Introdução
A atividade de ensino na universidade é, frequentemente, considerada um desafio por docentes, experientes ou não. O tensionamento entre o conhecimento abstrato (ou conceitual) e o saber pragmático da experiência da docência constitui-se como um pano de fundo em relação ao qual localizamos o presente artigo. Com uma regulamentação bastante imprecisa, a formação para a docência no ensino de pós-graduação tende a permanecer à margem das atividades destinadas à pesquisa. O estágio docente é uma das poucas estratégias diretamente relacionadas à formação para a docência, embora sua realização não seja obrigatória em muitos programas.
Estratégias para visibilizar e fazer pensar a formação para a docência no ensino de pós-graduação nos levaram a propor uma pesquisa-intervenção. Essa modalidade de pesquisa foi desenvolvida como proposta metodológica e estratégia participativa inspirada no Movimento da Análise Institucional, que surgiu na França nos anos 1960 e se estendeu à América Latina nas décadas posteriores. Com essa base teórica, a pesquisa-intervenção assume o caráter de ação política, considerando que toda pesquisa é uma ferramenta de intervenções capazes de promover transformações (Maraschin, Rocha & Kastrup, 2015). Uma de suas proposições centrais é a noção de que o movimento do pesquisar compreende transformar para conhecer, ao invés de conhecer para transformar (Passos & Barros, 2009). Fazer e conhecer, desta forma, não se constituem como processos separados ou subsequentes, e sim como movimentos contínuos em um processo recursivo que pode tencionar e modificar constantemente os modos de participação. Na pesquisa, o(a) pesquisador(a) traça um plano inicial que vai se modificando pela característica contingente do desdobrar do trabalho.
Pesquisar e intervir são vistos como ações indissociáveis, uma vez que a presença e a ação do(a) pesquisador(a) reverberam no campo, ao mesmo tempo em que também são influenciadas pelas relações que se constituem com e entre os participantes da pesquisa. Pesquisador(a) e participantes são parte de um mesmo processo de coemergência (Rocha & Aguiar, 2003). A atenção se volta para os movimentos que ocorrem durante o desenvolvimento da pesquisa nos participantes, nos pesquisadores(as), nos rumos da investigação e, de forma mais ampla, na colocação de novos problemas dentro da área de conhecimento do estudo (Kastrup, 2008). A proposta de utilizar a escrita epistolar como uma estratégia de pesquisa-intervenção aposta na ideia da escrita como um processo de produção compartilhada de sentidos. A seguir, discutimos alguns aspectos que possibilitam vislumbrar o caráter incorporado, estendido e dinâmico da escrita, a partir da teoria enativa da cognição. Após, detalhamos o percurso de pesquisa organizando a descrição de seu desenvolvimento em quatro momentos e apontando, em cada um deles, características que embasam a utilização da escrita epistolar como estratégia de pesquisa.
A escrita como processo cognitivo
Nas ciências humanas, a escrita muitas vezes é abordada como uma forma de exercício do pensamento, um dispositivo de produção de subjetividade (Arent, 2016; Pantaleão & Kastrup, 2015). Estudando a interface entre ciências cognitivas e literatura, Caracciolo (2012) propõe que a escrita e a leitura de narrativas têm um papel importante para a construção de sentido, modulando a maneira de valorar experiências cotidianas. Essa visão também é compartilhada por Ravenscroft (2017), que propõe que compreendamos a escrita como um processo incorporado, estendido e dinâmico. O autor aponta que escrever é uma ação incorporada, pois envolve o corpo todo – não somente uma parte dele – referindo uma proposição de Shaun Gallagher (2005) a respeito dos gestos corporais constituírem uma maneira de pensar, e não simplesmente a expressão de pensamentos. Nesse sentido, podemos considerar que experiências distintas de escrita: uma utilizando papel e caneta e, outra, um computador podem ter efeitos cognitivos diferenciados. Dificilmente alguém dirá que o processo de escrever não seja influenciado pela gestualidade e operacionalidade que essas tecnologias implicam. A estrutura de um texto é mais maleável à modificação quando fazemos uso de um processador de texto, enquanto a escrita com papel e caneta, sendo este passível ou não de rabiscos, também ocasionam modulações significativas no fluxo dos pensamentos. Ou seja, a escrita articula nosso corpo com distintas ferramentas e práticas, incluindo a forma como nos acoplamos à circunstância em que nos colocamos a escrever. Uma xícara de café, alguns raios de sol entrando pela janela, um ambiente silencioso... podem se fazer tão, ou mais, necessários do que elementos como uma borracha ou um mousepad.
Isso nos leva à segunda proposição de Ravenscroft (2017): a escrita é um processo estendido, na medida em que a mente de quem escreve se estende – literalmente se estende – acoplando-se a sua circunstância. Para Ravenscroft (2017), há muitos momentos nos quais podemos caracterizar a escrita como uma forma especialmente significativa de memória estendida. O autor cita processos de escrita literária nos quais os autores escrevem anotações em cadernos e diários, um trabalho particularmente importante para a escrita de trilogias ou outros casos em que há a conexão de histórias no desenvolvimento de personagens ou enredo. No meio acadêmico é bastante frequente que pesquisadores(as) se utilizem da escrita de diários de campo para planejar e analisar intervenções.
