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Revista Polis e Psique
On-line version ISSN 2238-152X
Rev. Polis Psique vol.11 no.spe Porto Alegre 2021
ENTREVISTA
Sob os escombros: financeirização do espaço e da vida urbana em Porto Alegre
Under the rubble: financialization of space and urban life in Porto Alegre
Bajo los escombros: financiarización del espacio y de la vida urbana en Porto Alegre
Carolina dos Reis; Luis Henrique da Silva Souza; Jacinta Antoniolli Testa
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil
RESUMO
Este artigo tem por objetivo analisar o avanço das políticas de financeirização do espaço urbano na cidade de Porto Alegre. Para tanto, tomamos como analisador a demolição de um conjunto de sobrados da Prefeitura Municipal que abrigavam cerca de 10 famílias em uma ocupação urbana irregular, em uma área central da cidade. Partimos dos escombros deixados pela administração pública para colocar em análise as condições de possibilidade para a emergência de práticas de governo que operam pela lógica do sucateamento de um bem público e pela destruição de territórios existenciais em nome da valorização financeira da propriedade. Narramos, ainda, o levante de coletivos de resistência aos processos de exclusão territorial e as estratégias de fortalecimento de práticas de democratização do acesso à cidade.
Palavras-Chave: Financeirização Urbana, Direito à Cidade, Ocupações Urbanas
ABSTRACT
This article aims to analyze the progress of urban space financialization policies in Porto Alegre. For this purpose, we analyse the demolition of a townhouses set that housed about 10 families, in an irregular urban occupation, in the city central area. From the rubble left by the public administration we seek to analyze the conditions of possibility for the emergence of government practices that operate by the logic of the embrittlement of public properties and by the destruction of existential territories in the name of the financial valuation. We also narrate the rise of resistance movements to the territorial exclusion processes and the strategies for strengthening practices to democratize the access to the city.
Keywords: Urban Financialization, Right to the City, Urban Occupations
RESUMEN
Este artículo tiene como objetivo analizar el avance de las políticas de financiarización del espacio urbano en la ciudad de Porto Alegre. Para eso, se tomó como analizador el derribo de un conjunto de casas consistoriales que albergaba a unas 10 familias, en una ocupación urbana irregular, en una zona central de la ciudad. Partimos de los escombros que dejó la administración pública para analizar las condiciones de posibilidad para el surgimiento de prácticas gubernamentales que operan por la lógica del desguace de un bien público y por la destrucción de territorios existenciales en nombre de la valoración financiera de la propiedad. También narramos el surgimiento de colectivos de resistencia a los procesos de exclusión territorial y las estrategias de fortalecimiento de prácticas de democratización del acceso a la ciudad.
Palabras Clave: Financiarización Urbana, Derecho a la Ciudad, Ocupaciones Urbanas
A Retroescavadeira Como Ferramenta de Gestão
Na esquina, onde se esbarram a Rua Baronesa do Gravataí e a Rua Dezessete de Junho, o casarão que estava há doze anos abandonado foi, enfim, ocupado. Com uma estrutura de dois andares e um pátio em seu centro, o imóvel era grande, antigo, e suas paredes externas descascadas denunciavam seu desuso. Espaço que um grupo, formado por dez famílias, fez de moradia. No dia 28 de maio, ingressaram no prédio, limparam o imóvel e prepararam o terreno para que pudesse ser habitado. Sob aquele teto, assim, abrigou-se a Ocupação Baronesa. Lá moraram as famílias por mais de dois meses, apesar das constantes ameaças de desocupação. Quando foram então removidas do imóvel - obrigadas a juntar seus pertences e deixadas, novamente, sem um teto -, montaram um acampamento na calçada: em frente à construção, apoiado nos seus muros.
Esgotadas as tentativas da Prefeitura Municipal de retirá-los de lá, no dia 18 de julho de 2019, no início da manhã, a máquina chegou com a missão de demolir o casarão. As famílias, com seu acampamento desmontado, colchões e lonas sendo removidos da calçada, tiveram de dar espaço para a retroescavadeira e, desolados, assisti-la destruir as casas em que moraram.
Acessando o pátio pela Rua Dezessete de Junho, a máquina desmanchava, com suas dentadas, a estrutura do prédio. Para que ninguém interferisse, para além da retroescavadeira, via-se a maquinaria em torno da demolição: terreno cercado por fitas de isolamento, por agentes do poder público, por guardas uniformizados.
