Introdução
A abordagem da Psicodinâmica do Trabalho (PdT), de Christophe Dejours, centra-se na viabilização de espaços de discussão sobre as questões ligadas ao trabalho, saúde do trabalhador e sua mobilização subjetiva (Dejours, 2015). Destaca-se como característica central nesta abordagem a defasagem entre o trabalho prescrito ₋ a tarefa ₋, e o trabalho real, que segue além das descrições pois, em qualquer organização de trabalho, ocorrem incidentes, falhas e imprevistos que não foram relacionados nas descrições das tarefas. O trabalho real surge na forma de sofrimento ou do fracasso diante do descompasso do trabalho prescrito, e ele representa tudo o que o trabalhador precisa acrescentar para atender às demandas propostas. É justamente este hiato entre o prescrito e o trabalho real que oportuniza descobertas da inteligência prática, que mobiliza toda a subjetividade humana, sendo o cerne do sofrimento criativo, que é gerador de prazer. Nestas circunstâncias, os trabalhadores participam e deliberam, empregam a inteligência e o saber-fazer, reduzindo a defasagem entre o prescrito e o trabalho real. Contudo, apesar da instrumentalização desta inteligência, quando o trabalhador não consegue concluir as tarefas ou quando não há o reconhecimento dos esforços e soluções, gera-se desprazer, tensão e a abertura para o sofrimento patogênico (Dejours, 2016).
Os estudos de Dejours evoluíram da Psicopatologia do Trabalho (1970) para a Psicodinâmica do Trabalho e chegaram até a Clínica Psicodinâmica do Trabalho (após o ano 2000). Ele compreende que o caminho para um trabalho saudável é entendido como aquele que respeita a identidade em construção dentro de uma organização, que descreve eticamente a atividade, conduzindo à criatividade, ao comprometimento com a entrega de um trabalho de alta qualidade. Neste âmbito, uma ação transformadora é viabilizada por meio do espaço de discussão coletivo, onde a palavra tem autonomia e liberdade de expressão (Dejours & Abdoucheli, 2015). Neste sentido, o reconhecimento e a cooperação no trabalho, quando existentes, constituem fontes de prazer. (Sznelwar, Uchida & Lancman, 2011). O processo de cooperação representa como um grupo de trabalhadores age para ressignificar o trabalho real, ajustando-o e transformando-o, e é cristalizado no desejo das pessoas de estarem juntas, trabalhando e superando as imprevisibilidades, transpondo a tese do individualismo e reconhecendo as ações deliberadas (Dejours & Abdoucheli, 2015).
Quando a organização de trabalho não oferece condições para a mobilização subjetiva, surgem algumas estratégias defensivas, tais como o presenteísmo, o desvencilhamento de responsabilidades, o enfrentamento do sofrimento no silêncio, culminando na evitação entre os pares e possíveis conflitos interpessoais, entre outras estratégias de defesa. Tais estratégias desempenham o papel de proteger e alienar; porém, quando se esgotam diante de um intenso sofrimento, o trabalhador é levado à paralisação e a comportamentos patológicos. Ao menos três razões podem contribuir para esse cenário: a geração de um grave sofrimento, a deterioração das relações sociais de trabalho e as doenças ocupacionais (Dejours & Abdoucheli, 2015; Mendes & Araújo, 2007).
O contexto de trabalho da Atenção Básica (AB) em Saúde, desempenhado pelas Unidades Básicas de Saúde (UBS), compõe um campo de investigação e intervenção propícios para a adoção da PdT. Os princípios da AB envolvem a universalidade de acesso, a integralidade e a equidade na assistência. No entanto, o anexo da Portaria 4.279/2010, que estabelece diretrizes para a organização da Rede de Atenção à Saúde (RAS) no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), constata que há dificuldade em superar a intensa fragmentação das ações e serviços de saúde e qualificar a gestão do cuidado no contexto atual. A portaria debate que um dos agravantes é a fragilidade na gestão do trabalho com o problema de precarização e carência de profissionais em número e alinhamento com a política pública, além da necessidade de valorização do espaço de trabalho e dos trabalhadores de saúde. Ademais, o trabalho na AB é considerado um trabalho vivo, um lugar de criação e invenção para produzir saúde, concretizando que o hiato entre o trabalho prescrito e o trabalho real é extenso e altamente presente. Para desempenhar o trabalho vivo e real, os trabalhadores implementam o vínculo, a escuta, a comunicação e a responsabilização com o cuidado. Atribuições que demandam a inteligência prática, cooperação, reconhecimento e a consolidação das redes de trabalho para que o ato de cuidar ocorra atendendo o interesse do usuário.
