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Revista Polis e Psique

On-line version ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.13 no.2 Porto Alegre  2023  Epub Oct 25, 2024

https://doi.org/10.22456/2238-152x.123160 

Artigo

Fazer-se Manada, coexistir na diferença: a experiência de cartografar um processo de criação em dança

Becoming a Herd, coexisting in difference: the experience of mapping a process of creation in dance

Convertirse en manada, convivir en la diferencia: la experiencia de mapear un proceso creativo en la danza

Andrea do Amparo Carotta Angeli1  , Conceitualização, Redação do manuscrito, Análise dos dados, Revisão e edição
http://orcid.org/0000-0002-2406-5920

1Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Santa Maria, RS, Brasil


Resumo

Esse trabalho decorre da produção da pesquisa “Potências clínicas nos corpos em criação nas experimentações artísticas do programa TOCCA” realizada durante os anos de 2018 e 2021. O artigo se volta a mostrar a análise cartográfica de um dos grupos observados e os processos de constituição de corpos dançarinos e de uma obra em dança. Compreendeu-se que o entrelaçamento dos conhecimentos da terapia ocupacional e das artes da cena pode vir a criar saberes transversais, desde as práticas de educação somática, que fortalecem e ampliam ambos os campos em suas potências éticas, estéticas e políticas. Bem como, podem instaurar um dispositivo poético clínico para a produção do comum.

Palavras-chave Cartografia; Corpo; Terapia Ocupacional

Abstract

This work stems from the production of the research “Clinical potencies in bodies under creation in the artistic experimentations of the TOCCA program” carried out during the years 2018 and 2021. The article returns to show the analysis of one of the observed groups and the processes of constitution of dancing bodies and a work in dance. It was understood that the interweaving of knowledge from occupational therapy and performing arts can create transversal knowledge, from somatic education practices, which strengthen and expand both fields in their ethical, aesthetic and political powers. As well as, they can establish a clinical poetic device for the production of the common.

Keywords Cartography; Body; Occupational Therapy

Resumen

Este trabajo surge de la producción de la investigación “Potencias clínicas en cuerpos en creación en las experimentaciones artísticas del programa TOCCA” realizada durante los años 2018 y 2021. El artículo vuelve a mostrar el análisis de uno de los grupos observados y los procesos de constitución de cuerpos danzantes y un trabajo en danza. Se entendió que el entrecruzamiento de los saberes de la terapia ocupacional y las artes escénicas puede generar conocimientos transversales, a partir de prácticas de educación somática, que fortalezcan y amplíen ambos campos en sus poderes éticos, estéticos y políticos. Así como, pueden establecer un dispositivo poético clínico para la producción de lo común.

Palabras clave Cartografía; Cuerpo; Terapia Ocupacional

Introdução

Apresenta-se parte dos resultados da pesquisa intitulada: “Potências clínicas nos corpos em criação nas experimentações artísticas do programa TOCCA” aprovada pelo comitê de ética em pesquisa sob o número CAAE: 83521318.8.0000.5346, que buscou cartografar nos processos de criação quando aliadas as práticas de educação somática, em especial, as da anatomia emocional, coexistem clínica, arte e política. Para tanto, investigou as potências clínicas, estéticas e críticas nos dispositivos desenvolvidos de modo transdisciplinar nessa ação extensionista.

A pesquisa principal seguiu o percurso vivido com os sujeitos participantes do programa de extensão no eixo um corpo no mundo, em especial, nos grupos: experimentações performáticas (2016-2019), e estudos e experimentações em anatomia emocional (2019). Neste escrito serão apresentadas as elaborações produzidas pelo acompanhamento e análise do grupo: Estudos e experimentações em anatomia emocional, que foi incluído posteriormente na pesquisa, como parte dos desvios no processo, pelo desejo de aprofundar um pouco mais a relação entre a criação em arte e a produção de si nos corpos-sujeitos artistas.

O grupo estudado era formado por artistas da cena no final do curso de graduação, em processo de criação coletiva de um espetáculo de dança, e motivados a participar da ação de extensão como parte do que constituía laboratório para a composição da ação cênica e sua preparação como performer. Os integrantes se propuseram, com isso, a viver um espaço de estudos e práticas corporais, bem como, a condução de uma terapeuta ocupacional. E, ainda, compartilhar com a pesquisadora dos efeitos destas vivências na construção do espetáculo. O trabalho teve começo, meio e fim, com um ano de duração. Os bailarinos foram consultados quanto ao desejo em participar da pesquisa, informados do processo, leram e assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido e a autorização de uso de imagem. Ao longo do ano de 2019, foram realizados encontros semanais individuais, e em grupo, com os participantes, gravados, fotografados e registrados em diário de campo.

Esse texto é o relato de parte de uma pesquisa cartográfica, e que, por isso, compreende um recorte em um processo que não parte de objetivos como metas a serem cumpridas e que definiriam um início, e nem se chega a conclusões como um fim. Os objetivos neste estudo foram desenhados e redesenhados ao longo de todo o trajeto, considerados como pistas em um determinado campo problemático. Como nos dizem Passos e Barros, acerca do trabalho cartográfico (2009), “conhecer o caminho de constituição de dado objeto equivale a caminhar com esse objeto, constituir esse próprio caminho, constituir-se no caminho.” (p.31). Neste sentido, o que se apresenta é um desenho possível entre tantos deste percurso, produzido pelas relações entre o campo e a pesquisadora, singularizados na narrativa que segue. O desenho se refere a análise das linhas de força que compõem o território problemático do estudo, seu reconhecimento e problematização por meio do uso do referencial teórico escolhido. A pesquisadora, portanto, está implicada todo o tempo na ação de pesquisar, não é neutra. Assim, quem mergulha neste território, quem o percorre e o analisa e quem narra esse acontecimento sou eu, mulher, parda, heterossexual, terapeuta ocupacional, mãe, professora e também pesquisadora. Ecologias, dentre as muitas, que me formam e atravessam esse texto.