Por fim, sendo um processo cognitivo, a experiência de escrita envolve ciclos contínuos de feedback, que fazem parte da dinâmica de coengendramento entre o sujeito e sua circunstância. O texto se torna uma parte do mundo que adquire especial relevância para o escritor que o observa em detalhes, “reflete sobre ele tanto cognitiva quanto emocionalmente, e muitas vezes o reescreve” (Ravenscroft, 2017, p. 49, tradução nossa). Em um estudo empírico sobre processos de escrita literária citado por Ravenscroft (2017), os pesquisadores Hayes e Flowers (1986) observaram que escritores mais experientes costumam fazer três vezes mais revisões em seus textos em comparação a escritores iniciantes. Escritores mais experientes buscam estar mais em contato com seus textos em momentos e, possivelmente, em estados emocionais diferentes. É interessante refletir sobre esses ciclos de feedback – proporcionados pela revisão textual – como parte do processo de desenvolvimento da expertise como escritor. Conforme proposto por Di Paolo, Rohde e De Jaegher (2010), esses feedbacks são inerentemente significativos, sendo a produção de sentido e significância que deles emergem, uma das principais características que definem a cognição. Cada reescrita possibilita ao autor encontrar na escrita processos de pensamento que, de outra forma, poderiam não ocorrer (Clark, 2008). Este aspecto será abordado de forma mais aprofundada ao longo deste artigo, em especial por compreendermos a escrita como um modo de produção compartilhada de sentido (Popova, 2015). Na escrita epistolar, o processo dialógico convoca o leitor ser um parceiro nesses inúmeros encontros com o texto, dando pistas de que não apenas a escrita, mas as formas como as modulações dela se constituem numa proposta de pesquisa-intervenção, poderão acionar distintos acoplamentos.
A construção de um correio de cartas entre pós-graduandos
Convidamos inicialmente, pelo critério de conveniência por afinidade, dez estudantes para participar da pesquisa, sendo estes cinco mestrandos(as) e cinco doutorandos(as), de programas de pós-graduação (PPGs) na área da psicologia em universidades públicas e privadas. Alguns estudantes, espontaneamente, sugeriam que outros colegas ou amigos fossem também convidados. Isso levou a equipe de pesquisa a refletir sobre os critérios de participação, optando por seguir o fio de indicações e entrar em contato com todos os estudantes mencionados. Aqui já se desenha uma modulação em relação ao planejamento inicial.
Ao final de um mês, 24 estudantes de pós-graduação haviam aceitado participar da pesquisa. 21 estudantes realizavam sua pós-graduação em universidades públicas, 19 na área de psicologia, 01 em educação e outra em engenharia química. 3 estudavam em universidades privadas. As universidades localizam-se na cidade e na região metropolitana de Porto Alegre. Parte desses estudantes estavam ou já haviam realizado o estágio de docência, regulados de diferentes modos em seus respectivos programas de pós-graduação. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa e recebeu o número CAAE: 94802618.6.0000.5334.
Os participantes da pesquisa foram convidados a escrever uma carta a um destinatário não identificado desse grupo de participantes, também estudante de pós-graduação, e encorajados a assiná-las utilizando um pseudônimo. Com as primeiras 24 cartas em mãos, a equipe de pesquisa formou 12 duplas de correspondentes. A constituição dessas duplas considerou, principalmente, a aproximação temática dos interesses de conversação sobre a docência manifestados pelos participantes em suas cartas. Cada correspondente recebeu a carta de outro(a) pós-graduando(a) e foi convidado a escrever uma carta-resposta. Por fim, as cartas-resposta foram entregues aos destinatários. Este processo de troca de cartas originou um total de 46 cartas.
Para a análise, escolhemos quatro cartas trocadas entre uma dupla de correspondentes, tomando como ponto de partida a perspectiva de uma das participantes, ou seja, a sequência de como ela interagiu com as cartas. Nosso foco não atentará ao conteúdo de cada uma das cartas, e sim os processos de composição textual que nos possibilitam observar a constituição das posições de remetente e destinatário – assim como de suas modulações – e a produção compartilhada de sentidos entre os participantes.
O convite à participação do correio de cartas indicava a proposta de uma escrita em um formato livre, sem um modelo prévio a ser seguido. Em relação ao conteúdo, os participantes foram encorajados a compartilhar pensamentos e reflexões sobre a experimentação da docência e, se desejassem, narrar um momento ou situação que, de alguma forma, havia sido significativo para si durante a realização do estágio de docência.
A tradição epistolar, entretanto, compreende a existência de algumas balizas características desta modalidade de escrita, que se mantêm importantes, mesmo que moduladas pelas tecnologias digitais. A ação de escrever uma carta coloca em destaque o estabelecimento de uma relação entre aquele que a escreve e seu(sua) destinatário(a). A priori, não é um texto para ficar guardado. Ele transita. Já em pensamento, vai ao encontro de alguém. Este aspecto está inscrito na origem grega da palavra epístola que significa “enviado” (Tin, 2005), assim como na palavra litterae em francês (o equivalente a “cartas” em português) que designa qualquer espécie de escrito a um destinatário (Godoy, 2010). Essas definições apontam a inclinação movente das cartas e sua particularidade como texto que se destina a conectar correspondentes em tempos e espaços diferentes.
Fazendo parte da pesquisa, esta troca de cartas adquire uma característica particular: o duplo endereçamento que envolve não apenas um destinatário desconhecido, mas também a pesquisadora responsável pela mesma. Os participantes sabiam que suas cartas seriam lidas tanto por seu correspondente, quanto pela pesquisadora que, na operatividade da pesquisa, constituiu a via de ligação entre remetentes e destinatários. Esta intermediação ocorreu presencialmente e também por e-mail, uma vez que muitos correspondentes optaram por enviar suas cartas utilizando esse recurso. O primeiro contato com cada um dos participantes ocorreu presencialmente ou por telefone. Expunha-se o interesse em estudar a formação para a docência em cursos de pós-graduação e a metodologia a ser seguida. Alguns participantes solicitaram que fosse enviado um e-mail descrevendo novamente como seria a troca de cartas ou relembrando como era a proposta de escrita. Dos 24 participantes da pesquisa, 4 escreveram cartas de próprio punho. Os demais utilizaram programas de computador, entregando as cartas presencialmente ou enviando por e-mail, conforme a sua preferência.
Carta escrita por Correspondente-sem-nome (Participante 1)
Porto Alegre, novembro de 2017
Há muito tempo não escrevo uma carta. E agora, olhando para o computador, não sei bem o que essa carta quer dizer... Talvez eu não queira dizer isso ou aquilo, talvez eu sequer queira dizer alguma coisa.