Isso posto, nota-se a relevância de propiciar espaços públicos de escuta destes trabalhadores no âmbito da AB para superar a defasagem entre o trabalho prescrito e real e assim, favorecer a organização da RAS, da oferta de serviços de saúde de qualidade ao usuário e a valorização dos trabalhadores de saúde. Desde modo, a finalidade deste manuscrito é descrever uma intervenção em PdT desenvolvida com trabalhadores de uma UBS de um município de médio porte no norte do Paraná.
Método
A intervenção seguiu os princípios metodológicos da PdT, a qual propicia a estratégia de intervenção grupal, mediante a fala compartilhada dos trabalhadores no espaço público, e envolve três momentos: (a) a pré-pesquisa; (b) a ação e; (c) validação e restituição (Dejours, 1994; Uchida, Lancman & Sznelwar, 2016), descritos a seguir.
Pré-pesquisa
A demanda inicial da intervenção surgiu da direção da UBS de um município paranaense à uma psicóloga vinculada à Secretaria de Gestão de Pessoas da mesma prefeitura (primeira autora do manuscrito). A referida psicóloga realizou uma visita ao local para coleta de mais informações tanto com a direção quanto com os trabalhadores, incluindo entrevistas individuais informais e visando compreender desde a história da instituição, os processos de trabalho e condições laborais, até as relações hierárquicas e com pacientes/usuários. A direção relatou observar dificuldades no relacionamento interpessoal entre os trabalhadores do setor da Recepção. Quanto ao setor da Assistência em Enfermagem foi apontada baixa qualidade do atendimento aos pacientes, os quais vinham fazendo mais denúncias no canal da ouvidoria municipal. Por outro lado, a escuta dos próprios trabalhadores em relação ao contexto de trabalho trouxe a validação e concordância com as impressões da direção e ampliou o entendimento das variáveis intervenientes. E foi, a partir da ótica dos trabalhadores, sobre os impasses existentes que a intervenção tomou corpo. Assim, foi realizado o convite para a participação voluntária nos grupos aos trabalhadores que estavam alocados nos setores ora descritos, informando a proposta da intervenção, os dias e horários dos encontros. Considerando que os encontros grupais ocorreriam no local e horário de trabalho, não foi possível reunir todos os trabalhadores unicamente, conforme recomenda a dinâmica metodológica da PdT, pois isso prejudicaria a oferta do serviço na UBS. Desta forma, foi necessário organizar dois grupos com trabalhadores de ambos os dois setores: administrativo e enfermagem nos diversos níveis. Participaram 14 trabalhadoras: auxiliares administrativas, auxiliares de enfermagem, enfermeiras e técnicas de enfermagem. Todas eram mulheres com idade média de 41,7 anos, variando entre 28 e 51 anos, 42,8% dos participantes tinham ensino médio, 21,4% ensino técnico, 21,4% ensino superior e 14,3% cursaram pósgraduação. Em média trabalhavam na prefeitura há oito anos e todas eram trabalhadoras pelo regime estatutário.
A UBS foi inaugurada no ano de 2014 e funcionava com uma equipe autônoma de trabalhadores, pois ainda não havia uma direção no organograma. Um ano depois, uma nova equipe de trabalho foi admitida e uma enfermeira assumiu a direção, aumentando o quadro funcional para ampliar a área territorial em virtude do crescimento populacional. Além destes fatores, a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) reordenou os serviços, de modo que dez procedimentos foram delegados às UBS. A partir do ano de 2017 um programa da Secretaria da Saúde do Estado do Paraná (SESA), que pontua o desempenho da qualidade e excelência das UBSs através de Selos (selo diamante, ouro, prata e bronze), foi implantado e é auditado pelo município. Por fim, em 2018, houve redução do quadro de trabalhadores que atuavam na Recepção. Durante a intervenção, a UBS contava com 35 trabalhadores.
