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Revista Polis e Psique
versão On-line ISSN 2238-152X
Rev. Polis Psique vol.10 no.3 Porto Alegre ser./dez. 2020
https://doi.org/10.22456/2238-152X.88513
RELATO DE EXPERIÊNCIA
Como fazer da pesquisa um acontecimento?
How to make research into a happening?
¿Cómo hacer de la pesquisa un acontecimiento?
Brida Emanoele Spohn CezarI; Nelson Eduardo Estamado RiveroII
IUniversidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil
IIUniversidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), São Leopoldo, RS, Brasil
RESUMO
Este trabalho se propõe a discutir uma perspectiva ética no fazer da pesquisa que de maneira processual delimita problemas e métodos, desviando-se, portanto, dos contornos estabelecidos aprioristicamente. Entende-se que ao entrar em contato com os sujeitos que habitam o fora da universidade, corre-se o risco necessário de questionar e distender as margens fixadas de antemão. Trata-se de uma certa implicação para com as possibilidades de invenção que o próprio pesquisar suscita, quando aberto às múltiplas vozes que o atravessam. Durante a realização do seu trabalho de conclusão de curso, a pesquisadora escuta os antigos moradores de uma comunidade desenvolvida a partir da chegada da ferrovia e, posteriormente, acometida pela sua abrupta retirada. Ressalta-se ao longo desta intervenção os movimentos que coletivamente se instauraram, na medida em que os tensionamentos em relação ao conhecimento não foram ignorados, e sim visibilizados, potencializando a descoberta de novos rumos e abordagens até então impensados.
Palavras-chave: Ética; Pesquisa; Psicologia; Implicação; Intervenção.
ABSTRACT
This work aims to discuss an ethical perspective on doing research that, in a procedural way, delimits problems and methods, therefore deviating from the established outlines. It is understood that when one gets in contact with the subjects that inhabit the outside of the university, they run the risk of questioning and overstraining fixed borders in advance. It is a certain implication with the possibilities of invention that the act of researching itself generates, when it is open to the multiple voices that traverse it. While doing her end of course work, the researcher listens to former inhabitants of a community developed upon the arrival of the railway and, later, affected by its abrupt removal. The movements that were collectively established during this intervention should be noted, as the tensioning related to knowledge were not ignored, but visualized, thus enhancing the discovery of new courses and so far unforeseen approaches.
Keywords: Ethics; Research; Psychology; Implication; Intervention.
RESUMEN
Este trabajo se propone a discutir una perspectiva ética en el investigar que de manera procesal delimita problemas y metodologías, desviándose, por consiguiente, de los contornos establecidos. Se entiende que al contactar los sujetos que habitan las afueras de la universidad, se corre el riesgo de interrogarse y estirar las márgenes fijadas previamente. Se trata de una cierta implicación con las posibilidades de invención que suscita el investigar, cuanto esté abierto a las varias voces que lo atraviesan. Durante la realización de su trabajo de finalización de curso, la investigadora escucha a los antiguos habitantes de una comunidad desarrollada a partir de la llegada del ferrocarril y, posteriormente, afectada por su abrupta retirada. Se resaltan a lo largo de esta intervención los movimientos que se instauran colectivamente, ya que las tensiones en relación con el conocimiento no han sido ignoradas, sino visibilizadas, potenciando la descubierta de nuevos rumbos y enfoques.
Palabras-clave: Ética; Investigación; Psicología; Implicación; Intervención.
Introdução
A pesquisadora, antes de dar início ao seu trabalho de conclusão de curso, retorna para a sua terra natal e se propõe a dialogar com a comunidade para fazer um levantamento dos moradores que viveram no tempo da ferrovia. A pequena estação, inaugurada em 1909 e desativada no final da década de 1980, serviu ao longo dos anos a outras funções, na medida em que os trilhos também foram arrancados e o antigo depósito da viação férrea reformado com vistas a ser reocupado. As ruas da cidade se reconfiguraram juntamente com as suas paisagens, ampliando os fluxos anteriormente centralizados nas chegadas e partidas do trem, responsável pelo transporte de cargas e de passageiros. Neste cenário de desmanche e reconstrução, poucos vestígios restaram do passado e poucas vozes desta geração encontraram espaço para narrar sobre as suas experiências em São Salvador. O vilarejo, ao ser invadido pelos ventos do progresso, mudou de nome e inaugurou rodovias, deslocando moradias, instalando indústrias e demarcando o seu perímetro urbano apartado da zona rural. Em meio a todas essas mudanças que afetaram o cotidiano e as relações, uma questão solicitava o encontro com as testemunhas desta transformação: as pequenas ruínas esquecidas, que davam a ver as fissuras por entre as camadas da memória, porosas o bastante para proliferarem os restos ou farrapos da história. Eis que então tal desassossego emergiu como uma pergunta acerca do desejo dos habitantes para se reunirem em grupo e desdobrarem os efeitos e as marcas subjetivas deixadas pela época das locomotivas.
