Plantando interrogações: A clínica Jardim
A aventura de escrever sobre a clínica com crianças só começa com inquietações, com os detalhes que escapam, e se constrói por meio dos encontros com diferentes autores e com as personagens que se deseja narrar. A questão que compõe essa experiência é voltada para os encontros acontecidos na clínica com a infância durante o estágio profissional em Psicologia. Partimos das inquietações produzidas por práticas clínicas, de “saúde”, escolares e de rede direcionadas a infância que, muitas vezes, acabam por silenciar e aprisionar narrativas infantis, as enrijecendo em determinadas formas de existência. Assim, nosso artigo nasce da seguinte questão: Como possibilitar as narrativas na clínica com a infância?
Percorreremos neste artigo vivências dentro da clínica jardim, esta que é construída como tal porque entendemos que as experiências com a infância demandam solo fértil para criação constante. Sendo assim, a terra-clínica é onde se experimenta um condensado de existências, onde se reconhece e acolhe as peculiaridades humanas (Noal, 2017). O que buscamos no clinicar não são as identidades, mas possibilitar a expansão das singularidades que antes tinham pouco solo. Assim, no desejo de tornar presente as vidas que pulsam para além dos contornos, a clínica com a infância é jardim no qual se plantam e florescem as diferenças.
As andanças que se seguirão no jardim se darão na tentativa de construir narrativas com pequenos pacientes/usuários a partir da ética dos afectos que surge através de um processo de afectação e do questionamento das identidades postas. Ao longo do artigo, criaremos agenciamento entre a Ética por Foucault e o conceito de Afectos de Espinosa. Falaremos de uma clínica inventiva que é feita com a infância, na qual o “saber” não é detido pela terapeuta, mas criado junto dos pequenos protagonistas.
A narrativa que buscamos na clínica jardim é essa que possibilita a elaboração e a invenção de outras formas de existir. Discutimos a narrativa como a tessitura de novas histórias a partir do que pede passagem. Assim, narrar é o que permite descolar as forças e os fluxos da história de sua primeira morada, de modo que o narrador possa deslocar os fragmentos de uma vivência (tensionando a temporalidade, o sentido, o espaço) e produzir novo pensamento, nova vida (Cezar & Costa, 2019).
A oportunidade de se questionar em como construir narrativas na clínica com a infância será contada e imaginada por meio do método biografemático. A escrita literária e ficcional que o biografema comporta faz costura potente com o tema que envolve a clínica com crianças, na qual as invenções e elaborações surgem das viagens ao imaginário fantástico. Logo, para realizar esse biografema, além da articulação teórica, a escrita será composta pelo diálogo entre aforismos e cenas-clínicas - estas, vividas pela autora principal.
O biografema é a composição de uma escrita não sistemática, que não busca a cronologia, mas que expõe vidas e causos que estão sempre engendrando-se e, dessa forma, “produzindo saídas para as vidas mais aprisionadas” (Costa, 2010, p. 26). Com a ideia de escrever um biografema plural (Costa, 2010), não escrevemos esta pluralidade sob muitos nomes, mas sob um nome imaginário, o que não decreta identidade única, mas sua capacidade de compor diferenças. Os pequenos pacientes/usuários que comporão esta fabulação biografemática sob o nome de Cordélia ganham este nome por meio da inspiração vinda da personagem do livro de história infantil Anne de Green Gables, de L. M Montgomery (2018). Escolhemos Cordélia por ser uma personagem que inventa a si e seu mundo numa relação de abertura e expansão para com a vida.
Apontaremos, ao longo do artigo, o quão o processo terapêutico não pode ser reduzido a aplicação técnica, mas que, como Kupermann ressalta (2008), implica a afetação que compõe o setting e conduz à criação de sentidos. Kupermann (2008), ao escrever sobre a experiência de afetação compartilhada entre terapeuta e paciente, faz ressonância ao conceito de afecção de Espinosa (Brazão, 2018), que se refere ao que acontece na relação entre corpos, no seu encontro, e o efeito que um produz no outro.