A ação
O material da análise é a palavra dos trabalhadores, identificado pela escuta e pelos registros referentes ao processo de intervenção grupal, o qual viabiliza a mobilização dos trabalhadores para a mudança, elaboração e apropriação do trabalho (Dejours, 1994). Cabe destacar que no primeiro encontro as participantes foram informadas sobre o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), pautado nos procedimentos éticos orientados pela Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) No. 510/2016 (Ministério da Saúde, 2016). Foram ainda, consultadas acerca da permissão para a gravação em áudio dos encontros, enfatizando que o único intuito da gravação seria a posterior elaboração deste manuscrito. Todas concordaram com o procedimento. Os grupos foram conduzidos pela Psicóloga que teve o apoio de um estagiário de Psicologia. Nos quatro primeiros encontros com cada grupo foi apresentada a proposta de intervenção e o funcionamento (encontros quinzenais de 90 minutos), o estabelecimento do compromisso, sigilo e a voluntariedade na participação. As discussões foram disparadas com o lançamento de questõeschaves da Psicodinâmica do Trabalho, propostas em sua metodologia para promover o espaço público da palavra: “O que o trabalho representa para você?”; “O que é trabalho prescrito e trabalho real?” e assim, uma ou duas perguntas eram lançadas em cada encontro, de modo que as trabalhadoras traziam seus pontos de vista, discorriam sobre a rotina do trabalho, suas vivências, fontes de prazer e sofrimento e modos de enfrentamento. No quinto encontro de cada grupo houve a validação e no último encontro ocorreu a etapa da restituição e a validação ampliada, contemplando o total de quatro meses.
Validação e restituição
De acordo com Uchida et al. (2016), ao longo dos encontros, se busca, a partir das elaborações, interpretações, hipóteses e comentários registrados, a formulação de um relatório que será apresentado e debatido com os trabalhadores, podendo o conteúdo ser validado, refutado ou retomado. Esta é a etapa da validação e, neste estudo, ela foi conduzida com a unificação dos dois grupos. Após essa fase se constitui o relatório final, o qual é apresentado à instituição e aos demais trabalhadores, denominado restituição. A restituição foi realizada com todos os servidores da UBS simultaneamente.
Procedimento de Análise dos dados
A PdT possui uma metodologia própria, a qual, a partir do material (a palavra), são realizadas observações e interpretações das falas dos trabalhadores no espaço coletivo. Optou-se, para fins deste manuscrito por categorizar blocos temáticos do conjunto de falas, o uso do software IRaMuTeQ (Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires), que viabiliza a análise de dados textuais, organizado em um corpus linguístico. Outros estudos do campo da Psicologia do Trabalho, como o processo saúde-doença de servidores públicos (Souza; Ferreira, 2018) e a análise da Ergonomia da Atividade com médicos em um serviço de pronto atendimento (Pádua; Ferreira, 2020), utilizaram esse software (IRaMuTeQ) para proceder a análise qualitativa das entrevistas realizadas. Deste modo, considerou-se apropriado o seu uso neste estudo, para reunir e organizar palavras.
A transcrição dos encontros compôs um único corpus linguístico. Com a aplicação da Classificação Hierárquica Descendente (CHD), foram identificadas raízes lexicais e contextos em que as classes estão inseridas (Camargo & Justo, 2013). Os dados foram organizados em seis classes lexicais, reunidas em dois blocos temáticos, com títulos atribuídos pelos autores. O primeiro Bloco temático é formado por duas classes intituladas: Polivalência e Desempenho. O segundo Bloco é formado por quatro classes intituladas: Adoecimento, Restrições, Enfrentamento, e Desintegração. O dendograma com as referidas classes de palavras desconsiderou aquelas com χ2 > 3,84 e p < 0,05, indicadores que revelam a força associativa entre as palavras e a classe, descritas a seguir. A interpretação das palavras, das falas e temáticas se fez com base na PdT.
Resultados
Classes de palavras dos trabalhadores
O corpus reteve 56,95% de aproveitamento para análise, 8281 ocorrências, 225 segmentos de texto e 1705 formas identificadas. Na realização da CHD, o corpus se dividiu por cinco vezes até ocorrer uma estabilização do conteúdo e contextos das palavras, gerando cinco classes, as quais estão ilustradas na Figura 1 e apresentam os valores percentuais e o grau de significância das palavras. Os resultados mostram seis classes lexicais, em dois blocos temáticos. Um é formado por duas classes: (a) Classe 1: Polivalência (15,5%) e (b) Classe 5: Desempenho (18,2%). O outro bloco temático é formado por quatro classes: (a) Classe 6: Adoecimento (19,9%), (b) Classe 4: Restrições (14,9%), (c) Classe 3: Enfrentamento (17,1%), e (d) Classe 2: Desintegração (14,4%).
