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Revista Polis e Psique
On-line version ISSN 2238-152X
Rev. Polis Psique vol.11 no.spe Porto Alegre 2021
ENTREVISTA
Relações Multi/interculturais em tempos de pandemia: reflexões identitárias com acadêmicos indígenas no ambiente universitário
Multi/intercultural relations in pandemic times: identity reflections with indigenous academics in the university environment
Relaciones Multi/interculturales em tiempos de pandemia: reflexiones de identidad com académicos indígenas en el entorno universitario
José Francisco Sarmento Nogueira; Júlia Arruda da Fonseca Palmiere
Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), Campo Grande, MS, Brasil
RESUMO
Esse artigo pretende fazer uma reflexão sobre relações Multi/interculturais no ambiente universitário em tempo de pandemia, com o olhar para os acadêmicos indígenas. Nesse sentido, o trabalho mostra a inserção dos indígenas na Educação Básica e no Ensino Superior para compreender a produção identitária nos espaços educacionais de fronteira na relação com alteridade, diferença e hospitalidade, bem como discutir inclusão/exclusão dos indígenas face às dificuldades apresentadas com o advento da pandemia de Sars-CoV-2 no Brasil, tendo como suporte teórico os Estudos Culturais. Como estratégias metodológicas se utiliza a revisão de literatura e acompanhamento de estratégias do Núcleo de Estudos e Pesquisas das Populações Indígenas (NEPPI) da Universidade Católica Dom Bosco durante o período de pandemia para atender os alunos indígenas no calendário remoto. Refletir sobre alteridade, hospitalidade e diferença face ao contexto da pandemia se torna urgente para pensar os jogos de inclusão/exclusão dos povos indígenas na Educação.
Palavras-chave: Identidade; Multicultural; Indígenas; Pandemia; Educação.
ABSTRACT
This article aims to reflect on Multi/intercultural relations in the university environment in pandemic times, with the look to the indigenous academics. In this sense, this work shows the insertion of indigenous people in Basic Education and Higher Education to understand the production of identity in the educational spaces of frontier in the relationship with otherness, difference and hospitality, as well as to discuss the inclusion of indigenous people in the face of difficulties presented with the advent of the Sars-CoV-2 pandemic in Brazil. We have as theoretical support the Cultural Studies. As a methodological strategy, we use literature review and the follow of strategies of the Núcleo de Estudos e Pesquisas das PopulaçõesIndígenas (NEPPI) of the UniversidadeCatólica Dom Bosco during the pandemic period to serve the indigenous students in the remote calendar. Reflecting on otherness, hospitality and difference in the context of the pandemic become urgent to think about the games of inclusion/exclusion of indigenous peoples in Education.
Keywords: Identity; Multicultural; Indigenous; Pandemic; Education.
RESUMEN
Este artículo pretende hacer una reflexión sobre las relaciones Multi/interculturales en el ámbito universitario en tiempos de pandemia, con la mirada puesta en los académicos indígenas. En este sentido, este trabajo muestra la inserción de los indígenas en la Educación Básica y en la Educación Superior para comprender la producción de identidad en los espacios educativos de frontera en la relación con la alteridad, la diferencia y la hospitalidad, así como para discutir la inclusión de los indígenas ante las dificultades que se presentan con el advenimiento de la pandemia del Sars-CoV-2 en Brasil, teniendo como soporte teórico los Estudios Culturales. Como estrategias metodológicas utilizamos la revisión de la literatura y seguimos estrategias del Núcleo de Estudos e Investigações sobre Populações Indígenas (NEPPI) de la Universidade Católica Don Bosco durante la pandemia para ayudar a los estudiantes indígenas en el calendario remoto. Reflexionar sobre la alteridad, la hospitalidad y la diferencia en el contexto de la pandemia se hace urgente para pensar en los juegos de inclusión/exclusión de los pueblos indígenas en la Educación.
Palabras-clave: Identidad; Multicultural; Indígena; Pandemia; Educación.
"O homem se justifica pelo mundo, pela existência no concreto. Está unido ao mundo sendo um ser-no-mundo, e por essa razão o cogito passa a ter uma dimensão existencial".
Jean-Paul Sartre
Introdução
Este texto parte de reflexões sobre identidade e alteridade dos povos originários,no âmbito da universidade de acadêmicos indígenas de Mato Grosso do Sul (MS) na situação de pandemia. Para tanto, problematizam-se as questões da identidade na Modernidade/colonialidade, trazendo uma investigação do desafio da inserção dos indígenas na Educação Básica e no Ensino Superior, sobretudo por meio das Escolas Indígenas, com objetivo de compreender como esses acadêmicos se produzem identitariamente nesses espaços híbridos de relação com a diferença, alteridade. Para isso, apoiamo-nos na antropologia e estudos culturais a partir de autores como Homi Bhabha e Stuart Hall para discutir sobre diferença, identidade e alteridade e discutimos sobre Hospitalidade a partir de Jacques Derrida (2003).
Como estratégia metodológica desta pesquisa qualitativa, utilizamos revisão de literatura e apresentamos estratégias no Núcleo de Estudos e Pesquisas das Populações Indígenas (NEPPI)1 vinculado à Universidade Católica Dom Bosco - UCDB durante o período de pandemia por Sars-Cov-2 para inclusão dos alunos indígenas no calendário remoto.Com isso, o presente texto discute sobre processos de inclusão e exclusão social a partir das formas de hospitalidade nos espaços educacionais de fronteira, como as Escolas Indígenas e instituições de Ensino Superior, considerando os processos de formação identitária. Essa temática atravessa os autores pois diz respeito ao espaço universitário no qual se inserem e ao modo como o território acadêmico é tensionado com a inserção dos indígenas no Ensino Superior.