O barulho estrondoso da retroescavadeira, por onde passava, deixava apenas destroços e uma camada de poeira suspensa no ar. E o tempo, também suspenso, parecia não passar. O dia frio esfriava-se ainda mais diante do pó cinza que se erguia, e a nuvem de cimento pulverizado tornava opaca e densa aquela manhã. Em câmera lenta, os tijolos eram desordenados, e, pouco a pouco, o imóvel derrubado. Entre ruídos e ruínas, amontoaram-se os azulejos do banheiro, a madeira das janelas, a calha do teto. E o que antes era parede agora cobre o chão. Os vidros quebrados, craquelados, espalharam-se pelo terreno, e, em restos empilhados, acumulavam-se as pedras e a estrutura que antes sustentava o prédio. A mão de ferro da máquina, remexendo os escombros, esfarelava o casarão e, sobretudo, as chances de ser habitado.
O conjunto de sobrados era de propriedade da Prefeitura Municipal de Porto Alegre e estava abandonado há mais de uma década. A gestão pública entendeu que sua demolição era mais interessante ao município do que sua adequação para oferta de moradia digna para as famílias excluídas do acesso à habitação.
Este artigo não tem por objetivo colocar em discussão a experiência vivida pelas famílias da Baronesa ou mesmo as práticas de ocupação do espaço urbano. Ao trazermos a cena da demolição dos sobrados da Baronesa aqui, buscamos analisar as condições de possibilidade de sua emergência e, em especial, de uma prática de gestão dos imóveis urbanos que torna a sua destruição mais rentável ao Estado e seu valor financeiro mais importante do que a garantia de direitos a seus cidadãos.
Este estudo é parte de um projeto de pesquisa e extensão intitulado "Práticas de Resistência e a Construção de Modos Comuns de Habitar as Cidades" que tem por objetivo analisar as políticas de gestão urbana e promover práticas de resistência que desafiem os modos individualistas de habitar a cidade e produzam rupturas nas formas hegemônicas de viver na urbe. Pesquisa essa que compõe o projeto interinstitucional "Corpo, cidade, hospitalidade: articulações tecno-políticas" que visa problematizar processos de inclusão e exclusão sociais nos espaços urbanos.
Nossa aproximação com a Ocupação Baronesa se deu a partir da inserção no Fórum Regional de Planejamento Urbano da Região de Planejamento 1 (RP1). As Regiões de Planejamento (RP) são divisões territoriais da cidade de Porto Alegre, organizadas a partir da estruturação do Orçamento Participativo1. Cada RP possui um Fórum que constitui-se como espaço de participação da população nas decisões acerca da gestão do território no qual residem. Para isso, cada região possui representantes no Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano e Ambiental (CMDUA). A RP1 abarca a região central da cidade de Porto Alegre, local em que está situada a Ocupação Baronesa, bem como parte da própria UFRGS, que possui igualmente assento no Conselho. Seu Fórum, em uma busca de ampliar a participação popular e de entidades, iniciou um processo de realização de reuniões itinerantes, em diferentes espaços que tinham demandas específicas a serem compartilhadas com o grupo, tais como as ocupações de vazios urbanos no centro da cidade.
O acampamento situado na calçada da Ocupação Baronesa havia se constituído como um espaço constante de encontro do grupo, no intuito de dar apoio às famílias que passaram o inverno gaúcho acampadas debaixo da lona do lado externo dos sobrados desocupados. As ações de pesquisa e extensão ocorrem, assim, indissociáveis da própria ação política e vão sendo tecidas em meio a um espaço coletivo de lutas pela construção de uma cidade mais democrática, ligadas às problemáticas e demandas que emergem em meio a essa rede coletiva.
Assim, como parte de um processo de reflexão sobre as possibilidades de resistência às práticas de exclusão territorial e de acesso à moradia em Porto Alegre, neste artigo em específico, tomamos o caso da demolição dos casarões da Baronesa como analisador das práticas de gestão da Prefeitura Municipal de Porto Alegre, para evidenciar a forma como esta vai ser pautada pela lógica de financeirização das cidades metropolitanas. Atrelado a isso, buscamos apresentar, ainda, algumas ferramentas que têm sido construídas pelos coletivos que lutam em prol do direito à moradia e à cidade como forma de produzir rupturas nessa racionalidade.