Em uma primeira aproximação, ainda com a intenção de mapear quem seriam os sujeitos de uma possível intervenção, já ecoavam as reverberações sobretudo do término e do desfecho da linha ferroviária no local. O traçado que interligava Porto Alegre à Caxias do Sul desapareceu num compasso apressado, conforme veio a ser apagado, destoando da situação de sua difícil e vagarosa acomodação através dos paredões e rochas escavados. Os túneis e bueiros persistiram abandonados, sem uso e sem circulação, uma vez que distantes das novidades para receberem atenção, seguindo justamente na direção oposta, ou seja, do descaso e da ameaça de extinção. A invisibilidade a qual foram submetidos os objetos e as imagens, mas igualmente os seus enredos e personagens, desvelava a posição de homens e mulheres que envelhecem em solo árido e escorregadio para as suas lembranças. A escuta, desde o primeiro contato, mostrara-se imprescindível para os desenlaces posteriores da pesquisa que começava naquele momento a adentrar as casas e a delimitar os rumos do seu projeto. E isto porque os diálogos traziam à tona o interesse de contar e compartilhar as histórias da ferrovia, de modo a impulsionar uma proposta de intervenção pautada pelo seu compromisso com a realidade. O ponto de partida não se limitaria no sentido do alcance de seus efeitos, visto que o processo ali inaugurado não se encarregaria de dar voz apenas ao saber da pesquisadora, e muito menos de conferir a esta o poder de decisão que caberia ao coletivo. Sendo assim, o formato que o campo adquiriu após passar pelo comitê de ética refletia estas preocupações, presentes nas negociações com a gestão pública acerca do prédio escolhido conjuntamente para as reuniões, bem como a delimitação de sua frequência, horário e duração. As cenas e intensidades outrora anunciadas seriam desdobradas em relatos que produziram redes para sustentar a sua existência, emergindo no contexto de reencontro dos antigos moradores de Salvador do Sul, nome atribuído à cidade com o fechamento da estação e o sucateamento dos trilhos.
Durante aproximadamente um ano o grupo permaneceu articulado, acolhendo as contribuições daqueles que não puderam participar das reuniões em função de sua saúde ou idade avançada. Este artigo tem a intenção de abordar os desvios que o próprio percurso desencadeou, ao passo em que os sujeitos foram considerados como atores e coautores no desenvolvimento e elaboração do trabalho. A perspectiva ética aqui problematizada lança mão do desafio de afirmar a singularidade na fabricação do conhecimento e, mais do que isto, caminha desalinhada aos pressupostos de generalização, visto que comprometida com o acontecimento e a sua capacidade de subversão.
Pistas para pensar a pesquisa como acontecimento
As exigências e protocolos institucionais aos quais devem responder os envolvidos com as práticas de pesquisa geralmente não são discutidos sob a perspectiva da relação entre o pesquisador e o público a quem se dirige. O contexto é menosprezado perante a regra que se quer universal, postura reproduzida não só no âmbito acadêmico como fora deste, quando o imperativo da resolução dos problemas e cumprimento dos deveres é ressaltado em detrimento de uma crítica e desnaturalização dos mesmos. Os incômodos e as incongruências raramente são disparadores de reflexão, dada a circunstância de não serem bem-vindos na apresentação de resultados que dispensam o embaraço do inesperado e do improviso. Ao enxergarem as arestas e as contradições que habitam as intersecções entre os diferentes saberes, olhares e fazeres, as investigações esbarram em uma encruzilhada: ou achatam as multiplicidades para que se ajustem a um plano homogêneo ou se dispõem a construir novos delineamentos capazes de potencializar a diferença suscitada pelos encontros. O que escapa ao projeto pensado pode acabar sendo ocultado pelas caixas pretas da ciência, onde submergem todas as suas vicissitudes e tropeços, não mais visíveis ou passíveis de desdobramentos (Latour, 2000).