O Devir-Borboleta De Cordélia e a Criação Da Ética Dos Afectos
Nos caminhos dentro da clínica jardim, a terapeuta se deparou em todas as trilhas com os afectos. Esses que foram transformando os encontros dentro da clínica, que pediram passagem ativa no seu fazer e que sinalizaram, em todos os momentos, uma potência de viver e fazer junto com o outro. Logo, ela se encontrou questionando o que possibilitava as narrativas das Cordélias com quem trabalhava. O que havia a visitado nos encontros com os pequenos sujeitos e transformado a relação terapêutica?
Cordélia chegou ao jardim porque não usava as palavras. Ainda assim, o silêncio de suas palavras era compensado pela voz de seu corpo, que muito falava. Cria de vento, Cordélia tinha “um quê” de devir-borboleta, voava sem pausas, traçava sua rota de voo sozinha, incompreensível para todos aqueles que não se detinham a olhá-la. A escola, quando Cordélia comparecia, não sabia lidar com suas asas incansáveis, cheias de vontade. A instituição queria que Cordélia voasse mais baixo, mais “igual” às outras crianças. Em casa, Cordélia não voava, ficava presa na frente da televisão. Sua mãe, de asas cansadas, não conseguia sozinha voar muito longe.
No primeiro encontro no jardim, Cordélia chega batendo suas asas velozmente, sem pausas. Voa para cima e para baixo no jardim, sem destino aparente, procurando algo. No seu voo baixo, a pequena criança voadora não se detém a olhar a terapeuta, e esta, atordoada, a segue num caminhar rápido, sem lembrar de usar as suas próprias asas. Após esse primeiro encontro, a terapeuta se percebe às dúvidas. Perguntava-se seguidamente o que havia ocorrido no encontro com Cordélia borboleta, e o porquê de sentir-se tão angustiada no não ter se conectado com ela e no não entender o seu voar. Como que a terapeuta iria possibilitar as narrativas?
Corromper as ideias prontas e permitir-se outras versões de si mesma, precisamente o que a terapeuta não sabia como uma jovem terapeuta-coadjuvante. Ainda colada em um conceito de “bom atendimento” ou “ruim”, não conseguia expandir-se, como Cordélia já parecia fazer, para viver surpresas. No seu devir-borboleta, Cordélia se movia fora das normas, avante mesmo no território do inesperado. Com a elaboração que vem do tempo, a terapeuta foi a perceber que esta era uma experiência de contágio, de sentir-se desarticulando o corpo, criando asas também, quem sabe. Liberaram-se afectos desconhecidos que a exigiam outras referências. Os devires possuem o conteúdo do desejo (Rosario, 2008), implicam a produção de desvios, certamente que isto estava em Cordélia, logo seria o papel da terapeuta estar sensível para essas suas produções, e auxiliá-la na criação de narrativas de existência, de afirmação.
Desacostumada do lugar que habitava, a terapeuta começa a questionar as formas como se relacionava com os preceitos de clínica e atendimento. No jardim, trabalham em muitos, assim, em reunião e supervisão, ela transborda suas dificuldades no coletivo. Depois de escutar muitas línguas e perceber distintos olhares, compreende, enfim, que no processo no qual estava, seria impossível seguir se não se abrisse ao encontro com aquela pequena borboleta.
Nos encontros seguintes, timidamente a terapeuta foi se permitindo bater asas com Cordélia borboleta. Enquanto a petiz voava sem a olhar, a terapeuta ia flutuando ao seu lado, emprestando voz às suas viagens. A terapeuta, percebendo toda a natureza que brotava de Cordélia, contava história de rio, conversavam com as águas e, caso a borboleta encontrasse cascalhos ou flores pelo caminho que a faziam parar, faziam também com que a terapeuta emprestasse sua voz para novas histórias. Cordélia criava com movimento e a terapeuta com a palavra. Fizeram muita poesia juntas e, assim, deram conta de algumas partes do real que a envolvia na vida cotidiana.
