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Revista Polis e Psique

On-line version ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.9 no.3 Porto Alegre Sep./Dec. 2019

 

ARTIGOS

 

Mulheres na rua: do "fiu-fiu" ao estupro

 

Women on the street: from "fiu-fiu" to the rape

 

Mujeres en la rua: del "fiu-fiu" al estupro

 

 

Flávia Câmara; Maria Lúcia Lima; Crissia Cruz

Universidade Federal do Pará (UFPA), Belém, PA, Brasil

 

 


RESUMO

Os assédios em espaços públicos são recorrentes no cotidiano das mulheres. Diante dessa problemática, este estudo, de cunho bibliográfico e documental, tem por objetivo contribuir com as discussões acerca do assédio em lugares públicos a partir do documentário Femme de la rue. Doravante a reflexão sobre as histórias (não) contadas das mulheres, buscou-se traçar uma linha comum do "fiu-fiu" ao estupro que, embora se configurem em graus diferentes de violência contra as mulheres, tem em comum o processo de reificação do corpo feminino, que foi transformado em coisa e fetichizado como mercadoria em um processo sócio histórico. Deste modo, defende-se a importância de novas pesquisas para ampliar o debate, bem como a construção e fortalecimento de políticas públicas que passem a englobar no escopo de suas ações a árdua tarefa de enfrentar o sistema patriarcal, racista e heteronormativo, sustentáculo das violências contra as mulheres.

Palavras-chave: Assédio; estupro; violência contra mulheres.


ABSTRACT

Harassment in public spaces are recurrent in women's daily lives. Faced with this problem, this bibliographical and documentary study aims to contribute to the discussions about harassment in public places based on the documentary Femme de la rue. The reflection on the (un)told stories of women sought to draw a common line between "fiu-fiu" to rape, which, although they are different degrees of violence against women, they have in common the process of reification of the female body, which has been transformed into thing and fetishized as commodity in a social-historical process. Thus, it is defended the importance of new research to broaden the debate, as well as the construction and the strengthening of public policies that include in the scope of their actions the arduous task of facing the patriarchal, racist and heteronormative system, sustaining the violence against women.

Keywords: Harassment; rape; violence against women.


RESUMEN

El acoso en espacios públicos son recurrentes en el cotidiano de Las mujeres. Ante esta problemática, este estudio, de cuño bibliográfico y documental, tiene por objetivo contribuir con las discusiones acerca del acoso en lugares públicos a partir del documental Femmes de la rue. En lá reflexión sobre las historias (no) contadas de las mujeres, se buscó trazar una línea común del "fiu fiu" a la violación que, aunque se configuran en grados diferentes de violencia contra las mujeres, tiene em común el proceso de reificación del cuerpo femenino, transformado en cosa y fetichizado como mercancia en un proceso socio historico. Entonces, se defiende la importancia de nuevas investigaciones aumentando el debate, así como la construcción y fortalecimiento de politicas publicas que pasen a englobar en el alcance de sus aciones la ardua tarea de enfrentar el sistema patriarcal, racista y heteronormativo, sostenimiento de las violencias contra las mujeres.

Palabras-clave: Acoso; violación; violencia contra las mujeres.


 

 

Se você for uma mulher branca, uma mulher negra, muçulmana ou não, você vai ser abordada só porque você é mulher!

A epígrafe é um dos depoimentos presentes no documentário Femme de la rue (17 min, 2012) que exibe o relato de mulheres sobre o assédio nos espaços públicos e suas técnicas para evitá-lo. O projeto foi realizado por Sofia Peeters, 25 anos, estudante de cinema na Haute École Rits (Bruxelas), que gravou as cantadas recebidas ao percorrer o caminho habitual de sua casa a outros lugares no bairro em que morava (Melro, 2012).

A think tank Olga, uma organização não-governamental feminista atuante no Brasil, lançou a campanha "Chega de fiu-fiu" (ago/2013) contra o assédio sexual em espaços públicos. Diante da repercussão da campanha e a fim de evidenciar a amplitude do problema, a Olga colocou no ar uma pesquisa, elaborada pela jornalista Karin Hueck, que visava compreender melhor o assédio sexual em locais públicos. Dados retirados do site Olga demonstram que a pesquisa contou com a participação de 7762 mulheres e apresenta dados impactantes: 99,6% das participantes afirmaram já ter sofrido algum tipo de assédio em espaço público; 98% afirmaram ter sofrido assédio na rua e, apesar de 83% das participantes terem avaliado negativamente as cantadas, a maioria delas não reagia por medo.

Percebe-se, assim, que não são raros os relatos de mulheres que já passaram por situações constrangedoras nos espaços públicos: algumas foram agredidas fisicamente, abusadas sexualmente, sofreram violência doméstica, assédio moral, violência institucional entre outros elementos que compõem a cultura do estupro.

