Introdução
O Eixo Comum curricular Trabalho em Saúde (TS) da Universidade Federal de São Paulo abrange temáticas comuns do campo da saúde, comprometendo-se com a compreensão dos estudantes a respeito da capacidade crítica acerca da perspectiva de produção de saúde, adoecimento e construção de conhecimento (Batista, 2013). Pertencente a tal Eixo, o Módulo interdisciplinar “Clínica Integrada e Produção de Cuidado” (Trabalho em Saúde, s./d.) em parceria com o Projeto Acadêmico “Delicadas Coreografias” (Delicadas coreografias, s./d.), realiza ações com mulheres que se encontram em situação de vulnerabilidade social, residentes da região Noroeste de Santos-SP, as quais são caracterizadas por diferentes desafios de ordem física, social e psíquica, como deficiência física, sofrimento psicológico e/ou fragilidade econômica.
O trabalho interdisciplinar de alunos e docentes promove intervenções de cuidados coletivos tanto para as mulheres quanto para os estudantes, contribuindo ao processo formativo dos discentes a partir das conexões tecidas com as mulheres. Por meio de acompanhamentos semanais e práticas em grupo, as ações do Projeto estimulam a potência dos participantes produzindo presença e vitalização aos corpos, além de maneiras de vivenciar o próprio corpo e vida. As práticas propostas também são compreendidas enquanto produção estética, proporcionando experimentações aos corpos e elaborações sobre maneiras de existir, possibilitando o exercício da criatividade e expressividade (Liberman & Guzzo, 2015).
Por consequência da pandemia de Covid-19 no Brasil no começo de 2020, a então urgência do isolamento físico e a subsequente suspensão das atividades acadêmicas presenciais, apresentou-se a necessidade de manter vínculo com o grupo de mulheres e alunos com a finalidade de proporcionar cuidado e acolhimento no período pandêmico. Considerando que o enfrentamento ao cenário de pandemia ultrapassou os muros de hospitais e se estendeu aos territórios da vida, foi preciso construir outras maneiras de cuidar que abrangesse as tecnologias de cuidado em novos processos de ação, para além das fronteiras hospitalares, inventando uma nova forma de cuidado para pessoas em situação de vulnerabilidade (Seixas et al., 2021). Neste sentido, surgiram iniciativas e ações coletivamente construídas e executadas, que demonstraram novas formas de aprender, ensinar e cuidar. As atividades estabelecidas eram voltadas à composição de espaços de acolhimento, de debates críticos ao momento social, político e sanitário do país, ações de aprofundamento das relações com a comunidade e de diálogos com a realidade dos discentes, estendendo o cuidado, ações e afetabilidade às mulheres, alunos, docentes e a todos os participantes. (Pezzato et al., 2021).
A pandemia gerou um agravamento das condições de vida decorrentes de existências outrora desiguais, em que as políticas de proteção e as consequências sociais negativas não se manifestam universalmente, são seletivas e divergentes, determinadas pelas condições de vida e de acesso a direitos sociais e serviços, culminando em alguns corpos mais expostos do que outros (Marques et al., 2021). Segundo Maciel Jr (2014, p. 2) “Quando resistimos criamos possibilidades de existência a partir de composições de forças inéditas. Resistir é, neste aspecto, sinônimo de criar”. Por este ângulo, inventar caminhos de aproximação surgiu como resistência ao cenário de angústias e incertezas deixado pela pandemia, criando ações que pudessem acalmar e acolher tal sofrimento. Para tanto, foram traçados novos caminhos de possibilidades de contato e reinvenção de ações que contemplassem o novo cenário, recorrendo-se a alternativas digitais de comunicação.