Financeirização: conceito e produção da urbe
Importante situar que, ao falarmos em financeirização, nos referimos em primeiro lugar ao processo de complexificação do mercado financeiro que foi inserindo os cálculos econômicos e a busca do lucro como parte da gestão da vida cotidiana. O conceito de financeirização urbana emerge do campo da economia e marca seu encontro com as cidades como espaço de ação e intervenção. Falamos, portanto, de um processo de inserção da gestão das cidades em um problema de ordem financeira e de sua sobreposição aos demais elementos que compõem a vida urbana, tais como a equidade do acesso aos bens e serviços, a qualidade de vida, o bom uso dos espaços públicos, o respeito à função social da propriedade, entre outros. Trata-se, assim, da compreensão de que o melhor uso para a terra urbana é aquele que permite a sua máxima rentabilidade.
Em segundo lugar, por financeirização nos referimos à transformação do espaço urbano em um ativo financeiro rentável, tanto por entes privados, quanto pelo próprio gestor público. A terra ou mesmo os espaços construídos figuram como uma das mais poderosas formas de expansão do capital financeiro (Tonucci Filho & Magalhães, 2017). A acumulação destes bens vão se constituir como lastros que indicam a solidez financeira de uma empresa, servem de garantia a investidores ou como forma de reserva de capital e de sua distribuição para diferentes regiões do planeta. O hipotecamento das casas oferece a possibilidade de acesso a empréstimos para a população em geral e serve de ferramenta para incremento da economia em diversos países em períodos de crise. Para os Estados, esses imóveis representam, por exemplo, a possibilidades de negociação para estabelecimento de parcerias público-privadas, ganho de capital político junto a grandes empresários pela venda ou permuta de terrenos bem localizados por preços muito abaixo daqueles praticados pelo mercado ou contrapartidas que trazem mais benefícios ao próprio empreendimento do que à cidade. Muitos dos imóveis adquiridos por empresas internacionais, de maneira geral, não possuem destinação alguma, resultando na presença de terrenos ou prédios abandonados nos centros das cidades, gerando vazios urbanos em meio a áreas ricamente abastecidas de recursos e serviços. Nesse último caso, não há qualquer compromisso com um projeto de cidade ou qualquer outra relação com a terra para além de seu valor monetário.
Em terceiro lugar, referimo-nos a práticas que buscam canalizar tudo aquilo que puder gerar valorização monetária do espaço. Isto é, ações que visam capitalizar elementos de ordem imaterial, tais como: o pôr do sol; uma bela vista; a localização de um imóvel em meio a um espaço bem infraestruturado, montado com recursos públicos; a oferta de proximidade a espaços de "preservação", que são, por vezes, apresentados como parte de uma política de responsabilidade ambiental das construtoras e de promoção de modos de vida saudáveis, mas que, em realidade, são reservas obrigatórias, frente à devastação de grandes áreas verdes para a construção de imóveis, parques e avenidas.
Em quarto lugar, por financeirização urbana, nos referimos a um processo de neoliberalização das cidades por meio da criação de competições entre elas para atração de investidores, de grandes empresas e/ou para o crescimento do turismo. A cidade passa a ser gerida como um negócio e como uma marca, composta por um conjunto de slogans que pretende singulariza-la frente às demais. A relação entre as cidades vai se pautar por padrões de competição e pela busca de vantagens comparativas (Tonucci Filho & Magalhães, 2017). Para tornar a cidade competitiva, colocam-se em ação uma série de ferramentas, tais como: as operações urbanas consorciadas2, as parcerias público-privadas ditas inovadoras, a suposta revitalização de áreas consideradas degradadas ou a conversão de patrimônios públicos em ativos financeiros.
Nesse cenário, os grandes proprietários das terras urbanas, aliados ao mercado imobiliário, assumem o controle sobre a alocação dos recursos no território urbano, regulam quais bairros devem ser valorizados e quais serão desinvestidos. Esse controle sobre o processo de valorização não ocorre de maneira natural em decorrência do acúmulo de imóveis e de poder dos proprietários sobre a gestão municipal, ela é uma estratégia de financeirização, por meio da qual grupos de proprietários provocam a emergência de circuitos de valorização (Aglietta, 2000). A essas escolhas associam-se práticas de gentrificação, que se atualizam conforme mudam os focos de interesse do mercado imobiliário.
