Introdução
O presente estudo situou-se temporalmente no momento pandêmico da COVID-19, de março de 2020 até março de 2022. Nele, tivemos como objetivo compreender como a pandemia reverberou nas práticas de cuidado para homens brasileiros, tanto para si quanto para o outro.
Ao considerar a necessidade de distanciamento social estimulado por entidades/organizações de saúde e cientistas, nos balizamos em duas dimensões para auxiliar ao que nos propomos a fazer: a primeira seria a interferência da pandemia no cotidiano de homens brasileiros na relação com práticas de cuidado em saúde, considerando as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS) e do Ministério da Saúde, as reverberações dos discursos políticos e midiáticos; e a outra dimensão diz da relação dos homens com as atividades domésticas, devido a necessidade de distanciamento social, as pessoas precisaram ficar em suas casas, que provocou a ida de uma parcela dos homens para o convívio familiar, para os afazeres domésticos, por vezes, o trabalho também foi transferido para a casa.
Sob a lente do construcionismo social, utilizamos a perspectiva das práticas discursivas (Spink et. al., 2013) para nos auxiliar nestes questionamentos. A princípio situaremos o cenário que propiciou chegar às dimensões supracitadas.
Em dezembro de 2019 acompanhamos notícias vindas da China acerca de um vírus, SARS-CoV-19, que apresentava um baixo risco de vida ao se contaminar, mas com alta taxa de transmissibilidade, o que poderia configurar o cenário global num contexto de pandemia com significativo número absoluto de mortes. Em março de 2020, o vírus é registrado no Brasil e uma das primeiras mortes registradas foi no Rio de Janeiro, a vítima era uma diarista que havia se exposto na casa de seus patrões recém-chegados da Itália (Melo, 2020). Tal cenário representaria uma amostra de qual seria o principal público atingido pela pandemia no país.
O contexto socioeconômico brasileiro, marcado por uma desigualdade social histórica que passa pela falta de políticas de proteção social, favoreceu que pessoas mais vulneráveis socialmente fossem forçadas à exposição do vírus, como trabalhadores ligados aos serviços essenciais, principalmente mulheres negras (Faustino & Gonçalves, 2020).
Associado a marcadas desigualdades, Boaventura de Sousa Santos, em “A cruel pedagogia do vírus” (2020), resgata diversas problemáticas situadas no que chama de “ao Sul da pandemia”, termo este utilizado para além de uma condição geográfica, que envolve fatores do espaço-tempo político, social e cultural, marcado por vivências precárias em nome de uma estabilidade econômica, um cenário que evidencia a exposição ao vírus para manutenção de privilégios de uma parte da população em detrimento de outros grupos sociais.
Associado a um conjunto de práticas de saúde desenvolvidas para contenção do vírus, a Organização Mundial de Saúde (OMS) propôs um alinhamento mundial para preservação da vida, baseado em detectar, isolar, testar e tratar para evitar transmissão comunitária, enquanto não houvesse vacinas para uma contenção mais efetiva (World Health Organization [WHO], 2020). Tal organismo apontava, ainda na fase inicial da pandemia, a necessidade de atenção para uma linha tênue entre sustentar medidas protetivas para não propagação do vírus e a garantia do funcionamento econômico atrelado ao direito à liberdade e o direito à vida das pessoas. Neste sentido, cada nação precisaria pensar estratégias coletivas para não haver agravamento da quantidade de casos e consequente intensificação da pandemia.
No Brasil, o cenário no começo da pandemia foi marcado pela incerteza. A princípio, por um não posicionamento do Ministério da Saúde frente às linhas de cuidados efetivas para prevenção/proteção e quando se iniciam os direcionamentos para tal, já expressos em pesquisas e dados empíricos por outros países, surgem sob interferências negacionistas por partes do governo federal, que colocam dúvidas sobre as práticas de prevenção do vírus (uso de máscaras, distanciamento social), e consequente deslegitimação de uma condução única para redução de casos de contaminação, no qual afirmavam a necessidades de que os serviços e indústrias não parassem de funcionar para que o país não entrasse em colapso econômico (Sociedade Brasileira de Infectologia [SBI], 2020).
A associação das práticas de prevenção para não propagação do vírus como um movimento partidário marcou as discussões que, para a maioria dos países do mundo, tratava-se de um assunto de saúde pública e com principal intuito a preservação de vidas. No Brasil ganhou contornos de relativização política, onde disputas de discursos polarizam a percepção e práticas de cuidado frente a tal cenário (Medrado et al., 2021).