Destaca-se que o fazer cartográfico compreende uma perspectiva e forma de trabalho oriunda da filosofia da diferença, proposta pelo filósofo Gilles Deleuze e o esquizoanalista Feliz Guattari. Caracteriza-se como um método de pesquisa, bem como, uma posição ética, estética e política defendida pelos autores desde um posto de vista teórico. A cartografia pressupõe “que objeto, sujeito e conhecimento são efeitos co-emergentes do pesquisar” (Passos e Barros, 2009, p.18) e, portanto, não há um ponto de partida, estudam-se as relações que surgem no ato de fazer a pesquisa. Essa, uma ação que afeta a todos no campo problemático, que gera necessariamente uma intervenção, e que se apoia na experiência. Desta forma, se faz por pistas surgidas destas relações entre pesquisador e campo.

O recorte do estudo foi feito pelas impressões das experiências extensionistas no corpo da pesquisadora, a saber, as atividades da extensão acionavam uma prática transversal entre a saúde e as artes da cena. As ações da extensão aconteciam semanalmente e contavam com a presença de estudantes/ profissionais das artes da cena e/ou da terapia ocupacional, e pessoas da comunidade desejantes destes espaços de criar, advindos de serviços de saúde, educação e\ou assistência social, com ou sem deficiências, sofrimento psíquico, situações de vulnerabilidade social. Nos grupos ou nos espaços de acompanhamento terapêutico experimentavam-se linguagens oriundas do campo das artes no fazer e/ou na fruição. A intensidade das experiências com as artes, mediadas por indicações que ativavam a percepção/sensibilidade/a observação de si e dos outros desde o repertório de práticas de educação somática da anatomia emocional, foi provocando pensar a força poética e clínica de alguns encontros no que tange a convocação do comum.

Para a construção da análise cartográfica elegeram-se dois movimentos de imersão, a saber, deslocar-se pelos relatos escritos e imagéticos, e pelos textos teóricos, de forma a decantar o vivido em busca dos analisadores. Parte-se da co-emergência de objeto e sujeito da pesquisa e, portanto, da observação da gênese de ambos no campo problemático em questão, o que implica a todos os envolvidos, e, portanto, as dimensões instituídas de um campo e suas forças instituintes. O trabalho do pesquisador-analista é o de procurar e o de criar condições de emergência dos analisadores, aqueles que nos permitem multiplicar os sentidos dados de uma experiência, reposicionar o olhar e a presença, revirar a realidade dada e vislumbrar possíveis. (Barros; De Barros, 2014)

Neste sentido, realizou-se registro em diários de campo do trabalho com os participantes e das impressões/sensações/vivências da pesquisadora com o grupo e captações de imagens dos corpos ao longo do processo. Fez-se um estudo teórico da anatomia emocional do psicoterapeuta corporal norte americano Stanley Keleman e dos textos e produções da filósofa e terapeuta corporal brasileira Regina Favre em busca de aprofundamento e elaboração do vivido. Depois de seis meses de trabalho, outro procedimento se tornou importante: os ‘encontros cartográficos’ – estudantes em orientação no curso de terapia ocupacional, estudantes em orientação no curso de dança bacharelado (participantes da pesquisa e também pesquisadores) e a pesquisadora apresentavam suas escritas, imagens, trocavam procedimentos, analisavam conjuntamente o que lhes acontecia. Todos e todas passam a tecer o plano onde a pesquisa aconteceu, dobrou-se e desdobrou-se.

Durante a imersão e a decantação, algumas palavras-movimento se tornaram as linhas analisadoras, a saber, a) Acolher, esquivar e tentar, e b) diferir e afirmar-se. Ressaltamos que, a anatomia emocional, repertório teórico importante na construção da análise da experiência, será apresentada junto aos acontecimentos descritos e analisados em cada linha.

Uma análise

Apresenta-se, a seguir, o desenho de uma análise, entre tantas possíveis, com o que nos (pesquisadora, bailarinas e bailarinos) aconteceu. Nas problematizações iniciais da pesquisa buscava-se aprofundar na compreensão do que se borrava nos processos de criação no que tange às potências clinicas que apareciam, no que chamávamos na extensão de dispositivos clínico-poéticos. Olhar esse território entre clínica e arte nos interessava. As linhas de análise escolhidas para esse texto foram aquelas que visibilizaram esses pontos de contato, e que nos ajudaram a pensar em como construímos nossos dispositivos nesta interface seja na extensão, na pesquisa e/ou no ensino. Em especial, quando estamos no território da arte, da produção/criação nas artes da cena como terapeutas ocupacionais. Ao final da escrita do relatório de pesquisa chegamos a uma questão: Que é que pôde uma terapeuta ocupacional imersa junto às bailarinas e bailarinos em um processo de criação em dança? Essa, não será respondida no texto que segue, procurou-se dar a ver o processo de produção desta pergunta.

Acolher esquivar e tentar.

