Introdução
A política de saúde mental brasileira tem como marco a Lei nº 10.216/01 (Brasil, 2001) e está em consonância com os princípios da atenção preconizados pela Organização Mundial da Saúde (OMS). O modelo de cuidado é congruente com as convenções de direitos humanos e prioriza a singularidade das pessoas, respeitando suas necessidades, sendo ofertado em serviços substitutivos ao manicômio (Amarante, 2007; World Health Organization (WHO), 2015). Dentre os serviços, estão os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), que priorizam o desenvolvimento da autonomia e a reinserção social, além da promoção da cidadania e garantia de direitos, pautados na atenção psicossocial e na integralidade do cuidado (Brasil, 2002). Em 2011, os CAPS tornam-se um dos componentes da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), que tem como diretrizes: atenção humanizada e centrada nas necessidades das pessoas; garantia de acesso e qualidade dos serviços, com atividades no território; e oferta de cuidado integral e assistência multiprofissional, com estabelecimento de ações intersetoriais (Brasil, 2011).
Esse campo é baseado na transversalidade de saberes e práticas que passaram por transformações até a consolidação da atenção psicossocial. No âmbito técnico-assistencial, as mudanças envolvem compreender o sujeito para além do sintoma, tendo em vista suas vicissitudes, desejos e anseios. Assim, amplia-se a noção de integralidade, com o propósito de superar a visão fragmentada e especialista da psiquiatria clássica. Os serviços são entendidos como dispositivos estratégicos com a função de cuidar, acolher, possibilitar a sociabilidade e a produção de subjetividades (Amarante, 2007).
Nesse sentido, destaca-se a integralidade como uma das diretrizes de cuidado do Sistema Único de Saúde (SUS), que assegura aos usuários acesso aos diferentes níveis de atenção, com uma visão mais abrangente dos sujeitos e atribui o cuidado à equipe multiprofissional. Segundo Mattos (2009), a integralidade é um conjunto de valores que deve ser buscado nas práticas de cuidado em saúde. O conceito de integralidade envolve compreender a pessoa em sua totalidade, considerando aspectos sociais, econômicos e políticos presentes em sua vida, assim como suas relações na família, comunidade e sociedade. O que representa um grande desafio, principalmente do ponto de vista cultural, pois envolve romper padrões de intervenções cristalizados. Desse modo, deve-se considerar um conjunto de dispositivos sanitários e socioculturais que abrangem diferentes dimensões da vida e, para isso, é fundamental a diversificação de serviços e ações intersetoriais.
A intersetorialidade, enquanto princípio da rede de cuidados, diz respeito a estratégias que atravessam a sociedade e, consequentemente, as políticas públicas, abrangendo a garantia de direitos sociais, como educação, trabalho e lazer (Amarante, 2007). Sua estruturação ocorre no campo do fazer, tornando disponíveis aos profissionais novas perspectivas e formas de realizar uma assistência mais integral e resolutiva. A centralidade passa a ser o usuário e a promoção da saúde e da qualidade de vida (Filho, 2000).
Cabe destacar que existem desafios importantes para a qualificação e consolidação da atenção psicossocial, principalmente no que tange às alianças sociais com recursos do território e da cidade que agreguem na invenção de estratégias de cuidado e participação social (Amarante, 2007). É necessária a articulação entre a rede de saúde, a comunidade e a rede intersetorial (justiça, educação, cultura, assistência social, geração de renda, trabalho), o que torna relevante conhecer de que forma essas relações acontecem na prática dos serviços.
Embora a análise da atenção à saúde mental apresente avanços no país, estudos têm destacado a importância do desenvolvimento de novas pesquisas de avaliação visando sua qualificação (Mendes & Rocha, 2016; Oliveira, Andrade & Goya, 2012; Trapé & Campos, 2017). Nessa perspectiva, a literatura aponta como um dos principais desafios o desenvolvimento do trabalho conjunto do CAPS com outros serviços e setores, o que exige uma forma de organização que ultrapasse as ações internas ao CAPS (Leal & De Antoni, 2013, Mororó, Colvero & Machado, 2011; Oliveira et al., 2012). Sendo assim, tendo em vista os conceitos de integralidade e intersetorialidade, o objetivo deste trabalho foi analisar a articulação do CAPS com diferentes componentes da rede e sua operacionalização a partir da experiência de profissionais de Porto Alegre.