Por fim, a financeirização urbana envolve também a financeirização da moradia, que representa a hegemonia que a propriedade individual escriturada e registrada em cartório vai assumir frente a todas as outras formas de relação com o território habitado. Os vínculos com o território são reduzidos ao seu valor econômico, que só pode ser consolidado por meio da propriedade regular individualizada (Rolnick, 2019). A moradia, pensada como mercadoria, se tornará acessível a uma parte da população por meio de financiamentos imobiliários que geram endividamentos por toda a vida. Àqueles que não podem acessar o mercado formal, resta a busca por formas de moradia irregulares, tais como as ocupações urbanas, criminalízáveis, quando o local onde estão situadas tornar-se necessário ao jogo de mercado (Reis & Brasilino, 2019).
Hardt e Negri (2012), analisam a emergência da figura subjetiva do endividado, emblemáticas desse processo de expropriação da terra urbana. O sujeito endividado tende a aceitar trabalhar por baixos salários, com vínculos precários, tem possibilidades menos elásticas de busca e criação de alternativas de sobrevivência e se torna menos propenso ao engajamento em atividades tais como as mobilizações trabalhistas. Além disso, o endividamento atua como uma forma de controle e disciplinamento, através do reforço a um senso de responsabilidade e culpa pela própria dívida e do aspecto moral que a relação devedor-credor carrega (Tonucci Filho & Magalhães, 2017).
Os governos serão grandes parceiros deste processo de financeirização das cidades, criando ou flexibilizando leis que permitam destravar esses ativos territoriais, ampliando as condições de acesso do mercado a eles (Rolnik, 2019). Santoro e Rolnik (2017) afirmam que no Brasil a reestruturação das formas de regulação dos mercados envolveram a criação e o aperfeiçoamento de instrumentos urbanísticos e financeiros, voltados para aproximar e ampliar as conexões entre capital financeiro e capital imobiliário, conquistando, inclusive, territórios em cidades sob governos mais progressistas, que igualmente submeterem as definições sobre a função social da propriedade às necessidades de rentabilidade desses ativos. Dentre esses os autores destacam: 1) a criação dos Fundos de Investimento Imobiliários (FIIs), em 1993, com o intuito de captar recursos, principalmente dos fundos de pensão, para empreendimentos imobiliários; 2) a criação do Sistema Financeiro Imobiliário (SFI), em 1997, que permitiu a participação de instituições financeiras nas operações de financiamento de imóveis; 3) A reorganização, na década de 1990, dos fundos de pensão, aumentando o percentual de recursos que poderiam ser investidos no mercado de capitais imobiliários, em especial fundos imobiliários, debêntures e instrumentos financeirizados, como recebíveis imobiliários, entre outros.
Assim, essa diversidade de sentidos que o conceito de financeirização urbana oferece a esse estudo nos permite ampliar a compreensão acerca das dinâmicas sócio-espaciais da cidade, evidenciando o modo como a lógica econômica vai se constituindo como parte de uma multiplicidade de formas de pensar e gerenciar o espaço e a vida urbanos. Insere a cidade de Porto Alegre em uma racionalidade que tem gradativamente feito com que a moradia deixe de ser pensada como bem social para ser exclusivamente casa própria e que a cidade deixe de ser vista como artefato público para ser espaço de extração de renda (Rolnik, 2019). Essa compreensão, embora tenha efeitos muito concretos tais como a demolição dos sobrados da Baronesa, é parte de um jogo complexo de interesses que extrapola o território nacional e assume proporções globais.
"Quanto Vale ou é Por Quilo?"
Esse é o título de um documentário brasileiro, dirigido e produzido por Sérgio Bianchi, em 2005, no qual traça um paralelo entre as estratégias de captação de recursos junto ao governo por entidades beneficentes, em especial, entidades de cunho religioso, e o tráfico de escravizados do século XVII. O documentário é uma denúncia das contradições históricas que marcam a presença de discursos benevolentes, das classes dominantes, por trás dos quais se ofuscam práticas que incrementam a condição de vulnerabilidade das populações periferizadas, sobretudo, dos povos negros. Tal como no documentário que historiciza ações de financeirização de bens que deveriam ser inapropriáveis, como a vida, a liberdade, ou os direitos sociais, a financeirização da terra e das próprias cidades por vezes se reveste de justificativas voltadas para a proteção e o cuidado dos cidadãos.