O primeiro bloco reúne temáticas acerca da Polivalência e do Desempenho. A Classe Polivalência mostra que as enfermeiras assumem diversas atividades, pois atuam na parte assistencial, na equipe Estratégia da Saúde da Família (ESF) e gerenciam as equipes de Enfermagem, como revela o relato a seguir.
“Tudo você tem que saber fazer, se é com relação ao paciente tem que saber de Enfermagem, Medicina e Psicologia, se é de medicamento tem que saber de Farmacologia, se é de sistema e cadastros deve saber os serviços administrativos e de Recepção... até de hidráulica para pedir pra virem arrumar a torneira quebrada”.
As participantes concluíram que o acúmulo de serviços implica na sobrecarga: “Você não consegue desenvolver as duas funções. Acaba não tendo autonomia para fazer e resolver tudo que lhe é posto”. E a incorporação de novos procedimentos descentralizados da SMS intensificou a carga de trabalho, que reflete a realidade utópica e angustiante de entregar a prescrição do trabalho. O desgaste também ocorre com a equipe da Recepção, acentuado pela redução de uma pessoa no quadro: “Cortar funcionários dificultou e acumulou trabalho, é muita gente para atender e quando há vários esperando eu não consigo ter empatia”.
As trabalhadoras do setor administrativo ainda admitem que o trabalho é pouco reconhecido e que sofrem ao lidar com a exigência dos pacientes: “...chegam e querem consulta e atendimento em 10 minutos... reclamam de ficar esperando”; “a gente da Recepção se sente como um depósito de frustrações dos pacientes [...] mas só valorizam o trabalho da equipe técnica”. Além da sobrecarga, há pouco reconhecimento e desrespeito por parte de alguns pacientes, pois: “eles falam: sou eu que pago seu salário [...] às vezes me chamam de bruxa […] não tem reconhecimento do nosso trabalho”.
Dejours (2015) afirma que numa instituição autoritária e inflexível não há saídas para elaborar o sofrimento criativo, culminando em sentimentos de desprazer, tensão, aparecimento da fadiga e o desencadeamento de ondas de agressividade. Quadro comum nas equipes, que “não estão dando conta” de se desvencilhar dos pacientes, transferindo para o outro a responsabilidade, acarretando conflitos entre si. Os dados reunidos nessa classe mostram alguns componentes para compreender como a própria organização do trabalho é geradora de sofrimento, uma vez que a Polivalência é exigida mediante a carência de um quadro funcional completo e de possibilidades de exercer a autonomia e a criatividade para lidar com imprevistos. Deste modo, o sofrimento é permeado pela sobrecarga, gerando desentendimentos na esfera relacional e inviabilizando a realização de atendimentos mais humanizados aos pacientes.
Os léxicos reunidos na Classe Desempenho mostram como a UBS, mediante designações da SMS e da SESA, exige alto desempenho das atividades funcionais, expresso pela aquisição de Selos (inspeção de qualidade) e por relatório de produtividade dos procedimentos e atendimentos no Sistema Gestor. Isso envolve a busca incessante do cumprimento de metas: “Eu não estou dando conta e eu me frustro não dando conta das demandas do Selo e de partes administrativas que muitas vezes a gente tem que fazer”. Gerando, assim desprazer, como mostra a fala a seguir. “A gente tá sobrecarregado para tudo, ainda tem essa chateação de Selos, selo bronze, prata, ouro, diamante. E a gente parecendo uns loucos porque tem que acompanhar tudo” e a percepção da cobrança extenuante: “Quando você consegue cumprir uma meta eles já têm outra preparada para você fazer, aí não dá tempo nem de respirar”.
Essas falas repercutiram nos grupos e revelaram algo até então pouco expresso no cotidiano, resultante da negação do sofrimento, da angústia silenciada sobre o desempenho não ser o suficiente, de não estarem à altura do que esperam delas: “Esse tanto de trabalho, relatórios, selos que a gente tem, fazem com que você seja uma pessoa não tão boa no trabalho. Entendeu?” Para Dejours (2016), tal conjuntura culmina na frustração, pois as metas são constantes e naturalizadas, de modo que o sentimento de jamais fazer o suficiente cessa na negação do sofrimento, propiciando o adoecimento. Outro risco na corrida pelos Selos interfere nos valores ético-moral, pois a UBS não detém todos os recursos materiais necessários para pontuar, e então é compelida a “trapacear”, como mostra o excerto a seguir.