Método
Este estudo teve delineamento qualitativo, exploratório e analítico e foi conduzido entre janeiro e maio de 2019 em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Os participantes foram escolhidos por conveniência, sendo incluídos por possuírem experiência mínima de quatro anos de atuação em CAPS. Foram entrevistados 11 profissionais, sendo quatro psicólogas, um psicólogo, duas psiquiatras, duas enfermeiras, uma pedagoga e uma terapeuta ocupacional.
O contato foi realizado através de correio eletrônico e, após o aceite, as entrevistas foram agendadas em local que garantisse a privacidade e confidencialidade dos dados fornecidos. Foram abordadas questões sobre os pressupostos da atenção psicossocial e a articulação do CAPS com a RAPS e rede intersetorial e sua operacionalização, além de impasses percebidos na sua efetivação. As entrevistas duraram aproximadamente uma hora cada e foram gravadas e transcritas na íntegra. Para preservar o sigilo da identidade dos participantes, as falas foram identificadas como P1, P2 e assim sucessivamente.
Realizou-se a Análise Temática (Braun & Clarke, 2006) dos dados, com apoio do software Atlas.ti para codificação dos temas e agrupamento em famílias temáticas. Utilizou-se a articulação do CAPS com outros serviços, instituições e a comunidade para a organização das famílias. Nessa análise, foram consideradas a frequência de citações e a capacidade de enunciar como ocorre sua operacionalização.
A pesquisa foi aprovada pelos Comitês de Ética em Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e da Secretaria de Saúde de Porto Alegre sob número CAAE: 99709118.6.0000.5336, e pareceres nº 2.949.849 e 2.978.412. Os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), respeitando as diretrizes e normas reguladoras de pesquisas envolvendo seres humanos conforme disposto na Resolução nº 510 de 2016 (Brasil, 2016).
Resultados e discussão
Os dados das entrevistas foram divididos em dois eixos: articulação do CAPS com a Rede de Atenção Psicossocial e articulação do CAPS com a rede intersetorial. Realizou-se a análise a partir dos conceitos de integralidade e intersetorialidade, com o intuito de entender de que forma os CAPS trabalham para contemplar a singularidade e complexidade dos sujeitos e suas demandas, ultrapassando um olhar voltado somente à doença.
Articulação com Rede de Atenção Psicossocial (RAPS)
Os entrevistados apontam que é fundamental que os serviços, visando o cuidado integral, conheçam seu território e os recursos nele oferecidos. Ainda, destacam a importância de conhecer as características da comunidade como um todo, não se limitando aos sujeitos atendidos pelo CAPS. De acordo com Amarante (2007), esse conhecimento não se restringe ao espaço geográfico, sendo composto por alianças sociais que participam da criação de estratégias de atenção e aumentam a sociabilidade dos usuários.
O serviço não pode estar só funcionando dentro dele. Eu vejo o trabalho do CAPS como várias mãos no território. Acessando outros dispositivos, fazendo essa interface de trabalho em rede, justamente para a gente dar conta de todas as demandas, que são bastante complexas. (P4)
Conhecer o cenário da vida cotidiana auxilia na elaboração do Plano Terapêutico Singular (PTS) conforme a demanda de cada usuário e os recursos disponíveis na região, tornando possível a realização de diferentes atividades, como, por exemplo, exercício físico, inclusão em festas ou iniciativas de economia solidária. Mororó et al. (2011) destacam a necessidade de existirem diálogos sistemáticos sobre a história de vida e o projeto terapêutico dos usuários na direção de práticas mais inventivas e compartilhadas, possibilitando maior efetivação da integralidade, troca de informações, assim como a reavaliação e renovação dos projetos.