Com o advento da pandemia de Sars-Cov-2 no Brasil em março de 2020, as interrogações sobre a constituição identitária dos povos indígenas nos espaços educacionais híbridos adquire outra densidade, considerando a nova configuração imposta às relações educacionais por meio da suspensão das atividades presenciais e implementação de atividades remotas mediadas por recursos tecnológicos na Educação Básica e Ensino Superior pelo Ministério da Educação (2020).
Discutir sobre a identidade indígena nos espaços educacionais faz parte de um compromisso com os processos de inclusão e exclusão sociais nos espaços onde esses povos passaram a ser incluídos a partir de 1999 com a implementação das escolas indígenas (Conselho Nacional de Educação Básica, 1999).Desde então o número de alunos indígenas se ampliou na Educação Básica e, como efeito, no Ensino Superior (Bargamaschi & Medeiros, 2010). Refletir sobre alteridade, hospitalidade e diferença face ao contexto da pandemia se torna urgente para pensar os jogos de inclusão/exclusão dos povos indígenas à escolarização e, portanto, à possibilidade de exercício da cidadania em nossa sociedade no presente.
A Opção pelo Multi/intercultural
"A interação com uma cultura diferente contribui para que uma pessoa ou um grupo modifique o seu horizonte de compreensão da realidade, na medida em que lhe possibilita compreender ou assumir pontos de vista ou lógicas diferentes de interpretação da realidade ou relação social."
Reinaldo Mathias Fleuri"Aqueles que chegam com um jeito diferente na escola, apesar de saberem muitas coisas, são tratados como se não soubessem nada da vida e nem da vivência que já aprenderam..."
Elda Vasques Aquino
Na nova configuração em que a cultura se torna protagonista das relações sociais, a antiga distinção que o marxismo clássico fazia entre a "base" econômica e a "superestrutura" ideológica não se sustenta na época em que a mídia é tanto crítica à infraestrutura material das sociedades modernas quanto um dos principais meios de circulação de ideias e imagens. A acelerada velocidade de disseminação da diversidade, intensificada pelas forças da globalização cultural - por meio de uma velocidade midiática nunca antes experimentada, deu origem a um novo quadro. Stuart Hall (2004) sublinha a questão da fronteira cultural, a partir desse entendimento de negociação e diálogo surge um novo cenário no pensamento científico que trouxe à tona discussões ainda mais significativas em diversos campos do conhecimento.
Há, portanto, a criação um "novo" desprezo em relação à diferença que é teorizado como o "pluralismo cultural" assim, Hall (2004) defende a política do "multiculturalismo". Para Zygmunt Bauman (2003) existe um postulado que orienta a tolerância liberal, e se chama multiculturalismo, pois o mesmo orienta a preocupação com o direito das comunidades a autoafirmação e o reconhecimento público de suas identidades. O mesmo autor alerta que o multiculturalismo funciona como força conservadora, pois seu efeito é uma transformação das desigualdades incapazes de obter aceitação pública em "diferenças culturais". A estratégia liberal não dá conta das desigualdades ainda latentes por trás dessa "maquiagem" de aceitação do diferente chamada de multiculturalismo.
Segundo Bauman (2003) vivemos em uma verdadeira confusão em relação ao respeito à diferença. Por enquanto o "multiculturalismo" se torna um joguete nas mãos da globalização, que não é limitada politicamente, e essas forças escapam das consequências devastadoras causadas em diversas comunidades, sendo a principal a questão das desigualdades entre sociedades e dentro das sociedades. O hábito de explicar a desigualdade por uma inferioridade é antigo, ostensivo e arrogante. Essa forma de relação com a diferença, na verdade, é uma estratégia de parecer que vivemos em uma sociedade ideal, onde há respeito ao diferente, mas para Bauman, podemos comparar este modelo culturalista com o velho racismo:
O novo culturalismo, como o velho racismo, tenta aplacar os escrúpulos morais e produzir a reconciliação com a desigualdade humana, seja como condição além da capacidade de intervenção humana (no caso do racismo), seja com o veto à violação dos sacrossantos Valores culturais pela interferência humana. A fórmula racista obsoleta de reconciliação com a desigualdade estava intimamente associada com a busca moderna da "ordem social perfeita": a construção da ordem necessariamente envolve seleção, e era óbvio que "raças inferiores", incapazes de atingir padrões humanos decentes, não teriam lugar em qualquer ordem que se aproximasse da perfeição (Bauman, 2003, p. 99).
As culturas comunitárias podem viver juntas quando a tolerância mútua se une à indiferença, mas raramente conversam entre si e, se o fazem, costumam fazer por meio de conflitos armados. Em um mundo de multiculturalismo, apesar da coexistência de culturas é difícil haver vida compartilhada, de fato. Segundo Reinaldo Fleuri (2003, p. 16) "a perspectiva intercultural ganha força no cenário mundial, emergem políticas afirmativas de minorias étnicas, propostas de inclusão de pessoas portadoras de deficiência, de movimentos de gênero, de terceira idade".
