Introdução
O objetivo deste trabalho é refletir, a partir do conceito de “máquina de guerra” proposto por Gilles Deleuze e Felix Guattari (1980/1997), acerca das estratégias de luta e resistência de movimentos populares por moradia. Em especial, abordamos componentes, processos e configurações sociais e subjetivas cartografados em ocupações urbanas do município de Belo Horizonte / MG, organizadas pelo MLB (Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas). Este é um movimento social de âmbito nacional que luta pela reforma urbana e pelo direito humano à moradia digna. Seu lema é: “enquanto morar dignamente for um privilégio, ocupar é uma obrigação!” (MLB, 2019). A partir da organização de ocupações coletivas, o MLB visa mobilizar pessoas, pressionar governos e dar visibilidade aos problemas enfrentados por aqueles que não têm seu direito à moradia garantido.
Como pano de fundo de suas lutas está a moradia como direito humano fundamental, ou seja, a garantia da moradia como condição existencial necessária para uma vida digna e para a cidadania. Isso envolve tanto um local seguro e adequado para habitar, quanto o acesso a recursos como serviços sanitários, energia elétrica, mobilidade urbana, saúde, educação.
O direito à moradia é reconhecido e protegido no plano internacional desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU em 1948 (Sarlet, 2008). A atual Carta Constitucional brasileira o contempla, bem como define a propriedade também como direito fundamental, ainda que esta deva cumprir sua função social (Brasil, 2020). Moradia e propriedade são, pois, direitos fundamentais autônomos entre si. O reconhecimento e o exercício de ambos em um país que se estruturou historicamente a partir de uma grande concentração fundiária e que, como indica o Relatório de Desenvolvimento Humano 2019 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (UNDP, 2019), ostenta um dos maiores níveis de desigualdade social do mundo têm gerado diversos conflitos e disputas.
Segundo a Síntese dos Indicadores Sociais feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), um em cada cinco brasileiros vivia, em 2019, em condições inadequadas de moradia: “[...] isso significa que ao menos 45,2 milhões de pessoas, residentes em 14,2 milhões de domicílios, enfrentavam algum tipo de restrição ao direito à moradia adequada, em seus elementos de acessibilidade econômica, habitabilidade ou segurança da posse” (IBGE, 2020, p. 76). Nesse cenário, movimentos sociais, como o MLB, têm procurado lutar pela garantia do direito à moradia de parte dessa população situada nos centros urbanos. Considerando as formas de organização e as estratégias de luta singulares do MLB e a proposta de articulá-las ao conceito de máquina de guerra, este trabalho busca refletir sobre as questões: Como produzir uma máquina guerreira, caracterizada por sua “essência” nômade, como um dispositivo potente para aqueles que lutam por um lugar para morar? E, após a conquista da moradia, como enfrentar no cotidiano do habitar os dilemas da regularização sedentária da habitação e da erupção de microfascismos que assujeitam e impedem a expansão da vida?
Quanto à máquina de guerra, para Deleuze e Guattari (1980/1997), esta funciona como um dispositivo exterior aos aparelhos de Estado, externa tanto em relação aos Estados-nação tal como concebidos pela modernidade, quanto às instituições e modos de subjetivação submetidos à força de captura e ao modo sedentário de pensar, sentir, agir, relacionar do Estado. Estado que é assumido pelos assujeitados a ele como elo unificador necessário (e dono) do território e do povo sob seu domínio. Assim, a máquina de guerra não está submetida ao Estado e não se sustenta como aparato sedentário, duradouro e burocrático, a serviço do Estado. É, por isso, diferente das estruturas militares e policiais que servem e protegem os Estados, ainda que uma máquina de guerra corra sempre o risco de ser capturada pelos aparelhos de Estado e colocada a seu serviço.
Deleuze e Guattari (1980/1997) destacam sua origem como uma invenção dos povos nômades, povos sem Estado, e esclarecem que a guerra não é necessariamente o objeto de uma máquina de guerra, embora batalhas possam dela decorrer em certas condições. Com efeito, essa máquina não tem, a rigor, a guerra como fim. Em geral, a guerra se torna o fim último quando é capturada e institucionalizada pelo Estado, que delega a ela o papel militar de lutar, coibir, destruir e ou matar em nome da manutenção dos interesses e estruturas estatais.
Trata-se, pois, de um dispositivo nômade que possui três aspectos fundamentais. Primeiro, esse dispositivo exige relações com o espaço como espaço liso – desterritorializado das linhas de segmentação e de distribuição que demarcam um território e definem proprietários públicos ou privados, individuais ou coletivos. Segundo, esse dispositivo precisa de um agenciamento matemático de corpos e de componentes de diferentes ordens, pois a máquina de guerra só consegue funcionar com um número capaz de ganhar força o suficiente para agir. Por fim, um dispositivo guerreiro, uma vez que não se mantém pelas forças (policiais, jurídicas, institucionais e outras) dos aparelhos de Estado, precisa de uma vinculação desejante daqueles que a compõem.