Diante desse contexto, o presente estudo, de cunho bibliográfico e documental, tem por objetivo contribuir com as discussões acerca do assédio em lugares públicos que atinge grande parte das mulheres, a partir do documentário Femme de la rue. Desse modo, pretende-se tecer uma linha comum do "fiu-fiu" ao estupro enquanto graus diferentes de violência contra mulher. E mais especificamente, demonstrar, com os diferentes discursos trazidos pelo documentário, que o "fiu-fiu" é um assédio, bem como alertar para que as políticas públicas ampliem seu leque de atuação agindo nas causas das violências, principalmente questionando os padrões de masculinidade e feminilidade impostos historicamente.

 

As Histórias (Não) Contadas

Nos dias de hoje parece inconcebível falar em ausência da mulher ao longo da história. Entretanto, durante muito tempo elas ficaram fora dela. Os relatos se construíram a partir do espaço público, lugar que não pertencia à realidade feminina, logo, não se tinha o que falar sobre pessoas invisíveis (Perrot, 2007).

Perrot (2007) aponta que na reconstituição da história da mulher, poucos vestígios foram encontrados sobre sua existência. Gramaticalmente, mulheres são ocultadas com a presença de um homem, uma vez que eles camuflam elas. O homem foi tomado como medida de todo ser humano, sendo necessário uma imbricada rede de criatividade para inventar a mulher, persistindo através do tempo a construção hierarquizada que converteu em desigualdades as diversidades dos indivíduos, uma vez que os modelos conceituais foram elaborados e aperfeiçoados pelos sujeitos que escreveram a história. A partir dessa compreensão:

A história passa, então, a ser vista como construção, como resultado de interpretações, de representações, que têm, como fundo, relações de poder. O modo mais eficiente para desconstruir algo que parece evidente, sempre dado, imutável, é demonstrar como esse algo se produziu, como foi construído. Ao se admitir o caráter de construção que a história possui, inclusive o papel de homens e mulheres na sociedade, é possível criar o que Michel Foucault chamou de "fraturas do presente", pois, se algo não foi sempre assim, nada determina que assim se conserve (Colling, 2004, p. 14).

Nessa perspectiva, evidenciou-se que apesar das tentativas de conformação da mulher aos padrões criados sobre o que era ser mulher, contrapuseram-se modelos que fugiam às reiteradas maneiras de esquadrinhamento da suposta essência feminina. Laqueur (1992) demonstrou que a construção das diferenças entre os sexos se baseou nas ideias dominantes de cada época. Até o século XVIII, o modelo predominante era a existência de um sexo único, a saber, o masculino. Esse modelo, inspirado na filosofia de Galeno (129-200 d.C.), descrevia o corpo da mulher como idêntico ao do homem, porém invertido: os ovários e a vagina das mulheres eram o negativo imperfeito do pênis e dos testículos dos homens.

Mas vale ressaltar que desde a Antiguidade Clássica se inventa a mulher como sendo hierarquicamente inferior ao homem. Na Grécia, as mulheres ocupavam o mesmo lócus que as crianças, portanto, desprovidas de conhecimento. Em Roma, foi legitimado o pater famílias, por meio do qual o homem possuía domínio sobre mulheres, pessoas escravizadas, servos e crianças (Colling, 2004).

Segundo Silvia Nunes (2000), a mulher como representante do mal e tentação do homem surge com o Cristianismo ao inferir que todas as mulheres são filhas de Eva, portanto, carregam consigo o "pecado original". No século XII, a Virgem Maria ascende como o ideal feminino, opondo-se às mulheres reais pecaminosas. Já durante o Renascimento, a feiticeira surge como a versão feminina do diabo.

Depois desse século, o modelo binário entrou em cena diferenciando homens e mulheres em relação à anatomia e à fisiologia. Sendo o corpo o lugar inicial de inscrição, foi a partir dele que se forjaram as diferentes invenções do ser humano e a laboriosa confecção do ser mulher encerrada na reprodução e nos sentimentos angelicais (Colling, 2004).

O século XVIII despontou como o período em que, devido os altos índices de mortalidade em todos os extratos sociais, os valores da infância, e por consequência da mulher, modificam-se, elegendo-se o modelo da família nuclear como ideal e o instinto materno como inerente a todas as mulheres (Nunes, 2000). As mudanças sociais, econômicas e políticas ocorridas no período das Luzes, erigiram novos processos de subjetivação, entrando em cena a razão, segundo o pensamento cartesiano, que a tornou essência universal dos indivíduos.

Houve também uma introspecção do olhar que concebeu o sujeito como único e independente. Mesmo período em que a Revolução Francesa lançou a chama da liberté, égalité, fraternité, tornando imperiosa uma nova medida diferenciadora para garantir a submissão feminina. É nesse contexto de reformulação dos valores e moralidades, que a anatomia e a biologia se configuram como base para justificar a diferença "natural" que existiria entre homens e mulheres, resultando em novos lugares e atribuições sociais (Nunes, 2000).

Para respaldar as novas demandas, o saber médico orientou suas pesquisas para o corpo da mulher. Os órgãos sexuais femininos, antes imperfeitos, passam a ser plenamente adequados à reprodução, sendo valorizada a maternidade e o adestramento da mulher a esse novo papel social. Seu corpo, predestinado à procriação, abriga o papel sublime da mãe, e a valorização da figura da mulher possibilita a aceitação do seu novo desígnio.