Na Baronesa, a demolição justificava-se pelo suposto risco estrutural e pelas condições insalubres do imóvel, a despeito do laudo técnico apresentado pelas famílias de que os sobrados não ofereciam riscos e podiam ser readequados para o abrigamento do grupo. Para além das justificativas apresentadas, a demolição ofereceu as condições necessárias para que Prefeitura pudesse dar um basta à resistência empreendida pelas famílias que, ao serem despejadas do interior do prédio, montaram acampamento na calçada ao lado do casarão, recusando-se a sair dali mesmo durante os meses mais frios do inverno gaúcho. Ao destruir a estrutura do prédio, o poder público desfaz o sentido de ficarem acampados no local e a esperança das famílias de residir na estrutura já preexistente. Além disso, retirou o apoio mesmo que absolutamente precário da parede externa que dava sustentação as lonas sob as quais se abrigavam as famílias. A permanência na calçada, facilmente avistada das janelas do prédio administrativo da Fundação de Assistência Social e Cidadania, responsável pela gestão da política de Assistência Social do Município, operava como forma de denúncia à falta de diálogo e de oferta de acesso à moradia adequada, nas regiões centrais da cidade, às famílias ocupantes.
Importante destacar que a moradia adequada não se refere simplesmente ao acesso à estrutura física de uma casa, mas envolve: 1) a segurança da posse: contra despejos forçados, perseguição e outras ameaças; 2) a disponibilidade de serviços, materiais, instalações e infraestrutura: água potável, saneamento básico, energia, aquecimento, iluminação, armazenamento de alimentos ou coleta de lixo; 3) a economicidade: o custo não pode se constituir em um ameaça aos outros direitos dos ocupantes; 4) a habitabilidade: oferecer segurança física e estrutural, proporcionando um espaço adequado, bem como proteção contra o frio, umidade, calor, chuva, vento, entre outras ameaças à saúde; 5) a acessibilidade: às necessidades específicas dos grupos desfavorecidos e marginalizados; 6) a localização: próxima de oportunidades de emprego, serviços de saúde, escolas, creches e outras instalações sociais; 7) a adequação cultural: ligada à expressão da identidade cultural da população habitante (Organização das Nações Unidas, 1991 como citado em Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, 2013).
Os sobrados ficavam localizados na região do Areal da Baronesa, onde se situa um antigo quilombo urbano da cidade de Porto Alegre, reconhecido formalmente como tal no ano de 2003. No século XIX, os terrenos dessa região eram de posse de João Batista da Silva Pereira e de Maria Emília de Menezes Pereira, os intitulados Barão e Baronesa do Gravathay. A área era também local de esconderijo de negros escravizados, devido à vasta vegetação que garantia possibilidade de acesso a comida (caça, pesca, coleta de frutos) e água potável. Por um conjunto de fatores, dentre eles o falecimento do Barão e o incêndio do solar onde residia, em 1875, a Baronesa passou a enfrentar uma crise econômica que a levou a lotear e vender as terras. Essas foram vendidas em especial a escravizados alforriados (Pereira & Ribeiro, 2013). Por ser uma região arenosa e alagadiça, a prefeitura municipal abandonou o processo de loteamento e a região foi ocupada de forma irregular por famílias descendentes de escravizados. O local é conhecido como berço do carnaval de rua e do samba, além de ser símbolo de resistência dos povos negros na cidade.
Após as obras de retificação do Arroio Dilúvio na década de 1940, houve uma rápida urbanização e o crescimento da população residente. Já na década de 1980, o local foi alvo das políticas de reforma urbana, que buscaram remover dos centros para as periferias os adensamentos populacionais de baixa renda (Marques, 2006). Como consequência disso, o território reconhecido como área de quilombo é hoje um espaço bastante restrito em meio a um conjunto de bairros nobres.