“Sabe como funciona o selo? O laringoscópio, ele é para a gente entubar, nenhuma UBS tem. E a Secretaria de Saúde tá lá falando que para a gente selar tem que ter laringoscópio. Aí funciona assim ‘fulana, que dia é sua avaliação? Amanhã? Então você vem buscar as lixeiras com pedais, que nenhuma funciona, e o laringoscópio e depois que selar você devolve’. Isso é selar? Isso é enganar. Aí preciso de lixeira com pedal, ligo no almoxarifado e falam que está em licitação. Como eu vou selar?”
Segundo Dejours (2007), a imposição da qualidade pelos Selos não passa de uma quimera, gerando invariavelmente uma corrida às infrações. Anunciar a qualidade total, não como objetivo, mas como obrigação, gera uma série de efeitos perversos além do aumento da carga de trabalho, como o custo psíquico dispendioso por serem forçados a burlar os controles, vivenciando um conflito com sua profissão, com sua ética profissional e pessoal. Outro exemplo menciona a necessidade de gerar relatórios de produtividade a partir do lançamento de dados (dos procedimentos realizados) no sistema, o que demanda mais uma atividade: “[…] e não é só fazer, agora tudo tem que ficar no sistema e no papel e leva tempo pra fazer”. Isso, na visão das trabalhadoras, interfere diretamente no tempo dos atendimentos, gerando fila e insatisfação dos pacientes: “É penoso ver no sistema o tanto de pacientes que aguardam. A gente se desdobra para dar conta dos atendimentos”. Diante das incompatibilidades do prescrito e do real, elas buscam alguma racionalidade nos atendimentos: “[...] pela alta demanda a gente acaba se desgastando e trabalhando num funcionamento automático. Fica difícil ter empatia com os pacientes”, o que Mendes e Araújo (2007) identificam como hiperatividade, em função da negação e/ou distorção dos riscos do trabalho, perpetuando a proteção e/ou alienação.
Outro ponto assinalado debatido condiz às mudanças de serviços (decisões da cúpula gerencial da SMS) que não são previamente informadas às trabalhadoras, deixando-as sem possibilidade de negociar ou dialogar a respeito, como nos relatos a seguir: “Então assim, ninguém fala nada, ficamos sem entender bulhufas e só sabemos que vamos ter que digitalizar o Bolsa Família” e nesta outra fala, a evidente inflexibilidade: “Todas as decisões que vem para a equipe não são passíveis de opinião por parte de quem executa [...] que temos que ver, engolir e aceitar”. Tal rigidez inviabiliza a ressignificação do sofrimento (Dejours, 2015).
Os sentimentos negativos se agravam e culminam num profundo ressentimento quando, apesar dos esforços para conquistar as metas e selos, não há reconhecimento, gerando mais desmotivação e falta de sentido nas práxis. "Não tem uma gratidão, não tem reconhecimento, não tem divulgação, não passa nada na mídia, ninguém da população nem sabe o que é Selo". O único reconhecimento que recebem é o julgamento de utilidade do trabalho, advindo, neste caso de usuários (Dejours & Mello-Neto, 2012), que submerge apenas de alguns pacientes: “[...] o menino pediu para me dar um abraço [...] depois disso tudo eu ganhei o meu dia”.
A frustração se intensifica diante da percepção sobre o real interesse da SMS e suas políticas gerenciais e estratégicas que não visam a melhoria dos serviços à população. "Estou desanimada com a gestão e vejo o Secretário de Saúde como alguém autoritário como gestor e que faz coisas para fazer as vistas de quem o colocou ali”. A conjuntura piora quando os gestores que elaboram as estratégias e as metas não consideram as variações e complexidades da UBS, da situação de trabalho, da inadequação e escassez de recursos e condições para conquistar os Selos.
Na sequência, o segundo Bloco Temático agrupou as Classes 2, 3, 4 e 6, as quais refletiram as consequências das imposições organizacionais. Na Classe Desintegração foram expressos os conflitos interpessoais oriundos da não cooperação entre as equipes do turno da manhã e da tarde e impasses do fluxo de trabalho entre a Recepção e a Enfermagem: “Sinto uma falta de disponibilidade das pessoas e de coesão entre os profissionais” e “Tem pessoas que têm dificuldade em enxergar a coletividade”. Durante a intervenção, as trabalhadoras se conscientizaram que parte das comparações e conflitos existentes entre as equipes é derivada das próprias condições de trabalho, com o quadro funcional reduzido, mesmo diante do crescimento da demanda populacional e do aumento das modalidades dos serviços ofertados.