Entretanto, torna-se difícil justificar a inferioridade da mulher com o pressuposto da razão universal, assim, outros pressupostos precisaram surgir, sendo Rousseau um dos pensadores iluministas mais importantes para a construção do novo olhar sobre as diferenças.

Seu projeto de organização social pressupunha uma divisão de papéis diferentes e complementares para homens e mulheres. Para ele, a esfera de atuação feminina seria a doméstica e a masculina, a pública. A mulher deveria "reinar" no lar, devendo abrir mão de qualquer pretensão e desejo pessoal de outra ordem. Sua vida deveria permanecer completamente vinculada à de seu marido (...). A mulher não seria nem inferior, nem imperfeita; ao contrário, ela seria perfeita em sua especificidade, dotada de características biológicas e morais condizentes com as funções maternas e a vida doméstica, enquanto os homens mais aptos à vida pública, ao trabalho e às atividades intelectuais. Essas teses vão procurar encerrar definitivamente a mulher no lar e na maternidade (Nunes, 2000, pp. 37-38).

Assim, segundo Nunes (2000), Rousseau consegue driblar o impasse trazido pela razão universal e pelas bandeiras da igualdade, atribuindo à diferença dos órgãos reprodutores os papéis de cada indivíduo na sociedade: a anatomia seria o destino. O homem possuía uma razão intelectual, enquanto a mulher uma razão prática, ratificando-se assim a dominação do homem sobre a mulher.

A alegoria da mulher não foi prontamente absorvida, sendo necessário um constante e árduo processo educativo para que as mulheres coubessem na couraça de boa esposa e mãe dedicada. Ao mesmo tempo em que se consagrou o inatismo da feminilidade passiva, dócil, frágil, submissa e portadora de sentimentos sublimes, reconhecia-se a resistência para se encenar esse papel. Era "preciso criar o hábito da obediência, através do constrangimento e da disciplina constantes" (Nunes, 2000, p. 45).

Como visto, não se tratava de um processo passivo no qual as mulheres aceitavam essas mordaças de submissão. É nessa perspectiva de resistência que se constrói uma historiografia das mulheres. Acontece que mesmo nas primeiras histórias sobre as mulheres, privilegiou-se um modelo universal delas, isto é, aquelas que mais se aproximavam do ideal de branquidade e feminilidade em consonância ao progresso pretendido.

Dentro dos tensionamentos que rompem com a história única que chega à contemporaneidade como verdade naturalizada, algumas vertentes do feminismo ecoam enquanto perspectivas que fraturaram noções unilaterais de gênero e seus posicionamentos econômicos, políticos e culturais na sociedade ocidental (Werneck, 2010).

Todavia, essas teorizações iniciais do feminismo também seguiram contando histórias parciais sobre um sujeito mulher - universal e eurocêntrico (Curiel, 2009). Deste modo, as diferentes histórias, das diferentes mulheres ainda estão por serem (re)escritas, dentre elas, a história das mulheres negras, em especial no Brasil. Um resgate que tem sido bandeira do movimento feminista negro que, ao agregar as demandas raciais do movimento negro e os problemas sexistas do movimento feminista, consegue evidenciar "essa nova identidade política decorrente da condição específica do ser mulher negra" (Carneiro, 2011, p. 02).

Os corpos femininos foram tornados objetos de desejo e de consumo pelo sistema patriarcal ocidental, vivendo sobre a tutela dos três patriarcas: pai, marido e Estado. A hiperssexualização, porém, recai sobremaneira nos corpos negros, em particular nos femininos pela sua articulação com raça, gênero e classe. Violências que no corpo da mulher negra são experiências interseccionadas.

As subordinações interseccionadas promovidas pelos estereótipos racializados de gênero podem "não apenas torná-las alvo da violência sexual, mas também (...) contribuir para a tendência, já demonstrada, de duvidar da honestidade das que procuram pela proteção das autoridades" (Crenshaw, 2002, p. 178).

Sobre a problemática dos estereótipos racializados de gênero nos crimes de violência sexual, Ângela Davis (2016) analisa, no contexto dos EUA, um momento no qual parecia inconcebível mulheres negras não adentrarem as fileiras do movimento feminino anti-estupro do final do século XIX e início do século XX. Nesse período, as análises feitas sobre os crimes sexuais foram construídas em bases racistas que alimentavam o mito do estuprador negro, o que naquele contexto serviu para justificar os linchamentos contra homens negros. "Dos 455 homens condenados por estupro que foram executados entre 1930 e 1967, 405 eram negros" (Davis, 2016, p. 177).

Então o reverso da moeda no mito do homem negro estuprador é a mulher negra prostituível, pois ambos possuem a marca tríplice (individual, coletivo, ancestral) do corpo negro hiperssexualizado que foram propriedades dos senhores e senhoras da casa grande. A imagem da mulher promíscua e imoral institucionalizou o estupro como arma em massa contra um grupo racial, étnico do qual se pretende controlar. Desde os tempos da escravidão:

A coerção sexual (...) era uma dimensão essencial das relações sociais entre o senhor e a escrava. Em outras palavras, o direito alegado pelos proprietários e seus agentes sobre o corpo das escravas era uma expressão direta de seu suposto direito de propriedade sobre as pessoas negras como um todo. A licença para estuprar emanava da cruel dominação econômica e era por ela facilitada, como marca grotesca da escravidão (Davis, 2016, p. 180).