Ao acolher os elementos que forçam uma ruptura no caminho previamente estabelecido, corre-se o risco de descobrir saídas inéditas a partir da disponibilidade para estar com e para habitar uma zona de incerteza e indefinição. "Assumir que o campo nos surpreende: talvez seja essa toda a graça da pesquisa" (Bicalho, 2019, p.32). Dispensando o propósito de endireitar as linhas que o próprio processo já havia se encarregado de dobrar, os episódios narrados a seguir acompanham o objetivo de atribuir passagem e sentido ao que foi vivido. Sem a pretensão de que possam se repetir, tais eventos antes ajudam a pensar nos modos de conduzir as intervenções e comprometer-se com as interferências que todo estudo acaba por constituir ao tomar posição no mundo. "... A inseparabilidade entre conhecer e fazer, entre pesquisar e intervir" (Passos & Barros, 2015, p. 17), aponta para a questão do rigor atrelado a uma análise de implicação constante, avesso às dicotomias que anseiam por estagnar as forças sobrepondo-lhes as formas. Sujeito e objeto, clínica e política, vida e pensamento não são mais opostos que dialogam, e sim construções disseminadas nas formações em psicologia e atuantes no sentido dos binarismos que consolidam, à revelia de um debate capaz de colocá-los sob suspeita (Neves & Josephson, 2002).
A escuta que promove fissuras requer abertura, tanto para borrar as fronteiras quanto para perceber aquilo que transborda aos seus planos e suposições iniciais. Há uma escolha em jogo, pois a dificuldade em apreender o campo e torná-lo dócil para corresponder a determinadas expectativas irá exigir que o pesquisador admita a desmontagem ou que atribua ao sujeito pesquisado uma incapacidade para fornecer a resposta desejada. Interrogando as próprias práticas, deslocando-as e reinventando-as no ritmo dos abalos sofridos, reconhecerá o papel da experiência na constituição dos saberes e permanecerá atento para os efeitos de suas perguntas. Do contrário, incorrerá em julgamentos que concebem como erros ou fracassos as surpresas, os sobressaltos e os imprevistos, esquecendo-se de que está "...envolto num emaranhado de virtualidades e desconhecimentos ..." (Fonseca, Costa, Moehlecke & Neves, 2010, p. 182). As ferramentas conceituais que carrega são insuficientes para abarcar tudo que lhe acontece, pois cada caminho impõe desafios e compassos diferentes. Em sua viagem, os afetos disparam as ideias e são por elas engatilhados, exigindo uma postura capaz de incorporá-los na produção do conhecimento. A fim de garantir uma suposta neutralidade e objetividade, muitos preferem relegar à margem as incertezas e as paixões sob a ameaça de serem contaminados com a sua presença.
Cena 1: assinatura do termo
Ao receberem e acompanharem a leitura do termo de consentimento livre e esclarecido, os moradores de Salvador do Sul, entre sessenta e noventa anos de idade, hesitam nas cadeiras dispostas em círculo no antigo depósito da rede ferroviária. Esta etapa que visava reiterar e firmar as combinações mediante a assinatura de um papel, o qual garantiria para a universidade o compromisso com os participantes, impôs a necessidade de uma parada. As mãos que articulavam as histórias contadas logo na chegada para os conhecidos, revelavam sua impotência diante da caneta e de sua temerosa precisão. O silêncio pairava estupefato de ruídos, pouco a pouco nomeados como constrangimento e receio de não conseguir cumprir com o que lhes era pedido. As vozes engasgadas ressaltavam as limitações provocadas pela idade, além do afastamento precoce da escola em função das rotinas de trabalho consolidadas nas famílias daquela região durante as primeiras décadas do século XX.
