fundamentos ético-políticos e rumos teórico metodológicos para fortalecer o Trabalho Social com Famílias na Política Nacional de Assistência Social (2016).
A pesquisa em questão foi apresentada ao Comitê de ética, sendo aprovada (CAAE: 14457413.0.0000.5343), pois além da análise documental, há o trabalho de campo realizado em CRAS e CREAS no município de Porto Alegre. Neste trabalho apresentamos a análise de documentos realizada ao longo da pesquisa bem como um recorte de trabalho de campo realizado na cidade de Porto Alegre no ano de 2016 em um CRAS. Nesta parte utilizamos os diários de campo produzidos durante as observações realizadas.
O Sistema Único da Assistência Social (SUAS) se propõe como instrumento para a unificação das ações da Assistência Social, a nível nacional, ratificando o caráter de política pública de garantia de direitos destituindo o histórico assistencialismo. Este novo modelo de gestão da Política da Assistência Social prioriza a família como foco de atenção e o território como base da organização de ações e serviços em dois níveis de atenção: a proteção social básica e a proteção social especial. A primeira objetiva prevenir situações de risco através do desenvolvimento de potencialidades e aquisições, e o fortalecimento de vínculos familiares e comunitários. Destina-se à população que vive em situação de vulnerabilidade social decorrente da pobreza, com precário acesso aos serviços públicos e/ou fragilização de vínculos afetivos, sendo o Centro de Referência em Assistência Social (CRAS) o equipamento público onde se desenvolve este nível atenção. Já a Proteção Social Especial é desenvolvida no Centro de Referência Especializado em Assistência Social (CREAS), caracterizando-se como a modalidade de atendimento destinada a famílias e indivíduos que se encontram em situação de risco pessoal e social, por ocorrência de maus tratos físicos e/ou psíquicos, abuso sexual, cumprimento de medidas socioeducativas, situação de trabalho infantil, dentre outras.
Sendo uma política pública recente, em construção e com fragilidades constitutivas, vem sendo fortemente “atacada” no cenário em que se encontra o Brasil, desde o ano de 2014. Eventos como o impeachment da presidente Dilma Roussef e a constituição de outro governo, por vias não eleitorais, no ano de 2016, constituem parte de uma conjuntura onde direitos sociais vêm sendo destituídos1 e políticas sociais fragilizadas com o risco de retrocessos, como a entrada do Brasil, novamente, no Mapa da Fome. Precisamos situar nossa produção em relação ao que vem ocorrendo no país em momento pós-golpe de impeachment. Para Guareschi, Lara e Adegas (2010), não há como pensar qualquer aspecto da Política de Assistência Social sem partirmos do entendimento do cenário atual no qual estamos inseridos e que afetam diretamente as políticas sociais do país, pois a formulação de Políticas Públicas como a Assistência Social, Saúde e Educação constitui-se no estágio em que governos democráticos transpõem seus propósitos e objetivos em programas e ações que produzirão efeitos no corpo da população.
Se tomarmos a concepção de história para Foucault (2001) diremos que a política pública de assistência social são campos de forças em luta, onde discursos e saberes se produzem e se confrontam, onde um certo modo de funcionamento se hegemoniza dentre outras possibilidades. A partir desses embates emergem saberes e práticas dominantes que constroem certos modos de vida. Nesse sentido, a trajetória não é linear, não é natural, mas é construída, à medida que indaga sobre as condições que permitem ao homem refletir sobre o que faz. Tem presente o questionamento sobre como os discursos relacionam-se com estratégias de poder, que efeitos produzem na trama social e que subjetividades produzem. Neste sentido, parece haver uma tensão entre o que denominamos ‘sujeito de direito’ e o ‘sujeito da caridade’, uma vez que ambos estão presentes no campo da assistência social, onde os usuários, muitas vezes, se vêem como sujeitos da caridade, ‘pedintes’: de cesta básica, de ingresso no Programa Bolsa Família (PBF), de vale transporte (VT), etc.