Nessa direção, Ferreira, Sampaio, Souza, Oliveira e Gomes (2017) pontuam a importância de efetivar a desinstitucionalização na perspectiva de circulação do sujeito no território “sem o sobrenome do serviço em sua identidade”, no pertencimento desse espaço povoado por pessoas com existências singulares. Esse aspecto é destacado por diferentes profissionais:
É um processo, de conhecer quem são, associação de bairro, por exemplo, eles utilizam, fazem festas e convidam eles (usuários do CAPS). Tem toda uma relação que é para além do território geográfico mesmo, essa questão de estar ali fazendo parte da vida das pessoas. (P3)
A partir do momento que tu abres para a comunidade, a impressão que dá é que o usuário passa a circular mais também, ressignificar alguns espaços. (P6)
Dessa forma, quando o intuito é desenvolver a cidadania e diminuir o estigma social, é importante ter clareza de que as atividades realizadas dentro do serviço são limitadas e têm baixo impacto. Em contrapartida, a utilização de recursos da cidade por usuários e familiares, como shoppings, parques e museus, são estratégias pertinentes para superar preconceitos e proporcionar momentos de lazer (Azevedo, Ferreira Filha, Silva, Silva & Dantas, 2012).
De acordo com Dutra e Oliveira (2015), as atividades realizadas no território buscam valorizar o usuário enquanto cidadão e ser social, em sua individualidade e autonomia, visando impactar positivamente a saúde. Esse processo deve acontecer de dentro para fora dos serviços, através da relação do usuário com o profissional e da relação da equipe com as pessoas e recursos do território, podendo ter efeitos em minimizar estigmas e preconceitos em relação aos transtornos mentais.
Eu acho que o CAPS é pra isso. À medida que a pessoa vai melhorando e vendo outras possibilidades, que a gente pudesse ter centro de convivência, ter a rede de atenção com oficinas, grupos terapêuticos, geração de renda. (P7)
Os entrevistados apontam para a centralidade que o CAPS ocupa no acompanhamento dos usuários. Nesse sentido, embora destaquem a importância do serviço enquanto referência de cuidado, indicam que é importante que isso seja temporário e perdure apenas enquanto houver necessidade. Segundo Mielke, Kantorski, Olschowsky e Jardim (2011), são constatadas dificuldades quando o CAPS não é apenas um local de suporte terapêutico, mas o único espaço de troca social para os sujeitos que utilizam o serviço.
Nessa perspectiva, reforça-se a importância de que a articulação com a rede e a comunidade faça parte do planejamento do serviço, enquanto cultura a ser trabalhada e desenvolvida com usuários e recursos locais. Uma alternativa possível para conhecer e ampliar as possibilidades e estratégias envolve o vínculo com a Atenção Básica, apontada pelos entrevistados como principal ponto de conexão do CAPS, podendo auxiliar a tornar a assistência do CAPS progressivamente desnecessária.
A gente fazia muito grupo, chamava de descentralização, nos postos de saúde, uma vez por mês um grupo aberto de saúde mental, os pacientes do CAPS participam, na sua comunidade, no seu espaço, desse grupo. A gente não vai falar só de problemas, também vem pra falar de coisas boas que estão acontecendo na nossa vida, trocar experiências, e muito com a ideia de fortalecimento de vínculos dentro do território de moradia da pessoa. (P9)
Os entrevistados apontam para a importância da corresponsabilização do cuidado e uma “poliarquia” na rede, ficando responsável pelo cuidado, enquanto coordenador e articulador da atenção ao usuário, o serviço ao qual ele estiver vinculado conforme sua necessidade, ou ainda, através de atividades conjuntas, como exemplificado na fala:
Coordenador do cuidado, ativador da rede, a partir da necessidade do usuário. Aí vem a ideia da poliarquia na rede, que é não ter hierarquia. Entra em qualquer uma das áreas e comanda o cuidado, conforme a necessidade do paciente. Vamos fazer junto uma corresponsabilização. (P11)
Essas atividades têm como proposta fortalecer vínculos, estreitar laços e estabelecer rede de apoio comunitária, criar estratégias coletivas, receber e fornecer suporte e trabalhar a solidariedade. Os entrevistados apontam que essa relação é indispensável para atender as necessidades do usuário contemplando outros atravessamentos que não são só de saúde, ou seja, através de um olhar mais ampliado na avaliação e planejamento do cuidado. Nessa direção, Amarante (2007) afirma sobre a importância dos serviços buscarem sair de suas sedes físicas em direção a vínculos com a sociedade que permitam ampliar e complementar os recursos disponíveis, formando pontos de encontros e trajetórias de cooperação, com iniciativas simultâneas e participação conjunta de diferentes atores sociais.