Este artigo apresenta a experiência formativa realizada em 2020 e tem como objetivo analisar as camadas e dimensões do cuidado entre mulheres e alunos a partir das trocas de vivências realizadas remotamente. Foi composta por 12 alunos da Universidade Federal de São Paulo do quinto termo de graduação dos cursos de Educação Física, Fisioterapia, Nutrição, Psicologia e Terapia Ocupacional, juntamente com um grupo de 11 mulheres em situação de vulnerabilidade, participantes do “Projeto Delicadas Coreografias”, e 3 docentes do curso de Educação Física, Psicologia e Terapia Ocupacional (coordenadores). Ao decorrer dos encontros também houve a participação flutuante de uma terapeuta ocupacional da rede de saúde pública da cidade de Santos-SP, do produtor cultural do Instituto Arte no Dique (organização não-governamental do município que desenvolve trabalhos socioculturais com a população por meio da arte e cultura. Na qual as ações com o grupo de mulheres do Projeto eram realizadas presencialmente em parceria com o Instituto, antecedente à pandemia de Covid-19) e de alguns familiares de discentes e mulheres que se mostraram interessados em colaborar.
A instauração de ondas
A experiência foi composta por momentos subsequentes, aqui nomeados como “ondas”. Decidiu-se adotar o termo “onda” para denominar os diferentes pontos em que a experiência transcorreu, assumindo que foram momentos de movimentação, com necessidade de imersão e emersão inventivas a fim de criar, se adaptar e se vincular. Tomando a onda como um pulso que surge de uma perturbação, com capacidade de se propagar no ambiente, se transformar em energia e capaz de ligar um ponto a outro, foram três as ondas: 1) momento que antecedeu o início da pandemia juntamente com a declaração de estado emergencial de combate à Covid-19; 2) o período de prolongamento de suspensão das atividades acadêmicas presenciais; e 3) a retomada de atividades acadêmicas da universidade no formato online.
Durante as três Ondas, os encontros tiveram cerca de duas horas de duração e apesar da realização dos encontros corresponderem a momentos distintos e em diferentes períodos de tempo, houve uma continuidade das ações realizadas a partir dos vínculos estabelecidos.
Primeira onda
A Primeira Onda emergiu no início do ano letivo da universidade, em março de 2020 e foi composta por um único encontro presencial de professores e alunos, como parte das atividades curriculares do módulo “Clínica Integrada e Produção de Cuidado”. Logo em seguida houve a suspensão das atividades acadêmicas presenciais por conta da pandemia de Covid-19.
À vista disso e dada a improbabilidade de um retorno das atividades presenciais da universidade, ofertaram-se encontros remotos online entre os alunos e professores envolvidos, para promover acolhimento e escuta, traçando possibilidades de comunicação e de ações a serem realizadas para manter vínculo com alunos e mulheres. Podemos caracterizar essa primeira onda como um período de ajustes, adaptações e de mergulho em novos modos de existir.
O grupo de alunos e professores iniciou o rastreamento das mulheres do Projeto a partir de informações de contato registradas anteriormente, com a finalidade de obter notícias sobre a conjuntura do momento. Iniciou-se um trabalho de acompanhamento semanal individual dessas mulheres por alunos, através dos meios de comunicação disponíveis ao contexto singular de cada uma: telefone fixo, celulares e mensagens via WhatsApp. O trabalho de acompanhamento possibilitou a criação de vínculo e buscou proporcionar uma escuta atenta e sensível.
Segunda onda
A Segunda Onda aconteceu entre abril e junho de 2020, momento em que o grupo aprendeu a se habituar aos movimentos. Nesta onda as ações começaram a se configurar de forma mais concreta, notou-se a potencialidade da experiência e instituiu-se o “estado” de pesquisa: o início da produção de dados e da construção de diários de bordo (DB) pela aluna-pesquisadora com registros detalhados de cada encontro.
Os encontros se caracterizaram com rodas de conversas e um espaço de confiança para expressar as angústias em relação à pandemia. A participação das mulheres ocorreu de acordo com suas disponibilidades de ferramenta para estabelecer uma comunicação, como telefone fixo ou aparelho celular, em uma sobreposição de telas e áudios. Revelando o desafio de integrá-las aos encontros online, mas possibilitando reinventar maneiras de fazê-las presente. Dessa forma, deu-se abertura à acessibilidade digital por parte de algumas mulheres que começaram a migrar para as chamadas online via Google Meet que aconteciam entre docentes e discentes. Elas eram auxiliadas pela rede familiar e pela orientação dos alunos de referência dos acompanhamentos individuais.