Cabe refletirmos sobre PBF, uma vez que é comum vermos as pessoas associarem a assistência social com o Bolsa Família. Lançado em 2003, antes do Plano Nacional de Assistência Social, com a perspectiva de combater a pobreza e a fome no país. Prioriza a família como unidade de intervenção e destina-se às pessoas em situação de pobreza e extrema pobreza. A meta do Programa é auxiliar na superação da pobreza a partir da transferência de renda às famílias e fazendo com que estas, através da condicionalidades do Programa acessem os serviços da área da educação, saúde e assistência social. Concordamos com a leitura de Lavergne (2012) ao perceber o endereçamento do PBF a uma determinada população (considerada vulnerável e excluída), fazendo um paralelo com as ideias e mecanismos que Foucault denominou biopoder, quais sejam: “articulação do seu dispositivo de gestão com o poder; a estreita relação da sua tecnologia social com a produção de saberes sobre a miséria; a conexão estabelecida entre família e instância de controle; suas dimensões individualizante e totalizante e a sua propensão a conduzir a condutas dos outros” (p.326). Dizendo de outro modo, a focalização sobre a vida de certos segmentos da população. O autor refere que é esse caráter de sobrevivência, ou seja, do “fazer viver”, considerando o caráter de esmola concedido às famílias extremamente pobres que alude que o PBF seja uma forma de governamentalidade biopolítica. Assim, foi criado como Programa que tem como objetivo retirar famílias da situação de pobreza, mas podemos pontuar que seu maior feito e interesse está na circulação de mais dinheiro no mercado, cumprindo função econômica importante.
Neste sentido, se por um lado precisamos promover a garantia de direitos e políticas sociais, por outro, precisamos entender que a mesma se constitui como aparato de governamentalidade biopolítica de controle das populações, configurando-se como ação do Estado direcionada à vida dos cidadãos (Guareschi, Lara & Adegas, 2010). Portanto para pensar a Política de Assistência Social se faz necessário entender quando a vida biológica ganha foco pelo poder. Assim, como ação do estado direcionada à governamentalidade precisa ser problematizada no campo das políticas públicas, os conceitos que emergem imbricados com a Política de Assistência Social também precisam ser colocados em análise, sendo que neste artigo nossa aposta é na análise documental.
Vulnerabilidade e risco: relações com a Política de Assistência Social
Acerca da expressão vulnerabilidade, Cruz e Hillesheim (2016) retomam o emprego desta a partir das políticas da saúde, principalmente relacionado aos estudos sobre HIV e a criação de indicadores de avaliação de graus de vulnerabilidade quanto à infecção. É a partir da década de 1980 que o termo se torna amplamente usado na área da saúde. As autoras apontam que vulnerabilidade e risco, em muitos estudos, são utilizados como sinônimos, sem distinção entre os mesmos. Pensar sobre vulnerabilidade é voltar-se para a “compreensão do fenômeno como um todo, buscando superar os aspectos individualizantes e probabilísticos implicados no conceito de risco” (p. 301). Em relação a esse conceito, as autoras defendem que o mesmo está associado a noção de perigo e possibilidade, sendo importante para o gerenciamento da população e dos indivíduos envolvendo uma série de questões referentes às políticas e ações públicas e privadas.
Cruz e Hillesheim (2016) esclarecem que a ideia de risco é importante para compreender as transformações de uma sociedade disciplinar para uma sociedade pós-disciplinar. Pensando na relação com a Política de Assistência Social, o risco é material importante para o trabalho, pois cabe aos profissionais identificar e gerenciar o mesmo. A Política Nacional de Assistência Social (PNAS, 2004) afirma que é função do SUAS conhecer os riscos, as vulnerabilidades e os recursos disponíveis para seu enfrentamento no território. A ideia de vulnerabilidade, mais do que um construto individualizante, faz alusão a um estado, a uma condição de vida temporária. Importante lembrar que, na Política Nacional de Assistência Social, a proteção social básica, com foco na prevenção, tem como destinatários as famílias consideradas em situação de vulnerabilidade social.
Ao colocar em questão a marginalidade, Castel (1997) aponta para a existência de três zonas em que estão caracterizados os indivíduos a partir de dois processos: inserção e condições de trabalho e inserção relacional. A primeira zona, chamada pelo autor de zona de integração, compreende indivíduos que apresentam uma condição de trabalho estável e uma forte inserção relacional, a segunda, zona de vulnerabilidade está caracterizada pela precariedade de trabalho e pela fragilidade dos vínculos relacionais e a terceira, denominada zona de desfiliação ou de marginalidade, se evidencia quando há um duplo processo de desligamento do indivíduo, nesse caso a ausência de trabalho e o isolamento relacional.