Em Fleuri (2001), a "intencionalidade" que motiva a relação entre grupos culturais diferentes é a primeira distinção entre a proposta de educação multicultural e a de educação intercultural. Esse educador, ao assumir uma perspectiva multicultural, considera como um fato a diversidade cultural, tomando consciência e procurando adaptar-lhe uma proposta educativa. "Adaptar-se, neste sentido, significa limitar os danos sobre si e sobre os outros" (p. 52). No entanto, o autor ressalta que para construir uma perspectiva multicultural é preciso para um projeto educativo intencional. Podemos perceber na fala de Fleuri que a perspectiva intercultural tem a intencionalidade de promover a relação com outro, ela não apenas tolera, mas se relaciona e promove o outro apoiada na diversidade para que exista uma educação e uma sociedade inclusiva, diferente do multiculturalismo que se adapta, tolera e respeita o outro mas não leva em consideração seus conhecimentos. Ou seja, para Fleuri, o interculturalismo põe em prática as relações culturais como parte de um processo inevitável enquanto o outro (multiculturalismo) tem uma suposta proposta de solução que acaba velando a diferença. Ainda segundo o autor:
A segunda distinção entre educação multicultural e educação intercultural se refere aos diferentes modos de se entender a relação entre culturas na prática educativa. Na perspectiva multicultural, entende-se, de modo geral, as culturas diferentes como objetos de estudo, como matéria a ser aprendida. Ao contrário, na perspectiva intercultural os educadores e educandos não reduzem a outra cultura a um objeto de estudo a mais, mas a consideram como um modo próprio de um grupo social ver e interagir com a realidade (Fleuri, 2003, p. 52-53).
De acordo com Vera Maria Candau (2012), na América Latina, sobretudo no Brasil, a questão multicultural apresenta uma configuração muito particular, pois o nosso continente foi inventado sobre uma base multicultural muito forte que tem feito com que as "relações interétnicas sejam uma constante através de toda sua história" (p. 21). No que se refere aos povos originários vemos uma história multicultural dolorosa e trágica.
A eliminação física do outro ou sua escravização marcou a nossa formação histórica, que são maneiras violentas de negação da alteridade. Os processos de negação do "outro" também se dão no plano das representações e no imaginário social e, nesse sentido, o debate multicultural na América Latina implica sujeitos históricos que foram massacrados ou que puderam resistir e continuam afirmando suas identidades fortemente na nossa sociedade, mas numa situação de relações de poder assimétricas, de subordinação e acentuada exclusão.
Candau (2012) empresta os conceitos de McLaren e enumera quatro grandes tendências - multiculturalismo conservador, multiculturalismo humanista liberal, multiculturalismo liberal de esquerda e multiculturalismo crítico. A autora afirma que o modelo multiculuralista se recusa a ver a cultura como não-conflitiva e argumenta que a diversidade deve ser afirmada dentro de uma política de crítica e compromisso com a justiça social.
Esta perspectiva parte da afirmação de que o multiculturalismo tem de ser contextualizado a partir de uma agenda política de transformação, sem a qual corre o risco de se reduzir a outra forma de acomodação à ordem social vigente (Candau, 2013, p.7).
Nesse sentido, argumenta Candau, o processo é permanente, sempre inacabado, "marcado por uma deliberada intenção de promover uma relação dialógica e democrática entre as culturas e os grupos involucrados e não unicamente de uma coexistência pacífica num mesmo território" (p.45). A interculturalidade aposta na relação entre grupos sociais e étnicos. Enfrenta a conflitividade inerente a essas relações. Favorece os processos de negociação cultural, a construção de identidades de fronteira, híbridas, plurais e dinâmicas, nas diferentes dimensões da dinâmica social. Em seu texto a autora assegura que a abordagem intercultural se aproxima do multiculturalismo crítico de McLaren. Tem-se se utilizado o termo Multi/intercultural para o conceito de multiculturalismo crítico, com o qual esse trabalho se identifica.
Os "Diálogos" Multi/interculturais na Modernidade/colonialidade
A Modernidade/colonialidade apresenta uma nova constituição social em termos de relação com os povos tradicionais. Edward Said (2011) diz que o império é uma relação formal ou informal, em que um estado controla a soberania política de outra sociedade. "Ele pode ser alcançado pela força, pela colaboração política, por dependência econômica, social ou cultural" (2011, p. 42). O imperialismo é o processo de estabelecer ou manter um império.
Said (2011) ainda reforça que na modernidade, o colonialismo direto acabou em boa medida, já o imperialismo sobrevive onde sempre existiu, ou seja, em uma esfera que propõe uma cultura geral, tal como práticas ideológicas, políticas, sociais e econômicas. Assim, percebe-se que embora fisicamente - como havia no passado - não haja uma dominação visível nas ruas, ela existe só que não está materializada: "não vemos quem nos bate, mas sentimos o peso da mão". Podemos ler, neste trecho do mesmo autor, algo que nos faz pensar e nos identificar com os sujeitos colonizados:
A dominação e as injustiças do poder e da riqueza são fatos perenes da sociedade humana. Mas no quadro global de hoje pode-se também interpretá-las em relação ao imperialismo, sua história e suas novas formas. As nações contemporâneas da Ásia, América Latina e África são politicamente independentes, mas, sob muitos aspectos, continuam tão dominadas e dependentes quanto o eram na época em que viviam governadas diretamente pelas potências europeias. Nem o imperialismo, nem o colonialismo é um simples ato de acumulação e aquisição. Ambos são sustentados e talvez impelidos por potentes formações ideológicas que incluem a noção de que certos territórios e povos precisam e imploram pela dominação, bem como formas de conhecimento filiadas à dominação: o vocabulário da cultura imperial oitocentista clássica está repleto de palavras e conceitos como "raças servis" ou "inferiores", "povos subordinados", "dependência", "expansão" e "autoridade". E as ideias sobre a cultura eram explicitadas, reforçadas, criticadas ou rejeitadas a partir das experiências imperiais (Said, 2011, p. 43).