Terceira onda
O Projeto pausou para reformulação dos encontros e ações, pegando impulso para mais uma imersão na experiência. A Terceira Onda referiu-se ao período de retorno das atividades acadêmicas da Universidade no formato de Atividades Domiciliares Especiais, que aconteceu entre agosto e outubro de 2020 (primeiro semestre letivo de 2020) com a proposta de encontros remotos de supervisão com docentes e alunos, intercalados com encontros de contato com as mulheres que aconteciam quinzenalmente.
Foram propostos temas sobre a superlotação dos serviços de saúde, saúde mental e isolamento, readaptação do cotidiano, e resgates de memórias antecedentes à pandemia, além de dinâmicas utilizando as câmeras e áudios, mobilizando os corpos a se moverem, desaparecerem e se reinventarem em novos cômodos, com diferentes objetos, em diferentes poses e ângulos, e mostrando diversas configurações de casas e dos ambientes ao redor.
Além de imergir, também foi possível emergir. Observou-se uma maior familiaridade com o ambiente virtual e as possibilidades a serem exploradas, permitindo uma maior liberdade de propagação, de inventar e se adaptar ao uso de tecnologias e ferramentas disponíveis.
Produção de dados
A produção dos dados se deu por meio de três vias: 1) o encontro presencial anterior ao estado emergencial de saúde pública; 2) gravações dos encontros online via Google Meet e 3) DBs da pesquisadora.
O encontro presencial que aconteceu em março de 2020, antes do estado emergencial de saúde pública devido a pandemia de Covid-19 e suspensão das atividades acadêmicas da universidade, foi considerado para análise. Participaram os alunos e professores, sendo o início da construção de vínculos, servindo como um contraste para as mudanças no desenvolvimento das ações que viriam a acontecer depois.
As gravações dos encontros online via Google Meet foram utilizadas enquanto registro do momento para posterior análise da experiência. Levando em consideração a instauração do estado de pesquisa ao longo do processo, não foram registradas gravações dos encontros iniciais ocorridos no mês de abril de 2020.
Os DBs foram construídos pela pesquisadora participante que registrou narrativas, depoimentos, sentimentos e falas contextuais dos alunos envolvidos, trazendo diferentes elocuções e perspectivas à experiência. A construção dos diários se deu a partir das anotações feitas no momento de realização do encontro do grupo, somadas a uma segunda perspectiva da experiência que se deu por meio da revisitação do encontro por meio da análise das gravações. Ao todo, foram 15 DBs.
Utilizou-se o método cartográfico para a captação e produção dos dados, investigando a produção de subjetividade associadamente ao pensamento de que o homem está em constante transformação e autoprodução. É um método de acompanhamento de processos que permite que o pesquisador mergulhe na experiência e não apenas o represente a posteriori (Cintra, Mesquita, Matumoto & Fortuna, 2017).
Apresentando-se a condição de aluna-pesquisadora, participante da experiência como discente e que instaura o estado de pesquisa em um processo em curso, de acordo com Kastrup e Passos (2013) este método de análise garante à pesquisadora seu papel de coprodução e passa à ação de “estar com”, em uma relação transversal e plano comum. A cartografia como pesquisa-intervenção participativa, assegura o protagonismo dos sujeitos envolvidos e sua inclusão ativa na construção de saberes ao decorrer da experiência, intervindo na realidade e desestabilizando as hierarquias de conhecimentos e a oposição entre a pesquisadora e os pesquisados.
Os DBs foram utilizados como acompanhamento de processualidade na cartografia, em que a escrita apoiada na experiência se manifesta como uma expressão do plano afetivo, contribuindo para a produção de dados, em que toda palavra se expressa de forma viva e inventiva através dos planos de acontecimentos (Barros & Kastrup, 2009). Nesse sentido, a análise se deu através da interceptação dos variados planos de expressividades, afetos, partilhas e singularidades que permearam os encontros, observando os movimentos sensíveis e as realidades neles existentes.
De acordo com Pozzana (2013), o cartógrafo toca e é tocado através de subjetividades e objetividades criadas a partir de diferentes percepções, interesses, ritmos e materialidades. Para isso, investiga atentamente a forma singular de mover-se, afetar-se e transformar-se dos indivíduos participantes. Assim, a experiência foi analisada cartograficamente ao decorrer de cada encontro e posteriormente revisitada a partir da análise das gravações e através da leitura dos DBs da aluna-pesquisadora, atentando-se às camadas e espessuras das interações e expressões, e em conjunto a estudos bibliográficos.