A assistência social, constituindo-se como uma política de proteção social aponta para a necessidade de conhecer os riscos, as vulnerabilidades e os recursos disponíveis para garantir a proteção em determinados territórios. “A proteção social exige a capacidade de maior aproximação possível do cotidiano da vida das pessoas, pois é nele que riscos, vulnerabilidades se constituem” (Brasil, 2005, p.11). Logo, identificar e gerenciar o risco torna-se fundamental no campo da assistência social, onde a situação de risco está atrelada à violação de direitos, o que vai ao encontro da Política Nacional de Assistência Social organizada em dois níveis de atenção, sendo um deles a proteção social especial destinada a famílias e indivíduos que se encontram em situação de risco pessoal e social. Por este motivo a ênfase é dada na intervenção das chamadas situações de vulnerabilidade social, pois, se agravadas, configuram-se como zona de risco; risco esse previsível e passível de controle, diferentemente do perigo, imponderável e aleatório (Santos, Roesch & Cruz, 2014).
As novas estratégias médico-psicológicas e sociais se pretendem, sobretudo, preventivas, e a prevenção moderna se quer, antes de tudo, rastreadora dos riscos. Um risco não resulta da presença de um perigo preciso, trazido por uma pessoa ou um grupo de indivíduos, mas da colocação em relação de dados gerais impessoais ou fatores (de riscos) que tornam mais ou menos provável o aparecimento de comportamentos indesejáveis. [...]. Assim, prevenir é primeiro vigiar, quer dizer, se colocar em posição de antecipar a emergência de acontecimentos indesejáveis (doenças, anomalias, comportamentos de desvio, atos de delinquência, etc.) no seio de populações estatísticas, assinaladas como portadoras de riscos (Castel, 1987, p. 125).
Pode-se dizer que a administração dos riscos emerge como mais um mecanismo de controle vinculado ao biopoder, no qual a população passa a assumir os riscos decorrentes de suas escolhas e comportamentos. Logo, gerir riscos implica em produção de estimativas quanto ao futuro, o risco como ferramenta de gestão populacional auxilia na predição de comportamentos e na gerência de virtualidades, tornando-se uma estratégia de governo das condutas. Esta gestão se torna central na ação das políticas públicas, nos cálculos dos economistas, nos planejamentos governamentais e na ação dos técnicos sociais frente a uma população situada como em risco (Lemos, Scheinvar & Nascimento, 2014). Assim, importante salientar o processo de construção destes conceitos, por vezes tomados como naturais.
Vulnerabilidade e risco: o que dizem os documentos
A partir da leitura dos documentos, destacamos dois eixos principais. No primeiro, chama atenção que vulnerabilidade e risco são apresentados como exemplos de situações características sem aprofundamento dos conceitos. Nesse eixo estão os documentos publicados até o ano de 2009, quais sejam: Política Nacional de Assistência Social (2004) Norma Operacional Básica/ SUAS (2005); Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais (2009). No primeiro documento da Política Nacional de Assistência Social, a própria PNAS (2004), menciona as expressões vulnerabilidade e risco como se não houvesse diferença; sendo, inclusive, tratadas como complementares.
Já no segundo eixo, documentos publicados a partir de 2012 (Orientações Técnicas Sobre o PAIF - Volume 1 e 2 (2012), Concepção de Convivência e Fortalecimento dos Vínculos (2013), há preocupação em conceituar e mostrar a complexidade da expressão vulnerabilidade. Se primeiro eixo notamos a insipiente discussão quanto as expressões e como elas são conceituadas, este cenário vai se modificando ao longo dos anos, principalmente com a constituição de documentos mais amplos como o “Concepção de Convivência e Fortalecimento dos Vínculos” (2013). Essa diferença é nítida no que se refere à vulnerabilidade, pois a expressão risco segue caracterizada a partir de exemplos, muito embora os exemplos sejam cada vez mais numerosos, ou seja, as situações de risco são muitas.
Na PNAS (2004) a vulnerabilidade surge relacionada a situações de pobreza e condições de vida das/os usuárias/os, sendo, desta forma, associada à privação, principalmente no que concerne a ausência de renda e precário ou nulo acesso aos serviços públicos. Um ponto acentuado nesse documento é a vinculação entre vulnerabilidade e situações de moradia avaliadas como inadequadas. Para além das fragilidades econômicas, os documentos pontuam a expressão vulnerabilidade associada aos vínculos afetivos (relacionais e de pertencimento) e como a fragilização destes pode situar o sujeito em uma condição vulnerável. Como mencionamos, o risco está caracterizado a partir de uma série de exemplos, não havendo a preocupação de conceituá-lo. Assim, o mesmo passa a ser tratado como situações que aparecem na vida da/o usuária/o e a/o colocam em situação considerada ‘de risco’. Seguem alguns dos eventos citados nos documentos do primeiro eixo: isolamento, violações de direitos, abandono, maus tratos físicos e/ou psíquicos, abuso sexual, uso de substâncias psicoativas, cumprimento de medidas socioeducativas, situação de rua, situação de trabalho infantil.