Esta linha se torna visível desde as observações dos movimentos da pesquisadora e das participantes realizadas em seus diários de campo. Percebeu-se que desde o início do acompanhamento do grupo da pesquisa foram acionadas, pela pesquisadora, metodologias conhecidas ao campo da clínica com práticas corporais em terapia ocupacional. Estas, decorrem da formação em anatomia emocional junto à Regina Favre, mas também, do repertório teórico-metodológico que se desdobra da filosofia da diferença. Uma forma de fazer, de sentir e de agir em terapia ocupacional consolidada nos últimos 15 anos. (Liberman, 2008; Liberman et. al, 2018/2022; Lima, 2019; Guzzo et al, 2018; Inforsato et al, 2017)

Notou-se que no decorrer dos primeiros encontros foi necessário desmanchar o fim e a finalidade para fazer aparecer os possíveis, em muitos sentidos, desde o objetivo de construir uma obra em dança no final do ano ao de ser a bailarina(o)/estudante que se destaca e/ou sustentar esse ou aquele lugar identitário com o qual venho me identificando, por exemplo. Foi importante tecer um ambiente vincular em que se pudesse desmanchar formas, ativar possíveis outras, e compor. Neste caso, compor movimentos dançados e problematizações de formas de viver. Neste espaço da pesquisa desejava-se ver o que morava no invisível desses corpos – bailarinos. Para tanto, em cada um dos encontros do grupo estudamos e praticamos a anatomia emocional.

Acolher

Os primeiros movimentos foram de reconhecimento. Observávamos como nos presentificávamos a cada encontro. (Diário de campo, 2019)

O trabalho de presentificação – como faço o que faço, aqui e agora – é parte do método do COMO desenvolvido pelo norte americano Stanley Keleman. O criador da psicologia formativai, propõe que compreendamos que o corpo se faz constantemente, em um processo continuo processando os muitos ambientes vinculares com os quais nos relacionamos. Para o autor, somos corpo, uma realidade somático-existencial, tudo que nos acontece está corporificado e em um processo contínuo de produção. Em suas palavras “o homem não é uma máquina com uma mente ou com um espírito (...)” somos “um processo vivo” (...) (Keleman, 1994, p.21).

Em sua metodologia observar como os corpos formam a si mesmos possibilita a apropriação e o manejo de si nos acontecimentos vividos. Com isso, seguimos formando quem somos em cada acontecimento, “a vida somática (...) são vidas separadas, conectadas pela memória, através de um sistema nervoso permanente. Temos a capacidade de formar muitos corpos, eus, personalidades e de ter muitas vidas no curso de nossa vida.” (Keleman, 1994, p.22)

A pesquisadora, terapeuta corporal e filósofa brasileira Regina Favre, propõe conexões entre o modo de pensar e trabalhar de Keleman e a filosofia da diferença, e associa o método do COMO à linguagem cartográfica, corporificando a observação, o reconhecimento e a problematização das linhas que constituem os corpos nos acontecimentos. Colocando especial atenção em seu trabalho nos processos de subjetivação contemporâneos e nas dobras de si, que cada um, pode, a cada vez, formar com. Para a autora,

Essa relação, ou vinculo formativo, em que se formam o pensamento e os corpos, se passa num campo real, de forças políticas. Inscreve-se no romance histórico-mundial, termo cunhado por Guattari (...) as vidas se fazem em múltiplas ecologias que se entrelaçam e precisam ser compreendidas em suas lógicas de poder. (Favre, 2021, p.133)

Com isso, a cada encontro com o grupo atualizava-se essa indicação: como fazemos presença, aqui e agora? Como fazemos o que fazemos nestas ecologias em que estamos?

Nos diários da pesquisadora uma anotação se repetia... “performam a si mesmos narrando suas histórias de vida” escolhiam trechos, imagens, situações importantes e, que se insinuavam no processo de criação como disparadoras. O que passou a surpreender era o que de si, era de todos e de todas. Um ambiente vincular se instaurava no que transpassava as narrativas pessoais. Em um dos encontros, por exemplo, a força do samba da Mangueira, vencedor em 2019, arrepia os corpos exprimindo o indizível daquele dia. (diários de campo, 2019)

Como fazemos corpo neste coletivo de ouvir-falar-mover? O exercício era o de no meio da fala pausar e levar a atenção ao próprio corpo, reconhecendo padrões cardiorrespiratórios, qualidade do tônus muscular em cada parte, organização da estrutura óssea e a percepção do ambiente pelos sentidos, assim como, que imagens apareciam, que sentimentos eram captados, dentre outros. Experimentava-se também imitar e fazer junto a forma do falante, co-corpar. Fazer, pausar e observar, refazer, e assim sucessivamente.

Pensou-se e construiu-se, então, a percepção e o reconhecimento de um corpo-processo, sempre se constituindo, se formando e desformando naquilo que lhe é possível nos encontros com o mundo, consigo mesmo. Em que emoções, pensamentos, ecologias socioculturais são imanentes, e se presentificam na anatomia. Um corpo que se define por ser “uma estrutura que bombeia o ambiente como expressão de sua presença viva” (Favre, 2021, p.56). Compreendendo que essa expressão de sua presença viva é a própria corporificação da diferença.

Nas palavras de Deleuze (1996):

Às vezes basta um gesto ou uma palavra. São os estilos de vida, sempre implicados, que nos constituem de um jeito ou de outro. (...) o estilo (...) é sempre também um estilo de vida, de nenhum modo algo pessoal, mas a invenção de uma possibilidade de vida, de um modo de existência. (p.126)

Cada sujeito ali presente, atualizava nas camadas, anatomicamente tecidas, as suas histórias e relações vinculares com o mundo, deixando visível a forma como pensa e sente modelada nos músculos e na estrutura óssea, nos tecidos moles e tubos flexíveis, nos movimentos viscerais, na circulação do pulso neural. (Keleman, 1992). Partiu-se, assim, do reconhecimento de que contrair e expandir são pulsos básicos que configuram o universo, e, portanto, também nos configuram. (Keleman, 1992). Concordamos com Favre (2021) “Corpos são brotações da biosfera, canalizações da vida. A vida quer prosseguir através dos corpos que ela mesma gera” (p.126).