Nestas disputas discursivas, as possibilidades de preservação da vida na pandemia já nasceram viciadas por interesses distintos, e no sentido de sustentar determinado ponto de vista acerca da pandemia, surgiram nos discursos do presidente do país invocações de uma perspectiva que flerta com o que conhecemos como masculinidade hegemônica (Connel, 2003). Os discursos propagados convidam a lidar com o vírus segundo uma dimensão hegemônica do que seria ser homem, em falas como: “No meu caso particular, pelo meu histórico de atleta, caso fosse contaminado pelo vírus, não precisaria me preocupar, nada sentiria ou seria, quando muito, acometido de uma gripezinha ou resfriadinho” (“BBC News”, 2020). Ou "Não adianta fugir disso, fugir da realidade. Tem que deixar de ser um país de maricas. Prato cheio para a urubuzada que está ali atrás. Temos que enfrentar de peito aberto, lutar." (Gomes, 2020). Vale destacar que, mundialmente, são os homens que mais se expuseram e consequentemente foram os que mais morreram pelo vírus (Medrado et al., 2021).
Os Distintos Atravessamentos das Masculinidades
Este contexto perpassa por atitudes bastante marcadas de distinção e exclusão às pessoas que estão às margens, seja socialmente, economicamente, por distinções de raça, e encontram nas expressões do gênero masculino a reificação de uma norma hegemônica de ser, como se o modelo de masculinidade precisasse assinalar estritamente quais são as expressões de vida que são dignas de ser vividas e eliminar as que fogem a tal normativa, justificando assim atos de violência. Como as práticas da “casa-dos-homens”1 descrita por Welzer-Lang (2001, pg. 462), no qual deixa bastante evidente que as práticas sexistas violentas estão como dogmas, como parte do processo de se tornar homem, num circuito de auto validação entre eles.
Os estudos sobre as masculinidades começaram a emergir a partir de estudos e movimentos feministas ocorridos desde a década de 1960, para dizer sobre o problema histórico do sexismo presente. Silva (2006) assim como outros autores (Badinter, 1993; Almeida, 1995) resgatam tal problemática, para a qual trazem para reflexão o que ficou conhecido como a crise da masculinidade. Esta representação ganhou volume em um movimento que surge em alguns países da Europa e Estados Unidos da América conhecido como estudos masculinistas. Tais estudos tinham como foco uma busca, um resgate do que seria ser homem, com a produção de escritos, criação de clubes de recuperação da masculinidade e um afastamento da pluralidade de gênero que poderia desvirtuar o masculino.
Parece-nos, ainda sob referências da literatura masculinista, que a categorização do que é ser homem se sustenta por um conjunto de fatores e condições que ganham sentido quando se atribui características ditas não femininas como: não chorar, não demonstrar sentimentos que possam expressar fragilidade, não ser fraco, covarde ou perdedor, entre outras definições comportamentais (Silva, 2006).
Botton (2020) traz para reflexão que reconhecer a masculinidade a partir de noções dicotômicas do sexo transita por um campo conceitual afirmado na heteronormatividade, que de certa forma, contribui ao sustento de posições hierárquicas firmadas historicamente. A partir destas colocações, Botton (2020) afirma que “não há na ideia de masculinidade ou masculinidades nenhuma materialidade prefigurativa ou elemento extra empírico que o assegure enquanto fato social teoricamente auto evidente” (pg. 15). Estas constatações enunciam uma fragilidade epistemológica acerca dos estudos masculinistas, que nos convoca a evidenciar tal crítica e a resgatar outros atravessamentos a fim de superar esta perspectiva ainda muito presente no comportamento dos homens.
Os estudos de Connell (2003) contribuíram para produção de críticas aos estudos masculinistas com seu trabalho sobre o termo masculinidade hegemônica. Este conceito contribui para evidenciar uma distinção do termo homem, antes como condição inquestionável nas práticas e relações, como sujeito universal, e faz emergir as diversas possibilidades de masculinidades.
Em posteriores produções, Connel e Messerschmidt (2013) revisitam o próprio conceito para reformulá-lo, a fim de considerar que há um modelo mais complexo de hierarquia de gêneros, a considerar os atravessamentos das mulheres e suas problematizações nas interrelações sociais de gênero ao entender e abarcar que ambos estão como em campo relacional, assim como a dimensão espacial e geográfica são determinantes para distintos arranjos familiares, comportamentais, legais, entre outros, e a consideração da interseccionalidade, que também atravessa as relações entre homens situadas por atravessamentos de classes sociais, etnias e a própria constituição dos gêneros, demarcando espaços e reiterando hierarquias firmadas em relações de poder.