O relato de experiência seguiu princípios éticos de pesquisa com seres humanos, tendo os participantes firmado seu consentimento com preenchimento do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido online. O relato aqui apresentado faz parte da pesquisa temática “Delicadas coreografias: práticas corporais e artística e produção de subjetividade” coordenada pela autora de correspondência Profª Drª Flavia Liberman , com aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da UNIFESP com parecer nº 2.067.538
A imersão e emersão na experiência
A experiência trouxe uma nova perspectiva de cuidar em meio ao contexto de pandemia de Covid-19 traçando caminhos de aproximação e propondo um espaço de cuidado através dos encontros online, das ligações, das chamadas de vídeo e das mensagens de texto. Foram desenhadas alternativas de chegar ao território, utilizando-se do ambiente virtual e de toda a sensorialidade corporal por meio das ferramentas tecnológicas para conhecer, aproximar e cuidar.
A aluna L fez contato por ligação com MH, a senhora disse estar se sentindo sozinha, pois como faz parte do grupo de risco não estava podendo ver as filhas, a ligação a deixou feliz e pediu para que ligasse mais vezes, adorou conversar. Observo que uma ligação pode significar não estar só, que as trocas não dependem de pele com pele, mas de conexão, de cuidado, de mostrar-se disposto, mostrar-se interessado, mostrar-se pronto a ouvir e falar (DB 2).
As ligações demonstraram-se uma ferramenta de cuidado no cenário de angústias, capazes de alegrar as mulheres. O cuidado virtual surgiu como uma extensão de todo trabalho presencial realizado durante anos através do módulo “Clínica Integrada e Produção de Cuidado” e do “Projeto Delicadas Coreografias”: os vínculos se estenderam, conquistaram um novo espaço, o qual, no contexto de pandemia, possibilitou inventar cuidado. Quando falávamos quem éramos e da universidade que fazíamos parte, as mulheres contavam o que faziam, como se sentiam, contavam no que acreditavam, falavam dos seus medos, dos anseios e, principalmente, falavam de saudade. Uma troca de confiança que a universidade proporciona e sustenta.
(...) se apresentar como alguém da universidade é um aspecto facilitador para estabelecer uma relação de confiança. J não me conhece, mas me contou como tem espírito jovem e como adora tocar nas escolas de samba de Santos. A UNIFESP carrega um grande peso na vida dessas mulheres (DB 4).
(...) aqueles que tiveram experiências com o grupo do Projeto, dividiram conosco suas memórias. Comecei a imaginar as cenas como se também as tivesse vivido, um sentimento de uma nostalgia que não vivi, uma lembrança que nos diz como essas mulheres são potentes, como as trocas são essenciais para o cuidado, como essas memórias de tantos anos estruturam cada encontro que fazemos hoje (DB 10).
As ações baseavam-se em experiências anteriores, e o que propusemos para o grupo mostrou-se singular. Os vínculos criaram novas camadas, novos espaços, e as ações aconteceram em uma conquista de novos territórios, considerando as novas possibilidades do cenário, fomentando vínculos e traçando o trabalho a partir de antigas e novas conexões, reunindo o desejo, a surpresa, o acaso, a expectativa: “As mulheres inspiram, suas narrativas emocionam, o trabalho não seria nada sem elas” (DB 12). A experiência se destaca com a produção de subjetividade, produzindo modos de sentir, agir e pensar a partir de histórias, necessidades, grupos e contextos singulares, em um cenário coletivo, com um possível permear-se diante das relações.
Entendendo que as questões sociais influenciam no estado de saúde por conta das desigualdades de recursos mobilizáveis, de exposições aos riscos e da constituição social das disposições de saúde, os recursos para proteger ou promover saúde se dá em um sistema estruturalmente desigual, causando disparidades das condições de saúde (Santos, Mishima, & Merhy, 2018). Nesta perspectiva, a vulnerabilidade social vivida pelas mulheres participantes do Projeto Delicadas Coreografias, aumenta suas desproteções, acentuando transtornos de ordem biopsicossocial e, por essa razão, pontua-se a necessidade de uma constante entre elaborar e cuidar: elaborar os acontecimentos e mobilizar afetos.