O ambiente da sala de aula, ocupado por professores e materiais didáticos provenientes dos grandes centros urbanos, desconsiderava os modos de vida e as sutilezas imbricadas naquele cotidiano, deslegitimando, portanto, a cultura local nas formas de aprendizagem. A sobrevivência de muitos moradores dependia do trem, que levava até São Salvador as mercadorias revendidas nos armazéns pelos comerciantes e despachava os produtos dos artesãos a serem entregues em destinos múltiplos. Por outro lado, as locomotivas a vapor demandavam cargas de lenha para o abastecimento de suas caldeiras, providenciadas não pelos funcionários da rede ferroviária, e sim pelos habitantes da cidade que esta empregava. Senhores e senhoras, ao serem arremessados no campo da escrita pela pesquisa demandante de assinaturas, descortinaram este universo complexo de imagens e intensidades que desconcertaram o corpo da pesquisadora a partir da sua posição.
A obrigação de cunho ético, ao ser repassada aos que teriam que a ela se submeter, demonstrava sua parcialidade para ouvir e para ver, arrebatando os movimentos com a indicação de registro. O diálogo que se propunha a problematizar o termo, bem como o seu impacto e ressonância ao ser recebido, estendeu-se à universidade e ampliou o debate que por vezes permanece restrito aos encaminhamentos. Mais do que solucionar o impasse da reprodução ilimitada de um procedimento, que não é isento nem do saber nem do poder que lhe subjaz, desejava-se criar as arestas para dar vasão à violência que o mesmo pode colocar em cena em determinadas conjunturas sociais, históricas, econômicas e culturais. Se a pesquisa procura conformar o campo aos seus problemas, responsabilizando os sujeitos por eventuais falhas e equívocos, praticamente inexistente será sua chance de escutar os estranhamentos suscitados pela academia. Até quando as suas prescrições serão sustentadas sem evidenciar os tensionamentos que estão em jogo? Os choques e os silêncios atestam em nome das vidas distanciadas e geralmente repelidas pelos discursos científicos.
O exercício de alteridade proporcionado pelas rupturas e desorientações que acometem o pesquisador forçam-no a pensar, desde que esteja disposto a se aventurar, "afinal, alçando os seus maiores voos, o pensamento experimenta o fascinante perigo da quebra dos limites" (Schöpke, 2004, p. 21). O fora, se compreendidoenquanto uma experiência, acena para a oportunidade do conflito e da desestabilização dos valores instituídos, assim como para o risco do enquadramento e da reafirmação descabida do mesmo em meio a diferença que enseja travessia. Se as ações planejadas sucumbem, por que não redesenhá-las a fim de que integrem os contrassensos oriundos do campo de imersão, redimensionado a partir do vagar que faz dele território de criação? Quando as ideias não sofrem com os golpes e as quedas, apesar de sua circulação por espaços híbridos e descontínuos, resta o desassossego que indaga sobre a sua irrefreável reprodução.
Cena 2: ligações telefônicas
Ao se deparar com os enfrentamentos e posicionamentos do grupo, a pesquisadora se afastou das margens inicialmente demarcadas e mergulhou na trama que individualmente não conseguiria ser tecida. A teia que se formou contou com linhas enredadas e conectadas de diversas maneiras, desde as combinações até os planejamentos em acelerada efervescência, dada a sua interface com os acontecimentos emergentes ao longo do próprio trajeto. "O desafio é ode realizar uma reversão do sentido tradicional do método - não mais um caminhar para alcançar metas prefixadas, mas o primado do caminhar que traça, no percurso, suas metas" (Passos & Barros, 2015, p. 17). Os senhores anunciaram os inconvenientes envolvendo a recordação das datas e horários combinados para as reuniões, sugerindo que através de ligações telefônicas se constituísse um canal efetivo de comunicação, semanalmente reativado. Os encontros não ocorriam aos sábados simplesmente, já que demandavam um contato anterior para confirmar e lembrar a todos de sua incidência, não remota, no entanto, suscetível aos atravessamentos do fortuito e do intrigante esquecimento. O vínculo fortalecido pessoalmente contava com estas aparições efêmeras e circunscritas a um objetivo coletivo, mesmo que mediado pela voz uníssona e repetida da pesquisadora, que ligava para acionar a rede na qual ela também estava inserida.