Expandimos as diferenças que somos, contraímos para processar as diferenças que recebemos, e incorporá-las, passando pelo filtro de nossas singularidades, o que nos diferencia novamente, e devolvemos ao universo, multiplicando-o. Produzindo a diferença que somos e alimentando a multiplicidade da vida que se expressa diferentemente nos entes, vegetais, minerais, animais.

Expressão é aparecer, materializar, funcionar nos ambientes de que somos parte, produtores e produzidos. Com livros, palavras, gestos, emoções, trabalhos vários. Agir como parte. Sempre contendo o próprio processo dentro de suas bordas e conectando. Em diferentes permanências, durações e velocidades. (Favre, 2021, p.126)

Keleman tem uma linda imagem de que os corpos são rios de acontecimentos e imagens, o que quer dizer que pensamentos, sentimentos, ações, desejos, imaginações se tornam correntes de motilidade. Todos os tecidos que compõe o corpo, em sua cadeia de expansão e contração, constituem os pulsos de cada corpo, o que denomina excitação. Para ele, “os vários estados emocionais representam diferentes formas de excitação, diferentes densidades e intensidades” (Kelleman, 1994, p.27) Assim, o modo como cada um de nós secreta os diferentes pulsos do organismo vai mostrar como temos vivido nossas vidas. Somos, portanto, uma certa orquestração pulsátil a cada vez. (Kelleman, 1992; Liberman, 2010; Favre, 2021)

Acolhiam-se as palavras-corpo que surgiram nas narrativas partilhadas, problematizava-se se as formas dançadas decorriam delas, experimentava-se cada uma em seu próprio corpo, fazendo com isso, uma pequena comunidade. O que era comum saltava entre os corpos, transpassando-os. O acolhimento era corporificado, vivido junto.

Para Favre (2021)

A prática formativa ativa nossa potência de produção de corpo e de seleção de diferenças nos modos de corpar, dando continuidade ao impulso adaptativo evolucionário universal que atravessa as vidas em particular. (p.55)

As narrativas somático existenciais de cada um foram aparecendo e desmanchando a homogênea e identitária apresentação como bailarino e estudante. Aos poucos foi se tecendo um ambiente onde era possível performar a si mesmo tal qual se é, observar-se e encontrar-se com o outro.

Esquivar e tentar

Para fazer fugir imagens cristalizadas de si e exercitar a prática do ‘corpar’ neste coletivo, utilizamos, também, dos Somagramas. Esse, uma estratégia de desenho criada por Keleman por meio da grafia da imagem da forma que captamos em nós, a cada vez. Nas palavras de Kelleman (1995), “Um outro modo de tomar contato com seu processo é fazer um desenho (...) imagens somático-emocionais que revelam a camada pública ou privada”, com as quais, “você pode captar realística ou simbolicamente, o sentimento de sua história” (p.70). O exercício acontece na pausa para observação da forma como estamos fazendo algo, desenha-se em um papel, depois observa-se e refaz intencionalmente, muscularmente, o desenho no corpo. Intensifica-se a forma captada após o desenho no corpo, desintensifica-se, como em uma sanfona, indo e vindo entre as formas de si– contraindo e expandindo. Experimenta-se, com isso, uma apropriação e uma plasticidade (potência de criação) desse como que se fez ali. Neste exercício é possível captar as narrativas/imagens/sentimentos pessoais, sociais, culturais, ambientais secretadas na forma de si que se fez presente.

Quando de posse destas linhas que nos constituem, abre-se a possibilidade de corpar e deixar de ser vítima do que acontece, para desenvolver uma atenção ao acontecimento. Com isso, uma maior apropriação das potências de agir, de sentir e de pensar com o que nos acontece, abrindo espaço para a aparição e afirmação da diferença que somos.

Corpar significa, na linguagem kelemaniana, gerar corpo. Geramos, continuamente no tempo, em diferentes ritmos, o corpo que ainda não somos. Uma vez identificada a forma do comportamento que produz a experiência em questão, podemos iniciar uma artesania sobre ela. (Favre, 2021, p.57)

No grupo, com artistas da cena, essa potência se desdobrava também em formas dançadas que ganhavam força de expressão nos espaços de ensaio. A força de dançar fazia voltar-se a si, e desta, voltar ao dançar habitando diferenças na composição dos movimentos. Pequenos ritornelos dançados, uma artesania de si e de sua dança.

Aparecia na pesquisa a força que os processos de criação podiam gerar de convocação a rever-se, a colocar-se em crise, a reinventar-se, e a necessidade de saberes transdisciplinares para acolher e ajudar a mover a processualidade da vida pedindo passagem nos corpos. A análise do fazer singular, estratégia oriunda de certa maneira de fazer terapia ocupacionalii, ajudou a acompanhar cada bailarino, e foi apontando para pontos de paralisia das narrativas pessoais, culturais e sociais que apareciam nos corpos ao dançarem e o impediam. Os impedimentos apareciam nas travas para mover-se nos espaços de laboratório com a professora-orientadora, assim como, nas ausências ao trabalho, nas dificuldades de escrita de seus diários de processo, nos problemas de comunicação entre eles e a orientadora, nos machucados e adoecimentos variados.

Uma aliança se fez necessária neste ponto do trabalho, entre os saberes da dança e da terapia ocupacional, de forma a possibilitar a produção da vida e a composição de uma obra dançada. Do ponto de vista da pesquisa observou-se uma tentativa, um entre saberes.

Por outro lado, tais movimentos de acolhimento e de cuidado anunciaram o risco de captura pelas linhas duras do dispositivo poético-clínico que se armou, já que se poderia aprisionar as ações dos sujeitos nos fazeres e discursos da clínica, bem como, as da pesquisadora-terapeuta ocupacional. Foi necessário esquivar-se da clínica para poder cuidar no processo de criar. Como acolher a potência clínica que aparecia no fazer, esquivar-se de ser terapia e terapeuta, tentar um cuidar processual e no junto que se instaurava neste grupo? Um cuidar pela cooperação entre si?