No segundo eixo a vulnerabilidade é a apresentada a partir de certa conceituação e preocupação em estabelecer relações com referenciais teóricos. No documento “Orientações Técnicas Sobre o PAIF, volume 1” (2012a) a mesma emerge como zona instável a qual as famílias podem atravessar, nela recair ou nela permanecer ao longo de sua história de vida. Assim, como é situada como tendência a gerar ciclos intergeracionais de reprodução das situações de vulnerabilidade. Os documentos organizados no segundo eixo apresentam a vulnerabilidade não como um evento individual, mas vivenciada como multiplicidade e um fenômeno social complexo e multifacetado, decorrente da desigualdade social e não problemas particularizados (Orientações Técnicas Sobre o PAIF, volume 2). Enquanto fenômeno social e múltiplo é reafirmado que os profissionais precisam pautar sua prática na construção de respostas diversificadas, alcançadas por meio do olhar interdisciplinar. Além disso, nesse documento a vulnerabilidade está também acoplada a potencialidades.
O risco continua, assim, apenas sendo exemplificado, enquanto uma série de eventos e comportamentos. Em nossa leitura, aparentemente os dois conceitos são associados, havendo pouca explicitação quanto a esse fato. Alguns dos exemplos utilizados para caracterizar risco: trabalho infantil, violência doméstica, atos infracionais cometidos por adolescentes, uso de drogas, exploração e abuso sexual, isolamento.
Nos documentos iniciais, tais expressões aparecem frequentemente juntas e sem discernimento, ao contrário, parece haver certa complementaridade. Esta complementaridade, que não é discutida, pode gerar ambiguidades quanto ao uso destes conceitos. No entanto, um avanço percebido diz respeito ao uso da expressão vulnerabilidade em documentos mais recentes da Política, documentos em que há uma descrição ampla sobre o que compõe a vulnerabilidade social, entendida não mais como um estado, mas como uma condição que pode ser temporária. Nesse ponto entendemos que surge uma proximidade com a discussão que Castel (1997) realiza ao construir a ideia de que a vulnerabilidade é uma zona que passa a ser ocupada pelo indivíduo, a partir de alguns direitos sociais que não são mais garantidos. O autor trabalha com a ideia de três zonas que identifica como: zona de integração, a qual compreende os indivíduos com condições de trabalho estável e uma significativa inserção relacional; zona de vulnerabilidade, caracterizada pela precariedade de trabalho e pela fragilidade dos vínculos relacionais; e a zona de desfiliação ou de marginalidade, onde se evidencia um duplo processo de desligamento dos indivíduos, referindo-se à ausência de trabalho e ao isolamento relacional.
Autonomia: relações entre documentos e campo
O trabalho com os conceitos de vulnerabilidade e risco social instigaram o rastreio da expressão ‘autonomia’ nos documentos da Assistência Social, pois o foco da PNAS é a superação da chamada situação de vulnerabilidade, bem como o acesso aos direitos fundamentais. Para tal, autonomia, mesmo que relativa, faz-se imprescindível. Embora esta expressão pouco apareça nos documentos mencionados, o incentivo ao protagonismo dos indivíduos e das famílias está bem marcado. Além disso, ao percebermos a dificuldade em conceituar vulnerabilidade e risco, notamos que os mesmos emergiam em relação a um ideal de autonomia que deve ser operado pelos trabalhadores da assistência social junto as/os usuárias/os com o objetivo de superação de situações de vulnerabilidade. Mas o que significa autonomia? A partir de quais referenciais os documentos a situam? Assim, compreender as concepções de autonomia que emergem em alguns dos documentos da Assistência Social é parte importante do trabalho, bem como com as relações que este conceito estabelece com as concepções de vulnerabilidade e risco social.