Faz-se necessário ter em vista que mais do que detectar as consequências estruturais, políticas, intencionais ou não das violências interseccionadas, é preciso compreender os mecanismos de funcionamento que as fazem convergir. Alinhada com Ochy Curiel (2014), não basta apontar os produtos, é preciso saber o porquê de estar sendo produzido, o que o sustenta, como se atualiza e, sem nos furtarmos de um posicionamento ético-político, fraturar as bases estáveis da matriz de dominação. Nesse sentido, é preciso ter este olhar sobre os dados de violência, compreendendo que não basta a reconhecer como uma questão social: faz-se necessário entender como e porque está sendo produzida.

No que se refere ao Brasil e seus dados de violência contra a mulher, em especial a violência sexual, no ano de 2014, o país viu repercutir a pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) sobre a percepção da violência contra mulher na qual, inicialmente, cerca de 65% de homens e mulheres concordavam com a assertiva "mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas". A onda de indignados se espalhou pelo país que aderiram à campanha virtual #eunaomereçoserestuprada, promovida pela jornalista Nana Queiroz, ganhando repercussão midiática e sendo reproduzida por celebridades. Posteriormente, o IPEA retificou os percentuais do item polêmico para 26%. A questão que vem à tona, sendo 65% ou 26%, é a culpa que se atribui a mulher nos casos de violência sexual. Embora haja uma lei que pune tais crimes, a norma social ainda criminaliza a mulher por ela estar fora dos padrões construídos no século das Luzes, de mulher mãe-esposa-santa, padrões dos quais a mulher negra e indígena sequer foi considerada, portanto, já se supõe que esteve fora dele.

Essa culpa atribuída à mulher nos casos de violência sexual, a naturalização dessa violência e sua abrangência evidenciam a cultura do estupro presente em nossa sociedade. Engel (2017, p. 11) considera a cultura do estupro como o compartilhamento de "valores, crenças e práticas sobre os papéis de gênero e sobre as interações sexuais que não só permite como também estrutura relações desiguais nas quais o interesse sexual ativo deve conquistar e submeter o objeto de desejo". Ainda de acordo com a autora, falar em cultura do estupro é falar tanto do estupro como dos abusos cotidianamente sofridos por meninas e mulheres. É falar sobre esse continnum do fiu-fiu ao estupro.

 

Do Fiu-fiu ao Estupro

Como dito anteriormente, o documentário Femme de la rue (2012), produzido pela estudante belga Sofia Peeters, alertou para a problemática dos assédios a que mulheres são submetidas nos espaços públicos. O documentário se divide em momentos de autorreflexão de Sofia, depoimentos de outras mulheres, dois grupos de homens cujo rostos não são exibidos, uma entrevista com Mourade (homem a quem Sophie telefona, pois segundo ela, ele tem outra visão sobre isso), a abordagem a uma mulher que está de mudanças, e os momentos em que Sofia caminha pela rua e é abordada e assediada.

Sofia inicia não acreditando que esses assédios fossem reais, "sabe aquele sonho em que você de repente percebe que está nua?", e se questiona se não seria ela a culpada pelos olhares dos outros recaírem sobre seu corpo: "você fez alguma coisa errada, mas você não sabe o que é". A culpabilização interna e da sociedade sobre a mulher é uma constante nesse tipo de violência. O estudo do IPEA em que pessoas de ambos os sexos, seja 65% ou 26%, responderam que as mulheres merecem ser violentadas sexualmente pela roupa que usam é um exemplo que confirma que, embora o estupro, supostamente, não seja tolerado, existe um julgamento velado que atribui às mulheres a responsabilidade por esses atos. Para Bruna de Lara, Bruna Rangel, Gabriela Moura, Paola Barioni e Thaysa Malaquias, do Coletivo Não Me Kahlo (2016, p. 165) "a cultura do estupro (co)existe em uma cultura que repudia criminalmente o estupro".

Femme de la rue é uma busca por respostas: por que esses assédios acontecem? E se foi "algo que eu fiz, que eu vesti, que eu disse?". Como as mulheres podem evitar essas situações? "Mas não há nada que você possa fazer para evitar isso?"

As mulheres procuram estratégias para saírem às ruas e evitar situações invasivas e constrangedoras. Qual mulher nunca pensou duas vezes antes de usar uma roupa ou a trocou com medo de ser assediada? Desviou o olhar para o chão ao cruzar com um único homem ou um grupo deles? Foi surpreendida por um comentário malicioso ou um gesto obsceno? Teve alguém se esfregando em você no transporte público? Diante disso, foi preciso encontrar meios para tentar evitar essas situações. Em suma: use calças, não olhe para ninguém, escolha uma rota segura, evite transporte público.

Os depoimentos seguem no decorrer do vídeo e as táticas para não ser assediada nas ruas e em outros lugares públicos convergem, bem como os sentimentos compartilhados: culpa, medo, frustração, impotência. Os assédios dirigidos à Sofia são agressões e não elogios, como sustentam alguns homens que aparecem do documentário. Um comentário só pode ser entendido como elogio por quem o recebe. Porém, nem Sofia, nem cerca de 83% das mulheres que responderam as pesquisas do think tank OLGA, interpretam deste modo.

