Iniciamos o ano de 2023 com uma conjuntura que segue impondo desafios para o exercício da psicologia nos mais diversos campos de atuação, sobretudo, pela urgência de reconstruir políticas públicas ainda sob a pressão exercida tanto pelos discursos que têm buscado promover retrocessos de direitos quanto pelas consequências da pandemia de Covid-19 para a vida no século XXI. Tal conjuntura também tem colocado desafios para a atuação das universidades em suas diversas frentes de trabalho, incluindo o importante papel dos periódicos na produção e divulgação do conhecimento.
É diante deste contexto de tantos desafios que apresentamos o primeiro número do ano de 2023 da Revista Polis e Psique, reafirmando o nosso posicionamento ético e político em defesa de uma produção do conhecimento crítica e reflexiva sobre a dimensão coletiva das nossas práticas, na intersecção entre estética, política, ética e epistemologia. Nesse sentido, os artigos publicados neste número nos oferecem relatos potentes sobre o enfrentamento dos atuais desafios para a construção de novas possibilidades no campo das ações governamentais e na produção de subjetividades contemporâneas. Afinal, como nos lembram Franco e Hubner (2019), o cuidado com o outro não se resume a um exercício estritamente normativo, tampouco a uma mera aplicação de técnicas e procedimentos, mas está assentado em uma proposta ética, em que se busca uma atitude “de ocupação, de preocupação, de responsabilização radical, de sensibilidade para com a experiência humana e de reconhecimento da realidade do outro, como pessoa e como sujeito, na sua singularidade” (p. 96).
Em “A ética dos afectos: narrativas no jardim de Cordélia”, Vitória Sander Ferraro e Zuleika Köhler Gonzales abordam a criação de narrativas na clínica com crianças, discutindo a importância da clínica infantil na construção de uma prática ética e transformadora. Utilizando a metodologia biografemática, o trabalho se baseia na experiência de estágio em um CAPS infanto-juvenil. A escrita consiste em fragmentos de cenas-clínicas e aforismos agenciados pela imaginação literária, em conjunto com a articulação teórica. Além disso, a criação de narrativas na clínica com crianças é explorada por meio da conexão entre a ética de Foucault e o conceito de afeto em Espinosa.
Já no artigo “Uma clínica catalisadora”, de Guilherme Franzon Berti e Rodrigo Caprio Leite de Castro, o objetivo é revigorar a obra da psiquiatra Nise da Silveira (1905-1999), relacionando-a ao atual campo da clínica e da saúde mental. Nise é reconhecida pelo combate aos métodos agressivos de tratamento do sofrimento mental, pelo trabalho com pacientes esquizofrênicos por meio de atividades expressivas, e pelo extenso impacto na cultura brasileira. Neste artigo, os conceitos de inumeráveis estados do ser, mundo externo e mundo interno e afeto catalisador, são discutidos a fim de se atualizar a proposição da clínica eminentemente humanizadora de Nise, que não negligencia o manejo do inconsciente nem o seu papel de catalisadora das transformações sociais.
Na interface entre políticas de saúde mental e pandemia, o artigo “Tessituras da Adolescência na Pandemia: Demandas Psicossociais de um CAPSi”, escrito por Bibiana Massem Homercher e Felix Miguel Nascimento Guazina, descreve uma pesquisa cujo objetivo foi identificar e descrever quais as demandas de atenção psicossocial que emergiram nos acolhimentos do CAPSi de um município no interior do Rio Grande do Sul, durante a pandemia de Covid-19. O estudo utilizou uma metodologia quali-quantitativa, de caráter descritivo e exploratório. As demandas que mais apareceram foram: comportamento suicida, ansiedade, heteroagressividade, autoagressividade, conflitos familiares e dificuldades de aprendizagem. A partir do estudo, a/e/o autor/a destacam os atravessamentos da pandemia de Covid-19 no público adolescente acolhido neste CAPSi, bem como o que essas demandas falam sobre as questões de saúde mental no cenário pandêmico.
Ainda no contexto da crise pandêmica, o texto “Do Indesejável ao (In)Evitável: Velhice Estigmatizada na Pandemia da Covid-19”, de Elaine dos Santos Santana e colaboradoras, analisa as representações sociais sobre a imagem da pessoa idosa associadas à pandemia de COVID-19 nas publicações do Instagram. Trata-se de um estudo exploratório, descritivo, de abordagem qualitativa, com estratégia de investigação pautada no estudo de caso. Os dados consistiram em 19 memes selecionados por meio da busca aleatória pelos termos “idoso” e “quarentena”. A partir da Técnica de Análise de Conteúdo emergiram duas categorias analíticas: 1. Recolhimento/enclausuramento da pessoa idosa (52,63%) e 2. Impedimento/limitação da mobilidade das pessoas idosas fora de casa (47,37%). Para as autoras, as representações sociais acerca da pessoa idosa nas publicações analisadas mostram um sentido negativo atribuído ao envelhecer e demonstram a naturalização da estigmatização e invisibilidade da violência contra pessoas idosas.
O artigo “Controle e Saúde Mental: O Governo do Mal-Estar Contemporâneo, escrito por Camila de Oliveira Angel e Augusto Jobim do Amaral, almeja demonstrar como o regime de afetos do capitalismo, impulsionado pelos ditames do governo neoliberal dos corpos, avança sua influência para além da órbita econômica, atuando diretamente no processo de construção das subjetividades contemporâneas. Para tanto, a autora e o autor analisam os impactos da “nova razão do mundo” na vida das pessoas, principalmente no que diz respeito às categorias psicopatológicas inerentes a ela. Utilizando a técnica de pesquisa da documentação indireta, abordam a problemática de forma crítica, exemplificando como a psiquiatria reprogramou sua atividade de controle para atender às demandas do mal-estar atual, centralizando-se na medicalização em larga escala da sociedade.