Com o tempo, com os encontros que eram produzidos entre petiz e terapeuta, esta foi percebendo que não era a protagonista, não criaria nada sozinha. Ela entendeu que, ao se entregar ao encontro com Cordélia, podiam juntas realizar um espaço potente a partir do que viesse dela.
Assim, a compartilhar experiências com pequenas Cordélias, a terapeuta começa a fabular em volta da ética e dos afectos, agenciando-os em um entrelaço que muito possibilitou a abertura de narrativas em conjunto. Se a ética produz possibilidade de fazer escolhas (Dias, 2012), decidimos por traçar um caminho que contasse com mais do que o conhecimento teórico, mas com a poesia e literatura, construindo um entremeio de conhecimento e invenção.
Ao longo desse caminho pela clínica jardim, fomos experienciando cada vez mais a certeza de que a clínica implica movimento ético. De abertura, não é proposto aqui uma compreensão da ética como conjunto de princípios normativos para constituição do sujeito, mas justamente romper com a concepção e prática da psicologia como ditadora de normas e verdades acerca deste (Rodrigues & Tedesco, 2009).
A ética dos afectos que fomos inventando começou com a busca pela produção de um espaço terapêutico inventivo que fugisse das quatro paredes quando estas já não faziam sentido. Além do mais, se tornou uma ética que nos faz atentas aos signos que tropeçam no caminho da clínica, para os códigos que querem se manter e azucrinam, baixinho, por novos modos. Nessa ética, não é a figura da terapeuta que detém os saberes acerca de com quem divide o encontro, ela não decide o que é “bom” ou “ruim”, mas está ali para criar junto com a petiz uma forma de existir, de ser, que faça sentido e seja potente para esta. Uma existência na qual o sujeito possa ter livre a sua singularidade para crescer, criar, mudar. Logo, ser produtor de narrativas.
Como Rosa (2011) explicita, não pensamos que o cuidado que vem com o fazer ético seja da perspectiva do “terapeuta se inclinar sobre o sujeito doente” dentro de uma relação assimétrica na qual o sujeito “portador de saúde” concede de volta a “ordem saudável” para o “doente”. Dentro disso, entendemos que a ética como uma prática de cuidado aborda o acolher, o vínculo, o estar com o sujeito, ultrapassando uma primeira concepção de se colocar no lugar do outro em sofrimento ou realizar práticas tutelares (França & Rocha, 2015).
Para nos aprofundarmos no conceito de ética que a terapeuta experienciava, nos encontramos com Foucault (1983), o qual parte do entendimento da ética como exercício crítico constante, propondo abrir brechas para invenção de outras filosofias acerca das subjetivações do sujeito e da sociedade. Atentando ao campo clínico, essas interrogações são importantes, assim como as decisões (e o que elas implicam) que este trabalho demanda frente às práticas clínicas ligadas ao processo de produção de subjetividade (Rodrigues & Tedesco, 2009). A experiência ética implica, por meio de suas questões, abrir-se para desestabilização, a experiência de crise, pois a interrogação de si, do mundo e de suas ações criam brechas para o processo de reconhecimento da falência das normas e de abertura ao desconhecido (Rodrigues & Tedesco, 2009).
Foucault (1984) compreende a subjetivação a partir da relação do sujeito com as estruturas políticas e sociais. São por meio das relações de força, que estão no plano do poder/saber, que as verdades científicas, filosóficas e religiosas ditam e conformam o sujeito. As verdades produzidas instituem normas universais e códigos normalizadores para a produção de subjetividade, e é por meio dessas normas que o sujeito moral se constitui (Rodrigues & Tedesco, 2009). Na constituição de Cordélia, essas marcas moralizantes eram claras, por parte da escola, mas também por parte da equipe de profissionais da saúde.