Parte das famílias que ocupavam os sobrados da Ocupação Baronesa haviam crescido naquela região, mas tinham sido afastadas dali pela impossibilidade de acesso à moradia regular naquele território. A reivindicação da garantia do direito de morar no casarão, situado na rua que posteriormente recebeu seu nome em homenagem à Baronesa do Gravataí, passava também pela afirmação daquele território como um local marcado pela ancestralidade negra, espaço símbolo de resistência de uma população que foi posteriormente sistematicamente expulsa da região.
Como referido anteriormente, as ordens de despejo dos sobrados eram baseadas em um laudo, feito pela própria Prefeitura, que atestava a existência de riscos estruturais, por conta de um incêndio ocorrido ali anos antes. O imóvel faz parte de uma lista que contém cerca de 1400 imóveis de propriedade da Prefeitura Municipal que começou a circular no mesmo período que o executivo apresentou a proposição do então Projeto de Lei Complementar, hoje a já aprovada Lei nº 866, de 6 de dezembro de 2019, que cria o Programa de Aproveitamento e Gestão dos Imóveis Próprios Municipais de Porto Alegre, autorizando o Executivo Municipal a alienar e permutar bens imóveis públicos e suas autarquias e fundações, e cria o Comitê Gestor do Programa de Aproveitamento e Gestão dos Imóveis Próprios Municipais de Porto Alegre (Lei complementar nº 866, 2019). A referida lei dispensa a autorização legislativa para a alienação de bens municipais. Constitui-se em uma forma de violação ao princípio da separação dos Poderes presente na Constituição Federal de 1988, pois delega ao executivo a função precípua do legislativo de avaliar a existência de interesse público devidamente justificado, conforme definido pelo Art. 12 da Lei Orgânica Municipal e pelo Art. 17 da Lei de Licitações, que estabelecem que a alienação deve ser subordinada à análise e à autorização legislativa. Além disso, a Lei nº 866/2019 vai na contramão do programa de municipalização de terras, estabelecido no Art. 217, da Lei Orgânica Municipal, uma vez que se trata de uma ferramenta para ampla e indiscriminada privatização de terras públicas (Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico, 2019).
A aprovação dessa Lei não veio isolada de um conjunto de atos do poder público municipal, ligados a estratégias de financeirização urbana. Dentre esses destaca-se a Leinº 12.559, de 2 de julho de 2019, que autoriza o Executivo Municipal a conceder para a iniciativa privada o uso e os serviços de operação, administração, conservação, manutenção, implantação, reforma, ampliação ou melhoramento das 667 praças e nove parques públicos do Município de Porto Alegre por até 35 anos (Lei nº 12.559, 2019). A cidade já possuía um programa de adoção de praças e parques por empresas, associações de moradores, ONGs e escolas. A novidade da Lei 12.559/2019 é a possibilidade de exploração financeira do espaço público sempre que houver "investimentos substanciais"3 por parte dos "investidores", como foram chamados os possíveis interessados nas concessões, pelos vereadores defensores da medida. Outro marco dessa gestão foi a tentativa realizada em junho de 2018 de cobrar da Câmara Rio-Grandense do Livro (CRL) quase 180 mil reais pela realização da Feira do Livro na Praça da Alfândega. O evento é realizado anualmente e é considerado um Patrimônio Histórico e Cultural Imaterial. No entanto, após forte repercussão midiática, a cobrança foi extinta pela própria Prefeitura Municipal. Outros eventos com menor visibilidade, como festas e carnavais de rua, já tradicionais na cidade, têm enfrentado processos burocratizados e/ou imposições de cobranças para ocupação do espaço público e desenvolvimento de suas atividades sob as mais diversas justificativas.
De outro lado, a Prefeitura Municipal acelera na flexibilização de normativas que possibilitem o aumento de parcerias público-privadas (PPPs) na exploração de áreas públicas, a possibilidade de desenvolvimento de grandes construções que alteram áreas significativas da cidade, como o projeto do Pontal do Estaleiro. Essa postura é descrita pelo então secretário municipal do Desenvolvimento Econômico como um compromisso diário de "destravar os investimentos em Porto Alegre"4.
A realização da Copa do Mundo FIFA de Futebol de 2014 contribuiu para dar uma guinada na forma de gestão urbana das PPPs em Porto Alegre. As grandes obras urbanas, apontadas como necessárias para sediar os jogos, apoiaram-se no setor privado e desde então este modelo se tornou foco para a realização da maior parte dos compromissos com obras públicas e de revitalização urbana na cidade (Soares &Aita, 2019).