Cena 3: delimitação de cronograma
O cronograma sofreu ajustes na medida em que abriu-se à contribuição dos atores envolvidos com a sua programação, assumindo assim uma organização provisória e a qualquer tempo passível de discussão. Quando o outro é visto como um agente, e "... não como uma tela, ou um terreno, ou um recurso..." (Haraway, 1995, p.36), ele constrói os rumos da intervenção e deixa de ser simplesmente o seu destinatário. No momento em que as gravações de áudio já ultrapassavam os limites de transcrição abarcados pelo trabalho, a pesquisadora dividiu com os moradores a pergunta sobre a continuidade do projeto, aceitando estendê-lo enquanto a comunidade se mantivesse engajada. Os meses de convívio excederam as previsões iniciais e multiplicaram as histórias e as marcas que estas imprimiram, extrapolando a graduação e ressoado na escrita da dissertação de mestrado intitulada "A ética da memória nos trilhos da ferrovia: narrativas poéticas de um processo de pesquisa". Os diários de campo se misturaram com os mapas traçados coletivamente na rua, com as fotografias resgatadas nos álbuns de família e com as revistas e jornais transportados pelo trem, ambos atuando na constituição de uma memória acerca do vivido.
Cena 4: cartografando a rua
A intenção de percorrer os lugares indicados pelos versos narrados, situando-os geograficamente e confrontando as incontáveis rasuras e reescritas proporcionadas pelo tempo, levou os corpos para fora do antigo depósito da rede ferroviária a fim de esboçarem um novo traçado. Nesta incursão coletiva, experimentada após as tentativas de localizar as ruas, os trilhos e as moradias em cartolinas, a pesquisadora embarcou em uma viagem por terras desconhecidas e presenciou a demarcação de estrias no tecido aparentemente liso da cidade. A sugestão do grupo de abrir a porta habitualmente fechada e perambular na avenida sem roteiro ou planejamento prévio desencadeou uma espécie de bifurcação na pesquisa. Ao ultrapassar o campo da representação, que pretendia assegurar a correspondência entre os eventos e as linhas com exatidão, formulara-se a proposição de agir e de compartilhar os meios para inscrever esta jornada. Já não se tratava mais de conferir a algumas mãos tal exercício, ou de buscar cristalizar os arranjos da paisagem no papel, e sim de perceber o ritmo conflitante dos passos e a transitoriedade a que cedem passagem. Os ruídos externos, anteriormente abafados pelas paredes, revelariam os transtornos constantes dos mapas urbanos alheios a estagnação (Baptista & Silva, 2017). Os acontecimentos da superfície - desmanches, entraves, acidentes - ajudariam a pensar nas impossibilidades enfrentadas pela pesquisa para conter a impermanência, desviar-se do acaso e encerrar-se por completo, uma vez que "... ela continua viva enquanto produz intervenções no mundo" (Bicalho, 2019, p. 22).
O andar cambaleante daqueles que envelhecem em contextos urbanos marcados pela aceleração e progressiva substituição dos alicerces da paisagem contrasta com a marcha impaciente que se prolifera ao seu lado, desprovida da capacidade de espera. Ao aceitar o convite para caminhar com os moradores e não a sua frente, a pesquisadora admitiu parar, olhar e escutar o que diziam ao se aglomerarem nas esquinas, diante das árvores e dos altos prédios construídos sobre as antigas moradias derrubadas. Apesar da chuva que se aproximava eles prosseguiam obstinados, equilibrando-se nas calçadas e nas palavras agilmente enfileiradas frente aos restos e a poeira de São Salvador ainda presentes no cenário transformado. A buzina dos carros, a gritaria e a correria das pessoas não impedia-os de desacelerar e observar a condensação do tempo no espaço, que em suas camadas acolheu os trilhos e deles se despediu, testemunhando o aparecimento das indústrias e do transporte rodoviário. As pregas e as reentrâncias imperceptíveis aos mais desatentos e ocupados para o pouso emergem justamente a partir das descontinuidades e hesitações que atravessam o caminho, convidando-o a contemplar as distintas configurações que precipitam, envolvem e persistem nas sombras de Salvador do Sul.