A pesquisadora passou a se deslocar acompanhando as andanças e os fazeres de cada um, e seus movimentos distintos de criação, e também, a partilhar seu processo de invenção da pesquisa. O corpo-sujeito-pesquisadora se tornava presentificado e narrado também ao grupo, uma aproximação delicada, um esquivar-se necessário das categorias identitárias. Com isso, um pesquisar peripatético pareceu se instaurar. Foi necessário um exercício constante para esquivar-se da terapeuta e habitar um entre pesquisadora e cuidadora para dar a ver outra forma de estar junto, e acionar as potências, que vão convocar ambos a devir no cuidado, na criação e na investigação de si e do mundo. Para que isso fosse partilhado era preciso experimentar dizer de si (pesquisadora também) no processo, corpar presença junto com os outros, perceber-se nas suas formas somático-existenciais presentificadas no encontro com os outros corpos. Perceber, corpar, sanfonar, observar como faz aquilo que faz. (Kelleman, 1995)iii

O deslocamento nos procedimentos anteriormente imaginados, pareceu propiciar o aparecimento de um dispositivo que deixou ver e falar os corpos e suas singularidades, ativando a coexistência das diferenças no junto.

Esquivar-se das tentativas de captura pelo poder, que apareciam ligadas ao lugar da terapeuta, da pesquisadora, do estudante na universidade, da exigência de produtividade, da idealização da performance acadêmica, das desautorizações diante do que já se fazia antes no território profissional – como artista, das vivências de violências no espaço acadêmico, de racismo, LGBTfobia, e da discriminação de classe, foi igualmente importante. Trabalhou-se no reconhecimento, no acolhimento e nas tentativas para fazer variar as narrativas que aprisionavam, habitar a variação entre acabado e não acabado, forte e fraco, bom e mau, frágil e não frágil, mulher e homem, branco e negro, dentre outros. Era preciso viver isso em si, junto com os outros, cooperando, para fazer obra com a variação, e o corpo dançar a variação.

Tentar

Outro termo importante que apareceu nos estudos foi o de campo corpante. Para Favre, (2021) as “práticas e produtos no acontecimento grupal nos ensinam diretamente que estamos, sempre, dando corpo ao vivido e formando os ambientes de que somos parte.” (p.146). O campo corpante pode ser acolhedor ou não aos processos de existencialização, e com isso, cartografar e problematizar os processos de produção dos diferentes ambientes vinculares onde os participantes se encontravam, e que é que possibilitavam ou não, cotidianamente, foi imprescindível para o trabalho de apropriação de sua força vital. Seguimos Favre quando propõe que o trabalho grupal, conectivo, cooperativo, pode “dissolver o individualismo exacerbado do capitalismo contemporâneo em nós, amadurecer nossas formas de conexão, formar comportamentos e modos de funcionar em cooperação, como parte de processos maiores” (Favre, 2021, p.146).

Acionar o comum foi fundamental para corporificar movimentos dançados com as variações das histórias, memórias, repertórios vivos de cada um e de todos e todas. Observou-se que a cada descoberta nos laboratórios de criação, aqui compreendidos como grandes movimentos de expansão, se alinhava a necessidade de grandes movimentos de assimilação (contração), de pausas, o que aparecia nos sumiços das aulas, nos muitos cochilos nos intervalos, em um cansaço e lentificação nos corpos.

As primeiras construções cênicas para as avaliações de meio do ano foram marcadas por performances individuais no coletivo. Era preciso poder caber, afirmar-se em um ambiente vincular acolhedor às diferenças. Este fora um momento marcante para todos e todas as envolvidas no processo, de muita delicadeza. Apresentar-se e ao trabalho em processo. Uma obra, que afirma sua precariedade, já que é um recorte no tempo, pois, seguiria se fazendo. Uma forma cênica e existencial frágil. Desmanchavam-se ali, idealizações do que fosse espetáculo, ser artista, ser sujeito deste ou daquele modo, em favor da vida que pedia escuta e passagem. Por outro lado, na dificuldade desta hora teceu-se um território existencial que viria a ser a obra dançada. Um junto, um ao lado nas e pelas diferenças. Afirmava-se, também, assim, uma ética, uma estética, uma política.

Favre (2021) aponta o trabalho de Kelleman e sua anatomia emocional, como um importante intercessor na direção de práticas que potencializam a vida hoje, outro modo de conexão, de viver junto, de cuidados de si. Já que o autor oferece um modo de pensar a vida humana como um contínuo processo formativo. Com isso, foi possível pensar a força que essas apresentações tiveram no sentido de corpar vida e obra em sua processualidade. Um sentido que problematizava a vida cotidiana atual, o que talvez, explique as intensas emoções geradas naqueles dias. Nos diários aparecia como anotação frequente: “muito choro, muito abraço, muito amor compartilhado entre todos”. (Diários, 2019)

Tentar outro dançar

Kelleman nos diz que

como sujeitos, como processos biológicos, podemos ser e somos uma fonte de conhecimento real. Nossos corpos dão origem aos impulsos, às visões, aos códigos e às sociedades que tornam possíveis nossas vidas e relações. É desse solo biológico que brota o sentido do que chamamos nossa vida. (Kelleman, 1994, p.16).