A terapeuta abre o prontuário de Cordélia. Um arquivo grosso, cheio de história, imagina ela. Na primeira página, onde ficam os dados, ela vê que tem nove anos. Há nove anos vive dentro e fora do jardim. Na página ao lado tem colado um laudo médico vindo de outro espaço de saúde. Este laudo é antigo, está amarelado e tem data de uns dois anos atrás. As palavras ali escritas parecem absurdas, grandes e definitivas demais para alguém tão miúdo. Está oficializado “esquizofrenia” e algo a mais. Como pode um pedaço de papel ser tão decisivo em uma história de nove anos?
Em conversa com a mãe a terapeuta fica sabendo que este médico viu Cordélia duas vezes. Esquizofrenia e algo a mais.
Há, de acordo com Foucault (1984), duas direções para a produção do sujeito moral. A primeira seria a criação do sujeito jurídico, que é produzido a partir da relação de assujeitamento e submissão do indivíduo com as leis e as normas instituídas. A segunda seria a criação do sujeito ético, que se produz por meio de uma relação de transversalização das leis e normas, na qual ele se transforma por meio do questionamento das identidades e na experiência de si (Rodrigues & Tedesco, 2009). A proposta ética é justamente que na clínica possam ser criadas práticas de cuidado que sigam na direção da potencialidade de práticas de si, de liberdade.
Dessa forma, fomos percebendo que a ética não é algo que se “aprende” somente pelos livros e teorias, ela se coloca no fazer, no âmbito sensível do encontro com o outro e da nossa capacidade de escutar este. Mas, antes que ética se estabelecesse como movimento na clínica, foram necessários os afectos e sua potência de desarticular modos de ser. Entendemos, assim, que a existência de uma ética pressupõe também a existência dos afectos. Nesse sentido, a ética que trazemos conosco é dos afectos porque experienciamos, em muitos encontros com Cordélias, que a capacidade de afectar o outro e ser afectada por este abre passagem para que se criem novos sentidos (Lazzarotto & Carvalho, 2012) e, desta forma, os modos de expressar-se se tornam livres para transformar e transversalizar normas. Ceccim e Palombini (2009) já dizem que para cuidar é preciso se expor ao outro, aceitar a sua diferença e acolher o que no sujeito pede passagem para vir a ser.
A partir de Espinosa que a terapeuta se deparou com o conceito de afectos, este que esteve ao lado dela em diversos atendimentos no jardim, mas que ainda se encontrava somente no plano do indizível.
Deleuze (1997) conceitua os afectos de Espinosa como signos. O signo diz respeito a um efeito (afecção), o que fica marcado em um corpo quando sofre ação de outro, ou seja, fica afectado por sensações e é, de alguma forma, modificado. Os estados de afecções podem ser passagens para “mais” ou para “menos”, quer dizer, podem nos levar à tristeza ou à alegria, são variações de potências que vão de um estado para outro. Entretanto, o que para um pode ser afecto de crescimento, pode ser de diminuição para outro. O afecto é a variação/mudança de potência, enquanto a afecção é o que acontece na relação entre corpos, na implicação de um corpo sobre outro (Deleuze, 1997; Telles & Conter, 2015).
Assim, os afectos envolvem o estar presente no “acontecer dos corpos”, nas sensações que são experimentadas no encontro produzido com o outro. Quando as sensações são barradas e se centraliza na técnica, no saber do terapeuta e em alguma ideia de verdade absoluta, os movimentos de criação e transformação são perdidos. A terapeuta sentia esse bloqueio nos primeiros atendimentos que fez. O afetar-se permite que se perceba o outro, e quando isso acontece, o encontro se faz.
Os afectos se mesclam com a condição estética, que é o exercício da sensibilidade em relação ao outro e ao mundo, logo, o deixar-se afetar por estes (Nardi & Silva, 2009). Assim, os afectos que nos atravessam e realizam as passagens ativas são a denúncia de que houve acontecimento no encontro e que, de alguma maneira, houve algo que possibilitou a força de expansão da vida (Lazzarotto & Carvalho, 2012). Na clínica, esse encontro de corpos afectados se dá por múltiplos meios, sendo alguns dos mais importantes os fragmentos de sensações, os olhares, os cheiros, a troca de histórias e as transferências. Os afectos abrem passagem para o cultivo conjunto de vidas na clínica.