Um estudo com usuários que tinham internações psiquiátricas frequentes mostrou que o convívio social pode ser restrito por conta do transtorno, seja pelos sintomas que levam ao isolamento ou pelo estigma e preconceito que vivenciam. Esse afastamento da comunidade pode levar à esquiva de espaços públicos e meios sociais, à diminuição da identidade cidadã, assim como à sobrecarga das famílias (Silveira, Rocha, Rocha & Zanardo, 2016). Enquanto isso, o aumento de serviços substitutivos, como os CAPS, está associado à redução das taxas de internações psiquiátricas. Sendo assim, apesar de existirem limitações na atuação dos CAPS e sua operacionalização, esse tem sido um instrumento fundamental para o rompimento e superação do modelo centrado na lógica do isolamento (Rocha, Reis, Santos, Melo & Cherchiglia, 2021). Destaca-se a importância de trabalhar a relação com os serviços através da corresponsabilização e de dispositivos que fortaleçam a articulação com a rede e construam um cuidado compartilhado e colaborativo, como o apoio matricial, identificação da demanda, reuniões, contato imediato e busca ativa (Zanardo, Bianchessi & Rocha, 2018).
Os profissionais entrevistados no presente estudo também destacam a alta demanda que o CAPS recebe e a impossibilidade de se encarregarem do número de usuários, da complexidade, ou mesmo da prevenção ou articulação com a rede. Ainda, indicam que há usuários que poderiam ser acompanhados em um serviço de menor complexidade, mas sua vinculação ao CAPS contribui para sobrecarregar esse serviço. Esses são fatores que levam, segundo os relatos, a um serviço “inchado e cronificado”, tanto pela quantidade de usuários, quanto pela falta de mobilidade em relação a suas demandas.
Nessa direção, estudos realizados em Porto Alegre e região metropolitana detectaram uma demanda reprimida nos CAPS, em que mais de 50% dos serviços possuía lista de espera para atendimento, encaminhados principalmente pela Atenção Básica e hospitais, e 63% possuía parceria com a rede básica através de apoio matricial, não sendo relatada articulação com Centros de Convivência (Leal & De Antoni, 2013). Foi também constatado pouco conhecimento e participação dos usuários em relação a oficinas de geração de renda e cooperativas sociais, o que aponta para a baixa oferta dessas estratégias, podendo levar a sobrecarga do CAPS pela falta de recursos na rede (Zanardo, Silveira, Rocha & Rocha, 2017). Esses serviços são essenciais na composição do apoio social, na ampliação da circulação e apropriação dos sujeitos dos seus territórios e no desenvolvimento da autonomia.