Como ocorrido no rastreamento dos conceitos anteriores, não há uma conceitualização à priori de autonomia nos documentos. Ela aparece de forma difusa em exemplificações de possibilidades de trabalho com as/os usuárias/os, em expressões como “desenvolver potencialidades”, “aumentar o protagonismo” e “desenvolver capacidades”. Nos termos da Política Nacional de Assistência Social (PNA, 2004), a autonomia está relacionada a fatores como fortalecimento de vínculos, cuidado em rede e protagonismo. Como pensar o protagonismo neste campo de análise? Sabendo que a maior parte da população atendida pela Assistência Social é feminina, é fundamental analisarmos como a desigualdade social e a violência letal impacta a existência das mulheres e impossibilitam o exercício da autonomia intencionado na Política.
As categorias de gênero e raça são fundamentais para entender a violência letal contra a mulher, que é, em última instância, resultado da produção e reprodução da iniquidade que permeia a sociedade brasileira. Desagregando-se a população feminina pela variável raça/cor, confirma-se um fenômeno já amplamente conhecido: considerando-se os dados de 2016, a taxa de homicídios é maior entre as mulheres negras (5,3) que entre as não negras (3,1) – a diferença é de 71%. Em relação aos dez anos da série, a taxa de homicídios para cada 100 mil mulheres negras aumentou 15,4%, enquanto que entre as não negras houve queda de 8% (p.51) (IPEA, 2018).
A autonomia surge como a capacidade do indivíduo em gerenciar sua própria vida, sendo situada como diferente da ideia de autossuficiência ou independência. Segundo o livro “Medida Socioeducativa Entre A & Z” (2014), autonomia está relacionada a contratos sociais, redes (de trocas simbólicas, materiais ou afetivas), conceituada como enlaçamentos sociais que ampliam a possibilidade de novos agenciamentos da vida. Já o dicionário de termos técnicos da Assistência Social (2007, p. 17) afirma que autonomia é “a capacidade e possibilidade do cidadão em suprir suas necessidades vitais, especiais, culturais, políticas e sociais, sob as condições de respeito às ideias individuais e coletivas...” Estas necessidades devem ser supridas em uma relação com o Estado. É através das garantias de direitos fundamentais e do reconhecimento da dignidade do cidadão que se efetiva a autonomia.
Segundo o documento “Orientações Técnicas sobre o Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família, vol.1” (2012a) o psicólogo deve “provocar impactos na dimensão da subjetividade dos usuários, tendo como diretriz central a construção do protagonismo e da autonomia, na garantia dos direitos com superação das condições de vulnerabilidade social e potencialidades de riscos.” Ou seja, o próprio documento enuncia que os usuários não têm autonomia e que são, em determinada medida, responsáveis pela condição denominada vulnerável, sendo que, mediante seus esforços individuais, esses podem superar a pobreza (ou miséria). Na mesma direção, no documento Referências Técnicas para atuação do(a) psicólogo(a) no CRAS/SUAS (2008) há um trecho que diz: “...o sujeito, atendido plenamente por um profissional implicado com seu processo de cidadania, desenvolve, pela própria experiência, a autonomia e o empoderamento, para fazer valer os seus direitos”. Percebe-se um entendimento ambíguo na frase, pois quem precisa estar implicado no processo de cidadania para desenvolver autonomia? A profissional? A usuária? Aqui, novamente, pode-se inferir que, ao falar da necessidade de desenvolver autonomia da usuária, parte-se do pressuposto que a usuária não a tenha.