A modernidade carimbou na história das sociedades o estigma da homogeneização cultural, a criação da "cultura nacional". E o instrumento foi a criação do conceito de "Nação" de "Estado Nacional". A estratégia utilizada para a homogeneização de um pensamento foi a ideia de "cultura nacional". Como explica Hall (2004) as forma cultura-nacional é moderna. Na pré-modernidade a identificação de povo, religião, tribo e região foi transferida gradualmente para as sociedades culturais nacionais da modernidade.
A construção de nação para Bauman (2003) significava a busca do princípio "um Estado, uma Nação" e, portanto, em última análise, a negação da diversificação étnica entre os súditos. A Nação Estado é culturalmente homogênea e unificada. Nela, diferenças de costumes ou línguas são vistas como relíquias quase extintas, assim, o Estado deveria ser legitimado e unificado politicamente por meio do compartilhamento da nacionalidade. "Invocação das raízes comuns e de um caráter comum deveria ser importante instrumento de mobilização ideológica" (Bauman, 2003, p. 83) resultando na produção da lealdade e obediência à pátria. Este processo de patriotismo articula-se com o projeto de nação e decorre de um propósito, como se deduz de Bauman (2012):
Recordemos que o propósito de tudo isso foi enfraquecer ou romper o controle sob o qual as "comunidades" (tradições, costumes, dialetos, calendários, lealdades locais) mantinham os potenciais patriotas da nação una e indivisível. A ideia que orientou todos os esforços do Estado-nação moderno foi a de impor um tipo de lealdade sobre o mosaico de "particularismos" locais, comunitários. Em termos de política prática, isso significou o desmantelamento, ou o desempoderamento legal, de todos os pouvoirs intermédiaires; o fim da autonomia de qualquer unidade menor que o Estado-nação, que, contudo, pretendesse ser mais que executora da vontade deste e assumisse mais poder do que o que lhe fora delegado (p. 83).
Podemos ver nesta mesma obra que a proclamação da cultura como "sistema" se deu pela promoção do estado da "cultura nacional". Assim, a criação do "Estado Nação" é fruto de um processo de "culturalização" de outros povos a partir de um olhar etnocêntrico e hegemônico.
Escolas Indígenas: Educação e Resistência
Na esteira dos Estados Nacionais e com a modernidade/colonialidade, a racionalidade genocida da conquista por parte do colonizador produziu quatro modalidades de genocídio no século XVI, entre elas o "epistemicídio", marcado pela subalternização, invisibilização e extermínio de epistemologias e cosmologias não ocidentais (Grosfoguel, 2016). As estruturas de conhecimento coloniais e modernas instituíram ao eixo Europa-Estados Unidos privilégio de autoridade sobre o conhecimento do mundo. A divisão inferior/superior foi produzida em uma geopolítica do saber.
Nessa lógica, os povos Kaiowá e Guarani - para se ter como exemplo - que vivem ao Sul Global na América Latina tiveram suas formas de conhecimento ameaçadas, pela alteridade violenta com a qual o colonizador se relacionou com os povos tradicionais do Brasil. Buscaram unificar territórios e impor uma identidade, uma religião, uma dominação, organizando um sistema de poder que subalterniza a diferença a partir de ideias sobre raça, religião e império.
Para Melià (1999), essa estratégia do colonizador induziu os povos autóctones a sustentar sua alteridade por meio de estratégias próprias. Há insistência nesses povos de manter a educação indígena como aquilo que permite a reprodução de seu modo de ser e de sua cultura para as próximas gerações, resistindo ao epistemicídio.
A "construção" de uma escola capaz de considerar a cultura local e suas estratégias de transmissão de conhecimento tem sido um grande desafio para aqueles povos que resistem, uma vez que a colonialidade do ser, saber e poder (Quijano, 2005) permanece em atualização mesmo após séculos do período de colonizadora nos países do Sul Global. A estratégias destes povos de dialogar com seu entorno, se evidencia na tentativa de construir uma escola bilíngue em suas comunidades.
No Brasil, somente na constituição de 1988 houve reconhecimento desta modalidade de escola, quando os indígenas, pela primeira vez, são objetivados como cidadãos de direito e garantia de suas diferenças pela Carta Constitucional (Nascimento & Vieira, 2007). A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 citou a necessidade de estabelecer uma escolarização intercultural e bilíngue voltada aos povos indígenas no que se refere ao currículo, material didático, formação de professores e projeto pedagógico. Em seu artigo 78, a LDB apresentou como objetivo da escola indígena o resgate de suas memórias históricas e a reafirmação de suas identidades étnicas e de suas línguas. Dois anos depois, foi publicado o Referencial Curricular Nacional para Escolas Indígenas (RCNEI). Sua elaboração foi articulada por lideranças indígenas, educadores, antropólogos e docentes. Com essa organização do projeto pedagógico e curricular para as escolas foi possível instituir a Escola Indígena em 1999 por meio da Resolução nº 003 da Câmara de Educação Básica.
A gestão desse espaço escolar -para construção do currículo, contratação de docentes etc - é marcado por intensa negociação, uma vez que a escola indígena é considerada um lugar de fronteira, um entre. Sobre isso discorrem Adir Casaro Nascimento e Carlos Vieira (2011):
Compreender as relações de uma cultura da escola com as tensões, fricções e dissensões dos significados produzidos pela cultura, que atravessa o espaço da escola, parece ser o desafio para as comunidades indígenas e os gestores de políticas educacionais para a configuração de um currículo, que busque superar as assimetrias geradas pela desigualdade e pelos preconceitos culturais, desconstruindo concepções binárias, desenvolvendo possibilidades emancipatórias no contexto de um espaço especifico que é a escola (Nascimento & Vieira, p. 9).