A verdade é que já faz um tempo que eu me sentia professora. Já estava acostumada a ser vista na rua e ser apontada como sendo a professora. Já estava acostumada a me chatear porque em todos os cantos sempre tinha um aluno pra quebrar o silêncio do meu passeio. Já esperava sempre encontrar uma pessoa para quem o meu nome não tinha nenhum sentido, pois é bem melhor gritar alto “professora!”, chamando atenção do universo ao redor de nós.
No ano passado, neste período do ano, eu estava atarefada para concluir o semestre. Eu já tinha me acostumado a ser a “dona” da caderneta. Neste semestre, a caderneta não é minha! Este semestre, até em minha “experiência como professora” (sim, prefiro deixar entre aspas), me senti aluna. Quando digo isso, não quero dizer uma coisa ruim. Ser aluna ressignificou meu “ser professora”. Essa inversão de papel me fez refletir mais do que qualquer outra experiência ou prática exercitada nos últimos meses.
No que se refere ao estágio docente, acho que a parte mais significativa, pra mim, foi trocar experiência com outros colegas que também faziam o mesmo estágio. O estágio – sobre o qual falo aqui – me proporcionou, essencialmente, a oportunidade de me relacionar com novas pessoas, bem como a possibilidade de me relacionar com “velhas” pessoas de um “novo” jeito. Posso dizer que o estágio deu trabalho, isso é certo... quanto a isso não há dúvidas, porém tenho dúvidas quanto todas as demais questões que posso pensar sobre essa experiência de estágio docente.
Impondo a mim mesma o exercício de tentar definir a minha experiência em poucas palavras, fico meio constrangida com o que me vem à mente: vazio; inútil; não quero fazer de novo; inócuo; nem bom nem ruim; um nada que nem dói pra me fazer crescer.
Odeio essa sensação de estar fazendo uma coisa inútil. Me sinto uma peça inútil nesse jogo de inutilidade. Depois desse pensamento, comecei a refletir mais sobre essa sensação e me senti uma Pollyanna perseguindo um jogo do contente. E eu odeio o jogo do contente!2 Eu não quero parecer nem revoltada, nem mal-agradecida e, umas palavras soltas numa carta perdida, creio eu, podem até fazer com que a complexidade de uma experiência seja “mal-sentida” por um leitor qualquer. Pois, afinal de contas, nem eu sei o que eu quero dizer. Penso que talvez, essa sensação de vazio, de inutilidade, seja justamente isso, esse desejo de deixar uma carta em branco que, talvez, só possa dizer algo com o passar de certo tempo, quando o amarelado gasto do depois puder contar de outro jeito esse instante-agora.
que um dia haja mais o que contar, saudações dó sente...
Um dos primeiros elementos que afirmam a conexão remetente-destinatário na carta é a saudação inicial, geralmente, escrita abaixo da data e indicação do local onde foi escrita. A saudação indica o tom da carta. Nas cartas encontramos formas de saudação variadas: Caro professor(a) mais experiente; Caro leitor; Caro ou cara colega pós-graduanda(o); Querido ou Querida estagiário(a) de docência, como está?; Prezado colega, Caro(a) colega de pós-graduação; Querida/o colega; A um copartícipe do problema do lecionar; Olá! Tudo bem?; Prezada experimentadora (ou experimentador); Olá destinatário desconhecido; Oi; Olá aí. Seja qual for o conteúdo da carta, a saudação e a despedida são pontos de referência, pistas de como o remetente propõe que o destinatário participe da conversa. Configura uma posição de leitor, uma proposta de leitura.
A carta de Correspondente-semnome (Participante 1) não inicia formalmente com uma saudação ou menção direta ao destinatário, e sim com uma reflexão da autora a respeito de sua própria experiência de escrita: “Há muito tempo não escrevo uma carta”. Seguindo este mesmo tom, ao invés de escolher um pseudônimo, ela opta por não assinar a carta ao final. No email em que enviou sua carta em anexo, ela escreveu à pesquisadora: “Não assinei nem criei um outro nome pra mim. Mas, pra mim, tem todo sentido ser sem nome.”
A ausência de uma saudação inicial, assim como, de uma assinatura são escolhas estéticas que configuram um estilo de escrita conectado com o conteúdo da carta. Esta primeira carta é destinada a uma pessoa desconhecida de quem a participante tem poucas informações. Sabe apenas que é um(a) outro(a) estudante de pós-graduação stricto sensu. Embora o(a) destinatário(a) esteja ali presente, na imaginação do(a) remetente, sua imagem é vaga, pouco precisa. Assim, esta primeira escrita situa-se mais como uma carta de apresentação, voltada a localização da remetente como interlocutora, sem deixar de manter o caráter dialógico da escrita ao também propor uma posição de leitura.
Na escrita epistolar, a produção da ficção de um “si” e de um “outro” se faz no encontro intersubjetivo, na alteridade da relação remetente-destinatário (Costa, 2013). Conforme proposto por Cunha (2002, p. 184) “escrever cartas pessoais consiste em confrontar-se com códigos estabelecidos e, a partir deles, inventar/construir um lugar para si, através das palavras.” Não há como fugir do dialógico (Costa, 2013), mesmo que não se consiga estabelecer de antemão qualquer característica do correspondente de forma mais concreta. É a escrita de uma carta para falar sobre si, pensando na experiência de leitura de outrem. Uma escrita que compreende, em primeiro plano, a relação de composição entre escritor e leitor envolvendo a constituição de um posicionamento do remetente frente ao destinatário.