No trabalho em dança, nos parece ser sobre essa matéria que os sujeitos se voltam, problematizando os sentidos habituais, explorando em si outros caminhos expressivos que abrem e fecundam o mundo com novos sentidos, problematizando os já instituídos. Entrar em contato com o que está gravado nesta matéria do ponto de vista da história ancestral do humano na terra, do solo biológico que carregamos de informações coletivas, bem como, do que se corporifica da história social, cultural, política, é intenso e exigente. Demanda trabalho sobre si, técnicas e procedimentos para dar desenho dançado as intensidades captadas pelos corpos. Intensidades que podem violentar os corpos, despedaçando-os no processo de criação, exigindo anestesiar os sentidos, segurar a percepção e a consciência do que se entra em contato para “dar conta de”. O trabalho com a educação somática abre um caminho para a escuta de si, do outro e do mundo, observando limites e manifestações criativas a cada vez, inventando procedimentos expressivos vivos e conectivos. Entretanto, importante destacar que isso não ameniza a violência das intensidades que se pode vir a encontrar no processo de criação, mas sim, permite outras formas de lidar, de se apropriar do vivido. (Angeli & Gravina, 2019; Gravina, 2017)

Diferir e afirmar-se

O nome próprio não designa um sujeito, mas qualquer coisa que se passa pelo menos entre dois termos que não são sujeitos, mas agentes, elementos. Os nomes próprios não são nomes de ninguém, mas de povos e de tribos, de faunas e de floras, de operações militares ou de tufões, de coletivos, de sociedades anônimas e de gabinetes de produção. (Deleuze, 2004, p.69.)

Eles e Elas são muitos. Escolho na escrita nomeá-los pelos movimentos de suas danças: Flanar, sambar, cultivar, sangrar, gingar, buscando com isso fazer fugir as categorias de homem e de mulher que aprisionam as pessoas nas narrativas. Nem ele(s), nem ela(s), uma vida e de todos nós simultaneamente. E, também, para dar corpo a vertigem sentida, acolhendo-a nas narrativas que os descrevem. Escolho, ainda, cores distintas no texto que se conectam às dos figurinos e das cenas dançadas no espetáculo.

Sambar (lilás), identifica-se como tendo uma história e gosta de narrar. Identifica-se como pessoa trans. Uma identidade que liberta e aprisiona. De pé, no chão, cai, levanta, caminha, pára, diz, silencia, reza, não reza. Salta então um verbo, “camuflar”. Camuflar, como modo de vida, como estratégia de sobrevivência. Camufla-se para os humanos e para as divindades, negocia com humanos e com divindades, existir me parece uma tarefa árdua. Não tem por onde escapar, tem de negociar com céu e terra, isso forma uma habilidade de trânsito. Transita por entre o céu e a terra, por entre o feminino e o masculino, por entre religiosidades, por entre famílias, por entre hinos religiosos e sambas, por entre. Uma riqueza de repertório vai se formando para poder existir. Diz: “quero trabalhar a relação com o papel picado que ao cair no chão vira corpo”. O movimento de juntar e picar papéis lhe acompanha. As vezes suas palavras são picadas também, rasga o corpo, corta a pele, para escrever nele outra história.

FIGURA 1 Montagem do espetáculo, o espaço de sambar, seus fios coloridos. Foto: Andréa Angeli, diários de pesquisa, 2019

Cultivar (marrom), tem a voz engasgada, embargada. A garganta ora grita ora silencia. Tem muito sono, e muito cansaço de tudo que recolhe do mundo em seu corpo. Um profundo desafio de dar voz ao invisível da narrativa pessoal que se conecta com as muitas narrativas e vozes silenciadas no mundo, por razões diversas. De seus olhos chora a si e ao outro, derrama-se na terra, manipula o barro. Mergulha-se no barro, vivencia a dor do silenciamento a flor da pele. Silenciamento da sua história, que é a de muitos. Limpa-se do barro, suja-se e limpa-se, muitas e muitas vezes. Quer multiplicar as cores de sua pele, quer corpar o Brasil, as brasilidades, as pessoas que o constituem, quer ter e dar voz ao invisível que violenta e é violentado. Costura. Planta. Cultiva. Convoca os xamãs, os orixás, cura. E faz com isso, dança.

Flanar(cinza) tem um sorriso frouxo, um olhar e uma doçura, um destrambelhar e um olhar forte, um vem e vai e os múltiplos modos de caminhar, uma criança, uma pessoa jovem, uma pessoa adulta. Tem uns cachos caídos para várias direções. Uma presença ziguezagueante. Um cheiro de perfume misturado com cigarro. Uma caneca de café na ponta dos dedos. Uma atenção aos detalhes, um apaixonamento com o frescor da vida que se exprime de diferentes maneiras, um sentir sensível aos mínimos detalhes. Encanta-se com sua árvore, suas folhas secas e a relação dos galhos e o céu. Tem muitas delicadezas, mas narrativas de si pouco delicadas e duras. ‘um vigor’ quando dança e uma voz que engasga. Tem vezes que as palavras parecem se embaralhar em cachos. Milita com suavidade nas questões relacionadas à orientação sexual.

FIGURA 2 Sala de ensaio, o espaço de cultivar e de flanar. Foto: Andréa Angeli, diários de pesquisa, 2019

Sangrar(vermelho), tem músculos tensos, rijos nos ombros elevados. De seus pés emergem raízes profundas, procura no fundo da terra camadas ancestrais de sua história. De sua pele emergem dores, feridas, arranhões de todo tipo. Em suas bolsas, sempre cheias de materiais para as diversas atividades de estudo, de trabalho, de ensaios, convivem lado a lado balas, doces e árvores desenhadas, genealógicas, imaginadas e galhos secos colhidos pelo caminho. Seu corpo exprime a dor e a paralisia, ao mesmo tempo em que movimentos firmes, fluidos e precisos. No percurso luta e luto. Linhas de costura e bordados a mão. Danças africanas e ballet.