Pode-se notar um dos impactos da pandemia, também quando se fala em saúde mental e sofrimento psíquico, levando em consideração o medo da vida sendo ameaçada e o aumento de sintomas de depressão, ansiedade e estresse, reverberados pelas vivências delicadas e o isolamento físico (Gaudenzi, 2021). “Quando falamos sobre o contexto pandêmico, sinto emergir um sentimento de angústia por todos, pelas incertezas e por todo sofrimento” (DB 6). Neste cenário, tornou-se imprescindível o acolhimento e a escuta sensível propostos nas ações grupais online e no acompanhamento individual com objetivo de abrandar a angústia e a solidão vividas pelas mulheres: “(...) o que é ‘vivenciar’ em contexto de pandemia? Percebo sentimentos de paralisação, solidão e sensação de evasão de vida, continuamos vivenciando, mesmo que seja experienciar um sentimento de aflição” (DB 5).
Aluno R compartilhou como se surpreendeu com a maneira como o grupo fluiu. Relatou como pessoalmente a experiência o atingiu, quando em um momento de solidão, o grupo o deixava alegre, capaz de se emocionar e se sentir atravessado com o cantar de Dona V, definindo o grupo como uma experiência singular. O grupo foi seu momento de interação e de encontro nesse contexto de pandemia (DB 8).
Esta experiência virtual demonstrou força de mobilizar sensibilidades e surpresas, passando de um lugar estático, de rupturas e paralisação, para um dinâmico. Vivenciando modos alternativos de sentir, se emocionar, sorrir e ser atravessado, a experiência proporcionou possibilidades de novas reações corporais através de telas, experimentando uma nova perspectiva na qual as vozes se encontravam, se perdiam, se embaralhavam, afinando a escuta ora para o barulho, ora para o silêncio.
(...) a terapeuta ocupacional nos enviou uma foto de T no grupo do WhatsApp, (...) a foto mostrava T apoiada em um balcão de mármore, com máscara no rosto e sorrindo. Profª F com o olhar afinado de sensibilidade perguntou o que vemos na foto de T. T sorria com os olhos, eu sorria de volta e todos sorríamos de volta. Ficamos todos imersos e atravessados pelo olhar sorridente de T, a fotografia ultrapassou lentes e telas e surtiu efeito em nós (DB 3).
A escuta sensível, constantemente utilizada durante as ações, denomina-se tecnologias leves, as quais se apresentam como práticas de acolhimento, escuta e diálogo (Santos, 2020) e se revelou como processo de cuidado fundamental, tornando-se prioridade em nossas ações, sobretudo durante os acompanhamentos individuais semanais das mulheres feito por alunos. Dessa forma, foi necessário afinar a escuta e estar atento às maneiras de comunicação, ouvir e conversar com as mulheres conforme as suas próprias demandas, sem seguir um roteiro fixo de técnicas.
Por conta disso, apresentou-se a necessidade de identificar dificuldades de entender o outro e criar estratégias de comunicação, utilizando todos os sentidos e, virtualmente, de todos os recursos disponíveis que envolviam o contato através da câmera de um smartphone ou computador, afiar o olhar para a comunicação que acontece no corpo, através de expressões, de olhares, de gestos, afiar a escuta para tons de voz e os sentimentos implícitos, a euforia, a tristeza, a felicidade.
Vivenciamos um novo formato de fazer cuidado, o qual se distingue de qualquer outro, sendo um encontro denso, cheio de nuances e formas de cuidar, com composições delicadas de se fazer acontecer. Me recordo da tentativa de ligação com uma das mulheres, e como seria a experiência para os ouvidos de escutá-la por telefone atrás de um microfone de computador, levando em consideração sua apraxia verbal decorrente de um acidente vascular cerebral (DB 5).