A centralidade da rede vai depender do usuário, que não é necessariamente o CAPS naquele momento, pode ser a atenção básica, o residencial terapêutico. O CAPS tem esse papel, ele é um dos dispositivos e vai ter que buscar essa articulação com os demais componentes da rede pra atender aquele usuário naquele momento, que tem “n” questões que estão atravessando a vida e poder fazer esse olhar mais ampliado de avaliação e de cuidado. (P1)
É importante destacar que, conforme a literatura, falhas na comunicação da rede e no processo de transição do cuidado, assim como a falta de recursos territoriais, podem gerar novas e recorrentes internações psiquiátricas, que é o fenômeno conhecido como porta-giratória (Silveira et al., 2016; Vigod et al., 2013; Zanardo et al., 2017). Em Porto Alegre, as internações não são feitas de forma territorial, dificultando a continuidade de acompanhamento e contato entre as equipes, podendo também ocasionar diferentes condutas. Esse fato foi pontuado nas entrevistas enquanto dificultador do processo de cuidado, já que por vezes a avaliação da equipe do CAPS, que acompanha o usuário de forma mais próxima e longitudinal, difere da avaliação pontual realizada por profissional no Pronto Atendimento:
Outro espaço de regulação é o Pronto Atendimento. Aí sim a gente vai falar de dificuldade, desde o profissional que está fazendo avaliação e eu vendo que o usuário tem critério de internação, aí chega lá e difere da avaliação médica, dizendo: “Não, essa pessoa não precisa de internação”. Às vezes, o CAPS diz que deve internar, a gente está acompanhando esse sujeito, a gente está vivendo, a gente já tentou várias estratégias e não está funcionando. (P4)
Esse achado vai ao encontro de um estudo com profissionais da RAPS que referiram que a regulação das internações através das Emergências Psiquiátricas não parece ser a mais adequada, questionando os critérios da avaliação momentânea realizada por um profissional que desconhece o usuário (Zanardo et al., 2018). Outra pesquisa aponta que os impasses em relação a porta de entrada da RAPS revelam as dificuldades de profissionais nessa articulação e uma necessidade de capacitação para qualificar esse funcionamento (Scheffer & Silva, 2014). Nesse aspecto, os entrevistados mencionam algumas formas de contato direto com a internação, para trocar informações entre profissionais, para dar continuidade aos casos, entre outras maneiras de articulação:
Às vezes, a gente busca informações (com a internação), porque a psiquiatra quer conversar de psiquiatra para psiquiatra. Às vezes, ligam para saber: "Qual é o horário de vocês? A gente tem um paciente que está saindo”. (P2)
A rede de álcool e drogas é nossa melhor rede em Porto Alegre, a mais integrada. Rigidamente, a cada dois meses tem um encontro das comunidades terapêuticas, das internações e dos CAPS AD e, a despeito de todas as críticas, têm duas comunidades que funcionam relativamente bem, que mudaram muito o processo de trabalho a partir dessas reuniões. (P1)
Têm usuários que a orientação é a seguinte: saiu da internação, tem até 30 dias para chegar no serviço especializado e ser atendido imediatamente, pode ir para um CAPS, para uma equipe de saúde mental, com a sua nota de alta e deve ser acolhido. (P1)
Assim, percebe-se no relato dos profissionais desta pesquisa a existência de reuniões de rede para discussão e integração das equipes, realizadas regularmente entre os serviços de atenção a usuários de álcool e outras drogas e a organização em algumas regiões da cidade em relação ao momento da alta hospitalar. Os usuários são orientados a buscar os serviços, conforme vínculo já estabelecido, para dar seguimento ao acompanhamento.
Articulação do CAPS com a Rede Intersetorial
Os entrevistados apontam a importância de contar também com o contexto intersetorial, incluindo aspectos culturais, de educação, da assistência social, do trabalho e da justiça. É reforçado o olhar que se distancia da concepção de dependência dos sujeitos ao CAPS e que se aproxima da produção de vida e da sua relação com a cidade em busca de produção de cidadania. Essa percepção vai ao encontro de outros estudos (Amaral, Carvalho, Araújo & Aurino, 2017; Leal & De Antoni, 2013; Mendes & Rocha, 2016), em que se reconhece a necessidade de trabalhar a intersetorialidade para garantir a continuidade e qualidade do cuidado, o que favorece também a ampliação de ações e evita o fechamento dos usuários nos próprios serviços.