Depois de muitos encontros, começam a voar em conjunto. As narrativas brotavam das formas mais fantásticas entre elas. Assim, iniciam constantemente sua aventura no refeitório que havia no jardim, onde Cordélia escolhia comer os monstros desenhados no jogo americano que ficava sobre a mesa. Nas primeiras vezes, ela comia e mostrava a terapeuta, com os olhos arregalados, sua barriga cheia de monstros. Um dia, sentindo-se convocada de alguma forma, a terapeuta pergunta se pode experimentar um. Cordélia, então, coloca um monstro em sua boca e ela o mastiga como se estivesse comendo algo com gosto ruim. Cordélia olha a terapeuta atentamente. Nos próximos encontros, sempre divide os monstros com ela, colocando-os em sua boca. Com o tempo, Cordélia borboleta começa a comê-los e depois arrota e os vomita. A terapeuta põe-se a ajudá-la a colocar fora os monstros do prato ou coloca as mãos unidas embaixo de sua boca para pegá-los quando os vomita. Nessa brincadeira, ao colocar-se nesse “brincar juntos”, a terapeuta pode sentir com Cordélia o caminho que ela apontava: lidar, ali, com os monstros que trancavam e enchiam o seu processo.
Para que os afectos existam é necessário que haja contato entre corpos, eles são produzidos nesse entremeio, nesse choque que ocorre no espaço. Logo, não compete somente o estado do corpo afectado, mas também do corpo que afecta. Isso implica que nesse agenciamento os corpos produzam diferença em si mesmos. É preciso deixar claro que os afectos não podem ser entendidos apenas como intensidades, sentimentos ou emoções propriamente, mas sim estados de ser (Telles & Conter, 2015).
Nos encontros com Cordélia, nesse entre afectos, o que era indizível ganhava voz por meio de produções que criavam. Nesse sentido, os monstros que a amarravam por dentro eram sentidos também pela terapeuta, o que configurava um testemunho de narrativa. Isto é, dar legitimidade à sua fala-corpo e às suas construções. Assim, a dupla rompia com aquela ingestão constante de “formas horripilantes de ser” (como Cordélia era narrada pela escola em reuniões de rede: um monstrinho descontrolado, do qual era impossível dar conta, muito diferente daquela borboleta no jardim) e “elastecia” um outro espaço para Cordélia existir, no qual haveria a possibilidade de questionar e “colocar para fora” códigos morais que a fixavam numa identidade.
Nas suas experimentações, terapeuta e Cordélia eram invadidas pelas paixões alegres. Os afectos podem ser paixões tristes que paralisam ou paixões alegres que levam a agir e expandir, sempre querendo por mais conexão de potências, ser mais afectados. Essa expansão que surge das paixões alegres, quando nos apossamos delas, é o que produz os bons encontros (Domingues, 2010). Lins (2007) disserta sobre a ética da alegria como uma força revolucionária, a qual afirma os bons encontros, busca a satisfação do desejo e a capacidade de se deixar ser afetado. A alegria, como escrito acima, é o ato de criação potente, é a liberdade de agir e amar. Pelas palavras de Lins (2007, p. 71), “é cultivar e cuidar como se cuida de uma planta, [...] a alegria não é uma força ‘natural’, mas uma criação ética, estética e social”.
Se no começo dos encontros não havia troca de olhares e a criação de narrativas parecia silenciada pela paralisia das paixões tristes, no processo de vivenciar os encontros no jardim a partir da ética dos afectos, a terapeuta e Cordélia tomaram outras direções. Quando a terapeuta se permitiu ser contagiada pelos afectos que se instituíam entre ela e Cordélia, suas brincadeiras narrativas começaram a surgir e com elas a experiência ética da clínica, na qual há a proliferação de circuitos de ação e de desejo, intensificando os processos de subversão dos códigos estabelecidos (Giacoia Júnior, 2010).