Cena 5: discutindo a devolução
A implosão dos rumos imaginados pelo projeto, quando este circulava apenas dentro dos muros da universidade, acarreta, por fim, no questionamento acerca do formato de devolução do trabalho, inquietante em seu confortável e arbitrário modo de comunicar-se com seus pares, geralmente distantes das circunstâncias vivenciadas no campo. A preocupação em legitimar uma produção no âmbito da formação nem sempre vem acompanhada de um cuidado com os sujeitos a quem estes saberes também interessam, inclusive pelos mecanismos de exclusão que instauram. Ao público pesquisado é atribuída a responsabilidade pela recepção de um artigo científico ou de uma monografia, que carrega o resultado das análises nem sequer compartilhadas, pois dificilmente acessadas na íntegra e com abertura suficiente para a crítica e o diálogo.
Novamente constrangidos conforme sentiam-se esclarecidos do futuro que se avizinhava, os senhores e senhoras romperam com o silêncio e em voz alta indagaram: Qual seria a repercussão de uma escrita técnica e acadêmica na comunidade? Quem se dedicaria a lê-la? Quantos conseguiriam compreendê-la e utilizá-la? Como a intervenção responderia pelo seu compromisso com a realidade? Se a população contemplada por um estudo sofre com sua invisibilidade política dentro da sociedade, importa e é de grande relevância assumir não somente uma postura de quem denuncia ou evidencia tal situação, mas se compromete com os encaminhamentos coletivos promovidos pelo tecer da própria pesquisa. Ao enxergar a violência reproduzida pelas normas que concebem hierarquias e distribuem assimetricamente os lugares de fala, restam ao menos duas alternativas: ignorar os incômodos e todas as suas manifestações, ou acolher a dúvida e potencializar as suas reverberações, já que a subversão das práticas se faz "justamente ali onde são tecidas..." (Moraes, 2010, p. 42).
Cena 6: realização audiovisual
Os tensionamentos levantados em relação a produção do conhecimento mobilizam a escuta de quem transita pelo fora ciente do regresso e do embate a ser travado na academia, que não escapará das vozes que a contestam desde que os seus agentes as tenham percebido e concedido travessia. A brecha que convida a rever as estratégias usualmente adotadas para contar das perspectivas e sentidos construídos pelo pesquisador em seu rastreio, oportuniza resgatar a noção de partilhar e não só de transmitir, já que as interferências são recíprocas e constantes ao longo do processo de intervir. Na ausência das respostas prontas se impõe o desafio da desmontagem e da invenção, que exige cautela e sustentação pelo número de atores e instituições envolvidas. Neste caso, a comunidade sugeriu que uma realização audiovisual cumprisse com a função de obra a ser apresentada e defendida na universidade, no entanto, passível de exposição e composição em circuitos mais abrangentes e plurais. A aposta não seria simplesmente utilizar uma linguagem sonora e imagética que se distanciasse das abordagens mais tradicionais, todavia, assegurar através dela a convocação e a presença intensa das narrativas e de seus narradores. Não caberia mais a alguém dizer sobre ou em nome dos demais, afastando-se para interpretá-los e retornando para esclarecer-lhes a respeito de suas conclusões, ver-se-ia, pelo contrário, o envolvimento contínuo e a participação decisiva dos sujeitos sendo reconhecidos.
As imagens do presente da cidade, povoadas pelos contornos da verticalização, da privatização e da urbanização, se chocam com os versos que aludem ao passado reerguido e desmoronado, atualizado apenas enquanto resquício que sobrevive em meio a paisagem remodelada. Opondo-se ao propósito de conceber uma memória de arquivo capaz de restituir as datas, os lugares e os fatos, as filmagens e edições se comprometeram a dar vasão aos fragmentos e aos lampejos insistentes do trem, apreensíveis pelas marcas e afetos jamais roubados ou apagados das existências. Os ecos não desapareceram, embora os ruídos que animavam o pequeno vilarejo tenham cessado com a partida das locomotivas e o esvaziamento da estação, à mercê das disputas e apropriações protagonizadas pelas novas gerações. Resistindo ao desaparecimento dos rastros de suas experiências, os antigos moradores indicam a materialidade esburacada ligada às recordações e estremecem a tela que não esconde do espectador o burburinho, o riso, o espanto e a comoção. Os lapsos e as sobreposições do grupo não foram recortados e descartados, tal como o barulho inesperado do ônibus e das crianças no calçadão ao lado, isto para afirmar a heterogeneidade de elementos que transpassaram os gestos de narrar e de escutar, ambos propulsores de sons e de interrupções, marcados de urgências e de suspensões.