Costumeiramente se fala em escola "indígena", generalizando o conceito de "indígena" como se todos os povos do Brasil tivessem ou almejassem ter a mesma escola. "Haveria que ver qual é a alteridade que cada povo indígena projeta e deseja para si mesmo" (Melià, 1999, p.12). Uma escola do povo Bororo é diferente de uma do povo Xavante, assim como uma do povo Suruí possui particularidades em relação à do povo Terena. Brand (1998, p. 1) afirma: "é importante destacar que cada povo indígena interpretará e atribuirá dimensões específicas a este conceito [educação], em função de sua cultura e de suas experiências históricas de enfrentamento do entorno regional".
O pano de fundo desta problemática é certamente a questão da autonomia na construção e condução desse espaço de ensino e aprendizagem, denominado escola. Para Brand (1998) a educação diferenciada indígena, pensada em uma tradição cultural própria, suscita uma pergunta fundamental para o novo milênio: qual o papel da escola face aos projetos de autonomia constantemente redefinidos? Apesar dos avanços que surgiram na última década, a questão de Brand permanece atual.
Tomemos como exemplo das dificuldades destes avanços, foi o impactante foi o discurso da Reunião Ministerial de 22 de abril de 2020 em que ministro da Educação Abraham Weintraub afirmou ojeriza ao termo "povos indígenas" com objetivo de afirmar uma identidade nacional unificada, "odeio o termo povos indígenas (...) só tem um povo nesse país" (CNN Brasil, 2020, p. 31). No presente, tensões envolvem a disputa de sentido pela identidade nacional. Nesse discurso se confirma a supremacia de certo modelo identitário em detrimento das diferenças culturais. Esse jogo político na Educação brasileira indica a atualização de lógicas coloniais que invisibilizam e subalternizam os povos indígenas.
Face ao avanço dessas políticas é fundamental afirmar a importância das escolas indígenas. Para Melià (1979), a alteridade indígena deve manter sua diferença e contribuir para um mundo de pessoas livres em sua alteridade.
As negociações, Diálogos e Relações Identitárias nas Fronteiras Étnicas nos Ambientes de Educação
O avanço das escolas nas comunidades resultou em uma maior inserção de acadêmicos indígenas nas universidades, somadas as políticas públicas de reparação histórica frente a estes povos, provocou uma grande inserção de acadêmicos indígenas, não só no ensino superior, como também em programas de mestrado e doutorado.
Essa presençase ampliou nas últimas duas décadas. O Censo da Educação Superior de 2017 (INEP/MEC, 2017) registrou 57 mil estudantes indígenas no Ensino Superior e mais de 250 mil em escolas indígenas. Atualmente existem 3.297 escolas indígenas de Educação Básica no país, onde trabalham mais de 20 mil professores. Para Bergamaschi e Medeiros (2010) os indígenas que se aproximam da vida urbana no Brasil buscavam se isolar como estratégia de resistência e sobrevivência, mas desde o início dos anos 2000 já era possível visualizar movimentos de afirmação de suas identidades como estratégia de inserção na sociedade de modelo Estado-nação.
Esses povos criaram estratégias de resistência para sobreviver à relação com as fronteiras sem ceder ao extermínio de sua língua, espiritualidade e relação com a terra. Focalizando nos espaços onde há possibilidade de negociação -como nas escolas indígenas - a relação com as fronteiras se torna elemento importante para pensar identidade.
A fronteira nos permite de alguma forma a passagem para o outro lado, cuja negociação não acontece de forma indiscriminada. Essa participação é negociada pois existe uma interação. O sujeito exposto a fronteira é mais que um mero expectador, pois se apropria dos elementos culturais expostos nesse ambiente. Nesse espaço "invisível" e "imaginado" a fronteira é uma limitação artificial. Essa ideia vai ao encontro dos apontamentos de Canclini (1998): "A fluidez das comunicações facilita-nos apropriarmo-nos de elementos de muitas culturas, mas isto não implica que as aceitemos indiscriminadamente" (p. 43).
Nesse sentido, há um "ambiente intersticial" como explica Canevacci (2005). Para esse autor, "a passagem intersticial entre identificações fixas abre as possibilidades de uma hibridez cultural que aceita a diferença sem hierarquia acatada ou imposta" (p. 3).
A identidade, na perspectiva de Stuart Hall (1997), de Tomaz Tadeu Silva (2000) e de Homi Bhabha (2003) não está pressupõe uma essência, mas funciona como um conceito estratégico e posicional, pois a identidade é sempre uma construção ou ainda um processo nunca completo para afirmar o que é diante do outro, o diferente (Hall, 1997). É, portanto, sempre relacional. Nesse trabalho, falamos dos povos autóctones como sujeitos coletivos tomados como diferentes pelo colonizador, que historicamente os enxerga pela lente colonial, subalternizando e aniquilando suas agências, o que justificou a conquista de seus territórios e o estabelecimento de sistemas autoritários de administração de suas vidas. É importante destacar que para Bhabha (2003) a articulação social da diferença da perspectiva das minorias políticas como os indígenas, "é uma negociação complexa em andamento, que procura conferir autoridade aos hibridismos culturais que emergem em momentos de transformação histórica" (p. 21).