A Correspondente-sem-nome (Participante 1) continua sua carta localizando sua experiência de docência – “já faz um tempo que eu me sentia professora” – e apontando exemplos de como, no passado, era significativo para ela se ver docente pelo olhar do outro em situações cotidianas. Posiciona-se em relação à experiência do estágio de docência, mencionando sobre a sua relação com colegas de estágio e com as atividades do trabalho de estagiária como fatores que produziram modulações em sua forma de se perceber como professora. E, ainda no que se refere à experiência do estágio de docência, oferece uma coleção de palavras que lhe vem à mente: “vazio; inútil; não quero fazer de novo; inócuo; nem bom nem ruim; um nada que nem dói pra me fazer crescer”. A percepção da ausência de palavras mais positivas lhe leva a tentar ressignificar esta experiência buscando observar outros aspectos, o que inicia um processo de reposicionamento de si na relação com o destinatário ao final da carta: “Eu não quero parecer nem revoltada, nem mal-agradecida e, umas palavras soltas numa carta perdida, creio eu, podem até fazer com que a complexidade de uma experiência seja ‘mal-sentida’ por um leitor qualquer”. Tal movimento de reposicionamento, contudo, fica em aberto. Ele permanece inconcluso até ser retomado, mais adiante, na escrita de uma carta-resposta (Movimento 3), conforme discutiremos adiante.
Carta escrita por Clarice (Participante 2)
Porto Alegre, 27 de novembro de 2017
Carta para alguém que compartilha da prática de estágio docência...
Gostaria de trocar umas ideias sobre esta experiência de se experimentar no ofício de professor. Quem sabe encontraremos pontos em comum, angústias ou desafios vividos nesta prática? Talvez possamos compartilhar um problema que envolve esta atividade... ou construí-lo! Enfim, vamos ver para onde as palavras me levam. Minha primeira experiência foi durante o período do mestrado, há alguns anos. Eu nunca havia trabalhado, passei direto da graduação para o mestrado. Lembro da minha preocupação em querer “transmitir” o conteúdo dos textos, “dar conta” de todos os tópicos. Os alunos não eram do curso de Psicologia, eram das exatas, e isso exigiu mudanças na linguagem, no jeito de explicar, pois eles demandavam exemplos e explicações “práticas”. Foi interessante estar neste lugar de professor e recordo que o primeiro efeito foi uma transformação em um modo de ser aluna! Experimentando o trabalho de preparação das aulas, escolha dos textos, pesquisa de materiais de apoio (como vídeos, fotos, etc) me afetei com a complexidade do trabalho e me tornei uma aluna diferente. Surgiu uma outra implicação na minha relação com a formação, com a pesquisa e os estudos geral que passou por uma dedicação mais ampla e atenta com estes espaços. Nesta primeira experiência, sentia necessidade de explicar os conceitos de modo teórico, pois não tinha recursos de outras vivências de trabalho. O próprio percurso do mestrado foi intenso e cheio de desafios, e a pesquisa intervenção foi trazendo elementos para pensar, também, nos processos de ensino. Depois disso trabalhei em espaços na saúde e na educação públicas com equipes interdisciplinares, tive rápidas experiências como docente em instituições de ensino privadas e experimentei uma série de práticas, dilemas e intervenções que me transformaram.
Após retornar ao espaço de formação, agora no doutorado, estou vivendo novamente a experiência de estágio de docência, mas de um outro jeito. Consigo perceber o coengendramento dos referenciais teóricos com o mundo do trabalho na psicologia social, o que me permite traçar outras linhas de pensamento, dar exemplos e ficcionar intervenções e situações. Percebo uma grande diferença na duração das aulas, no sentido de intensidade, sem me preocupar com o tempo, ou se vou ter o que falar. Aposto no encontro com a turma e no que vai surgir no momento, além do que foi previamente preparado. Tento me preparar para a disponibilidade de construção e composição que uma aula exige, com aberturas para o que acontece. Parece que emergiu uma certa confiança no processo de aprender/ensinar, que é mútuo, e uma aposta no que vai ser produzido.
Minhas questões para pensar junto são as seguintes: O que se transmite nesta relação aluno-professor? Como o exercício do ensinar/aprender acontece? Não tenho respostas e nem quero encontrá-las, mas estas questões me afetam quando faço um exercício de reflexão sobre esta experiência. Penso que se transmite um certo modo de problematização sobre as diferentes questões que surgem, entre tantos outros afetos que atravessam estas relações. E o que você pensa sobre esta experiência? Como entende esses processos e o que mobiliza neste exercício? Quais problemas você destaca nesta prática, no sentido de um exercício de desnaturalização da experiência de ensinar/aprender? Espero que possamos trocar experiências sobre esta atividade cheia de complexidades!
Atenciosamente,
Clarice.
A leitura das cartas pelas suas respectivas destinatárias permite o encontro com a alteridade, que aciona processos de produção de si por meio do compartilhamento de posicionamentos, inquietações e experiências. A carta de Clarice (Participante 2) inicia com um endereçamento direto referindo que escreve “para alguém que compartilha da prática de estágio docência”. Isso engendra uma presentificação do destinatário (Tin, 2005), que está fisicamente ausente, mas é fortemente lembrado no endereçamento de uma escrita que se propõe dialógica. Ao escrever pensando naquele com quem estabelece o diálogo, a remetente produz uma relação entre ausência e presença, pois o destinatário torna-se fisicamente ausente e, implicitamente, presente (Gómez, 2002). Assim, a carta, como um ato de escrita, situa um “eu”, um “ele” e os "outros" colocados em relação (Moraes, 2008; Veronez, 2015). O endereçamento convida a uma construção coletiva de sentido, que pode ser entendido como uma intervenção de Clarice em relação à participante 1.
Clarice (Participante 2) continua sua escrita exercitando este duplo movimento: encontrar um lugar para si nesta troca de carta, ao mesmo tempo em que também propõe uma posição a ser ocupada por sua correspondente: “Quem sabe encontraremos pontos em comum, angústias ou desafios vividos nesta prática? Talvez possamos compartilhar um problema que envolve esta atividade…”. Existe a expectativa de que a troca de cartas contribua para processos de produção compartilhada de sentidos a respeito da atividade docente. Nesse sentido, a escrita de Clarice (Participante 2) convoca repetidamente à interlocução utilizando perguntas retóricas – “O que se transmite nesta relação aluno-professor? Como o exercício do ensinar/aprender acontece?” – e questionamentos diretos – “E o que você pensa sobre esta experiência?” – que demonstram sua expectativa de que a correspondente assuma um papel ativo na conversação escrita, ou seja, uma escrita-intervenção.