FIGURA 3 Sala de ensaio, o espaço de sangrar. Foto: Andréa Angeli, diários de pesquisa, 2019

Gingar (verde) chega no horário, se aquece, faz café. Mochila, tênis, material para banho, comidas, ensaio. Relógio sincronizado. Olheiras nos olhos atentos, concentrados, sempre disponíveis. Prontidão. Sua presença corporal narra o esforço em viver. Silencioso e tagarela. Traz consigo imagens dolorosas de ser monstruoso, ameaçador. Encolhe-se e se fecha para não aparentar o tamanho e a força que tem. Vigor e extrema precisão aparecem em seu dançar, uma atenção a cada detalhe. Quando dança fica enorme em cena, anoto em meu diário.

FIGURA 4 Sala de ensaio, os fios de gingar. Foto: Andréa Angeli, diários de pesquisa, 2019

Essa pequena comunidade dançante, se diz no verbo, Diferir. Arrastados pela força de criação do espetáculo depois da primeira apresentação de meio de ano, os corpos bailarinos começaram a discriminar seu fazer cênico, cenas, cenário, adereços. Uma intensificação do trabalho ocorreu nesta hora, são tomados de excitação e o ambiente vincular é o que sustenta a passagem do corpo individual ao corpo cênico e vice-versa. Sustentar a presença viva e conectiva consigo e com o outro, lidar com seus limites pessoais e do grupo, e revendo, com isso, os desenhos do como fazer. Tudo isso fora uma grande tarefa.

Partindo da questão: que é que move sua dança? Colocam-se a narrar seus trajetos de vida com a dança, os enfrentamentos que fizeram para sustentar o desejo de ser profissional da dança, os apoios que tiveram no caminho e as alianças com espaços e modos de dançar que foram potentes. Para estes sujeitos dançar fora um caminho para existir. Suas histórias ressoavam em alguns pontos: nas violências sofridas e no silenciamento sentido ao longo da existência por questões étnicas, de gênero e/ou orientação sexual, bem como, pela escolha por dançar como profissão; na compreensão de si como sujeito latino americano e na dimensão política da arte; na necessidade vital de ser acolhido, respeitado e de se afirmar ser quem se é.

A obra dançada decorrente destas experimentações de si, em si com o mundo, movidas pelo dançar se desenhou em: um espaço circundado por terra em formato circular, em um canto os galhos de sangrar e sua saia vermelha, em outro cultivar saía da terra plasmando-se com ela e um broto nascido no processo de trabalho junto a sua saia de juta.iv Em outro canto vazando o círculo, as folhas de flanar teciam um dentro e fora do espaço, caminho por onde ele se movia com um tecido amarelo cobrindo seu rosto. Em outro ponto, os fios coloridos de sambar compõem com seus papéis picados no chão e os adereços de seus tempos na escola de samba. Por fim, traçando linhas pelo espaço onde fica o público, estão os fios de gingar, que transita por dentro e por fora do círculo. O público é colocado ao lado da borda com terra, ao redor do espaço cênico, em alguns momentos dentro e fora do espetáculo, de acordo com os movimentos dos bailarinos e das bailarinas. E a obra aconteceu em duas noites de apresentação.

O processo suscitou o acolher o que já vinha forçando o pensar-fazer como artistas e o perceber como cria, como faz para criar. E, mais profundamente, como faz para criar neste ambiente vincular, neste campo corpante que se teceu junto entre estes corpos. Nesta direção, deparar-se com o vivo em si e no outro produziu uma dobra importante nesta história, que fez aparecer a dimensão política do trabalho, já que

criam-se com isso territórios relacionais temporários, variados e variáveis. Nestes territórios se produzem sinergias coletivas, provedoras de um acolhimento recíproco que favorece os processos de experimentação de modos de existência distintos dos hegemônicos, valorizando e legitimando sua ousadia. (Rolnik, 2018, p.141)

Como se fez comunidade? Tratou-se de afirmar a vida, retomando sua potência tão expropriada de si nos tempos contemporâneos, tão cafetinada “pelo capital que tem nesse domínio uma fonte privilegiada.” (Rolnik, 2018, p.35)v. Tangenciar esta discussão no grupo favoreceu perceber a que se dava voz com seu dançar, uma voz que não era da narrativa pessoal, mas do que dela ressoava comum, do que dela dava a ver dos processos de subjetivação dominantes na atualidade e de suas resistências em curso. Sua voz era, assim, a voz de muitos, exatamente, por ser singular. “O modo de cooperação micropolítico gera uma força de metamorfose transindividual que cria novas cartografias, nas quais se plasma o direito à vida” (Rolnik, 2018, p.142-3).

O espetáculo fora marcado pela necessidade de cooperação entre vários, pessoas trouxeram a terra para cobrir o espaço cênico do Bombril, pás, baldes, água, junto com o grupo. Outras apoiaram na produção da lama que cultivar precisava para dançar. Papéis foram picados junto e fios coloridos e brilhantes constituíram outro espaço na terra, para que se movesse sambar. Com fios brancos e pretos artesanalmente colocados por muitas mãos em apoio teceu-se pelas arquibancadas e pela terra os trajetos de gingar. Galhos de árvores fincados na terra, criavam a atmosfera de sangrar. E folhas secas, espalhadas, e que precisaram de cuidados coletivos, traçaram o caminho de flanar. Ao longo do espetáculo um corpo e outro se moveu entre artistas e plateia. Uma bateria da escola de samba esteve ao lado do violão, violino, viola, tambores, regidos por uma cantora e regente – estudante do curso de música. A composição dos sons, das texturas, dos cheiros, dos corpos em movimento criou uma presença viva dos elementos cênicos em jogo, já que a fragilidade de um “ao vivo” produz um ambiente corpante com esta qualidade. Uma vida se teceu fragilmente e morreu a cada encerramento da apresentação.