Nesse sentido, Santiago e Yasui (2015) destacam a importância da intersetorialidade na consolidação de outros modos de viver coletivo, mais compreensivos e relacionais, através da superação do modelo manicomial. Os profissionais mencionam essa questão nas entrevistas, contudo, pontuam que os serviços ainda possuem dificuldades na sua efetivação:
A gente não tem como fazer um trabalho efetivo em saúde se não se articula, principalmente com a assistência social, e se a gente está falando de infância, com a educação. Eu acho que essa é uma barreira, eu não entendo como a RAPS está montada sem colocar pelo menos representantes dessas outras esferas. (P7)
O CAPS tem uma tendência muito grande a se institucionalizar, criar uma lógica fechada quando tem que ter uma lógica de fluxo com a rede. Então, se eu não tiver a atenção básica, não vai funcionar. Se ele não se articular com outros setores fora, educação, cultura, ele vai ficar reduzido só à saúde mental. (P6)
Os participantes relatam que a maior dificuldade na efetivação da intersetorialidade é a falta de recursos. Associam a permanência no CAPS à carência de residenciais terapêuticos, de vínculo com a escola, de formas de gerar renda e trabalho e de alternativas comunitárias. Em estudo realizado em João Pessoa, constatou-se tanto dificuldades no contexto interno dos CAPS, como estrutura precária, falta de recursos para atividades externas e ausência de programa de educação permanente, quanto problemas advindos da rede, ao encontrar obstáculos desde o “básico” dos serviços até o trabalho externo (Amaral et al., 2017).
Apesar dos CAPS darem conta da atenção psicossocial, conforme os entrevistados, faltam aspectos para contemplar a complexidade do cuidado e ampliar possibilidades de vida. Um estudo realizado na Região Metropolitana de Porto Alegre avaliou que cerca de um terço dos CAPS raramente realizava discussões de casos com outros setores, sendo que as articulações mais frequentes eram com a Assistência Social, a Educação e o Judiciário e, em menor frequência, com associações de bairro, centros comunitários e cooperativas de trabalhadores (Leal & De Antoni, 2013).
(O usuário) sai de um modelo em que era só colocado no hospital e de lá saía para casa ou para rua. Hoje ele pode estar super vinculado com o CAPS, mas quando o serviço e a rede não produzem essas articulações com a cidade, também não estamos avançando na relação com a cidadania e, de novo, reproduzindo essa lógica de ficar CAPS-dependente. Acho que o risco é os CAPS ou a rede capturarem de novo o usuário na centralidade do cuidado, mas também na centralidade da vida. (P8)
Os profissionais deste estudo compreendem a relevância da relação entre o usuário e o CAPS, mas apontam a necessidade de trabalhar para fora do serviço, tanto na ampliação do suporte, como também para que não permaneçam dependentes da “tutela” de profissionais. No que se refere a esse aspecto, Oliveira et al. (2012) perceberam a importância atribuída por usuários à possibilidade de liberdade para realizarem escolhas, além do sentimento de pertença e aceitação de suas singularidades. Nessa perspectiva, a educação foi abordada nas entrevistas, pois frequentemente aparece na organização do PTS dos usuários o desejo de voltar a estudar, exigindo articulação junto à Secretaria de Educação. Observa-se a importância dessas relações sociais, do papel do CAPS enquanto lugar de relações acolhedoras e afetivas, muitas vezes não encontradas nas próprias famílias, percebendo que os vínculos podem ser ampliados nas circularidades do serviço:
Eu me lembro de um paciente que a família queria que conseguisse o benefício. A gente fazia grupo no posto e o grupo o fortalecia a voltar a estudar, terminar o Ensino Médio, que ele ia se sentir melhor convivendo com outras pessoas. O grupo de vizinhança ajudando muito ele a se motivar e, hoje em dia, ele trabalha em uma empresa. (P9)
Também foram pontuadas limitações da ação intersetorial, conforme o relato:
A gente fala da política, mas a gente também precisa expandir isso. Não é só política de saúde mental. Quando eu tenho uma política da assistência, uma política da educação que não está fortalecida. Tudo isso acaba impactando na saúde mental das pessoas e na cronicidade das doenças. (P4)
Nesse sentido, evidenciam-se nesses relatos que setores isolados não são capazes de contemplar a complexidade e diversidade necessária de ações que atendam integralmente o processo saúde-doença e seus determinantes sociais. Ademais, cabe destacar que, enquanto expressão de uma questão social, o objeto da saúde mental está intimamente ligado a vulnerabilidades sociais, como a pobreza, o desemprego, o analfabetismo e a violência (Amaral et al., 2017). Tal fato fica demonstrado na fala de uma das participantes:
Muitas vezes, o próprio paciente não tem condições de vir para o CAPS, de pagar até uma passagem, então, nesse momento, a gente precisa do apoio do CRAS para possibilitar que ele venha. Às vezes ele não tem condições de alimentação. (P8)
Assim como em relação à Assistência, os profissionais mencionam também a necessidade de buscar articulações com a Justiça, para auxiliar na garantia de direitos, como no caso do benefício de prestação continuada, em situações de abusos que iniciam no acionamento do conselho tutelar ou ainda quando existe a solicitação de internação compulsória por parte da família.