Compreendemos que o envolvimento de um leitor com um texto pode ser entendido como um tipo de interação social, especialmente em narrativas conversacionais que envolvem estar ou imaginar estar em contato com uma pessoa que irá participar da narrativa (Caracciolo, 2012), como na escrita epistolar. O endereçamento de uma carta compreende a produção de ‘um olhar para si’ realizado pelo remetente na escrita e pelo destinatário na leitura. Ambos os(as) correspondentes têm suas posições ajustadas, uma em relação à outra, na interação social. Como em uma dança, essas posições são produzidas e se movem em par. Esse é um dos aspectos que nos permite caracterizar a correspondência por cartas como um processo de produção compartilhada, uma vez que opera produzindo intervenções, e que interessa à pesquisa-intervenção.
A noção de produção compartilhada de sentido foi proposta por Di Paolo, Rohde e De Jaegher (2010) como uma extensão da compreensão enativa do processo de produção de sentido individual para o âmbito da cognição social. Considerando a visão enativa de que o acoplamento estrutural entre um sujeito e sua circunstância produz um domínio de significância, os autores propõem o estudo dos processos de produção compartilhada de sentidos como um modo de analisar a relação do sujeito com um aspecto específico de seu mundo: outro sujeito. A produção compartilhada de sentidos não é compreendida como um processo adicional a partir da cognição individual, ela configura o próprio operar da cognição reafirmando seu caráter interacional, intersubjetivo e, fundamentalmente, social (Popova, 2015). Aqui, propomos que a produção compartilhada de sentidos possa ser a resultante de uma intervenção operada entre os correspondentes na troca de cartas. Daí o interesse em pensar essa produção como uma estratégia de pesquisa-intervenção.
Em relação à escrita epistolar, consideramos que há processos de produção compartilhada de sentidos presentes nos quatro movimentos dessa pesquisa-intervenção. Em relação ao Movimento 2 (a leitura da carta de outro(a) pós-graduando), consideramos que, conforme proposto por Foucault (1992, p. 145), “a carta enviada age sobre aquele que a envia – em virtude do próprio gesto da escrita – e também atua, pela leitura e releitura, sobre aquele que a recebe”. Como ato, ela coloca personagens em cena – em uma menção ao campo semântico da representação teatral – o que propicia tanto ao remetente quanto ao destinatário experimentarem “papéis” e reinventaremse a partir de objetivos, afetos e percepções (Moraes, 2008).
Carta-resposta de Correspondente-sem-nome para Clarice
Querida Clarice,
Concordo com você... são inúmeras as questões nessa complexa jornada.
Eu também tive minha primeira experiência de estágio docente no mestrado, depois tive uma experiência prática como substituta numa federal e logo em seguida comecei a dar aulas como professora em uma faculdade particular.
Também tive que encontrar outro jeito de dizer as coisas – pois também dei aula em cursos bem diferentes da psicologia –, também me vejo repensando a prática docente a partir do estágio docente, no doutorado. Talvez a gente tenha viajado por espaços existenciais similares, mas há uma coisa diferente que me chamou muita atenção. Ser professora não me levou a ser uma aluna diferente. Mas, ao contrário disso, ser aluna tem incitado em mim muitas questões acerca do ser professora.
Meu eu-aluna questiona o que se transmite na relação que acontece entre um professor e eu. Eu fico pensando que ensinar-aprender é muito mais que transmitir conteúdos. Talvez meu eu-aluna veja o quanto é fundamental transmitir empolgação, entre outras coisas.
Pra mim tem sido diferente esse exercício de dar aula em um outro lugar – não sou do Rio Grande do Sul e fiz o estágio docente na UFRGS. Do mesmo jeito, há muito tempo não dava aula no curso de psicologia. É interessante acompanhar o processo de um outro professor, fazer uma vinculação com os alunos que nem é um vínculo de igual para igual (porque não somos colegas), mas que também não é o vínculo que se estabelece normalmente entre um aluno e um professor (porque os alunos entendem que o professor não é você – estagiário –, para os alunos, o professor é o docente nomeado pelo departamento).
A cada dia, acho a tarefa de ser professor mais difícil. E o estágio docente é uma experiência interessante-muitolouca, se você parar pra pensar nas circunstâncias desse processo. No estágio docente, você não está à frente da disciplina, está ao lado. Mas, esse ao lado não é exatamente um “ao lado no mesmo nível”, aquele que faz o estágio – no dia a dia da sala de aula – nem é exatamente aluno, nem é exatamente professor. Junto ao professor titular da disciplina, ele é aluno; mesmo que seja um aluno com voz a ser tomada com importância, é, sobretudo, um sujeito que precisa executar algumas tarefas dadas pelo professor titular. Na prática, geralmente é assim que funciona.
Às vezes eu me pergunto que “bom” aprendizado posso ter quando a minha tarefa é arrumar arquivos no moodle, organizar as datas do programa da disciplina, mandar mensagens para os alunos. Para mim, receber essa tarefa do professor me faz pensar que meu estágio docente é, antes de tudo, um mecanismo do professor titular para ter um ajudante e, consequentemente, menos trabalho. Foi assim que me senti, algumas vezes, no estágio docente. Ao mesmo tempo, já ouvi de uma colega que foi “muito legal” esse trabalho de atualizar o sistema e mandar recado para a turma. Essa minha colega disse que, fazendo esse trabalho “burocrático” de fora da sala de aula, sentiu que isso é uma parte importante do trabalho docente que precisa ser experienciada no estágio.