Favre (2013) nos diz que as “ações não são movimentos no espaço, mas antes de qualquer coisa, organizações de si que geram tal ou tal efeito, que nos conectam com o ambiente de tal ou tal modo, nos fazem viver isso ou aquilo.” (s/p).

Essa linha de análise aparece na pesquisa como aquela a que se tenta dar a ver o entrelaçamento do singular e do coletivo no plano de imanência-obra que se fez. A força da obra no corpo dos que a encenavam e dos que a fruíam movia a pesquisadora a pensar no que se instaurava no entre obra e público. O que foi traduzido como produção do comum nos corpos. Uma comunidade se fazia a cada noite de espetáculo neste entre, e movia-se junto, em um contexto social e político no Brasil, incerto, com a subida ao poder da extrema direita. A fragilidade dos corpos que se moviam na circularidade do espaço cênico armado, convocava a todos e a todas, a um junto que resiste às opressões cotidianas.

O trabalho com a educação somática, por meio dos saberes da anatomia emocional, conduziu a uma condição de expressividade, de apropriação da ação dançada, de constituição vincular de um junto não idealizado, até a sustentação de uma obra-processo. Apresentou-se o espetáculo e o coletivo se desmanchou em nome de outras comunidades por vir.

Sonhar: pequenas notas finais

“Eu quero é viver pra ver qual é E dizer venha pra o que vai acontecer”

(Arnaldo Antunes, Envelhecer)

A pesquisa coaduna e fortalece um movimento de aproximação com o campo das artes desde a terapia ocupacional no Brasil que já vem sendo tecido há mais de 20 anos, possibilitando acesso a fruição e produção cultural, participação social, e com isso, transformações e ressignificações da vida cotidiana à diferentes populações. Uma aliança que potencializou práticas voltadas a afirmação de modos de existir colocados à margem da ordem dominante de subjetivação, bem como, vem problematizando nas formulações contemporâneas deste campo como nos propomos a viver juntos e juntas nestes tempos. De outro lado, estar ao lado dos artistas em suas ações, acompanhar a força dos processos de produção da obra, suas ondas vibrantes e deslocamentos necessários, provocou aprender outras camadas dos processos de criação em arte e de suas reverberações na vida. Bem como, compreender que o entrelaçamento dos saberes da terapia ocupacional com as artes da cena pode vir a criar um saber transversal, desde as práticas de educação somática, que fortalece e amplia ambos os campos em suas potências éticas, estéticas e políticas. Já que cria condições de possibilidade para a emergência e corporificação da obra pelo trabalho com os sujeitos-artistas da dança.

Ainda, percebe-se com esse trabalho que na produção desta diferença de si para si e para o mundo encontra-se um rastro do que seja a poética da existência, o novo que cada ente produz em termos de modos de existir no mundo. Afirmação da novidade que cada ente é que vem a multiplicar a vida, ela mesma de todos nós. Vida essa que pode ser intensificada, condensada e partilhada na forma de obra de arte.

Notas

iPara maior compreensão de seu trabalho vide: KELEMAN, S. Anatomia Emocional. São Paulo: Summus,1992. Pode-se, ainda, conhecer esse movimento pelo Centro de Psicologia Formativa no Brasil. Disponível em: http://psicologiaformativa.com.br/e/ou pelo trabalho do Laboratório do Processo Formativo, coordenado por Regina Favre. Disponível em: https://laboratoriodoprocessoformativo.com/. Regina Favre foi a principal tradutora dos livros de Stanley Keleman. e importante formadora nesta linguagem corporal no Brasil.

iiTrata-se, aqui, de um fazer e um pensar terapia ocupacional, que “investe na atividade humana como território existencial onde a vida acontece e a produção de vida se dá pela potência dessas atividades no mundo” (Albuquerque et.al, 2021, p.3). Desta forma, estuda e cartografa as atividades, em suas dimensões sociais, culturais, históricas, bem como, analisa/problematiza/cuida suas diferentes expressões singulares na composição de uma vida.

iiiO método do COMO, foi criado por Stanley Kelleman e está descrito em especial no livro corporificando a experiência, editado pela Summus no Brasil e publicado em 1995.

ivA saia de cultivar permanecia sobre um pedacinho de terra trazido para a sala de ensaio, em uma das voltas de um final de semana, ela percebe nascer dentro de sua saia um broto de uma planta. Ela passa a cultivar o broto como parte de seu trabalho cênico de criação, e leva-o em um pequeno balde para junto de sua cena final.

vNão é o foco neste artigo desenvolver esta discussão, para esta, sugere-se: Rolnik, S. Esferas da Insurreição – Notas para uma vida não cafetinada. N-1 edições, 2018.

Fonte de Financiamento:Este artigo é parte da pesquisa: “Potências clínicas nos corpos em criação nas experimentações artísticas do programa TOCCA.”, que durante o ano de 2020, contou com apoio ao pagamento de um bolsista pelo Financiamento à Pesquisa (FIPE-SENIOR) do Centro de Ciências da Saúde da UFSM.

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Recebido: 25 de Março de 2022; Revisado: 28 de Junho de 2023; Aceito: 27 de Julho de 2023

Andréa do Amparo Carotta de Angeli. Universidade Federal de Santa Maria. Docente do Departamento de Terapia Ocupacional. Líder do EspaçoCorpo: Núcleo Transdisciplinar de estudos em Dança e Terapia Ocupacional. Integrante do grupo Atividades Humanas e Terapia Ocupacional. (AHTO). ORCID:https://orcid.org/0000-0002-2406-5920E-mail:andrea.angeli@ufsm.br.

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