Contudo, em 2013, o documento intitulado “Concepção de Convivência e Fortalecimento de Vínculos” avança ao afirmar que “a autonomia depende do acesso dos sujeitos à informação, de sua capacidade de utilizar esse conhecimento em exercício crítico de interpretação” [...] “autonomia pode ser expressa pela maior capacidade dos sujeitos de compreenderem e agirem sobre si mesmos e sobre o contexto conforme objetivos democraticamente estabelecidos” (Brasil, 2013, p. 12-13). Em 2016, a importância da autonomia para os sujeitos ganha mais força no documento “Fundamentos ético-políticos e rumos teórico metodológicos para fortalecer o Trabalho Social com Famílias na Política Nacional de Assistência Social”. Neste é enfatizado o papel protetivo do Estado, destacando o provimento de serviços e programas para famílias consideradas em maior desigualdade, função de gênero, etnia e classe. O documento destaca a importância de processos participativos e da autonomia, “que consiste no acesso das famílias à informação, possibilidade de escolhas, tomada de decisões e realização de projetos de vida, onde novamente o apoio do Estado é crucial” (Brasil, 2016, p.20). Pereira (2000, p.70) é citado no referido documento apontando que a autonomia é uma necessidade básica universal, sendo esta a “capacidade do indivíduo de eleger objetivos e crenças, de valorá-los com discernimento e de pô-los em prática sem opressões. Acrescenta que a autonomia depende também do Estado e da participação política. Logo, não podemos desvincular a autonomia do acesso aos serviços públicos, motivo pelo qual o documento enuncia que o trabalho social com famílias deve ampliar a proteção social das famílias e de seus projetos de vida, e da “desnaturalização da ideia de que a família é a maior responsável pela proteção social” (Jaccoud, 2014, p. 21, citado em Brasil, 2016). O referido documento deixa claro que a autonomia está diretamente relacionada com a garantia dos direitos sociais, onde o acesso aos serviços públicos próximos às residências das famílias para obterem os recursos para a sobrevivência e exercício da proteção de seus membros torna-se imprescindível. Como bem coloca Silva (2016), faz-se necessário que a política pública de assistência reconheça a condição de dignidade do beneficiário, reconhecendo-o como cidadão e possibilitando a conquista da autonomia deste.
Para subsidiar a discussão trazemos parte da pesquisa de campo realizada em um CRAS na cidade de Porto Alegre em 2016. Foram realizadas observações em grupos de acolhimento coletivo no referido serviço. Nestes grupos, a maior parte das demandas das/dos usuárias/os era a solicitação pelo Vale Transporte Assistencial (VT) para subsidiar o ir e vir pela cidade, em situações como atendimentos médicos, entrevistas de emprego ou visita à familiar em presídio.
Caso queira o benefício, a usuária precisa justificar o mesmo, já que não há um acesso garantido ou universal, havendo momentos de falta do VT. Há o estabelecimento de uma série de condicionalidades limitantes para o acesso ao VT e, por consequência, ao direito de ir e vir e garantia de direitos mínimos como saúde e renda. Assim, nos questionamos quanto a que tipo de autonomia está sendo produzida. Como ser autônomo sem ter acesso à cidade? No processo de observação realizado, notamos que muitas usuárias se apropriam de determinadas justificativas para subverter a lógica imposta pelas trabalhadoras. Assim como notamos que as trabalhadoras, na medida do possível, abrandam as relações de controle do citado benefício com o objetivo de garantir o acesso das usuárias. Conseguir interagir com as lógicas de controle estabelecidas, fazendo uso das mesmas para garantia do benefício não seria uma forma de protagonismo e autonomia? Nas Orientações Técnicas sobre o PAIF (vol.2) é referido que o acompanhamento familiar se constitui enquanto um direito, com participação facultativa das famílias, podendo as mesmas acessar a benefícios e programas sem necessariamente receberem acompanhamento pela equipe técnica. Luciana Rodrigues (2017), pesquisando sobre o vínculo na Assistência Social, apresenta uma cena que dialoga com o que encontramos:
No término de um os grupos de acompanhamento familiar, realizado no espaço do CRAS, a estagiária do Serviço Social comenta com a psicóloga e comigo uma situação que havia acontecido anteriormente, em um atendimento do Cadúnico. Na ocasião, uma senhora procurou atendimento no CRAS porque precisava de vale transporte para fazer um exame médico e, também, para visitar parentes que moram na zona sul da cidade. No entanto, ela não tinha levado consigo nenhum comprovante do exame (que é solicitado para disponibilização do vale-transporte) o que levou a estagiária que atendera a usuária a negar-lhe o vale-transporte. A estagiária do serviço social, que nos contava sobre o ocorrido, disse ter ficado muito brava e que agora seria necessário retomar o vínculo, a confiança dessa usuária com o serviço. Isso porque, em suas palavras, o vínculo que a usuária tinha estabelecido com o serviço já não era de confiança, já que havia dado informações que não eram verídicas (p.96).
A mesma autora se pergunta sobre a capacidade que a interação vale-transporte e usuário é capaz de produzir, afirmando que encontraremos mais do que apenas um deslocamento no espaço-tempo, pois o que se encontra em atuação é a possibilidade de exercitar a cidadania.