Dois grupos de homens são entrevistados, sendo resguardadas as imagens de todos: o primeiro grupo de homens, que aparentava ser de jovens, estava em um parque, enquanto o segundo, mais maduro, encontrava-se em um bar (ou lanchonete) ao ar livre. Sofia pergunta ao primeiro grupo: "Por que você faz isso?", e as respostas que os jovens apresentam é que precisam "passar o tempo". No fUndo o que se infere é que nem eles sabem por que fazem isso. Só que fazem e se divertem nessa correlação desigual de poder. Replicam um padrão de ser homem que necessita "provar o que [podem] fazer", para que o gênero masculino permaneça com aparência estável perante a sociedade, afinal, ser homem é ser o "pegador", o viril, o ativo.

O segundo grupo se diverte com o diálogo. Um dos homens tenta demonstrar para Sofia a naturalidade das divisões de lugares de cada gênero na sociedade e que seria um absurdo se contrapor a essa ordem:

Sofia - Mas, eu como mulher? Não há nada que eu possa fazer?

Entrevistado - Você deve se calar. Coloque os fones de ouvido como todas as outras meninas e deixe eles falarem.

S - Mas eu não quero deixar. Odeio ser insultada. E se eu não responder, eles me chamam de puta.

E - É uma pena que pense assim.

S - Mas eu não penso assim. São os homens que me fazem pensar assim.

E - Não, senhorita, você é assim. Os homens não fizeram nada de errado, até parece que o relógio voltou 100 anos atrás no tempo.

Nesse diálogo fica explícito o lugar que se deseja que historicamente a mulher ocupe; o mesmo que Rousseau lhes atribuiu no período do Iluminismo. Além disso, percebe-se que os ditos elogios são agressões que insultam as mulheres e reagir a isso seria retroceder no tempo, ressaltando a naturalidade como o comportamento abusivo é encarado pela sociedade. Nesse sentido, se houve violência é porque a mulher desafiou as normas sociais e o homem nada teria feito de errado, visto que este comportamento lhe seria "natural". Essa naturalização dos comportamentos abusivos demonstra uma legitimação do exercício de poder masculino sobre o corpo feminino.

As autorreflexões seguem tentando encontrar os motivos dos assédios. Em uma das cenas, que se repete em outros momentos do vídeo, Sofia olha pela janela do seu apartamento para a rua; um espaço público que torna igualmente público os corpos das mulheres, seja pela forma com que são expostos em outdoors, veiculados em propaganda ou percebidos como um corpo-objeto pela sociedade.

A entrevista com Mourade (feita por telefone) demonstrou essa objetificação do corpo feminino pelo modo com que são estampados nas vias públicas, nos meios de comunicação e no imaginário social. Ele atribui isso a um tabu a que a sociedade foi submetida: não se fala sobre a sexualidade, cobria-se o corpo das mulheres; "tanto respeito pelas mulheres que elas não podiam fazer mais nada". Respeito ao ideal de mulher que as aprisionou nessa essência submissa e adestrada e, ele reitera, que "quanto mais algo é reprimido, mais você quer vê-lo".

No retorno para sua casa, Sofia reflete sobre essa redução da mulher a um objeto que pertence ao homem, conforme Mourade afirmou. Nesse caminho é abordada por um rapaz que quer lhe conhecer, e mesmo após ela afirmar não ter interesse, ele insiste e, por fim, ofende-a verbalmente, como é comum ocorrer quando mulheres reagem. O que corrobora com a pesquisa do site OLGA, onde é identificado que a maioria das mulheres não respondem ou revidam por medo de serem mais insultadas ou que ocorra uma agressão física.

Ao chegar a seu prédio, Sofia percebe que uma das moradoras está de mudança e resolve saber o motivo. A conclusão não é outra senão os constantes assédios que recebia. Ela percebeu que começou a se "comportar diferente, não usando saias, por exemplo". Deixando de ser ela mesma, por causa disso. Ou seja, deixando de ser uma mulher que resiste a essa couraça e mordaça que as obriga a não serem mulheres com vontades, desejos, direitos, voz; a mudar de ambiente, caminho, roupa, aparência, com o objetivo de seguirem um padrão que foi inventado ao longo das épocas e diferentemente em cada cultura. Parece que de fato mulheres estão presas, como conclui Sofia ao final do documentário.

No entanto, "mulheres" está longe de ser um conjunto homogêneo cujas experiências são as mesmas. Sophie Peteers é uma mulher branca oriunda de um país colonizador que mesmo sendo atravessada pelas opressões de gênero está isenta do racismo sobre o seu corpo. Em se tratando da realidade brasileira é importante lembrar:

Foi a escravização do povo africano na América colonizada que marcou o início da mudança do status social da mulher branca. Antes da escravatura, a lei patriarcal decretou as mulheres brancas como os seres inferiores mais baixos, grupos subordinados da sociedade. A subjugação do povo negro permitiu-lhes desocupar essa posição e assumir um papel superior (...) A escravatura de forma alguma alterou o status social hierárquico dos homens brancos, mas criou um novo estatuto para mulheres brancas. (...) Era na sua relação com a mulher negra escrava que a mulher branca podia afirmar melhor seu poder (Hooks, 1981, p. 110).