No artigo “Por uma matriz feminista de gênero para os estudos de homens e masculinidades”, Medrado e Lyra (2008), à luz da convergência entre o pensamento feminista e as transformações necessárias para o processo de ressignificação das masculinidades, fazem evidenciar que as discussões sobre o feminismo se pautavam em questões de gênero justamente para assinalar que constructos afirmados a partir de relações biologicistas não contemplam os desdobramentos das desigualdades, seja em gênero, étnico-raciais ou de classes.
Os autores Medrado e Lyra (2008) trazem a produção histórica do feminismo como produção de saberes fluidos, com a devida atenção para não difundir num movimento essencialista, visto que existem diversas formas de estar no feminino, a considerar importantes colocações acerca de condições étnico-raciais e de classe, que reverberam de forma interseccional nas questões de gênero, que atravessam distintos âmbitos como políticas identitárias particulares, liberdade de participação política e social, salários equitativos, relações balanceadas de poder, etc.
As discussões sob a perspectiva de gênero trazidas por Medrado e Lyra (2008) nos elucidam que a dimensão relacional contida neste campo possibilita desconstruir argumentos culpabilizantes aos indivíduos, a contribuir para identificação sistemática de problemas estruturais contidos nas desigualdades. Ser/Estar homem não justifica sustentar as desigualdades, tampouco desresponsabilização individual frente às relações de forças estruturais presentes.
Procedimentos construtivos: as pessoas envolvidas, nosso referencial teórico e o método
O cenário pandêmico nos forçou a estar em modos relacionais bastante peculiares. Embora já existissem práticas virtuais como videoconferências, compartilhamento remoto de dados, trabalho remoto, tais práticas eram mais direcionadas a ambientes da tecnologia da informação e algumas outras áreas correlatas. Quando adentramos ao tempo de distanciamento social, estas práticas ampliaram e possibilitaram novos arranjos relacionais nas mais variadas instâncias.
Contudo, este acesso não se estendeu a toda população, visto que a distinção de classes sociais marcou lugares de privilégios para viabilidade de trabalhos e preservação da saúde pelo distanciamento social, muitas pessoas de classe mais baixas, principalmente mulheres negras, tiveram que se expor em serviços sub-remunerados, chamados de essenciais, para manter seu sustento e de suas famílias (Faustino & Gonçalves, 2020).
Neste sentido, para viabilização deste trabalho utilizamos as relações virtuais como estratégia de contato frente ao contexto pandêmico. Nos referimos na participação de homens dispostos a refletir sobre o tema proposto, homens estes que compõem um grupo terapêutico que discute as masculinidades e suas reverberações no dia a dia.
O grupo pelo qual vieram os entrevistados surgiu ainda de forma presencial e independente na cidade de São Paulo, conduzido por dois facilitadores psicólogos que utilizam da abordagem humanista, onde semanalmente desde 2018, se encontram com pessoas dispostas a problematizar suas vidas sob o atravessamento das masculinidades, com acolhimento de situações de sofrimento e transformações de práticas machistas impregnadas nas ações cotidianas. As pessoas que participavam do grupo presencial eram predominantemente homens brancos de classe média, de idades variadas, na cidade de São Paulo.
Com o advento da pandemia, este grupo migrou para encontros virtuais gratuitos disponíveis para todo o Brasil, com divulgação em parcerias nas redes sociais. Embora o perfil em sua maioria seja ainda de homens brancos de classe média da região sudeste, há variações entre os integrantes, que abarcam outras configurações de classe, cor e orientação sexual, com encontros distintos entre si, seja entre os participantes ou sobre os assuntos.
Referente aos participantes, salientamos que, embora haja correlação do tema sobre as masculinidades entre a pesquisa e o enredo que mobiliza o grupo, o conteúdo disposto nas questões das entrevistas não faz referência diretamente ao que se trabalha em grupo terapêutico. Contudo, não nos eximimos de atravessamentos que poderiam surgir de forma espontânea durante as entrevistas, a fazer valer a produção de sentido disposta nestas possíveis conexões, resguardados os devidos cuidados éticos com atenção aos mesmos.
Este conjunto de pessoas também dispõem de um grupo de WhatsApp para melhorar os combinados das datas dos encontros. No WhatsApp, até o presente momento, existem 236 participantes de todo o Brasil e de algumas partes do mundo. Quando há os encontros virtuais, participam uma média de 50 pessoas.
Para estar em contato com os participantes, dispomos de um convite virtual veiculado para o aplicativo WhatsApp do grupo terapêutico de homens, onde expressamos o propósito da entrevista, assim como o tema abordado e o motivo de convidá-los para a participação, além de apresentar outros elementos mais pragmáticos como o modo realizá-la, o tempo, Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), dados do pesquisador, instituição acadêmica associada ao pesquisador. O convite foi previamente enviado aos facilitadores do grupo com pedido de autorização antes mesmo de expor ao grupo, a fim de garantir total abertura e livre demanda para as pessoas participantes. Reiteramos que a participação neste trabalho não tem conexão com a oferta terapêutica proposta pelos facilitadores, portanto não há nenhuma interferência, pelo menos de forma direta, no processo terapêutico de cada pessoa no seu percurso dentro dos grupos virtuais.