Um exercício de cidadania que se performa na circulação pela cidade, no encontro com outras redes, outros atores que, por sua vez, possibilitam modificar algo no usuário. Esses encontros não se restringem apenas ao contato com os locais acessados para a garantia de direitos sociais que, tradicionalmente, são mais requisitados (por exemplo, ir até um serviço de saúde, a uma entrevista de emprego...), mas se ampliam com as possibilidades de interação que o próprio trajeto percorrido pelo sujeito, para além da conhecida vizinhança/comunidade a qual pertence, oferece – é preciso lembrar que a circulação pela cidade também está no rol dos direitos sociais (Rodrigues, 2017, p. 98).
O trabalhador, em situações como as citadas, fica na difícil posição de controle e gestão da circulação das/dos usuárias/os. No processo de gestão de benefícios como o VT percebe-se o acirramento de desigualdades sociais, com a impossibilidade de garantia de um direito constitucional, como o de ir e vir. Neste contexto autonomia e protagonismo não estão sendo facilitados, indo de encontro com os pressupostos da Política de Assistência Social.
O documento “As orientações Técnicas sobre o PAIF (vol.2)" sugere enquanto abordagem metodológica de trabalho social com as famílias no âmbito do PAIF a pedagogia problematizadora, pensada por Paulo Freire para uso na educação popular. O documento aponta que segundo esta abordagem a mudança é o foco do processo e contribui para a conquista da autonomia. Questionamos quais possibilidades efetivas de mudança podemos vislumbrar em contextos de extrema desigualdade social e com pouco acesso a serviços de qualidade e não garantia de direitos essenciais.
Considerações Finais
A partir da análise de documentos da assistência social no que se refere aos conceitos de vulnerabilidade, risco e autonomia e, considerando o caráter de política de garantia de direitos, apontamos que há certa homogeneização da população pobre, principal público que atende. As famílias consideradas em situação de vulnerabilidade social, por exemplo, precisam fortalecer os vínculos familiares e comunitários, como se estes estivessem, à priori, frágeis. Os documentos demonstram que se as situações de vulnerabilidade não forem aplacadas, podem culminar em situações de risco. Também se parte do pressuposto que as usuárias não têm autonomia. Como explicita Carneiro (2011), o risco da universalidade nas políticas públicas é o alargamento das desigualdades sociais, principalmente quando não se discute as particularidades das diferentes parcelas da população brasileira. A população negra, por exemplo, é a maior vítima das desigualdades sociais e da violência letal, como referenda o Atlas da Violência (IPEA, 2018).
Ainda se estabelece uma relação entre sujeito e vulnerabilidade, o que individualiza as responsabilidades quanto as situações de pobreza e direitos não garantidos. A associação entre risco, vulnerabilidade e autonomia no contexto da política de Assistência Social pode constituir formas diversas de judicialização da população atendida. Situando nossa discussão, podemos citar alguns dados que corroboram a preocupação com a judicialização de determinadas existências. No Brasil, a população negra ocupa os maiores índices de pobreza e, segundo dados divulgados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), 70% dos domicílios que recebem algum tipo de benefício assistencial são chefiadas por negras/os (em sua maioria, mulheres), o que torna fundamental a produção de análises no campo socioassistencial que se conectem as questões raciais. Relacionar a análise de como a Assistência Social vem trabalhando com conceitos como vulnerabilidade, risco e autonomia com a questão racial se faz necessário para que possamos avançar quanto ao entendimento da política e suas implicações com a manutenção de desigualdades sociais. Gonzalez (1988) e Carneiro (2011) apontam que a insígnia “todos são iguais perante a lei” traduz resquícios do mito da democracia racial e fortalecem práticas racistas e meritocráticas. O racismo enquanto prática estrutural em nosso país apresenta-se de forma violenta, principalmente no genocídio de parte da população (homens e mulheres negros/as)
Uma das principais facetas da desigualdade racial no Brasil é a forte concentração de homicídios na população negra. Quando calculadas dentro de grupos populacionais de negros (pretos e pardos) e não negros (brancos, amarelos e indígenas), as taxas de homicídio revelam a magnitude da desigualdade. É como se, em relação à violência letal, negros e não negros vivessem em países completamente distintos. Em 2016, por exemplo, a taxa de homicídios de negros foi duas vezes e meia superior à de não negros (16,0% contra 40,2%). Em um período de uma década, entre 2006 e 2016, a taxa de homicídios de negros cresceu 23,1%. No mesmo período, a taxa entre os não negros teve uma redução de 6,8%. Cabe também comentar que a taxa de homicídios de mulheres negras foi 71% superior à de mulheres não negras (IPEA, 2018, p. 40).