Para (Canclini, 1998) a hibridização pode ser utilizada para nomear combinações entre elementos étnicos e religiosos, mas também para nomear a combinação entre diferentes processos sociais modernos ou pós-modernos. O espaço de fronteira é transitório. O sujeito não deixa de ser constituído pelos elementos que produzem sua identidade naquele momento, mas no encontro com a diferença deixa de ser apenas o que é e se torna algo mais, em um processo de negociação, transformação. Nessa negociação identitária o sujeito se torna aquilo que é. Eliel Benites afirma em seu trabalho de mestrado, ser uma estratégia de sobrevivência:
A nossa identidade Kaiowá e Guarani se constrói a partir do relacionamento com o contexto, em contínua redefinição nas relações sociais, e este produz o ser Kaiowá e Guarani, carregando as marcas do contexto no qual é produzido. É um processo de contínua identificação, caracterizando o sujeito indígena como múltiplo, com as múltiplas constituições do ser, diante das múltiplas referências do discurso exterior. As novas gerações são formadas por sujeitos sem identidades definidas, produtos do contexto, que sofrem as interferências do meio e que produzem continuamente a sua subjetividade em diferentes contextos temporais e espaciais. Uma identidade, assim, é uma posição assumida temporariamente, de acordo com a necessidade de sobrevivência (Benites, 2014, p. 55).
Considerando o encontro entre diferentes nos espaços educacionais, trazemos a reflexão de Derrida (2003) sobre hospitalidade para compreender possibilidades de relação entre indígenas e não indígenas. Para o autor, existem duas maneiras de entender a hospitalidade. Elas não se opõem, mas surgem em momentos distintos: a primeira se apoia no direito à hospitalidade e a segunda em uma ética da hospitalidade. O direito à hospitalidade existe desde a Grécia antiga como imposição das condições para o estrangeiro ser acolhido em determinada cidade, devendo submeter-se às suas leis e se comunicar através da língua daquela cidade. Esse modelo de hospitalidade se produz no plano jurídico, ligada aos critérios de divisão entre cidadão versus estrangeiro. O modo de organização da cidade com sua língua e leis tem como efeito os fora-da-lei, ou seja, aqueles que não se alinham às normas. O estrangeiro é lido como um fora-da-lei, que para ser acolhido deve se submeter ao modo de vida dos cidadãos legítimos e nascidos na cidade. E o que é o indígena, se não um estrangeiro em sua própria terra? Os povos tradicionais foram tornados estrangeiros e para manter sua identidade, é preciso resistir, negociar e insistir.
Entretanto, na segunda perspectiva de hospitalidade, fruto de reconfiguração proposta por Derrida (2003) existe uma ética da hospitalidade, a qual permite acolher a diferença do outro. Nessa hospitalidade, é possível estabelecer uma relação de alteridade com a forma de vida e com a língua. Língua entendida como conjunto de valores, sentidos e normas. Nessa discussão, as escolas indígenas parecem emergir como um entre-lugar de hospitalidades: ao mesmo tempo que a Educação moderna faz parte da linguagem ocidental marcada pela colonialidade, epistemicídio e subalternização, também se produziu como lugar de negociação, de acolhimento aos indígenas que resistem, ou seja, como lugar de hospitalidade. O indígena também se torna aquele que acolhe o modelo educacional moderno. Com hospitalidade, os indígenas em escolarização continuam em seu Tekohá mesmo quando vivem, trabalham e estudam nas cidades.
Efeitos da Pandemia: Vulnerabilidade e Acesso Pelos Estudantes Indígenas
Com a emergência da pandemia mundial de Sars-Cov-2, sua duração prolongada desde fevereiro de 2020 até o momento presente dessa escrita no Brasil e seu efeito de ampliação do uso das tecnologias para continuidade das atividades educacionais de forma remota durante o isolamento social, novas problemáticas surgiram para os indígenas na Educação Básica e no Ensino Superior. A maior parte dos indígenas inseridos em instituições educacionais vivem em aldeias, rurais ou urbanas. De acordo com pesquisa recente (Carrara, 2020), 43% dos brasileiros que vivem zona rural não possuem acesso à internet e apenas 19% das famílias com renda inferior a um salário mínimo possuem acesso a celular ou computador. A maior parte dos estudantes indígenas se insere nesses números e não possuem condições de acesso à internet e ferramentas tecnológicas para acompanhar as aulas online.
A exclusão dessa população aos recursos tecnológicos marca a diferença abissal entre a população indígena e não indígena à Educação, o que influencia as condições para exercício da cidadania. Aqui, o indígena se torna um fora-da-lei ao se situar às margens da norma de inclusão tecnológica, assim como outras populações, pobres, rurais e periféricas. A inclusão desse grupo está sempre marcada por negociações, políticas de morte, políticas de vida, resistência e sujeição.
O Ministério da Educação (MEC), por meio da Portaria MEC nº 343, de 17 de março de 2020, autorizou a suspensão das aulas presenciais e implementação de aulas remotas. Em junho a suspensão das atividades foi estendida até 31 dezembro de 2020 pela Portaria MEC º 544, de 16 de junho de 2020. A Instituição de Ensino Superior (IES) Universidade Católica Dom Bosco (UCDB) localizada em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, suspendeu todas as atividades acadêmicas presenciais e instituiu continuidade do calendário acadêmico virtualmente, por meio de atividades remotas em plataformas virtuais.