“O trabalho é um desgaste psicológico devido a muitas atividades e conflitos [...] a sobrecarga de funções é um ponto desgastante [...] às vezes eu chego pras meninas da Recepção de uma forma meio brava e logo em seguida me arrependo, aquela carga, aquele estresse em cima de você que não te dá tempo de talvez ser um profissional melhor [...] tem muito atestado no período da tarde aí faltou um e a gente tem que sobrecarregar as funções e dar conta do trabalho do outro.”
Há frequentes atestados de saúde e faltas, culminando com mais problemas relacionais, entretanto, por meio dos encontros grupais, elas se conscientizaram que o absenteísmo e o adoecimento são sintomas da organização do trabalho e que encontram nos atestados e faltas um meio de obter algum alívio temporário da sobrecarga e desgaste. Mendes e Araújo (2007) descrevem que no decorrer desse processo os trabalhadores tentam se proteger (ou alienar-se), utilizando estratégias defensivas, como a negação, a hiperatividade, a racionalidade, o individualismo e não cooperação, porém, o efeito é a deterioração das relações sociais entre os trabalhadores.
A Classe Adoecimento surgiu como resultante da conjuntura já descrita, conforme as falas: “[…] comecei a ficar doente depois de dois anos de saúde pública”; “Eu tive uma infecção urinária antes de sair de férias de chegar a sangrar e doer por conta de não ir ao banheiro”. E o uso de medicamentos “... já tomei vários psicotrópicos Clonazepam, Diazepam, Topiramato...”. Das 14 trabalhadoras participantes, 12 delas relataram fazer uso contínuo de psicotrópicos com a mesma finalidade, a de suportar o trabalho, o que novamente gerou olhares que derrubaram a negação do sofrimento. E o desgaste implica em falta de disposição até mesmo fora do trabalho, invadindo a vida pessoal: “[...] não vejo o horário de ir embora e quando saio do trabalho fico com a cabeça cheia, sem disposição para a vida fora do serviço [...] sinto desgaste e cobrança demais”. Algumas mudanças no comportamento ocasionadas pelo adoecimento puderam ser percebidas entre as colegas de trabalho: “Ela mudou com o tempo e há grande disparidade entre a profissional que ela era há alguns anos e a que é hoje” e “[...] ando tendo dificuldades em confraternizar com as pessoas e às vezes não tenho vontade de sair de casa”.
Esta classe remonta as quatro classificações de patologias oriundas da pós-modernidade destacadas por Dejours (2007): (a) patologias da sobrecarga - propiciadas pela redução de trabalhadores, o aumento da população atendida e o absenteísmo da equipe, o que favorece a síndrome de burnout; (b) patologias póstraumáticas - ao considerar o comportamento dos pacientes quando percebem demora no atendimento, agindo com violência verbal e psicológica; (c) patologias do assédio - as quais não foram constatadas no decorrer dos grupos, mas isso não reduz o risco futuro de ocorrência ao considerar o práticas autoritárias da SMS e; (d) patologias das depressões, tentativas de suicídio e suicídio - as depressões podem ser parcialmente inferidas pelos relatos de humor triste, desesperançoso, de anedonia e irritação, bem como pelo uso contínuo de psicotrópicos que visam amenizar o humor deprimido.
A Classe Enfrentamento salienta a necessidade de frear os impulsos advindos do desgaste, como a raiva, irritabilidade e o desânimo, a fim de não comprometer mais as relações e o ambiente já fragilizados, como mostra a fala a seguir. “A gente tem que ter um convívio harmonioso na medida do possível pra gente ficar bem”, demonstrando falas autocríticas e culpabilização “[... ] se eu conseguisse atender mais seria possível atender melhor o paciente de maneira mais humana e com os colegas de trabalho também ser mais humano”. Outra forma de enfrentamento é a negação do sofrimento mascarada pelo uso de psicotrópicos, afinal, precisam continuar “dando conta sem surtar”, como no relato: “[...] eu mudei bastante para também não sofrer tanto igual era antes [...] não sei se é a medicação que me deixa assim”. Surgiu também a racionalidade, como meio de enfrentamento, no atendimento aos pacientes, com foco central na atividade e nos relacionamentos entre os profissionais marcados pelo individualismo, desconfiança, por atos de ignorar a presença do colega, pelo aumento do número de atestados e faltas e na diminuição de confraternizações em equipe. Impactos estes que dificultam e tornam mais complexa a missão da organização da rede de AB no âmbito do SUS.