A partir destas mobilizações, tivemos como participantes seis pessoas atuantes neste grupo terapêutico de homens e todas estas pessoas que aceitaram participar se consideram brancas, heterossexuais, duas delas possuem renda salarial familiar de 3-6 salários-mínimos e quatro deles ganham acima de seis salários-mínimos.
Frente à dimensão das pessoas que se dispuseram a discutir o presente tema, uma característica a se observar diz do perfil homogêneo dos participantes em relação a raça/etnia, classe social e orientação sexual, elementos estes que também correspondem à maioria dos participantes do grupo terapêutico. Este contexto nos chama atenção, que apesar de ser um grupo gratuito e aberto a todos, o mesmo se mantém hegemonicamente branco e heterossexual, tendo uma maior variação na dimensão de renda apenas. Ao menos, se houver pessoas que se reconheçam para além destes marcadores, são pessoas que não se manifestam.
Para alcançar o que propomos, nos baseamos nas Práticas Discursivas estruturadas por Spink e colaboradores (2013), num exercício de delinear uma abordagem teórico-metodológica que se estabelece de forma social, dialógica e implicada como linguagem em uso. Este fenômeno sociolinguístico que atravessa o cotidiano através de narrativas, argumentações, conversas, entre outras, fazem-se como repertórios transitórios a depender dos elementos presentes no ato em que se realizam. Para melhor elucidar, os autores elencam três dimensões complementares, sendo linguagem, tempo e história, e pessoa.
Sobre o tempo e a história, estão como elementos que compõem os repertórios interpretativos, mais precisamente para melhor elucidar os contextos dos sentidos expressados. Neste aspecto, Spink e colaboradores (2013) propõem um arranjo de análises como: tempo longo e as marcas histórico-culturais, tempo vivido e os processos apreendidos durante a socialização, e o tempo curto composto no processo dialógico. Este arranjo favorece a percepção e compreensão das diversidades e permanências presentes nas construções linguísticas.
A partir das reflexões dos tempos dispostos nos repertórios linguísticos dos participantes, associamos as dimensões de tempo longo como a dimensão histórica que se afirmam tanto sobre as masculinidades, quanto sobre as práticas de cuidados domésticos historicamente problemáticas, associadas ao universo feminino. Embora haja outras conotações, como a ideia de complementaridade dos sexos, ainda se sustenta paradoxos a partir de uma tradição funcionalista sobre a dicotomia entre atividades produtiva x reprodutiva (Hirata & Kergoat, 2007). A narrativa sobre o tempo vivido, aqui apresentado como o tempo transcorrido no contexto pandêmico, estimulado por cada narrativa apresentada e suas linhas, disruptivas ou não, destes constructos hegemônicos históricos aqui evidenciados pela dimensão do tempo longo, e as dimensões do tempo curto, onde, a partir dos discursos nas entrevistas, se apresentam as reafirmações ou rompimentos, as vezes contradições acerca destes constructos.
Em relação à pessoa, referenciada pela perspectiva construcionista, inspirado num caráter relacional, suscetível às relações sociais como o constante processo de negociações, de trocas simbólicas, de interpessoalidade, nos é enunciada a dimensão do posicionamento. Este expressado em compreender como cada pessoa se posiciona ao situar sua construção linguística, podendo atribuir diferentes linhas argumentativas a depender do contexto inserido.
Por propor uma análise discursiva, consideramos a utilização do recurso de entrevista semiestruturada sob a perspectiva do construcionismo social, baseada em sete temas abordados: 1) medidas sanitárias, 2) prevenção contra o vírus, 3) rotina, arranjo familiar e dimensão afetiva, 4) compreensão das práticas de cuidado, 5) gênero e práticas de cuidado, 6) cuidado de si e do outro, 7) o grupo terapêutico no contexto da pandemia.
Práticas do cuidado em saúde na pandemia e as relações de gênero
A dimensão do cuidado em saúde foi por nós resgatada pelo momento pandêmico vivido ter demandado intervenções diretas nas rotinas das pessoas baseados em práticas de prevenção e preservação da saúde, inevitavelmente, demandou cuidados para si e para os próximos.
As pesquisas no campo do cuidado em saúde demonstram um consenso de que homens buscam serviços de saúde apenas quando estão em estágio avançado de doenças, estimulados principalmente por alguma figura feminina, como se houvessem uma desapropriação do assunto (Leite et al., 2016; Separavich & Canesqui, 2013; Silva & Macedo 2019).