Ainda no campo da saúde mental, o ensaio “Participação Social e Saúde Mental: entre silenciamentos, silêncios e protagonismos de mulheres”, de Diogo Faria Corrêa da Costa, Adriane Roso e Letícia Chagas, focaliza as ameaças sofridas no âmbito da Participação Social e da Política de Saúde Mental no Sistema Único de Saúde (SUS). As autoras e o autor destacam como financiamento de hospitais psiquiátricos, comunidades terapêuticas e alterações na Rede de Atenção Psicossocial impactam o modelo de atenção e composição de serviços do SUS, ao analisar a situação da Política de Saúde Mental por meio de uma discussão sobre as possibilidades de participação e protagonismo das mulheres. Trata-se de uma reflexão sobre o silêncio-silenciamento que sugere: a) demolir as barreiras simbólicas, construídas pelos sistemas de representações sociais sobre mulheres usuárias do SUS e; b) o grupo/coletivo como estratégia para ativar a participação e protagonismo.
O artigo “Indicadores qualitativos de processo e resultado no Acompanhamento Terapêutico”, de Ana Carolina Brondani, Bruno Graebin de Farias e Analice de Lima Palombini, se volta à construção de indicadores qualitativos de processo e resultado da prática do Acompanhamento Terapêutico (AT). O artigo apresenta a conceitualização e os fundamentos da prática do Acompanhamento Terapêutico e seu papel na clínica e nas políticas públicas em saúde mental. Revisa a literatura acerca dos métodos de avaliação de processo e resultado de psicoterapias e das metodologias de construção de indicadores qualitativos em saúde. Por fim, discute a possibilidade de formular indicadores qualitativos para a avaliação do Acompanhamento Terapêutico com base no estado da arte do conhecimento sobre este dispositivo e propõe alguns indicadores clínica e teoricamente relevantes.
Ainda no âmbito das políticas públicas, o artigo “Sustentabilidade Afetiva nos Atendimentos do CREAS: As Percepções das Famílias”, escrito por Kathia Regina Galdino de Godoy e Sonia Regina Vargas Mansano, analisa a percepção das famílias sobre as intervenções realizadas por psicólogas/os em um Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) situado em uma cidade do interior do Paraná. Adotando uma perspectiva qualitativa, as/os seis participantes relataram a experiência desses atendimentos e seus impactos sobre a família. Como resultado, as autoras destacam os receios e medos presentes nos primeiros contatos e como isso foi superado na medida que o vínculo afetivo era fortalecido, abrindo espaço para o relato das experiências difíceis de violência familiar. Ao final da pesquisa, as autoras destacam a relevância de construir uma sustentabilidade afetiva capaz de afirmar o acolhimento às famílias.
Como contribuição ao campo da clínica psicológica em diferentes espaços, o artigo “Manejo das Urgências Subjetivas nas Instituições: que Lugar para o Serviço-Escola?”, de Andrea da Silva Vilanova e colaboradoras/es, discute o manejo da urgência subjetiva nas instituições, apoiando-se em uma investigação em andamento no serviço-escola de uma universidade pública. As/os autoras/es questionam a urgência generalizada, marca de nossos tempos, para situar as coordenadas do manejo da angústia presente nas demandas por assistência em saúde mental dirigidas às instituições. A partir de referências teórico-clínicas da psicanálise de orientação lacaniana, as/os autoras/es articulam a prática do manejo das urgências em diversos dispositivos de saúde. Circunscrevendo, a partir dessa elaboração, o duplo pertencimento dos serviços-escola: lugar de formação e instituição que participa da rede de saúde mental.
E por fim, Lígia Carvalho Libâneo. e Lúcia Helena Cavasin Zabotto Pulino, nos apresentam o relato de experiência “O que os/as Calouros/as Ensinam para a Universidade? Uma Reflexão” que, partindo de uma perspectiva da psicologia escolar, focaliza a condição de calouro/a como analisador importante do processo educativo que acontece na instituição universitária, a qual denuncia e anuncia condições e possibilidades que limitam e ampliam a potência criadora. Ao longo do relato, as autoras buscam superar o paradigma da adaptação, que exige do/a recém-ingressante a assimilação de normas e regras institucionais a fim de adquirir status de estudante. Como contraponto, pensam a participação do corpo técnico-administrativo, de professoras/es e de estudantes da comunidade acadêmica na recepção aos/às calouros/as e construção de uma cultura institucional dinâmica e criadora de novos viveres e fazeres universitários, acolhedores da sua diversidade. Por fim, discutem a presença do/a calouro/a como oportunidade de um segundo olhar da psicologia escolar sobre as relações interpessoais, as práticas e os processos institucionais e pedagógicos.
Esses artigos nos trazem fragmentos de práticas de resistência do cotidiano. Força que se contrapõe ao desmonte das políticas públicas e da produção do conhecimento, força-persistência de manter não só funcionando, mas vivas políticas públicas em seus diferentes campos de atuação como na educação, assistência e saúde. Políticas públicas habitadas por diferentes corpos que fazem com que profissionais não só operem seus saberes/técnicas, mas deem conta de reinventar suas ciências e profissões para produzirem vida em uma terra violentada pela extrema direita.