A construção dos corpos negros ao longo da história é marcada por categorias que se interseccionam colocando mulheres negras ainda como "a carne mais barata do mercado", a carne com maior permissividade ao toque mais agressivo e não autorizado, pois à objetificação articula-se a hiperssexualização que pesa sobre esses corpos.

De acordo com os dados do Atlas da Violência de 2018 (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada [IPEA] & Fórum Brasileiro de Segurança Pública [FBSP], 2018) , em 2016 foram registrados 22.918 casos de estupros, os quais 34% das vítimas foram mulheres brancas, e 54% mulheres negras (pretas e pardas), mostrando que as realidades de mulheres brancas e negras são diferentes e mesmo entre as negras há de se considerar outros atravessamentos como classe, orientação afetiva, migrantes ou não, entre outros marcadores. Há de se lembrar que também sobre as mulheres negras recaem a construção de estereótipos como a de mulheres fortes, que aguentariam toda e qualquer situação de violências (Collins, 2019).

 

Formas de regulação dos corpos femininos

Conforme nos mostrou Foucault (2014), foi construído em torno do sexo "um imenso aparelho para produzir verdade, mesmo que para mascará-lo em último momento" (p. 63). Essa incessante vontade de saber sobre sexo não apenas interditou e proibiu, mas acima de tudo gerou prazer e estimulou que se falasse sobre ele verborragicamente. Nunca foi um tabu, como erroneamente afirma Mourade no documentário. E sim, técnicas disciplinares, a exemplo da confissão, que primorosamente extraíram a verdade sobre o sexo, o qual guardava a verdade sobre o sujeito: falar para se conhecer, conhecer para se controlar.

Desde a época clássica, tecnologias de controle foram aprimoradas, sobretudo pela medicina, indo da confissão pastoral às catarses cientificamente analisadas que tornaram o sexo eroticamente verbalizado e a sexualidade adotada como estratégica por englobar de uma só vez o corpo individual e o controle da população.

Diante de estratégias específicas, um dispositivo de sexualidade foi construído para esmiuçar, controlar e intitular como verdade universal modos de ser condizentes com uma norma de inteligibilidade binária e heterossexual dos sujeitos que essencializou no sexo e na necessidade de reivindicação de uma identidade sexual a condição para visibilidade humana (Lima, 2013).

Foucault (2014) dividiu em quatro conjuntos amplos as estratégias pelas quais saber e poder atuaram a partir do século XVIII atualizando o dispositivo de sexualidade, a saber: a histerização do corpo da mulher, a pedagogização do sexo da criança, a socialização das condutas de procriação e a psiquiatrização do prazer perverso. Em suma, foram meios ao longo da história que possibilitaram o surgimento de uma sexualidade possível de ser controlada. Sobre a histerização do corpo da mulher, Foucault (2014, p. 113) afirma:

Tríplice processo pelo qual o corpo da mulher foi analisado - qualificado e desqualificado - como corpo integralmente saturado de sexualidade; pelo qual este corpo foi integrado, sob o efeito de uma patologia que lhe seria intrínseca, ao campo das práticas médicas; pelo qual foi posto em comunicação orgânica com o social (cuja fecundidade regulada deve se assegurar), com o espaço familiar (do qual deve ser elemento substancial e funcional) e com a vida das crianças (que produz e deve garantir, por meio de uma responsabilidade biológico-moral que dura todo o período da educação): a mãe, com sua imagem em negativo que é a mulher nervosa, constitui a forma mais visível dessa histerização.

Percebe-se que as técnicas de controle sobre o corpo da mulher estão presentes desde o século XVIII e, ainda que muitas conquistas reais tenham sido logradas pela luta feminista, o saber predominante ainda é o mesmo que Rosseau germinou no período das Luzes.

Depreende-se que o século XXI mantém atualizadas suas tecnologias de controle: "use calças, não olhe para ninguém e escolha uma rota segura". Ainda que nenhuma mulher seja queimada na fogueira, seguem sendo condenadas por não se encaixarem nos padrões da mulher do Iluminismo. Culpa, vergonha, humilhação, isolamento, impotência são sentimentos recorrentes ao ter o corpo desnudado por olhares, gestos, palavras invasivas; "palavras podem ser o suficiente para exercitar o poder sobre alguém", além do inevitável medo de ser assediada e estuprada.

Palavras essas como o "fiu-fiu", que gerou um processo de subjetivação e objetivação atribuído, por alguns, como um elogio ao ego, uma exaltação da mulher, apesar de se configurar como um assédio, muitas vezes. Essa diferença entre um elogio e um assédio pode ser compreendida a partir de algumas reflexões proposta por Paiva (2013): 1) sobre o conteúdo enunciado; 2) o motivo pelo qual o comentário será emitido; 3) o contexto em que ele ocorre e 4) a existência da reciprocidade ou, conforme diz Kenski (2014), o consentimento de quem recebe o comentário.