O olhar era voltado para as experiências de afetação. O que mexia com seus corpos no atendimento, o que convocava Cordélia a entregar à terapeuta livros e pedir que contasse histórias? O que a dupla faria com aquelas palavras, com as frases que inventavam? Os afectos que vinham cheios de potência de criação de Cordélia e pareciam escancarar o seu desejo por desordenar a linearidade da história que sabia sobre si. Só nos colocamos como questionadores quando somos afectados por algo. A ética se faz como processo nômade da existência, pois as possibilidades de vida não cessam de se produzir e recriar (Deleuze, 1992; Giacoia Júnior, 2010).
Com o tempo, o borboletear da dupla passou de ocupar todos os espaços do jardim para fazer ninho num lugar escolhido por Cordélia borboleta. Lá, fizeram seu canto de criação. Os encontros aconteciam de forma singular. Primeiro, comiam e jogavam fora os monstros, depois, Cordélia voava até clareira do jardim e de lá lançava um sorriso travesso, batendo suas asas enquanto corria e convocava a terapeuta para alcançá-la. Quando a terapeuta a alcançava, ria e ia para o seu espaço, uma vez dentro, criavam as mais mirabolantes histórias.
Os fantoches de bichinhos se tornaram as grandes personagens das aventuras que inventavam. Nas primeiras vezes que se interessou pelos fantoches, Cordélia colocava dois nas mãos da terapeuta e dois nas suas. Seus fantoches brigavam, se colavam e mordiam. Uma vez, com o fantoche de Cordélia mordendo o da terapeuta, esta experimentou dizer: “olha, acho que eles estão se dando beijos”. A petiz a olha, olha para os fantoches entrelaçados e incorpora à brincadeira os beijos. Os fantoches a partir daquele momento, sempre que estavam para terminar o encontro, se beijavam e se despediam. O conflito continuava a acontecer, e precisava estar ali, mas ele se transformava em algo novo e diferente todas as vezes. Cordélia tinha bem abertas suas asas coloridas, e mostrava que nas brincadeiras de faz-de-conta, podia modificar papéis, regras e ideais. No brincar, ela se fazia criadora de si.
Nesses pequenos momentos de criação narrativa, a terapeuta foi percebendo o quão potente era emprestar seu corpo e palavras a Cordélia. Coelho (2005) vai ao encontro do que pensamos quando escreve que a busca do paciente/usuário por novos caminhos requer a aproximação do terapeuta ao seu olhar, e não uma tentativa de barrar e enquadrá-lo em um olhar construído previamente. Por isso se entregar ao paciente (ao seu próprio olhar) se faz tão importante. Em muitos momentos, a terapeuta procurava tomar cuidado para não invadir a área intermediária de Cordélia, lugar que é uma “terceira área de experimentação” - não é total interna/imaginária, nem externa/real- na qual a petiz irá desenvolver sua criatividade e simbolismos (Winnicott, 1975). A terapeuta entendia que, como posto por Winnicott (1975), é mais importante sustentar os movimentos criativos da criança e esperar que ela se surpreenda com suas próprias descobertas.
Nesse emprestar-se para Cordélia, que Winnicott (1975) define como o uso da terapeuta tal qual objeto transicional, a terapeuta sentia-se convocada pelas afecções que surgiam na narrativa daqueles fantoches. Assim, propôs uma alteração de movimento, ou seja, outra possível construção para aquela narrativa, que só se fez válida pelo acolhimento de Cordélia. De acordo com Telles e Conter (2015), o afecto sempre irá exceder o contexto de onde surge, sempre engendrará novos possíveis. “Após o choque, como quando dois planetas se chocam e se estilhaçam, não só os planetas mudaram como todas as forças contidas em cada um mudaram, espalhando-se e possibilitando novos choques e diversas alteridades” (Telles & Conter, 2015, p. 45).