Gaudenzi (2021) discutiu sobre a experiência do isolamento e a peculiaridade de estar em uma sociedade altamente conectada por meio das tecnologias e redes de comunicação que permitem o estabelecimento de conexões afetivas. Assim, o termo “isolamento social” passa a ser “isolamento físico”, comprovado nesta experiência em que foi possível se vincular, interagir, rir e chorar a cada encontro tecendo aproximações e construindo afetos entre todos os participantes a partir do conhecimento de suas vidas, histórias e sonhos: “Hoje, os toques, os abraços, tomaram outro significado, mas as conexões ainda podem ser realizadas e fortalecidas, através de redes de afetos capazes de se alastrar por chamadas” (DB 4). A experiência online conseguiu ecoar por todos os participantes, permeando através das histórias e emoções, mesmo com cada um em sua casa e em sua cidade, se transformando em uma caixa de ressonância, vibrando ondas capazes de conectar afetivamente.
Mais uma vez as galinhas da casa da aluna S são assunto. As galinhas são uma atração e todos ficamos atentos com as imagens, até E que está em videochamada pelo celular com o professor C. S também mostra a horta, a cachaçaria e seu pequeno mundo ali no interior (DB 5).
"Podemos estar confinados espacialmente, mas o sonho não está preso” - uma reflexão feita pela Profª F. E realmente, o sonho não pode ser preso, o desejo não pode ser confinado. Estamos confinados, em distanciamento, mas ainda estamos sendo movidos pelo desejo da experiência, pelos sonhos, pelos afetos (DB 7).
Diante do desafio de exercer presença e vincular-se, afinaram-se processos inventivos de práticas corporais e artísticas para provocar o conhecimento de si, do grupo e das mulheres. Foram feitas trocas de experiências, compartilhamento de memórias, além de brincadeiras, jogos e apresentações musicais.
Ligamos para a dona V. É sempre muito bom ouvi-la. Enquanto falava, colocaram duas fotografias lindíssimas de Dona V sorrindo e gargalhando, e é assim que eu a imagino, cheia de alegria, cheia de vida. Mais uma vez ficamos imersos na experiência estética, utilizando da fotografia e de nossos ouvidos para nos aproximarmos de Dona V, construindo presença e encontro (DB 10).
A presença se produziu por meio da imersão na experiência, mergulhando nos riscos, acertos, jogos e nas maneiras de produzir cuidado. Os processos inventivos impulsionaram a produção de subjetividade, firmando um grupo de constante construção e desconstrução na dimensão sensível da percepção de si, do outro e de outras realidades, sendo atravessados pelo encontro de vidas e sendo reconstruídos por elas. Os corpos conduzem os modos de funcionamento da subjetividade, desenham as formas de vida e os eventos do mundo, contemplando a composição de modos de agir, sentir e pensar (Inforsato et al., 2017):
T se prepara para cantar, a música se chama “Uma História” da dupla Palavra Cantada:
“Eu vou te contar uma história, agora, atenção!
Que começa aqui no meio da palma da tua mão
Bem no meio tem uma linha ligada ao coração
Quem sabia dessa história antes mesmo da canção?
Dá tua mão, dá tua mão, dá tua mão, dá tua mão…”
Aplaudimos. T cantou uma música infantil. Imaginei todos do grupo, alunos, mulheres, professores, conectados por essas linhas que começam na palma da mão. Aqui fazemos história, cruzamos histórias, ligamos histórias, marcamos histórias. E essas linhas se tocam, se embaraçam. Esse é o trabalho, essa é a experiência, esse é o cuidado (DB 6).
O vínculo, para Seixas et al. (2019), só pode ser construído com o assentimento do outro, se ambos forem considerados “interlocutores válidos”, isto é, se assumirem um comportamento ético de enxergar o outro, como sujeitos que têm necessidades, desejos, expectativas e um saber diferente, o qual acaba por enriquecer as ações. A partir dessa concepção, as diferenças entre os participantes não constituem uma assimetria entre eles, mas estabelece-se uma relação de simetria e com ruptura de fronteiras entre os interlocutores, levando em conta singularidades e não negando diferenças. Rompendo uma relação de sujeito-objeto, e compreendendo o encontro de diferenças e mundos distintos (Seixas et al., 2019).