A questão da reciprocidade e consentimento em relação aos assédios nas ruas também se faz presente nos debates sobre abuso e estupro. Lara e cols. (2016) afirmam que o crime de estupro dificilmente deixa vestígios ou tem testemunhas de sua ocorrência, de modo que a palavra da vítima se configura como determinante para caracterizar a violência, pois se é considerado que a mulher consentiu, o crime é descaracterizado e transformado em sexo consentido. Engel (2017) contribui com este debate ao analisar que as reações públicas a episódios de abuso e estupro tendem a questionar a ocorrência da violência e passam a investigar a "moralidade" da mulher, como ela pode ter provocado o estupro ou não evitou o suficiente que acontecesse. A autora acrescenta:

As relações sexuais forçadas são entendidas como crimes, ou mesmo como comportamento social inadequado, dependendo da violência aplicada, da reação ocorrida no momento, da idade da vítima, do corpo da vítima, da sua vestimenta, das relações familiares e do comportamento. A própria ideia de consenso é maleável discursivamente para descaracterizar interações desiguais e forçadas. Isso ocorre tanto nas relações diretas como nas falas da mídia, de delegados, juízes, policiais e parlamentares (p. 24).

A validade do consentimento da mulher, nesse contexto, fica subjugada ao outro. Como pontua Engel (2017), o consenso para o ato sexual é discursivamente maleável, depende da avaliação da "moralidade" que fazem da mulher, se esta pode configurar-se de fato como vítima, se é possível acreditar no seu consentimento ou recusa à relação sexual. É importante lembrar que mesmo com a retificação dos dados do IPEA, o quantitativo de brasileiros entrevistados que concordam com a afirmativa "mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas", ainda ultrapassa 1/4 da população. Isto é um indicativo importante da invalidação do não consenso e não reciprocidade da mulher. Sua palavra perde valor diante da palavra, desejo e exercício de poder do homem.

Em uma cultura que objetifica o corpo feminino, que busca regular a sexualidade da mulher a serviço da sexualidade masculina, a reciprocidade e o consentimento valem muito pouco, desde os assédios cotidianos nas ruas até os estupros. Essa maleabilidade discursiva do consentimento e também da reciprocidade integram a construção dos papéis que relegou a mulher ao silêncio abissal da história, conforme apontou Perrot (2007), bem como a um substrato inferior, à passividade e à submissão pelas técnicas de adestramento indicadas por Rousseau.

No jogo de sedução instituído pelo sistema patriarcal machista, a atitude deve ser do homem, pois as regras lhe pertencem. Não à toa uma das sugestões que os entrevistados do documentário sugerem à Sofia é que ela se cale e deixe eles falarem. Essa rigidez de papéis tutelou ao homem a existência da mulher, que embora não seja nos moldes antigos, pois na atualidade são reconhecidas como cidadãs, ainda as convoca a "dizer que está casada" para ser respeitada, ou seja, o fato de ser mulher não lhes garante nenhuma segurança, pois necessitam "de um homem para andar tranquila na rua".

Aquelas que não se enquadrarem nesse padrão devem ser submetidas às normas das ruas, aos assédios que demarcam que o lugar da mulher não é nos espaços públicos e sim, no lar, pois historicamente, as mulheres que circulavam por esses espaços eram as putas - cuja existência era fundamental para saúde da família nuclear, já que eram as depositárias dos excessos masculinos (Nunes, 2000).

Do mesmo modo, as ruas também se tornam logradouros de outras mulheres, as quais, na sua grande maioria, chegam a essa situação por diversas violências vividas, sobretudo a doméstica em virtude das vulnerabilidades associadas a renda e habitação (Rosa & Brêtas, 2015). É importante considerar que em situação de rua, as pessoas passam a representar as chagas da sociedade que são vistas, mas são ignoradas em suas humanidades, sendo estigmatizadas enquanto "vagabundo, preguiçoso, bêbado, sujo, perigoso, coitado, mendigo..." (Mattos & Ferreira, 2004).

Percebe-se com isso que as ruas se tornam mais perigosas ainda para mulheres nessas situações que com frequência relatam agressões físicas e violências sexuais (Rosa & Brêtas, 2015), posto que já morreram socialmente quando o principal (embora não seja o único) processo que as leva a esse lugar está calcado no contínuo das múltiplas violências contra as mulheres.

Nesse sentido, o fio condutor que leva do fiu-fiu ao estupro está situado em um processo de reificação - um termo cunhado por George Lukács em 1923, que literalmente traduz-se por transformar uma ideia em coisa (Crocco, 2009) - no qual o corpo da mulher se configura como um constructo que, padronizado e disciplinado ao longo da história, foi reduzido a uma coisa com valor de mercadoria e fetichizado enquanto tal. A mulher ocupa um lugar de objeto desprovido de sua subjetividade, desejo, sexualidade e vontade, considerada um ser inerte. Longe de uma reivindicação a uma essência ou entidade interior, trata-se sim de mostrar o processo histórico que inventaram essa mulher-objeto, "uma espécie de boneca inflável".