Eles entram para a justiça inclusiva que ganha o benefício, aí é pactuado com a assistente social que eles vêm fazer o tratamento no CAPS. Então, nós temos esse programa da justiça inclusiva, que a gente tem reuniões com eles de monitoramento bem de perto. São realmente pacientes que conseguem de volta a sua vida. (P3)
Os entrevistados destacaram a importância do PTS não ficar restrito a um plano de trabalho dentro do CAPS, contemplando tanto as necessidades quanto os desejos dos usuários. Dessa forma, é possível construir alternativas para ampliar a rotina e as possibilidades de vida, atuando na lógica da integralidade. Oliveira et al. (2012) pontuam a necessidade da corresponsabilização a partir da participação dos usuários na construção do projeto terapêutico, no estabelecimento de uma escuta qualificada da equipe à opinião e à escolha das pessoas e de um acordo entre as partes.
A gente não pode confundir PTS com plano de atividades dentro do CAPS. O PTS envolve um plano de atividades, atendimentos individuais, grupos, oficinas, mas também envolve outras coisas. É muito singular. Um quer voltar a estudar, outro quer fazer um curso profissionalizante, outro quer voltar a trabalhar, outro intensificar sua espiritualidade. Isso é bastante relativo. A autonomia, a reabilitação e a inserção. Tem que ver caso a caso. (P6)
Nessa perspectiva, os serviços oferecidos pela RAPS demonstram ser insuficientes para contemplar as demandas dos sujeitos que necessitam de um cuidado integral (Sampaio & Júnior, 2021). Além disso, a coordenação do cuidado precisa ser feita com uma maior sistematização e organização quanto à implementação de ações intersetoriais e ao fluxo da rede. Sendo assim, uma das possibilidades seria contar com um programa de educação permanente para profissionais, já que o desconhecimento e a precariedade do trabalho em rede, segundo Scheffer e Silva (2014), pode aprofundar ainda mais a segmentação das políticas sociais.
O CAPS tem que ser um lugar de passagem, né? Precisa de um tempo de atendimento mais individualizado, mas a porta de saída tem que estar sempre aberta. (P7)
Nesse sentido, uma estratégia importante elencada pelos profissionais foi o trabalho e a geração de renda, pela inserção social, pela responsabilidade assumida e pela possibilidade de desenvolver a autonomia. Foram mencionados pelos entrevistados a importância do processo e também do seu fim, uma vez que o aporte financeiro dessas atividades possibilita ao usuário ter sua própria renda e, assim, fazer suas escolhas. Com o investimento em estratégias mais concretas e específicas de geração de renda, segundo Amarante (2007), o trabalho pode deixar de ser uma forma de submissão e controle institucional, de ocupação do tempo ou ainda meramente terapêutica, para se tornar uma estratégia que vise promover autonomia, cidadania e emancipação social.