A falta de espaços que problematizem o uso dos serviços para a produção de cuidado e a forma com que se constrói o uso dos serviços para este público ainda se mostra como um desafio a ser superado, como se o estado de vulnerabilidade representasse um estado de fraqueza, como se aquela situação afirmasse um lugar de passividade, lugar este de não homem. Leite e colaboradores (2016) nos relatam que, para homens usuários do Sistema Único de Saúde (SUS), estar no uso deste serviço é uma condição que precisa ser sanada o mais rápido possível, como se estar ali reforçasse condições de impotência que fogem ao que se espera de um homem.
A desapropriação com as dimensões do cuidado, aqui representado na categoria saúde, corrobora com o processo histórico-cultural do lugar dos homens como o suporte da família, ou o que não pode estar vulnerável, o que não sente dor (Welzer-Lang, 2001; Botton, 2020; Connel & Messerschmidt, 2013). Tais construções estimuladas no processo de formação destas pessoas reverberam em como percebem seu estado de saúde, no qual aumenta-se o limiar de resistência para entender qual o momento de procurar ajuda (Leite et al., 2016). Neste sentido, o olhar para si se reitera em alguns entrevistados quando abordamos a tal assunto.
Utilizaremos as iniciais dos nomes para identificação dos entrevistados. Para A., hoje com 37 anos, casado e com uma filha de cinco anos, buscar cuidado para si foi percebido na intensificação das relações entre membros de sua família, e consequentemente a legitimação da necessidade veio em momento emergencial.
O cuidado próprio meu, e aí acho que vem da... e aí acho que vem como uma... já não é mais um cuidado preventivo, já é um cuidado que tem que ter, porque algo já bateu na porta e está quase arrebentando ela. (A., entrevista do dia 9 de fevereiro, 2022)
Já para B., hoje com 40 anos, com uma companheira e uma filha com 14 anos que mora com a ex-mulher, buscar cuidado para si neste contexto em saúde esteve associado em fazer terapia frente à separação matrimonial intensificada na pandemia, que chegou a um extremo.
Pesquisador: Você acha que o fato de ter essa mudança na pandemia, de vocês estarem mais próximos, de alguma forma acabou tensionando para que algo acontecesse?
B: Sem dúvida. Porque a partir da hora... eu já vinha de um relacionamento problemático, quando a gente se mudou pra João Pessoa, era como uma última esperança. Aí na hora que entrou tudo, parece que catalisou, não teve mais nem essa tentativa, só foi não, não, não mesmo.
Pesquisador: E como foi pra você resolver buscar a terapia?
B: Eu comecei a ficar muito ansioso dentro de casa, sempre fui ansioso, mas comecei a encarar alguns sintomas de pânico, daí eu procurei um psiquiatra, porque eu queria algum antidepressivo, ansiolítico pra conseguir me manter ali. E por sorte eu fui num psiquiatra muito bom, que eu já havia conhecido no centro de umbanda, e aí ele falou sobre como tomar e a importância de fazer terapia, então “vai fazer terapia”.
Pesquisador: Você acha que o gênero interferiu na dimensão de cuidado durante a pandemia?
B: Ser homem não fez diferença para eu buscar terapia, se fosse uma ameba eu ia buscar terapia naquele momento, mas eu acho que ser homem desenrolou outros pensamentos, outras coisas a serem analisadas, mas não foi o meu gênero que me empurrou para a terapia, não. (B., entrevista do dia 04 de junho, 2022).