No manejo de suas afecções, a dupla subverteu a lógica que os fantoches pareciam mostrar e criaram uma outra possibilidade destes se relacionarem uns com os outros. Não buscavam uma história pregressa de Cordélia quando brincavam, embora a usassem como instrumento de transformação. Ao contrário, mergulhavam na história que se fazia naquele momento e compunham uma narrativa coletiva, misturando os tempos e afectos, visibilizando outros desfechos temporários.
Antes não havia narrativa criativa e apenas um voar desenfreado que procurava se desfazer da dominação das paixões tristes (do qual a terapeuta tentava tirar sentido e não se permitia experienciar em um primeiro momento). Após, quando a terapeuta abre suas asas para voar com Cordélia e conseguem se aproximar, dão espaço à borboleta para que se colocasse como é e que pudessem criar a partir disso. Como trazido por Winnicott (1975, p. 89), “é no brincar, e somente no brincar, que o indivíduo, criança ou adulto, pode ser criativo e utilizar sua personalidade integral: e é somente sendo criativo que o indivíduo descobre o seu (self)”. O brincar de Cordélia estava agora repleto de trocas.
Estavam na frente do espelho. Terapeuta atrás e Cordélia na frente. Haviam colocado partes de diferentes fantasias, partes de pássaro, de monstro e de fada. Asas e garras. Cordélia olhava para o reflexo, colocava a mão no seu rosto. Se olhava de perfil, passava a mão nas asas que a terapeuta estava usando. Ela abre a porta da sala e a convida para explorarem o lado de fora.
Experimentar novas composições e inventar um novo corpo. Ante as imposições de identidade, poder ser sujeito de suas próprias ações. Esse foi o movimento ético junto de Cordélia borboleta no jardim. Nas suas experiências desterritorializantes, criaram uma zona permeável, na qual não buscavam verdades, mas produzir outras saídas.
Mexer Com Os Limites Da Palavra: As Narrativas Que Não Acabam
A proposta aqui foi de poder fazer nomadismo de sentidos, articular escrita poética e teórica, desesterilizar e contaminar com novos agenciamentos. A clínica com crianças nos impele a acompanhar os movimentos afectivos, experimentar a indeterminação que se monta entre os corpos (Passos & Benevides, 2006). É a partir disso que se forma a abertura ética para questionar e pensar formas de se fertilizar terra e cultivar solo. Ética para transformar as amarras morais e sustentar o movimento de expansão das pequenas vidas.
O final de uma história é apenas um intervalo, uma calmaria à espera de nova visita e novos olhares (Cezar & Costa, 2019). As narrativas aqui escritas esperam por ser revisitadas para que se desdobrem outras afecções. A ética dos afectos que foi sendo agenciada nessas páginas possibilita, justamente, esse preenchimento de significados outros, porque ideias também são corpos em afecção.
Mexer com o significado das palavras é fazer o texto transpirar, o que acreditamos ser o objetivo de todo artigo. O fim é provisório, deixa rastros para continuação de outras narrativas.
Poderíamos falar de muitos momentos recheados de significados e afectos que a terapeuta e Cordélia borboleta tiveram. Cordélia mostrou que são as pequenezas dos encontros que mostram as grandes diferenças. Ela foi desabrochando toda a sua potência e criatividade nos momentos juntos da dupla. Aprendemos com ela que quando havia alguém que pudesse se emprestar para compartilhar e ser afectada junto dela, era possível o seu ser protagonista, no qual narrar as suas histórias e brincadeiras era crescer, inventar e refazer. Nesse compartilhamento, viveram a ética dos afectos.
A ética dos afectos que elaboramos seguirá sempre se transformando, como é de ser. O que se mantém é isto: a ética dos afectos como exercício de liberdade ético-político, no qual ser livre é a possibilidade de criar novas formas para agir, pensar e ser. Quanto mais nos entregamos aos encontros com pequenas Cordélias no jardim, mais claro fica o voar singular e vibrátil desses sujeitos-borboletas e, quem sabe, o nosso também.