Deste modo, o continuum do fiu-fiu ao estupro foi construído pelos processos de objetivação que as transformaram em corpos dóceis e úteis mediante técnicas sutis de disciplinarização e dos processos de subjetivação que aprisionaram os sujeitos em identidades rígidas.

Por todos os lados o corpo da mulher é exposto como mercadoria e valorizado enquanto tal. "Quanto mais eu prestava atenção ao meu redor, mais eu via mulheres nuas sendo retratadas nas ruas, elas me olhavam dos cartazes com olhos excitados e sugestivas bocas abertas". O corpo feminino nunca foi escondido e sim, constantemente exposto, incitando que se falasse sobre ele, sobre a sexualidade, para reificá-lo e controlá-lo, legitimando os diferentes espectros da violência contra a mulher, culpabilizando-a e banalizando não só o estupro, mas a própria reificação que desencadeia os diversos tipos de violência e feminicídio na sociedade patriarcal.

No entanto, as mulheres não se entregam a esse poder passivamente. Há resistências diversas a esse contexto de violência contra as mulheres, de reificação e busca de controle do corpo feminino, que naturaliza e culpabiliza a mulher pela violência sofrida.

A cidade, as ruas e mais recentemente as redes sociais têm sido ocupadas pelas mulheres como espaços de se fazer ouvir suas vozes que foram caladas por séculos. Vozes de resistência diante de um discurso hegemônico que naturaliza e legitima a violência sexual: do fiu-fiu ao estupro. Vozes que buscam criar fissuras nessa realidade e que tem conquistado cada vez mais força e se fazendo ouvir mesmo em uma sociedade misógina, patriarcal e racista que insiste em querer calar, controlar, invisibilizar e violentar as mulheres.

 

Um Olhar Conclusivo

Pela janela do apartamento, Sofia buscava respostas e saiu às ruas atrás delas em um ato de resistência, assim como o presente estudo se propôs a ser. Foucault elucida que as linhas de força que irradiam saberes e poderes também construíram focos de resistência, discurso de reação em que a mulher "pôs-se a falar por si mesma, a reivindicar sua legitimidade ou sua 'naturalidade', e, muitas vezes dentro do vocabulário e com as categorias pelas quais era desqualificada (...)" (Foucault, 2014, p. 111) pelos diferentes discursos existentes.

Este estudo não pretendeu englobar todas as problemáticas que perpassam as violências contra as mulheres e, sim, resistir ao processo de reificação que transformou os nossos corpos, o corpo de Sofia e de todas as mulheres, em coisa, que se aprofundam quando articulamos raça, classe e orientação sexual.

Em maio de 2018, a think thank Olga transformou sua campanha no documentário intitulado "Chega de fiu-fiu" que retratou a realidade de mulheres nas cidades de Brasília, São Paulo e Salvador que corrobora com a perspectiva do presente artigo que "fiu fiu" não é elogio e sim assédio, seja no Brasil ou em outros lugares no mundo.

Não se pretende transformar todos os homens em potenciais estupradores, uma vez que os modos de ser estão enredados nas malhas do poder que foram engendradas no decorrer da história pelas ressignificações de cada sociedade. Assim, um possível caminho a ser seguido é desconstruir as masculinidades e feminilidades naturalizadas, pois a vida não é a identidade, como diria Butler (2008), abrindo-se para existência de novos sentidos ao se possibilitar outros lugares aos sujeitos, tal como novos constructos sobre o que é ser mulher e homem para além das amarras identitárias binárias e heterossexuais.

Conclui-se, mediante o olhar deste estudo, que existe uma linha tênue separando um elogio de um assédio e na maioria das vezes às mulheres esses comentários soam como agressão que as amedronta. O "fiu-fiu" e o estupro, embora se configurem em graus diferentes de violência contra as mulheres, tem em comum o processo de reificação do corpo feminino, que foi transformado em coisa e fetichizado como mercadoria em um processo histórico.

Deste modo, as cantadas em espaços públicos precisam ser encaradas como assédios e não seguir banalizadas pela "cultura do estupro" que legitima esse processo de "coisificação" da mulher, tornando-se urgente novas pesquisas para ampliar esse debate, bem como a construção e fortalecimento de políticas públicas que passem a englobar no escopo de suas ações a árdua tarefa de desconstruir o sistema patriarcal racista heteronormativo, considerando esse amplo processo de violências contra mulheres que se inicia desde o nascimento da naturalização dessas personagens e seus lugares sociais.

 

Referências

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Enviado em: 03/12/18
Aceito em: 09/09/19

 

 

Maria Lúcia Lima é psicóloga, doutora em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade de São Paulo, professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Pará (PPGP-UFPA).
E-mail: marialuciacl@gmail.com
Crissia Cruz é psicológa, mestranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Pará (PPGP-UFPA), especialista em Psicologia da Saúde (CFP), pós-graduada em Atenção à Saúde da Mulher e da Criança (Residência Multiprofissional - UEPA/FSCMP).
E-mail: crissiacruz@yahoo.com.br
Flávia Câmara é psicóloga, doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Pará (PPGP-UFPA).
E-mail: flaviadscamara@gmail.com

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