Os léxicos presentes nas Classes Desintegração, Adoecimento e Enfrentamento interagem e sinalizam um quadro que, quando na avaliação de um gestor ou dirigente da saúde municipal, seria facilmente distorcido. Tender-se-ia a culpar o trabalhador pela baixa qualidade dos serviços prestados e/ou pelo seu adoecimento, alegando que isso decorre de alguma característica de ordem pessoal ou que ele possui alguma predisposição aos transtornos mentais. De acordo com Jardim, Ramos e Glina (2016), isso dificulta o estabelecimento do nexo causal do adoecimento mental com a estrutura organizacional, pois exime as responsabilidades institucionais.
Por fim, a Classe Restrições, trouxe para a discussão o fato de não haver um espaço para se comunicarem associado à desconfiança e desinteresse em se aproximarem, as quais são resultantes das estratégias defensivas. Pontuaram que através da abertura deste espaço coletivo da palavra, que a intervenção trouxe benefícios: “Nós nunca tivemos oportunidade como a do grupo de falar e mesmo que houvesse não teria coragem de falar”. Esse relato, seguido de outros na mesma direção versaram sobre a dificuldade em priorizar e agendar periodicamente momentos de conversa como esse, em razão das relações interpessoais estremecidas, dos ressentimentos aflorados e da desconfiança em compartilhar suas vivências com os colegas de trabalho, o que tornaria essa experiência do espaço da palavra difícil de se concretizar. O falar “não” também surgiu nesta classe no sentido de que quando alguém questiona alguma atividade imposta, por fato da trabalhadora já se encontrar sobrecarregado ou por não lhe competir ao cargo, se frustram com reações caluniosas dos colegas: “Na hora que você percebe que tem que falar não para algumas coisas você é o vilão da história, o monstro do posto [...] o que não coopera”. Constatou-se um começo da conscientização da superexploração e a necessidade de se posicionarem diante aos abusos e agirem coletivamente, como expresso nesta fala: “[...] eu vejo que você precisa falar não [...] é importante impor limites […] o certo era pegar o contrato de trabalho e ver o que é sua função e ser delegado só aquilo pra você fazer”. Face ao exposto, foi verificado que as imposições da estrutura e estratégia gerencial da SMS (Polivalência e Desempenho) sugeriram, em conformidade com os pressupostos teóricos da PDT, uma relação de causalidade, com impactos no processo saúde-doença, nas relações e nos serviços prestados (Desintegração, Enfrentamento, Adoecimento e Restrições).
Restituição, validação ampliada e deliberações para a transformação do trabalho
Tratando-se de um relato de experiência profissional, são destacadas as contribuições da escuta grupal, expressas nas falas das trabalhadoras, e outros colegas da UBS conforme relato das participantes, nos encontros da restituição e validação ampliada. Durante a sessão de restituição, que unificou os dois grupos de trabalhadoras, elas se admiraram ao constatar que as vivências discutidas nos dois grupos eram idênticas, conforme demonstrou o documento compartilhado. Isso dissolveu certa desconfiança e comprovou o compromisso com o sigilo e investimento no espaço da palavra. Também ficaram impactadas sobre o quanto o documento as representava, sendo possível a reelaboração do quão penosa é a realidade, de modo que alguém questionou: “A gente pode publicar isso? Tem gente, a população e os políticos, que devia saber o que se passa com a gente”. No decorrer da leitura alguns trechos foram reafirmados pelas trabalhadoras, validando interpretações, o que ocasionou reações emocionais como o choro, o silêncio e os olhares de cumplicidade. Este momento abriu a oportunidade de falar sobre outros pontos ainda não compartilhados nos grupos, capazes de sintetizar as contribuições da intervenção, como: “[...] agora me senti aceita e acolhida no grupo”; “[...] gostei de como foi possível entender o que servidores de outros setores sentem frente às demandas da UBS”. E ainda: “[...] a gente não tem oportunidade na UBS de parar para ver a história da pessoa. Acho que o grupo é uma oportunidade”. Desta forma, a restituição proporcionou a visibilidade do sofrimento de si e do outro, o reconhecimento da humanidade em comum, a dissolução dos julgamentos avaliativos entre si, abrindo horizontes para a compreensão, união e cooperação, criando estratégias de enfrentamento coletivas. Se conscientizaram de que o problema da UBS não é a falta de resiliência das trabalhadoras, mas sim a estrutura funcional dirigente e inflexível da organização do trabalho. Isso versou num outro olhar sobre o adoecimento como um processo multifatorial e para com a qualidade dos relacionamentos interpessoais. Ao término foram discutidas quais seriam as ações necessárias para a transformação do trabalho, as quais foram debatidas com todos os servidores da UBS na ocasião da validação ampliada.