A partir do conhecer através do encontro com as mulheres, compreendendo a importância da sensibilidade de escuta, do acolhimento e quão delicado é o fazer cuidado, a relação foi atravessada pelas narrativas, pelo compartilhar de afetos, desejos e expectativas que permeiam o cuidar (Aragon, 2003). Neste ponto, nos encontros coletivos via Google Meet, instituiu-se uma relação horizontal de trocas, com dissolução de papéis, formando-se um espaço compartilhado para expressar-se e contar sobre as próprias perspectivas e pesares.
As plataformas digitais revelaram-se um desafio no sentido do fazer grupo, uma barreira a ser superada. Primeiro o desafio de se acessar aos equipamentos; o segundo de como manejar os aplicativos e aparelhos; o terceiro desafio de se portar diante à nova maneira de se comunicar, uma nova forma de escutar, um novo tempo para falar, considerando o delay, a convergência de áudios, a qualidade de vídeo e som; e o quarto desafio de como estar presente mesmo distante, como se aproximar e estabelecer vínculo:
Prof C ligou para MH, o áudio da ligação estava muito ruim e ficou muito difícil para nós, do grupo, entendermos. MH desliga e liga novamente, dessa vez o áudio estava melhor, nos contou que está com um celular provisório muito ruim (DB 7).
A desigualdade de acesso à internet e aos equipamentos, associados às questões de vulnerabilidade do território da Zona Noroeste, se refletiram sobre o trabalho de inclusão digital: “(...) Ligamos e a chamada de vídeo falhou, pois E não tem wi-fi” (DB 5). No entanto, apesar dessas barreiras, essas mulheres resistem e estão a todo momento conquistando espaços, e determinando seus lugares de pertencimento: “As barreiras comunicacionais gritaram enquanto todos nós tentávamos nos entender. A inclusão digital mostrou seus obstáculos, mas o trabalho vem criando pontes possíveis de acesso” (DB 12).
(...) F entra no encontro, relatando as dificuldades de utilizar as ferramentas online, ela evoluiu muito e aos poucos conseguiu ultrapassar as barreiras de domínio das plataformas. Dois encontros atrás havia uma instabilidade em sua permanência na chamada de vídeo, o microfone não estava ligado, e hoje F consegue participar ativamente das conversas, falar suas experiências e contribuir com o grupo. Ela dividiu conosco que contou com a ajuda da aluna C, a qual explicou o uso dos equipamentos para as chamadas por áudios no WhatsApp (DB 6).
Entender os equipamentos e recursos disponíveis, tal como o funcionamento das plataformas, passou a ser essencial para auxiliar as mulheres a adentrar novos territórios e poder usufruir de todas as ferramentas disponíveis a fim de integrar as práticas grupais. Estabeleceu-se uma forma inventiva de se relacionar e aprender a habitar um novo território. De acordo com Kastrup (2001), os limites de ação são configurados pelos territórios, e referindo-se à aprendizagem territorial, afirma que, além de ter hábitos, é necessário habitar. Isso implica o conceito de errância e de assiduidade, o que proporciona uma experiência de corporificação do conhecimento, envolvendo todos os sentidos. Errância no sentido de pensar, errar e aprender uma nova maneira de realizar atividades ora tão simples em um espaço digital e online, assim como assiduidade ao habitar este novo território, na persistência e obstinação em dominá-lo.
Cada participante estava diante de seu próprio desafio baseado em seu contexto, mas o resultado fez-se uma grande festa, em que, independente dos três primeiros desafios citados anteriormente, o quarto e mais notável, tornou-se real e evidente: o grupo compôs presença.
Dona V começou a cantar a canção 'Coração de Estudante' interpretada por Milton Nascimento (...), logo no primeiro verso Dona V chorou. Aplaudimos e gritamos pelo microfone, batendo palmas para sua força e resiliência. Ela nos agradeceu pelo carinho. Fomos seus espectadores, sua plateia, presentes para vê-la brilhar (DB 9).
De acordo com Arias e Manning (2019), é possível notar dois tipos de movimentos existentes nas camadas da experimentação: o maior e o menor. O maior trata-se do local onde os acontecimentos se manifestam, da tendência estrutural que organiza a si próprio conforme determinações de valor já estabelecidas. Por sua vez, o menor se move através de uma experiência, cria pulsação, aviva caminhos para novas tendências, e se compreende como força ressonante para novos modos de existência.