Enfim, o que para mim não fez nenhum sentido, para outra pessoa foi muito significativo. Por conseguinte, acho que se eu fosse professora – e fosse acompanhar um aluno que fosse fazer estágio docente na minha disciplina – iria viver essa experiência de estágio pensando que, ao invés de ver no estagiário a possibilidade de uma ajuda para facilitar as coisas, veria, na presença do estagiário, um grande trabalho a ser desenvolvido! O estagiário do estágio docente não deve ser alguém que vai ajudar o professor. Deve ser alguém que vai impelir o professor a auxiliar a formação de novo professor (isso é um grande trabalho!! Um trabalho de grande magnitude e um trabalho bem trabalhoso que tende a nos desestabilizar). Ou seja, a lógica está toda invertida!!! Não é aluno que vai “trabalhar para” o professor, mas é o professor que vai “trabalhar para” o aluno e, espera-se que, nesse processo, o professor trabalhe a si mesmo. Inicialmente, eu achei a minha primeira experiência de estágio docente na UFRGS catastrófica, por ocupar meu tempo como uma atividade que, ao meu ver, era muito vazia. Depois, tudo mudou. Tudo mudou quando a professora da disciplina me disse que o fato de eu estar com ela, fazendo estágio, fez com que ela repensasse todas as coisas já cristalizadas na sua prática docente. O fato de ter desacomodado um professor-dinossauro (como chamam os alunos) fez com que a experiência fosse totalmente ressignificada. Mas eu não sei com que frequência isso acontece.
Então, para além de pensar sobre o que se passa na relação entre professores e alunos, fiquei pensando o que se passa na relação entre professores e seus alunos-professores-em-formação – aqueles que como nós, cumprem o estágio docente. Eu queria destacar o termo “cumprem” porque muitas vezes o estágio docente é, de fato, sobretudo, o cumprimento de uma tarefa; nem sempre é algo da ordem do desejo, nem sempre acontece na disciplina que o aluno acha interessante, nem sempre é uma experiência significativa. A questão é: o estágio docente não se resume a aprendizagem de alguns conteúdos, como é o esperado em outras atividades da nossa vida-aluna. E, até que ponto, os professores (com alunos estagiários) se dão conta disso do início ao fim do estágio?
Na UFRGS, o meu programa criou uma disciplina de apoio ao estágio docente que é, na minha opinião, muito interessante. Mas, eu também me pergunto: será que dispor de um outro professor para debater as questões do estágio docente não seria, em certa medida, terceirizar o trabalho a ser realizado, principalmente, pelo professor que aceita o estágio em sua matéria?!
Não sei se existe uma resposta correta para essas questões. Talvez existam milhares de respostas possíveis. Mas, talvez, compartilhar perguntas seja mais importante que encontrar respostas.
Boa sorte pra nós,
Saudações dor sente.
Foucault (1992, p. 145), escreve que “a carta enviada age sobre aquele que a envia – em virtude do próprio gesto da escrita – e também atua, pela leitura e releitura, sobre aquele que a recebe”. Como ato, ela coloca personagens em cena – em uma menção ao campo semântico da representação teatral – o que propicia tanto ao remetente quanto ao destinatário reinventarem-se a partir de objetivos, afetos e percepções (Moraes, 2008). Observamos que a carta enviada por Clarice fez com que a participante 1 narrasse com maior densidade e detalhes suas indagações sobre o ofício docente bem como a experiência de estágio docente. Novamente, apontamos uma intervenção operada pela troca de escritas, o que pode indicar que esse tipo de interação possa ser uma estratégia interessante para a pesquisa-intervenção.
Epístolas, cartas... correspondência. Em latim, a expressão cum respondere possui o sentido de “responder de volta”, “estar em resposta com alguém”, sendo a ideia de reciprocidade central para a noção de correspondência (Godoy, 2010). Uma carta é uma das partes de um diálogo (Tin, 2005), que se desenvolve quanto maior for a correspondência entre remetentes e destinatários.
Como destacamos, a leitura da carta escrita por Clarice (Movimento 2), propiciou a Correspondente-sem-nome (Participante 1) adensar mais na escrita de uma carta-resposta. Ela se relaciona com alguém que possui um nome: Clarice; e de quem conhece mais o posicionamento nesta troca de cartas, em relação à docência e quanto às inquietações frente a formação docente oportunizada na pós-graduação.
A escrita ganha um outro contorno quando é endereçada de modo específico a alguém (Lima, 2017). A Correspondente-sem-nome (Participante 1) escreve uma resposta a Clarice que é permeada por mudanças de posição e também pela ampliação de reflexões, em comparação à sua primeira carta. Um primeiro reposicionamento pode ser observado pela saudação inicial, que fora suprimida na primeira carta, e que agora está presente em forma de aclamação: “Querida Clarice”, dando um tom mais afetivo à escrita. Comenta existirem similaridades entre ambas na experimentação da docência, após a finalização dos estudos de mestrado. Em especial, a experiência de ser docente em cursos de outras áreas de conhecimento que não a da psicologia. Mas aponta diferenças, por exemplo, em relação a como a experiência docente modifica, ou não, a forma de ser aluna ou vice-versa. A interlocução, para além desses aspectos, é tecida ao falar sobre questões propostas por Clarice (Participante 2), como a reflexão a respeito do que se transmite em uma relação entre professores e alunos, a partir da perspectiva de primeira pessoa.
A Correspondente-sem-nome (Participante 1) também aprofunda a reflexão a respeito de sua experiência atual como estagiária docente abordando sua relação com o local onde realiza a atividade, com a professora titular da disciplina (orientadora do estágio de docência), com os discentes e com os colegas de estágio. A atenção para a forma como se constituem essas relações origina a compreensão do estágio docente como uma posição de interstício na qual não se é exatamente aluno, nem professor, condição que possibilita a emergência de outros sentidos em relação às atividades realizadas, ressignificando sua experiência como estagiária.
Carta-resposta de Clarice para dó sente
Porto Alegre, abril de 2018.
Prezada “dó sente”!
Lendo tua carta fiquei pensando sobre a experiência docente a partir desse lugar de aluna-professora, aluna que ensina, mas é avaliada como aluna. Esta experiência pode produzir um deslocamento no sentido de aprenderensinar, pois o estágio docente coloca em evidência a condição de que, de um certo modo, sempre podemos aprender, ainda que muitas vezes o lugar de professora convoque um fluxo unilateral desse vetor – como se apenas o aluno ou aluna estivesse em posição de aprendizagem. Talvez esse movimento de aprender-ensinar seja uma linha de força que pode se deslocar constantemente na prática docente.