No encontro da validação ampliada, a UBS permaneceu fechada durante uma hora para atendimentos e contou com a presença de 30 servidores e da direção. As trabalhadoras expuseram o trabalho desenvolvido nos grupos e as ações propostas para a transformação do trabalho. As vivências e dificuldades que relataram foram validadas por outros colegas de trabalho que não participaram dos grupos, sendo que alguns deles manifestaram interesse em ingressar nos grupos numa próxima oportunidade. Os debates culminaram em deliberações coletivas para melhorias do trabalho, que incluíram: convidar os profissionais que são da equipe assistencial para as reuniões de discussão de casos com a equipe ESF; integrar as equipes da manhã e da tarde a partir da retomada de confraternizações; criar uma agenda de reuniões; desenvolver políticas de reconhecimento do trabalho entre os pares; dar visibilidade a seus trabalhos perante os pacientes, com informações mensais divulgadas nos murais da UBS e levar ao conhecimento da SMS a realidade do trabalho na UBS, tendo em vista negociar melhorias das condições de trabalho para viabilizar a oferta do trabalho vivo que requer capacidade de escuta, empatia, criação e invenção no modo de produzir saúde aos usuários. Alguns resultados puderam ser vistos no mês seguinte, em nova visita da psicóloga à UBS. Realizaram festa junina, criaram um espaço de relaxamento com acupuntura para os trabalhadores e as reuniões de discussão de casos da ESF incluíram os trabalhadores da enfermagem assistencial. Houve ainda relatos de que as relações interpessoais melhoraram, pois houve aproximação e maior colaboração entre si. No entanto, as demais estratégias pactuadas ainda não haviam sido colocadas em prática.
Considerações finais
O objetivo do manuscrito foi relatar uma experiência profissional em PdT no contexto da saúde pública. Este propósito foi atingido, uma vez que as trabalhadoras tiveram um espaço público da palavra para compartilhar as vivências de sofrimento no trabalho, o que propiciou a conscientização da exploração e a constatação que o processo saúde-doença no trabalho e os conflitos interpessoais se tratavam de um mecanismo multifacetado impulsionado pela gestão inflexível da SMS, que agia com foco na exigência de polivalência dos trabalhadores, na avaliação de desempenho e na qualidade total. A escuta viabilizou identificar e compreender as defesas individuais e coletivas como sintomas e estratégias para lidar com a realidade perversa do mundo do trabalho pósmoderno, possibilitando elaborar e ressignificar a relação com o trabalho, não obstante que, coletivamente, puderam agir para deliberar algumas transformações do trabalho. Salienta-se, conquanto, limitações metodológicas desta experiência. Os grupos foram acompanhados por uma psicóloga e um estagiário de psicologia, ao passo que a PdT sugere a presença de dois ou três pesquisadores a fim de propiciar uma observação mais robusta e ampliada. Dejours (1994) também afirma que o convite dos grupos deve se estender a todos os trabalhadores da referida instituição. Neste caso, a divulgação e os convites ficaram restritos às trabalhadoras do setor da Enfermagem e da Recepção, de modo que arestas ficaram abertas e talvez outros impasses na UBS não tenham sido explicitados.
Pensando em avanços científicos e práticos, nota-se que em qualquer contexto de trabalho, cuidar da saúde dos trabalhadores é relevante. No âmbito da saúde mais ainda, pois se trata de promoção da saúde coletiva e as UBS representam a porta de entrada deste cuidado à população. Portanto, recomenda-se a PdT como referencial teórico para investigação e para subsidiar estratégias de intervenção em diferentes cenários e contextos de trabalho, como um espaço de expressão e significação da vida, da carreira e do trabalho do servidor público, no modo de produção capitalista do século XXI.