A UCDB, por meio do NEPPI2 desenvolveu estratégias para acompanhar os estudantes indígenas durante o calendário remoto. O acompanhamento dos alunos se deu inicialmente pelo contato via aplicativo WhatsApp, em razão da maior facilidade de acesso e comunicação para compreender as condições de acesso às plataformas virtuais. Parte dos alunos permaneceu na cidade e a maior parte retornou para suas aldeias, com objetivo de se proteger em conjunto com sua família. Além disso, algumas aldeias se encontram fechadas como medida de contenção do avanço da contaminação pelo coronavírus.
As lideranças indígenas restringiram circulação de pessoas, trabalhadores, transporte coletivos e em alguns casos, acesso às ferramentas tecnológicas vindas de fora das aldeias. É o caso da aldeia Buriti localizada no município Dois Irmãos do Buriti e da aldeia Água Bonita, que criou uma barreira sanitária como resposta ao fato de dos 20 pacientes internados por coronavírus em Aquidauana - localizada à 140km de Campo Grande - 15 serem indígenas, de acordo com notícia de 28 de julho (Mídia Max, 2020). As aldeias rurais e urbanas se encontram em extrema vulnerabilidade no MS, uma vez que a pandemia afetou diferencialmente os grupos sociais no que se refere à precarização da vida e exposição ao risco de contágio.
As políticas de combate à pandemia priorizam pessoas brancas e não periféricas, na medida em que as práticas protetivas adotadas (home office, álcool em gel, distanciamento social, higienização com água e sabão etc.) são efetivas para parcela da população e não foram estruturadas políticas governamentais voltadas à proteção das comunidades indígenas, que se auto organizaram para resistir e se proteger.
Diferentes políticas fragilizam a existência dessa população, o que afeta sua relação com a Educação nesse momento pandêmico. Para reduzir danos, a Universidade em conjunto com o NEPPI estabeleceu como estratégias: 1) prorrogação dos prazos de entrega de atividades para os alunos sem acesso à internet; 2) abertura de segunda chamada de avaliação\prova; 3) monitoria do projeto Rede de Saberes3 por meio de ferramentas mais acessíveis, como WhatsApp, buscando manter a continuidade da comunicação e suporte aos acadêmicos indígenas.
A necessidade da implementação dessas intervenções diz respeito às estratégias para a continuidade do acesso dessa população à Educação, considerando a hospitalidade no acolhimento às diferenças em termos de acesso às condições para o acompanhamento das atividades remotas. Outra relação com os processos de ensino/aprendizagem se produz na medida em que a tradição indígena marcada pela oralidade é introduzida no mundo das mídias digitais. Nessa negociação, considerar a experiência híbrida dos povos indígenas permite refletir sobre o modo subalternizador e colonial que ainda pensamos as identidades dos povos originários. Pensar a identidade de povos cuja tradição se alia ao uso de plantas, cultivo da terra e intervenções espirituais e agora, se vê imerso nas tecnologias digitais oferece pistas para compreender produções identitárias. Isto para além de um sujeito fixo e essencial, mas considerando as hibridizações. A dicotomia Terra e humanidade produziu uma cegueira para o fato de que somos parte do organismo terrestre em que vivemos, pois como explica Krenak (2020), não existe algo que não seja natureza, desde os ambientes artificialmente produzidos até as florestas.
Algumas considerações finais
Estes escritos são o início de reflexões a partir dos conceitos de identidade, cultura, alteridade e subjetividade, tendo o olhar a respeito dos acadêmicos indígenas da UCDB, que recebem o apoio do projeto Rede de Saberes, administrado pelo NEPPI.Colocando a lupa sobreestes acadêmicos no período de pandemia podemos percebero quanto eles foram afetados pela falta de infraestrutura nas comunidades, falta de equipamentose conexão. O cumprimento das atividades que os docentes propuseram durante este ano nas aulas virtuaisfoi um grande desafio, pois a maioria destas atividades tinham prazos, e nem sempre eles tinham conexão e estrutura para cumpri-las.
Pensarestes acadêmicos indígenas e suas dificuldadesdiante dea realidade de negociação com as imposições culturais do Estado Nação nos ajuda a entender seu percurso de negociação histórica, deste com seu entorno, que na maioria das vezes se apresenta hostil, repressor e violento.Esse entorno é composto por nós, acadêmicos e pesquisadores não-indígenas, que historicamente ocupamos posições privilegiadas em termos de relações de poder. Portanto, o encontro com os acadêmicos indígenas exige tensionar a organização do espaço universitário, que estabelece hierarquias sujeito/objeto, sujeito/outro em suas estruturas epistêmicas e modos de funcionamento.
O sujeito indígenaque se relaciona com a cultura diferente, começa a fazer parte dela, a negociar com ela, se apropriar de seus conhecimentos, e ressignificá-los, tornando-se "outro" sujeito nos momentos de negociação, um sujeito híbrido. Hibridizar não é deixar de ser quem você é, mas é negociar com seu entorno, sem perder de vista quem você é. A identidade é construída na negociação com o outro.É importante afirmar que além de se hibridizar, a permanência de acadêmicos indígenas no espaço universitário tensiona e convoca o próprio espaço acadêmico a hibridizações e transformação de lógicas coloniais e eurocêntricas por meio do encontro com a diferença e suas singularidades.Ao longo do tempo, uma das estratégias de resistência diante da violência por parte dos povos indígenas foi de dialogar com o seu entorno, um exemplo deste fato é a capacidade de resistência do povo Guarani/Kaiowá de Mato Grosso do Sul, apelidados de povo sorriso, pelos primeiros brancos com os quais tiveram contato. Face a toda opressão e sofrimento pelos quais estes povos passaram, ingressar na universidade no tempo presente pode ser tomado como estratégia de afirmação de suas existências e sobrevivências.