Outro entrevistado resgatou essa dimensão de buscar cuidado para si também a partir da preocupação em estar bem para cuidar do outro. No caso, após D. de 37 anos, casado e já com um filho de 4 anos, saber que teria a segunda filha, resolveu fazer avaliação da saúde, no intuito de estar em sua melhor formar para ofertar o cuidado à recém-nascida. Ao praticar um cuidado preventivo em atenção à filha, acaba por descobrir um câncer que foi tratado e curado de forma adequada, justamente por ter sido descoberto com antecedência:
... e eu fiz a mesma coisa quando minha filha nasceu. Então, apesar de desafios de rotina, de ficar alertado, de poder fazer atividades para mim, ter conseguido fazer um checkup e identificar o câncer no começo que podia ter complicado muito por ser um câncer silencioso, pra mim já evidencia processo de autocuidado (D., entrevista do dia 03 de fevereiro, 2022)
Para D., o desejo de cuidar do outro neste contexto pandêmico, além de atravessamentos outros como a perda do pai já idoso durante a pandemia, além da descoberta do câncer em exames preventivos, escuta atenta ao outro, terapias e maior disponibilidade para olhar a si proporcionou maior sensibilidade para estar atento à sua saúde, algo não convencional para muitos homens na sociedade:
Eu acho que a pandemia trouxe uma dimensão de cuidar de muitas outras coisas além de mim. Eu acho que o câncer que eu tive foi um acúmulo mesmo de experiências estressantes, existe um traço genético, existe uma condição ambiental, mas eu acho que eu vivi picos de estresse que não baixavam, não diminuíam assim muitas pressões. Então eu acho que eu comecei a fazer um processo de cuidado mesmo começando pela minha relação com a esposa, então nesse ano passado inteiro de 2021, nós fizemos terapia de casal e a terapia de casal começou a evidenciar a necessidade da gente se cuidar. A terapeuta de casal acompanhou todo o processo da cirurgia da minha filha, da minha cirurgia, do meu tratamento e no meio disso, um casamento também. O casamento é uma nitroglicerina né, porque ela traz a os meus problemas, os problemas dela numa combinação doméstica. E a terapia de casal foi muito importante para a gente conseguir aguentar o peso da vida e começar a cuidar da nossa relação e eu, em paralelo, com o processo terapêutico (D., entrevista do dia 03 de fevereiro, 2022).
Estar em casa, visto a necessidade de se resguardar, tomar medidas protetivas como uso de máscaras, higienização de utensílios que vêm da rua, olhar para a relação com os seus para a preservação da saúde mental se mostrou como atenção que fugia ao que se acostumou a entender por práticas de cuidado em saúde, e no relato dos participantes esta dimensão se mostrava difícil para se perceber, mesmo com todos eles sendo a favor das medidas sanitárias sugeridas pela OMS: “E também foi um período muito estressante. Já passa daquele período que: - Beleza, estou tomando cuidado, estou tomando cuidado, mas espera aí, o que a gente está fazendo mesmo?” (A., entrevista do dia 9 de fevereiro, 2022)
Questões de gênero na relação público x privado
Historicamente, por influências do patriarcado, estabeleceu-se valores ao desenvolvimento industrial e econômico que firmaram e delimitaram os espaços público e privado, sendo o espaço público marcado pelos assuntos cívicos comuns a todos e o espaço privado aos assuntos particulares. Embora houvessem as afirmações e conquistas de direitos civis, estes estiveram restritos aos cidadãos ativos, ou seja, homens brancos da classe burguesa. Consequentemente, eram excluídas desse processo mulheres, pessoas estrangeiras, negras, enfermas, crianças, pobres, por estarem como cidadãos passivos, impossibilitados de exercer tais direitos (Brullet, 2010; Fraser, 1992; Pateman, 1993).
Baseado neste contexto sócio-histórico, trazido por Brullet (2010) como contrato social, as mulheres foram colocadas a ocupar os espaços privados, como uma “função principal familiar de se ocupar dos cuidados da vida diária das pessoas do grupo familiar” (p. 54). Tal associação é também trazida por Tronto (1993) sobre o atravessamento moral associado a este desígnio como algo valoroso, específico a tal gênero.
Com a recorrente influência dos movimentos feministas por todo o mundo, há crescentes mudanças nestes cenários com crescentes participações de mulheres nos espaços públicos, alçando trabalhos remunerados fora de suas casas, além de direitos civis/trabalhistas conquistados. Inclusive no Brasil tivemos discussões e conquistas de políticas de seguridade social e do trabalho em busca de conciliar, igualmente entre os gêneros, a família, o trabalho e a vida pessoal. Contudo, os efeitos esperados na aplicação dessas políticas e leis ainda se mostra aquém do seu propósito (Lira, 2023; Bruschini & Ricoldi, 2012)).
Hirata e Kergoat (2007) relatam estas mudanças de paradigmas, como a saída do modelo tradicional para o de conciliação e por fim o da delegação2, que apesar das novas significações, ainda se sustenta o mesmo paradigma de divisão sexual do trabalho e a ocupação/relação dos homens nas atividades domésticas ainda permanece baixo em relação às mulheres.
Em produções científicas existem poucas discussões acerca da interação das masculinidades neste cenário particular do cuidado, seja sobre a paternidade, ou até mesmo o cuidado para com a casa, no contexto de limpeza, organização, divisão e apropriação de tarefas domésticas. Silva & Macedo (2019) produziram uma revisão sistemática dos termos masculinidade e cuidado, com foco nos descritores - cuidados domésticos e paternidade - que nos sinalizam pistas de como tem se dado o diálogo destes termos no contexto científico. Neste sentido, trazemos para discussão essa problemática pela correlação com o contexto em que os entrevistados estiveram inseridos, referente ao recorte espaço-temporal da pandemia.