Também senti, assim como tu, que minhas experiências de estágio docência deram trabalho e que uma das coisas mais interessantes foram as trocas com outras pessoas, possibilitadas por esta vivência. Entretanto, para mim também foi interessante porque pude criar propostas e inventar jeitos de pensar a disciplina, os conteúdos e as aulas, o que tornou a prática docente desafiadora, contribuindo para minha formação como docente e como aluna.
Talvez estas práticas pudessem se abrir mais para possibilidades de criação dos alunos e alunas em estágio docência, para que não fiquem restritos aos programas das disciplinas previamente organizados. Quando tu falas da inutilidade dessa experiência, me remeteu ao estágio como cumprimento de uma tarefa e de reprodução de uma disciplina já organizada por algum professor, sem muito espaço de autoria. Também me fez pensar sobre uma questão: o que é útil ou inútil em um processo de formação?
Teu instante-agora e tua sensação de inutilidade produziram reflexões. Vazios inúteis também são produções, geram efeitos e me fizeram escrever esta carta!
Saudações,
Clarice.
Podemos observar a proposição e renegociação de valores relacionados à docência e também quanto a sua própria implicação no processo de formação para a docência. Assim, a característica dialógica da escrita epistolar proporciona que ocorram modulações na percepção de si em meio a produção compartilhada de sentidos entre as correspondentes. A atitude colaborativa das participantes quanto a partilhar reflexões sobre o exercício da docência possibilita que sejam colocadas lado a lado as semelhanças e diferenças em relação aos percursos de formação e de atuação profissional, de forma que um movimento de intertextualidade se constitui marcado pela heterogeneidade.
Na intertextualidade não observamos o interesse em estabelecer uma unidade de pensamento, a partir da identificação de semelhanças. Em vez disso, podemos perceber uma abertura ao diálogo e ao compartilhamento de pontos de vista que sustentou a possibilidade de seguir produzindo diferenças – e não homogeneização – nas formas de sentir e perceber a formação para a docência. A partir das trocas entre as correspondentes, emerge um processo de composição, negociação e renegociação de sentidos que não podem ser analisados em uma direção única do remetente ao destinatário ou vice-versa. Assim, a correspondência por cartas envolve mais do que uma produção de sentidos individuais e sua transmissão à outra pessoa. Em vez disso, compreendemos que os sentidos emergem como um processo na ação conjunta entre os correspondentes, ou seja, de uma intervenção entre ambos. Não acompanhamos os efeitos das leituras das segundas cartas pelos participantes. Mas a segunda carta de Clarice mostra alguns movimentos de construção coletiva de sentido. Ela escreve uma saudação inicial que diz: Prezada “dó sente”! Compreendemos que esta saudação reconfigura a forma como a Correspondente-sem-nome (Participante 1) desejava ser nomeada. Este nos parece um bom exemplo de como alguns elementos da escrita podem adquirir um sentido diferente a partir do sentido atribuído pelo(a) correspondente. É preciso considerar não só a perspectiva de quem escreve, mas também a experiência de leitura do destinatário (leitor) para compreender o espaço intersubjetivo a partir do qual os sentidos emergem (Godoy, 2010). A produção compartilhada de sentidos em uma narrativa envolve diretamente os destinatários – assim como o(a) escritor(a) – em um processo de cooperação do ponto de vista autoral (Caracciolo, 2012). Refletindo a respeito da experiência de leitura literária, Popova (2015) argumenta que
(...) quando nós lemos recriamos uma situação, um momento, um ato, para entendê-lo. Esse entendimento é compartilhado, mas também pessoal e dependente de muitos fatores, como gênero, conhecimento, habilidade verbal e experiência, entre outros. Entre nós e a história uma relação constitutiva é formada (p. 76, tradução nossa).
Para a autora, a leitura de uma narrativa escrita compreende então um duplo movimento: completamos a narrativa nos tornando participantes dela, assim como a tornamos parte de nós. Os sentidos que emergem do encontro do(a) leitor(a) com um texto não se encontram nas palavras prontos para serem desvendados, nem estão no interior da pessoa esperando serem descobertos. Eles estão no espaço “entre” que se produz a cada encontro com a escrita e leitura das cartas e, nesta pesquisa, também com o contato com a pesquisadora e sua leitura das cartas das participantes.
Popova (2015) sugere que a noção de produção compartilhada de sentido proposta por De Jaegher e Di Paolo (2007) captura bem a ideia de que, sendo emergentes, as interações sociais são dinâmicas, inesperadas e em certa medida imprevisíveis e, por isso, envolvem tanto padrões de coordenação, quanto de quebras e recuperação de coordenação entre indivíduos.
Pode-se supor que a coordenação acontece apenas quando o esforço conjunto de produção de sentido é visto como bemsucedido, quando sentimos que uma história específica fez sentido para nós. No entanto, acordo nem sempre é alcançado ou alcançável, e a coordenação ainda deve ser vista como estando presente, embora o entendimento não tenha ocorrido como o esperado. Emoções narrativas como curiosidade, surpresa e suspense são de fato o resultado de tal conflito contínuo entre a construção causal do leitor através de tentativa e erro da dinâmica narrativa que se desenrola [...]. Uma história literária, muito mais do que as que contamos diariamente, depende de como a narrativa decide e organiza o que é contado, que o leitor enatua (encena) momento a momento no processo de produção de sentido. Isso raramente é um processo linear, deixa lacunas, ambiguidades, perspectivas rivais e abertura muitas vezes não resolvidas (Popova, 2015, p. 77, tradução nossa).