O que queremos destacar é que a sincronicidade entre a ação de demolição do casarão e a proposição do Projeto de Lei que libera os bens municipais para alienação e permuta, ainda que se possa acreditar que não sejam atos diretamente relacionados um com o outro, tampouco se pode crer que sejam coincidências. Ambas ações são parte de uma lógica de gestão financeirizada da cidade.
A Construção Coletiva como Ferramenta de Resistência
O que a Ocupação dos sobrados da Baronesa buscava evidenciar não era somente a necessidade de garantia de moradia às famílias que ali estavam, mas a importância de mudança dessa lógica de gestão. Isto porque, como aponta Oliveira (2020), ao analisar a "revitalização" da Orla do Guaíba, a financeirização do espaço e sua ampla exploração pela indústria imobiliária oferece as condições necessárias para que a terra urbana se constitua como instrumento de exercício de poder pelas classes dominantes, sob a égide da acumulação e com a marca da higienização social. A ocupação de famílias de origens afro-indígenas em um local situado próximo do centro e em meio aos metros quadrados mais valorizados da cidade afirmava que não basta lutar por moradia, é preciso avançar na democratização do acesso à cidade. No reconhecimento de que as relações com o solo urbano são irredutíveis ao seu valor monetário, pois trata-se de um bem cultural, histórico e político. A Ocupação dos sobrados da Rua Baronesa do Gravataí serviu também para evidenciar o racismo estruturante da gestão do território urbano porto-alegrense.
Wimer (2017), ao analisar a progressiva periferização dos bairros de habitação popular, afirma que para além daquilo que se supõe acerca da emergência dos bolsões de pobreza de Porto Alegre, como decorrentes dos movimentos migratórios do campo ou da presença de negros alforriados e de suas famílias, a pobreza não somente chegou até a cidade, mas era e segue sendo produto do próprio modo de vida urbano. O mesmo autor afirma ainda que se, por um lado, o desenvolvimento urbano de Porto Alegre se deu por ondas concêntricas que, à medida que cresciam, foram empurrando as "vilas" para áreas mais afastadas, por outro lado, o trajeto oposto nunca foi permitido. Assim como não se periferizaram as oportunidades de trabalho ou a infraestrutura de serviços e de espaços de lazer.
Porto Alegre, que já foi reconhecida mundialmente como exemplo de democratização da gestão urbana, assiste ao acirramento de uma lógica que, embora não tenha surgido nesse momento, nele se atualiza. Lógica esta que progressivamente desfaz ou legitima que se negligencie as ferramentas legais criadas para proteger a cidade da ânsia predatória do capital financeiro.
A demolição do casarão provocou a aniquilação das condições de permanência do grupo acampado na calçada e deixou o terreno disponível para sua negociação, alienação ou permuta pelo Executivo Municipal, na contramão daquilo que está previsto no Art. 13da Lei Orgânica do Município de Porto Alegre (1990), que afirma que:
O Município utilizará seus bens dominiais como recursos fundamentais para a realização de políticas urbanas, especialmente em habitação popular e saneamento básico, podendo, para essa finalidade5, vendê-los ou permutá-los.
§ 1o Enquanto os bens dominiais municipais não tiverem destinação definitiva, não poderão permanecer ociosos, devendo ser ocupados em permissão de uso, nos termos da lei.
§ 2o Em casos de reconhecido interesse público e caráter social, o Município também poderá realizar concessões reais de uso de seus bens dominiais, contendo elas sempre cláusulas de reversão desses bens.