Das poucas produções acerca do assunto, é marcante a noção de que quando se envolve práticas de cuidado doméstico ou paterno como atravessador nos assuntos das masculinidades, tal termo passa impreterivelmente por pluralização de sentidos e formas de expressão destas mesmas. Noções como de Connell & Messerschmidt (2013) nos apresentam as masculinidades subalternas e desviantes e suas expressões que escapam à norma da masculinidade hegemônica, justamente para dar conta da relação com o cuidado doméstico e/ou paterno. Alguns ainda se adiantam em afirmar que estas expressões desviantes podem se manifestar como dispositivos de denúncia frente às manifestações do patriarcado, consciente ou inconsciente, de sustentação da desigualdade de gênero, visto ser um modelo construído, também pode ser desconstruído (Machado & Seffner, 2013).
O cenário de pandemia de COVID-19 movimentou as pessoas e seus lugares sociais, que devido ao distanciamento social, uma parte da população esteve forçosamente com maior frequência no ambiente doméstico. Os homens participantes desta pesquisa tomam em seus relatos os atravessamentos da mudança do cotidiano que reverberou principalmente nas relações familiares, seja com suas companheiras, filhas(os), e alguns na relação com família extensa como sogros e sogras.
Em produções científicas a partir do século XXI têm surgido pautas que problematizam a paternidade como possibilidade de (re)inscrição dos homens na relação com o cuidado, com desmistificação da função “maternidade” como a condição natural deste processo (Faustino e Freitas et. al., 2009). No que tange ao contato com homens entrevistados no contexto da pandemia, todos já exerceram a paternidade e trazem a intensificação deste tipo de cuidado neste período, e assim como indicam as pesquisas anteriores, há uma percepção distinta de cuidado em que um pai exerce em relação à mãe, seja na reafirmação e problematização de se colocar como provedor:
Entrevistador: Você percebeu que foi sendo colocado nessa condição de pai, pensando propriamente nessa dimensão da masculinidade, que essa imagem do pai é muito revestida por traços da masculinidade hegemônica. Você se percebeu entrando nisso?
M: Em partes sim, em partes não. Em um certo momento tinha um desejo disso, de ser o provedor, de ser o dono do dinheiro, o mais rico, agora eu comecei a conhecer mulheres que podem ter mais dinheiro, que eu achei o máximo, mas tem algo em mim que fica surpreso, tem um estranhamento. Por mais que você diga desejar uma mulher independente e que tenha dinheiro, mas que é engraçado, não vou dizer que me assusta, mas tem um estranhamento.” (M., entrevista do dia 14 de março, 2022).
A distinção do cuidado entre os genitores também aparece no quanto se sentem responsáveis por exercer o cuidado para além de uma postura de prover, reflexões estas que mais se aproximam da dimensão designada historicamente ao feminino:
Entrevistador: Você se considera uma pessoa que sabe cuidar?
A: Cara, eu estou tentando. Sim, eu me considero, eu consigo cuidar. Acho que eu considero e tenho desejo. Eu quero cuidar da minha filha, eu quero. Eu quero ser capaz de cuidar da minha filha, de sair com ela, dar uma volta. Esse de querer saber, de cuidar, está muito voltado para a minha filha. (A., entrevista do dia 9 de fevereiro, 2022)
Eram problemas anteriores que a gente tinha, mas que talvez eu conseguisse sustentar mais tempo, mas agravaram bastante por excesso de convivência. Ela é atriz e foi muito prejudicada, os artistas foram muito prejudicados na pandemia. Então se somava o fato da minha filha ficar em casa, isso traz um peso muito grande. Por um lado, é uma alegria, por outro é muito puxado, muito cansativo, agora que ela está convivendo com outras crianças a gente está vendo como pesou para gente não ter outras crianças, não ter mais gente junto. (M., entrevista do dia 14 de março, 2022)
Bernardi (2017) aponta que apesar da maior inserção dos homens no desenvolvimento de suas proles, ainda se designa às mulheres os principais cuidados, onde se afirmam velhos discursos como “mãe é mãe”, e se mantém modelos tradicionais de paternidade, como se reconhecer na dimensão de provedor, de um cuidado mais distanciado. A autora ainda sinaliza a necessidade de fomentar políticas públicas que garantam a maior participação de pais no processo de cuidado de seus(suas) filhos(as), com inscrição de modelos alternativos de paternidade, uma nova inscrição do papel do pai no seio familiar.
A condição de trabalho apresenta sentidos divergentes no que tange ao gênero. A relação da masculinidade com o trabalho implica numa condição de reconhecimento, identificação de si enquanto atividade capitalizada, que carrega consigo um valor moral, o trabalho enquanto atividade pública se torna uma condição conflitiva quando associada ao trabalho doméstico, por também se situar numa condição moral imposta a partir do gênero (Tronto, 1993).