Mesmo com muitos avanços em termos de conceituação das expressões utilizadas, a vulnerabilidade social ainda é associada a um sujeito em específico e entendida como proveniente de situações de pobreza, dificuldade de acesso ao trabalho/renda, privação aos serviços públicos, a fragilização de vínculos afetivos relacionais e de pertencimento. No rastreio das expressões nos documentos, salientamos que a noção da pobreza ainda serve como base para a conceituação de vulnerabilidade. Uma armadilha que pode ser visualizada na Política de Acolhimento Institucional, por exemplo, pois pensando acerca dos motivos de acolhimento de crianças e adolescentes que, historicamente, esteve ligado a situações de pobreza vemos que, atualmente, a mesma foi substituída pela negligência – uma forma mais refinada de conceituar famílias pobres como vulneráveis, em de risco, e assim, passíveis de perderem a guarda de seus filhos.
Desse modo, a problematização de conceitos como vulnerabilidade social e risco auxiliam no enfrentamento da criminalização da pobreza e da culpabilização/responsabilização individualizante de práticas meritocráticas que, por vezes, podem pautar as políticas sociais. Salientamos a importância de entender risco social em decorrência da violação de direitos e não como comportamento do indivíduo, como se fosse algo relacionado ao funcionamento de uma pessoa.
Até publicação do documento “Concepção de Convivência e Fortalecimento de Vínculos” (2013) constata-se que a autonomia está atrelada tanto ao resultado das intervenções dos trabalhadores como a superação dos/as usuários/as no que se refere aos eventos coletivos e sociais, como a pobreza. Dupla responsabilização, tanto da/o usuária/o quanto da/o trabalhador/a, que devem, mesmo com escassos recursos disponibilizados pela Política, superar as situações que lhes são impostas. Como já sugerimos anteriormente, não podemos deixar de mencionar a autonomia relativa que os trabalhadores sociais possuem, considerando a precarização dos serviços e as disputas de projetos societários a partir de interesses divergentes no campo da política social (Schutz & Mioto, 2012).
Questionamos-nos quanto a continuarmos a recorrer a categorias como vulnerabilidade e risco e o quanto estas aprisionam existências em modos de responsabilização individualizantes quanto a sua situação de pobreza. Vulnerável são os direitos que mesmo com uma política como a Assistência Social, não conseguem ser garantidos. Para que se continue a pensar nestas categorias uma maior conceituação e clareza quanto a conceitos como vulnerabilidade, risco e autonomia se faz necessário tendo em vista as dificuldades apresentadas no trabalho social com as famílias, realizados através da Política de Assistência Social. Salientamos tal fato porque entendemos que a políticas públicas são artifícios de governo de conduta da população em prol de um modelo específico de governo que, por sua vez, deseja que os sujeitos assumam determinados comportamentos, determinado modos de vida. Tal argumentação não deve provocar a paralisia de pesquisadoras/es e trabalhadoras/es das políticas, mas precisa servir como parâmetro para avaliação crítica dos documentos e de nossas práticas, para que, assim, possamos pensar sobre o que temos produzido a partir do trabalho social com os usuários e suas famílias. Fazendo a leitura dos documentos, nos questionamos se não seria momento de pensarmos o trabalho na Assistência Social para além de lógicas que rastreiam a vulnerabilidade dos indivíduos, mas que analisam a vulnerabilidade das condições sociais e dos direitos sociais.
Destacamos que uma maior discussão nos documentos dos conceitos e sua explicação são de extrema importância, pois o discurso produz sentidos e subjetivações. Ao produzirmos documentos como os que referenciam a Política de Assistência Social, estamos produzindo verdades e modos de vida que podem acabar por reafirmar aquilo que buscamos combater. Pensar as particularidades que compõem a população brasileira, salientar nas análises da política de Assistência Social, questões de gênero e raça que se relacionam quanto ao agravamento nas desigualdades sociais constituem eixos norteadores necessários quando conceitos como vulnerabilidade, risco e autonomia aparecem. O ideal universal que ainda fundamenta as políticas públicas como a da Assistência Social serve para sustentar as diferentes formas de desigualdade social que uma grande parcela da população brasileira sofre. Assim, o mesmo ideal universalizante deve ser colocado em análise, pois estrutura um sistema de produção de desigualdades sociais que são racializadas.
Referências
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Data de aceite: 19/11/2018