Antes da ocupação, os sobrados encontravam-se há anos sem uso e eram conhecidos por serem um espaço utilizado para descarte de objetos roubados e/ou lixo. Após a entrada do grupo, o local passou por uma limpeza e pequenas reformas para dar maior comodidade e revitalização ao espaço. A Ocupação construiu uma rede de apoio junto aos moradores do bairro com os quais foram dialogando sobre o porquê de estarem ali, sobre quais eram suas reivindicações e quais seus planos para o espaço. Os vizinhos auxiliavam com comida, brinquedos, banho quente, companhia para tomar um mate enquanto as crianças juntas divertiam-se nas calçadas. O grupo pretendia futuramente fundar um Centro Cultural no casarão. Não se tratava de um projeto privatista e individualista de habitação, mas de um desejo de compor com a história do bairro e com a construção de modos coletivos de habitar o espaço urbano. A cidade que a Ocupação Baronesa defende não é contrária à boa gestão econômica, mas coloca esta última a serviço de um projeto de sociedade. Uma vez que entende que a cidade não é somente paisagem, ou plano de fundo da vida das pessoas, ela é parte dos processos subjetivação dos sujeitos que a compõe. A financeirização da cidade é também a financeirização dos modos de relação entre nós.
Da calçada da Ocupação Baronesa foram retiradas as lonas e os pertences daquelas famílias, dos seus escombros, emergiu uma experiência que mostrou aos moradores do bairro que outro projeto de cidade é possível. Dali saiu igualmente um dos processos de articulação de um conjunto de entidades, coletivos, sujeitos implicados com a garantia do direito à moradia, aos bens e serviços, ao lazer, à arte e à proteção do patrimônio ambiental, histórico e cultural. São movimentos populares, pesquisadores, sindicatos, artistas, comunicadores, militantes, cidadãos que semanalmente fizeram da lona espaço de encontro e de trocas. Essa articulação recebeu o nome de Atua POA e tem se constituído como uma força, por um lado, vigilante e combatente ao uso da gestão do solo urbano como ferramenta de acirramento das vulnerabilidades e, por outro, como propulsora de práticas de democratização e coletivização do debate sobre que projeto de cidade e de sociedade queremos para Porto Alegre.
Notas
1 O Orçamento Participativo (OP) foi criado em 1989 como uma ferramenta de participação popular nas decisões de uma parte do orçamento do município, buscando considerar as demandas prioritárias de cada território.
2 Operações Urbanas Consorciadas é um instrumento do direito urbanístico que permite que se abram exceções na lei de uso e ocupação do solo usado, por exemplo, para requalificar uma área de interesse de investimento imobiliário com demandas acima dos limites estabelecidos.
3 A Lei não especifica quais valores se caracterizam por investimentos substanciais.
4 Fala proferida quando da aprovação de um projeto que promete construir novas torres comerciais, shoppings e hipermercados em uma grande área verde da cidade (https://prefeitura.poa.br/gp/noticias/marchezan-comemora-projeto-com-investimento-de-r-850-milhoes, recuperado em 28 de setembro, 2020).
5 Grifo nosso.
Referências
Aglietta, M. (2000). A theory of capitalist regulation: the US experience. Nova York: Verso. [ Links ]
Hardt, M., & Negri, A. (2012). Declaration. New York: Argo-Navis. [ Links ]
Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico. (2019). Nota Técnica sobre o Projeto de Lei de autorização geral para alienação de bens públicos municipais - Porto Alegre (RS). São Paulo: IBDU. Recuperado de http://wp.ibdu.org.br/wp-content/uploads/2019/08/NOTA-T%C3%89CNICA-SOBRE-O-PROJETO-DE-LEI-COMPLEMENTAR-QUE-TRATA-DA-ALIENA%C3%87%C3%83O-DE-BENS-P%C3%9ABLICOS-MUNICIPAIS-rev.pdf [ Links ]
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Submissão: 02/10/2020
Aceite: 27/11/2020
Financiamento: Programa Cooperação Brasil Sul - Sul da CAPES, Auxílio Recém Doutor FAPERGS e Bolsa PIBIC CNPq
Carolina dos Reis é doutora em Psicologia Social e Institucional e professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
E-mail: carolinadosreis@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6482-2677
Luis Henrique da Silva Souza é doutorando no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e possui mestrado pelo Programa de Pós Graduação em Psicologia, com área de concentração em Psicologia da Saúde da Universidade Católica Dom Bosco, no Mato Grosso do Sul.
E-mail: luis.henri.que@hotmail.com
ORCID: http://orcid.org/0000-0002-5295-5226
Jacinta Antoniolli Testa é graduanda em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e bolsista de Iniciação Científica (PIBIC CNPq) no Núcleo de Estudos em Políticas e Tecnologias Contemporâneas de Subjetivação (E-Politcs).
E-mail: j.antoniollitesta@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1816-2628