Nessa direção, apesar de ser um desafio para a equipe do CAPS, a construção de projetos de geração de renda promove a inclusão no mercado de trabalho, incentiva a independência e resgata a cidadania desses sujeitos (Azevedo et al., 2012). Ainda, o trabalho é entendido como uma ferramenta potente de promoção de saúde e autonomia para os usuários, no sentindo de fomentar a sensação de pertença e aceitação na sociedade (Kammer, Moro & Rocha, 2020). Nesse aspecto, uma profissional destaca ser importante que essas ações viabilizem uma maior circulação dos usuários na cidade:
A gente acha que não tem que montar (oficinas de geração de renda) dentro de CAPS, acha que tem que ser fora, porque tem que ter esse circular. E nem todo mundo que está nas oficinas terapêuticas está num momento de trabalhar. Na oficina de trabalho, é importante o processo, mas também é importante o final. Porque o final vai ser vendido e virar dinheiro. A gente vende na cultura o que nos possibilitou uma outra circulada, porque é um produto que vende no teatro. (P5)
A literatura aponta a necessidade do trabalho com as comunidades visando a mudança cultural em relação à saúde mental, que ainda envolve muitos estigmas e preconceitos (Oliveira et al., 2012). Para potencializar as condições de cidadania, tornam-se necessárias ações no território e a ampliação da rede intersetorial, gerando maior convivência com outras pessoas e circulação na cidade. É imprescindível que as estratégias de gestão e cuidado criem e fortaleçam arranjos intersetoriais, com equipamentos culturais como importantes mecanismos de inclusão, proporcionando a inserção dos usuários nos circuitos das cidades e nas manifestações culturais, assim como no convívio social (Azevedo et al., 2012).
Considerações finais
Os resultados deste estudo apontam para a necessidade de pensar a integralidade no processo de cuidado em saúde e a importância da intersetorialidade para sua efetivação. A partir da fala dos participantes, foi possível identificar que a articulação entre o setor saúde e outros setores da sociedade precisa ser aprimorada. Foram observadas algumas práticas pontuais que, no entanto, ainda não estão instituídas no cotidiano da rede como um todo. Foram apontadas enquanto barreiras para essa implementação a alta demanda de cuidados em saúde mental da população associada à falta de recursos humanos, financeiros, comunitários e da rede de serviços (setorial e intersetorial). Diante dessas dificuldades, foi constatado que a política de saúde mental precisa ser expandida e articulada com outros setores para contemplar as diferentes instâncias do sujeito e da complexidade dos casos.
A articulação de rede intersetorial foi considerada limitada pelos profissionais e foi verificada a necessidade de maior investimento nessa área, a partir da formulação de novas políticas, da construção de laços mais estreitos e efetivos e da ampliação da rede de cuidados. Ainda que incipientes, foram observadas experiências que mostram a eficácia da relação entre setores, como saúde, cultura e educação. No entanto, o que predomina, a partir das vivências dos profissionais, é a falta de contato, o desalinhamento entre políticas, oportunidades insuficientes, o estigma e a resistência por outros setores devido ao perfil dos usuários.
O caminho para qualificação e efetivação do cuidado envolve a possibilidade de investir e ampliar as estratégias e dispositivos da rede de atenção, fortalecendo também as já existentes, realizar campanhas de conscientização sobre preconceito e estigma relacionados aos problemas de saúde mental, assim como estimular a educação continuada no setor da saúde e a capacitação voltada a outros setores. Dessa forma, busca-se oportunizar e estimular a desconstrução de concepções estigmatizantes e excludentes e, consequentemente, construir pontes efetivas entre diferentes segmentos. Com base no que foi discutido, foi possível perceber que as demandas vinculadas à saúde mental ultrapassam esse campo de atuação, sendo imprescindível que diferentes atores e setores construam um trabalho em conjunto para considerar essa complexidade.
Os achados desta pesquisa, apesar de não serem representativos em relação aos profissionais e serviços em sua totalidade, contemplam dados sobre a participação de trabalhadores de diferentes regiões do município estudado e auxiliam na compreensão mais aprofundada sobre as realidades e dificuldades da rede, o que caracteriza um dos pontos fortes deste estudo. Por outro lado, uma das limitações a ser considerada é a ausência da perspectiva de profissionais de outros setores, que auxiliaria na análise mais ampla da rede, a partir de diferentes olhares e ângulos, sendo esse um campo a ser investigado em futuros estudos.