A presente experiência relatada expressou graus de intensidade, de existir e de se manifestar, assim sendo, o movimento menor exprimiu as novas composições e direções de se existir no ambiente virtual, a partir de novos modos de encontro e intervenções no campo da vida: “(...) tivemos um silêncio. E até os silêncios criaram significados. Sinto que neste momento em silêncio estávamos digerindo o tamanho do trabalho, a proporção gigante que atingiu, percebendo toda a potencialidade que vivemos” (DB 8).
Assumindo o corpo como território de experimentação e de novas vitalidades, a experiência buscou inventar práticas de cuidado os quais pudessem mobilizar os corpos a partir dessas experiências grupais e elaborações de afetos. Dessa forma, transformou redes de comunicação digitais em território do existir e do produzir, utilizando-se de telas, ligações e chamadas de vídeo como uma possibilidade do experimentar, do cuidar e do pertencer.
A experiência tem sido uma invenção no processo do cuidar, a cada encontro observo uma nova possibilidade de perceber as mulheres, nós mesmos, o encontro, o cuidado. Ao decorrer dos encontros, parecem surgir cada vez mais métodos e possíveis ações, referentes ao cuidar, a serem explorados, os quais se mostraram capazes de permear a todos do grupo (DB 8).
Conclusão
Foi apresentado o relato de uma experiência formativa realizada em 2020 por alunos da Universidade Federal de São Paulo juntamente com um grupo de mulheres em situação de vulnerabilidade, participantes do “Projeto Delicadas Coreografias”, um projeto de extensão de cuidado em saúde por meio de práticas corporais. O texto se constitui como registro histórico de como este grupo buscou mudar, responder e se adaptar devido às condições impostas pela pandemia da Covid-19 e assim seguir a vida (que não cessa).
Pode-se concluir que a criação do grupo online e as estratégias utilizadas para manter vínculo e proporcionar cuidado aos alunos e mulheres, foi a alternativa encontrada para desenvolver ações que acolhessem e estimulassem os discentes e docentes em movimentos inventivos em uma nova configuração de cuidado. As três ondas da experiência marcaram etapas progressivas e a evolução do processo de existir e produzir neste novo território virtual de tecnologias.
A experiência concedeu espaço para as ações de escutas, trocas e afetos entre o grupo, fazendo aparecer um espaço sensível de cuidado transversal e produção de subjetividade, contribuindo para a experiência formativa dos discentes. Os encontros resultaram em um processo de formação pessoal e profissional singular, através do atravessamento de relações com os sujeitos acompanhados inseridos em contextos diferentes, com ações potentes que inventaram um comum a partir daquilo que era heterogêneo (Capozzolo, Imbrizi, Liberman, & Mendes, 2013).
Contudo, apesar da singularidade da experiência, apresentaram-se desafios ao longo do processo os quais não puderam ser resolvidos e superados: o fato de que nem todas as mulheres dispunham de dispositivos adequados para participação plena nos encontros e/ou de um contexto familiar facilitador para a acessibilidade digital e participação regular do grupo. Entretanto, esses foram os desafios que compuseram o trabalho e o que nos impulsionava a prosseguir. Por conta disso, os acompanhamentos semanais individuais com as mulheres mostraram-se indispensáveis para o cuidado, tendo em vista que se tratava de um exercício regular feito separadamente do grupo, utilizando-se o meio de comunicação mais acessível para cada mulher.
Embora tenham sido encontradas alternativas em ambiente virtual para dar continuidade à relação de vínculo com as mulheres, segundo as próprias, as ações presenciais continuam sendo fundamentais. Dessa forma, conclui-se que o caminho de ação traçado não substitui integralmente o cuidado presencial e os encontros no território habitual das mulheres. Não obstante, a experiência mostrou-se satisfatória e potente por sua capacidade de mobilizar os participantes, construir uma rede de apoio, cuidado, reflexão e criação diante do cenário emergencial de sofrimento e incertezas que atravessou os nossos corpos e vidas.