Precedendo a sua exibição em uma sala de aula, onde entraria para ser apreciada e avaliada, a realização audiovisual disseminou-se inicialmente entre todos os seus participantes e colaboradores, encarregando-se de acolher e reunir os relatos das impressões causadas. A roda até então formada pelas testemunhas e itinerantes dos trilhos, se expandiria para receber os seus familiares e amigos, a quem o convite foi estendido, tal como ocorreu com os moradores que disponibilizaram suas casas e suas histórias para as gravações. Houve quem emprestasse um lampião, abrisse o armário para procurar um remanescente bilhete de embarque, exibisse as antigas fotografias e ferramentas de trabalho, buscasse os brinquedos de madeira fabricados por um ferroviário. Houve também quem viabilizasse a entrada em seu armazém, o passeio pelos corredores do seminário desativado, o manuseio das coleções de objetos do passado, a visita aos cadernos manuscritos do agente da estação, a fratura do saudosismo com a aparição das bicicletas e dos infantes que as pedalavam. Ao se contagiarem com a pulsação desencadeadora das frases, seus arranjos e intervalos, os filhos e demais interlocutores sinalizaram a importância da abertura e expansão do assunto na comunidade, incrementando neste sentido o desejo dos autores de que sua proposta alcançasse as escolas e o espaço público da cidade.
Considerações Finais
Os trajetos definidos de antemão são rearranjados conforme os passos tocam o chão, avançam e se deparam com as cenas emergentes propulsoras de desvios e bifurcações - o acontecimento "é sempre algo que nos espera no que acontece, numa relação de corpos, e por isso se efetua em nós" (Lobo, 2004, p. 203).Este algo, que revoluciona os mundos, não é capaz de dispensar as ruínas, justamente porque para afirmar uma ética pautada por um modo singular de estar com os outros e de se conduzir na vida é preciso embarcar nos fluxos que sempre arrastam coma sua correnteza as verdades e as normas instituídas. A suspensão das restrições que concebem os eventos apenas pelo seu grau de semelhança e previsão, eliminando as diferenças e os incidentes, vem a ser condição para um exercício de alteridade e invenção. Os encontros despertam as práticas e promovem um fazer em conjunto que não reduz a fabricação de saberes ao universo acadêmico, extrapolando-o inclusive no sentido da produção de realidades agenciada pelas intervenções destituídas de neutralidade (Moraes, 2010).
Se o pesquisador não submete o campo as suas demandas, mas se compromete com os efeitos da sua presença, ele consente com os afetos e os transbordamentos provocados pela experiência coletiva, a qual é desprovida de obviedade em seus encaminhamentos singulares. As fissuras experimentadas não se reduzem mais aos abismos que devem ser ultrapassados, pelo contrário, interessam justamente porque é através delas e nas suas bordas que o pensamento se realiza (Deleuze, 2003).Desta forma, a indagação acerca dos supostos equívocos ou falhas que se propagam pelo percurso da pesquisa, desestabilizando-o de modo negativo, deveria retornar para nós, para que falássemos sobre a nossa abertura, disponibilidade e paixão para torná-lo um acontecimento: pequeno deslocamento ou inversão que acaba por versar e abarcar a nossa implicação com os temas e problemas que erigimos e que percorremos dentro e fora da universidade, muitas vezes sós, porém, na maior parte do tempo acompanhados. "Pesquisamos, então, aquilo que nos convoca e atormenta, e tornamo-nos cúmplices de suas audácias e desatinos" (Fonseca et al, 2010, p. 179).
Referências
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Enviado em: 28/11/18
Aceito em: 27/07/20
Brida Emanoele Spohn Cezar é mestre e doutoranda em Psicologia Social e Institucional no PPGPSI/UFRGS.
E-mail: bridacezar@gmail.com
ORCID: http://orcid.org/0000-0001-5962-2910
Nelson Eduardo Estamado Rivero é professor adjunto do curso de Psicologia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos.
E-mail: rivero@unisinos.br
ORCID: http://orcid.org/0000-0002-3427-3619