Clarice (Participante 2) utilizou o pseudônimo Dó-sente para referir-se a Correspondente-sem-nome (Participante 1), considerando a assinatura presente na primeira carta. Qual teria sido a reação da Participante 1 ao ler a carta-resposta de Clarice? Será que, havendo a possibilidade de escrever uma nova carta à Clarice, ela falaria a respeito desse processo de nomearse e/ou de adquirir um nome durante a troca de cartas entre as duas? Será que a Participante 1 continuaria a troca de cartas assumindo o pseudônimo Dó-sente? Entretanto, a troca de cartas se encerrou antes que tivéssemos respostas para essas perguntas e para que pudéssemos entender os efeitos nas participantes, para além dos colhidos nas escritas trocadas. O percurso realizado até aqui, contudo, nos proporcionou refletir sobre a importância da participação e agência de cada participante nos processos de produção compartilhada de sentidos. Tal questão permanece relevante ao abordarmos a dimensão intersubjetiva na formação docente, tema interessante para pesquisas futuras.
Considerações Finais
A proposta de analisar a escrita epistolar como uma estratégia de pesquisaintervenção se configurou como uma aposta nos processos de produção compartilhada de sentidos que aquela modalidade de produção textual engendra. Assim, as intervenções recíprocas entre as cartas lidas e trocadas evidenciam que essa modalidade de estratégia metodológica pode ser interessante para a pesquisa-intervenção. A escrita de cartas, na tradição epistolar, constitui uma narrativa coloquial e em primeira pessoa, que coloca realce à relação remetente-destinatário e convoca à implicação na narrativa. Como uma conversação escrita, as cartas envolvem a relação a estabelecer com a pessoa a quem se escreve (Filho, 1961), em meio a escritas e reescritas de si. O remetente produz narrativas sobre si, se tornando objeto de sua própria atenção em meio ao tensionamento da relação eu-outro, remetente-destinatário.
Compreender as cartas autorreferentes como uma escrita/reescrita de si significa considerar um duplo movimento que essa modalidade de escrita engendra: as narrativas moldam experiências, assim como são compostas por elas. A polifonia nos modos de narrar aponta o potencial da escrita como processo de transformação das relações entre os sujeitos, as instituições e as técnicas, como é o caso do próprio correio de cartas. Em nossa pesquisa, as situações experienciadas pelos pós-graduandos em relação à docência constituem sequências de eventos que dão estrutura e conteúdo às narrativas. Ao serem narradas, produz-se uma nova experiência no próprio exercício da escrita. A ação de escrever a respeito de acontecimentos, sentimentos e percepções não configura uma “reprodução” destas experiências, embora se organize em relação às mesmas (Maturana, 2001). O processo de explicar, refletir, descrever... mantém uma conexão à situação passada, assim como constitui uma nova experiência na linguagem. A correspondência entre os participantes têm, assim, a potência de promover singularidades nos atos de escrita (Godoy, 2010) e estabelecer relações de espaço e tempo que deixam rastros do entrecruzamento entre afetos, produções de mundos e testemunhos de vida (Lemos, Nascimento & Galindo, 2016). No encontro dialógico que a troca de cartas promove, podemos observar sua potência como dispositivo de aprendizagem compartilhada. Aprender com o outro, este é um dos eixos principais da correspondência ao produzir presenças. A escrita de cartas se constitui como um dispositivo de vir-a-ser (Lima, 2017) processual e produzido coletivamente.
A pesquisa-intervenção distancia-se dos pressupostos epistemológicos da pesquisa-ação ao abandonar o caráter previamente determinado ou o sentido das produções em campo. A proposta metodológica tomada como foco neste artigo visava romper, não apenas com as noções de verdade e neutralidade, sujeito e objeto, mas também com as separações entre pesquisador e campo de pesquisa, entendendo que existem jogos de poder nos quais ambos estão imersos. O conceito de análise de implicação (Rocha 2006), indica que as posições ocupadas pelas pesquisadoras também estão atravessadas por intensidades que afetam o campo de pesquisa e produzem efeitos processuais e múltiplos, ainda que sejam distintos em diferentes corpos. Neste sentido, a troca de cartas faz emergir possibilidades de análise de implicação para as pesquisadoras e para o campo de modo a criar um processo de análise coletivo. A escrita epistolar, na medida em que se produzia como uma troca, incitava a análise de implicações das docentes-pesquisadoras em relação à produção de si enquanto docentes também e à produção coletiva de sentidos nas relações entre sujeitos, instituições e jogos de poder.
A correspondência enquanto prática de pesquisa-intervenção também concentra sua potência em passagens nas quais observamos que este tipo de escrita envolve mais do que a produção singular de sentidos, mas estabelece uma relação coletiva na qual o debate se coloca como centro da narrativa. Surgem também alguns analisadores ao longo do caminho, como a auto-designação "dó sente", que deixa em aberto questões sobre uma troca de cartas mais longa. Os analisadores, para a pesquisa-intervenção, são instrumentos chave para a produção de conhecimento, pois são acontecimentos que atualizam o não dizível das relações institucionais. O convite a narrar e trocar experiências desloca as condições e possibilidades de compartilhamento e expressão, fazendo emergir novos analisadores.
Além disso, ao se configurar como uma ferramenta para a problematização das práticas de formação docente na pós-graduação stricto sensu, a escrita epistolar nos possibilita acompanhar processos de produção compartilhada de sentidos no campo experiencial afetivo-reflexivo que emerge da relação entre os correspondentes. O remetente produz uma narrativa que configura um território existencial, um ethos, tanto para si, como também para o destinatário – ao presentificá-lo na escrita. Conforme discutimos, isso acontece, por exemplo, pela maneira como cada correspondente escreve a saudação inicial e a despedida. São elementos textuais que configuram posições de escrita e leitura, ou seja, modos de posicionamento remetente-destinatário, que se constituem em par. Nesse processo dialógico, os sentidos em relação à formação docente experienciada na pós-graduação stricto sensu são produzidos coletivamente. Eles não refletem a expressão de processos unicamente individuais, pois se constituem em um campo compartilhado de práticas de escrita e leitura. Assim, a produção compartilhada de sentidos pode acontecer, mesmo que dê de modo não presencial (Popova, 2015), como no caso deste estudo, pela troca de cartas.