Nas relações estabelecidas com homens neste contexto pandêmico, foi possível perceber que os da pesquisa, sendo de classe média, com acesso e disposição às discussões de gênero, buscam romper diariamente com práticas sustentadas pelo machismo e patriarcado.
Então, muitas vezes, ainda que a gente tenta dividir nossos horários, mas é um trabalho que os dois têm que fazer sempre. Ou seja, não é aquela coisa, “só lavo a louça, eu só lavo a roupa, eu só o banheiro e você limpa o quarto”. Todas as demandas da criança têm que ser atendidas tanto por mim quanto por ela, com exceção da amamentação, parir e amamentar são as únicas coisas que eu não pude fazer. Isso eu fui entendendo com o tempo, porque aí eu passei também a ver que muitas coisas que eu não fazia, que eu deixava de fazer, acabaram sobrecarregando-a, então aí, cada vez mais eu tenho que me inserindo e fazer essas tarefas. Não foi fácil, porque até hoje ainda é um aprendizado, porque à medida que vai crescendo, novas demandas surgem. Então hoje é um aprendizado, mas tem que estar disposto. (F., entrevista do dia 31 de janeiro, 2022)
A colocação da divisão igualitária de cuidados domésticos apresentado por F., hoje com 40 anos, casado e com uma filha de oito anos, se sustentou neste contexto de pandemia justamente pela possibilidade de trabalho tanto pelo homem quanto pela mulher quando estiveram que estar em casa e se propuseram a compartilhar todos cuidados. Contudo, problemáticas trazidas por Hirata & Kergoat (2007) sobre o modelo de delegação de tarefas ainda perpassa as práticas cotidianas de pessoas de classe média, sendo elas versadas ou não às dimensões de gênero, ainda se delega os afazeres domésticos a outras mulheres para que o casal possa sustentar trabalhos remunerados.
Com a pandemia aí veio a questão de o cuidado da casa ser totalmente conosco, inicialmente com meus sogros e depois nas casas onde a gente morou. Questão de comprar comida, fazer comida, cuidar da casa, varrer a casa, limpar, coisas voltadas para nós mesmos, o cuidado com a filha também. Isso gerou acho que duas coisas, a questão do meu trabalho eu reduzi a minha carga de trabalho para dar conta da casa e aos cuidados com a filha, minha companheira também reduziu a carga dela (A., entrevista do dia 9 de fevereiro, 2022)
Vale ressaltar que o contexto em que se encontram os discursos destes homens se situam em sujeitos que estão em processo de repensar suas masculinidades, também se encontram em processos terapêuticos, onde o pensamento de si e na relação com o outro esteve presente no cotidiano. Tais dimensões demonstraram favorecer este campo mais igualitário da divisão das práticas de cuidado neste tempo pandêmico intensificado pela necessidade de estar mais em casa, em convívio.
Considerações Finais
A pandemia trouxe para todos os participantes da pesquisa que fomentou este artigo, mudanças marcantes para si e para seus entes. Foram rearranjos de casas, combinados familiares, ressignificação dos desejos e do reconhecimento de si. Embora houvesse semelhanças na possibilidade de se resguardarem sem necessidade de exposição para obtenção do sustento, a relação com práticas de cuidado se acentuou em todas as situações, convocando-os para estar em situações domésticas adversas, com estratégias de ações antes não experimentadas e por vezes muito incômodas.
Outro elemento a considerar são os efeitos dos processos terapêuticos como ferramenta de desconstrução do sexismo que estrutura as formações dos homens em nossa sociedade. O fato de os participantes estarem em grupo terapêutico para homens evidenciou-nos que este estímulo sistemático para rever os constructos da masculinidade, associado a um processo terapêutico, dispões de um campo fértil para reconhecer limitações, inseguranças, potências, fragilidades e ressignificações de si sem precisar se dispor de velhos e conhecidos dispositivos de defesa, inclusive a importância destes espaços como lugares protegidos e de acolhimento frente ao possível rompimento com o pacto social do machismo.
Por fim, marcamos que os homens entrevistados representaram um recorte específico do cenário de homens e masculinidades no Brasil. Não foi possível dimensionar os efeitos da pandemia e suas relações com práticas de cuidado para homens de classe sociais, gênero ou etnia/raça mais subalternizados dentro da dimensão colonialista e capitalista em que vivemos. Conseguir pesquisar como os homens às margens se relacionam com as práticas de cuidado contribuem para ampliação da percepção sobre como formas distintas de lidar com esta dimensão pode ou não contribuir para novas expressões de gênero, de forma equânime.