Segundo relatos de alguns professores, o carinho e a atenção com que estes acadêmicos desenvolvem em suas relações é tocante, mesmo com todo o preconceito que sofrem.È importante ressaltar que esta relação atual de bom convívio não deve ser romantizada, pois toda relação intercultural é tensionada pelos diversos fatores impostos pelo etnocentrismo. O Antropólogo Everardo Rocha (1991, p.7) tem uma boa definição para o termo:
Etnocentrismo é uma visão do mundo onde o nosso próprio grupo é tomado como centro de tudo e todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que é a existência. No plano intelectual, pode ser visto como a dificuldade de pensarmos a diferença; no plano afetivo, como sentimentos de estranheza, medo, hostilidade etc.
Portanto, a relação com o outro, a partir de minhas verdades, de meu entendimento, acontece com todos nós. Mas um ponto a se destacar é que o não índio pouco se esforça para entender que passado o momento de estranhamento, a busca por um reconhecimento do outro é fundamental para avançarmos em nossas relações. É a ausência de alteridade para compreensão da diferença, que de alguma forma, possibilita esta relação perversa com os povos originários e outros grupos étnicos que o Ocidente insiste em transformar em abjetos.
Pesquisar a respeito dos acadêmicos indígenas nos coloca, portanto, em reflexão sobre nossa alteridade e a forma como objetivamos os povos não brancos a partir de atravessamentos etnocêntricos de subalternização e exclusão da diferença. O trânsito entre fronteiras dos povos indígenas se dá em uma complexidade que não é igual a nossa, pois sua cosmovisão, sua relação com o outro e o mundo, se dá de forma particular. Entendercomo acontece este trânsito identitário, nesta permeabilidade identitária, nesteentre-lugar, de sua identidade e de suas identificações, é o principal objetivo desta pesquisa, paraque possamos refletir ainda mais a respeito da complexidade que é ser um indígenana universidade em um mundo com fronteiras tão fluídas, e cada vez mais complexas.
Além disso, as reflexões realizadas permitem considerar os desafios educacionais impostos com a emergência da pandemia para inclusão dos povos indígenas na Educação Básica e Ensino Superior. Esses desafios nos inspiram a considerar a urgência de uma ética da Hospitalidade apoiada no "e" e não no "ou": cidade e floresta, tecnologias digitais e tecnologias da natureza, Terra e humanidade. Pensar a hospitalidade no contexto das Escolas Indígenas - lugar de fronteira entre povos, línguas, saberes -permite interrogar o local de quem hospeda, acolhe e recebe o outro, uma vez que diferentes sujeitos se recebem/acolhem/hospedam. A concepção de território dos povos tradicionais o considera como terra e lugar de pertencimento, como seuTekohá, diferentemente de nós, das sociedades nacionais, que tomamos o território como propriedade. A identidade indígena, não se subsumi à língua e aos costumes da sociedade nacional, mas se hibridiza, sem se desconectar de seuTekohá.
Nas fronteiras, quem hospeda o outro? Quem é o outro? Essa interrogação ajuda a romper com certa dicotomia colonial que situa o indígena como o Outro a ser hospedado e capturadopelas normas ocidentais. Com diz Frei Betto (2014, s.p.) "a nossa tendência é colonizar o outro, ou partir do princípio de que eu sei e ensino para ele. Ele não sabe. Eu sei melhor e sei mais do que ele".Na resistência produzida em espaços de fronteira, como as escolas indígenas, a ética da hospitalidade se dá na relação, no acolhimento mútuo das diferenças, na alteridade.
Notas
1 Um dos autores, é pesquisador do NEPPI. Há mais de 15 anos se dedica a trabalhos com populações indígenas. Neste tema desenvolve sua dissertação de mestrado e sua tese de doutorado. O NEPPI, desenvolve um projeto chamado Rede de Saberes, que desenvolve um contato direto com os acadêmicos, por meio de monitorias e todo o suporte pedagógico necessário para sua permanência na instituição.
2 O NEPPI desenvolve, desde 2005, um projeto denominado Rede de Saberes, cujo objetivo é oferecer suporte para permanência de estudantes indígenas no Ensino Superior através de diferentes ações: cursos extracurriculares com temas não inclusos na grade curricular, como direito indigenista, saúde indígena, produção agroecológica etc e; monitorias\tutorias por meio do acompanhamento individual e em grupo de matérias frágeis e não trabalhadas durante o Ensino Médio e relacionadas a Língua Portuguesa.
3 O Rede de Saberes é um projeto de apoio à permanência de indígenas no ensino superior viabilizado com recursos da Fundação Ford. É uma parceria entre a UCDB por meio do Núcleo de Estudos e Pesquisas das Populações Indígenas (NEPPI), a UEMS, a UFGD e a Universidade Federal de Mato Grosso do Sul de Aquidauana (UFMS).
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Submissão: 15/09/2020
1° avaliação: 27/11/2020
Aceite: 19/01/2021
José Francisco Sarmento Nogueira é professor no curso de Design e Filosofiae professor colaborador do programa de Pós-Graduação Stricto Sensu: Mestrado e Doutorado em Psicologi. É também pesquisador do NEPPI/UCDB (Núcleo de Estudos e Pesquisas das Populações Indígenas) na Universidade Católica Dom Bosco.
E-mail: josefsarmento@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5956-5602
Júlia Arruda da Fonseca Palmiere é psicóloga e mestranda em Psicologia pela Universidade Católica Dom Bosco (MS).
E-mail: juliapalmiere@hotmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1337-4733