Pretendemos desenvolver os pontos elencados acima, articulando-os às ocupações do MLB, inclusive para ponderar, ao final, sobre a importância da construção de agenciamentos nômades diante das questões, desafios e impasses civilizatórios que atravessam o momento atual e, de forma mais contundente, indivíduos e grupos minoritários que precisam lutar pelo reconhecimento e a garantia de seus direitos fundamentais.
Metodologia
As reflexões aqui apresentadas surgiram na pesquisa de doutorado que teve como objetivo estudar famílias brasileiras em sua diversidade, procurando acompanhar seus processos e configurações articulados às dinâmicas socioculturais, econômicas, políticas, tecnológicas, entre outras.
A metodologia utilizada foi a cartografia, sustentada pelo pensamento rizomático proposto por Deleuze e Guattari (1980/1995). A cartografia não trabalha com categorias dadas a priori, externas ao campo de investigação, mas visa promover investigações capazes de sustentar a realidade em sua complexidade, evitando reduções e simplificações do que é em si heterogêneo e processual (Cardoso & Romagnoli, 2019). Assim, é preciso construir um dispositivo próprio a cada percurso investigativo.
A proposta de trabalho com dispositivos estabelece uma mudança no ato de pesquisar: desloca-se do valor dado ao universal e ao eterno para a importância de se apreender a processualidade da vida, as mutações e a produção do novo que se anuncia como linha de subjetivação. Deleuze (1996) salienta que há um duplo movimento nos dispositivos: do que somos e logo não seremos mais; e do que vamos nos tornando. Há sempre história e devir.
Nosso dispositivo de pesquisa envolveu estudos teóricos-metodológicos a partir da esquizoanálise e seus intercessores, dos quais destacamos aqui o conceito de máquina de guerra (Deleuze & Guattari, 1980/1997). Considerando a importância da conexão com a Diferença e da processualidade para o método cartográfico, procuramos enriquecer os estudos com encontros agendados com “informantes-chaves”, que tiveram o papel de contribuir para as reflexões e estratégias da investigação a partir de seus campos de conhecimento e atuação, bem como de suas cosmovisões: pesquisadores de diferentes áreas como antropologia, comunicação social e geografia; artistas cujo trabalho aborda famílias brasileiras em sua diversidade; mestres quilombolas e indígenas; lideranças comunitárias do MLB. Suas percepções, ideias, vivências com relação às famílias brasileiras, ao direito à moradia, às potencialidades e desafios da organização comunitária, entre outros, nos ajudaram manter a escuta aberta à multiplicidade e a compor um roteiro, tomado como bússola norteadora, ainda que poroso ao Novo que pudesse emergir no campo (Passos, 2019). Além disso, realizamos uma pesquisa de campo com membros (todos ou alguns) de diferentes famílias. Aqui focalizamos as famílias moradoras das ocupações do MLB a quem tivemos acesso de duas formas: conversamos de forma espontânea com integrantes de diversas famílias nos espaços comuns das ocupações em eventos para os quais fomos convidados pelas lideranças do movimento e realizamos visitas previamente agendadas à casa de seis famílias de origens e configurações diversas, indicadas pelas lideranças do movimento. Optamos pela observação e interação orientadas pela atenção cartográfica (Kastrup, 2007), tendo nosso roteiro como “pano de fundo”. Em todos os casos, a proposta da pesquisa e as orientações sobre os procedimentos éticos para pesquisa com seres humanos foram apresentadas e consentidas.
A análise dos dados seguiu também as propostas cartográficas, tendo como fundamento a intensidade. De acordo com Hur (2021), o critério da intensidade é o mais relevante em uma cartografia, e não a frequência. Isso porque “as intensidades podem ser vistas como índices propulsores dos movimentos, dos devires, das passagens” (Hur, 2021, p.13). Para este artigo, enfocamos o que foi mapeado acerca dos movimentos, da potência e das estratégias de luta do MLB para a conquista e manutenção de moradia para as famílias do movimento a partir de seus agenciamentos guerreiros.
Procurar uma saída: a máquina de guerra
“Eles querem é que a gente entre no programa ‘Minha casa, minha dívida’ [risos]”, ironiza uma mulher. “Olha a gente: mulher, pobre, preta, sem emprego fixo... não tem como comprovar renda. Eles não tão nem aí pra gente!”, exclama a outra. As duas mulheres estão assentadas no chão da creche comunitária de uma das ocupações legalizadas pelo Estado a partir da luta do MLB (Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas). Elas aguardam o início de uma reunião semanal que ali acontece para a organização de novas ocupações urbanas. Continuam a conversa, afirmando que o programa Minha Casa, Minha Vida1 é a maior burocracia e a maior enganação. Reclamam que ele oferece apartamentos em “predinhos que não cabe ninguém” construídos em locais sem infraestrutura comercial (açougue, padaria, mercado, farmácia). Muito distantes dos centros mais bem estruturados de Belo Horizonte, os prédios são feitos sem a devida oferta de transporte público pelo município para garantir a mobilidade dos moradores em diferentes horários do dia.
A conversa é interrompida pela coordenadora do MLB que chega e inicia a reunião. “Vocês precisam saber que o direito é pra todo mundo!”, começa Bárbara2, uma mulher forte, bem articulada, cujos quadris cobertos por um short jeans bem justo parecem dançar enquanto ela movimenta os braços e encadeia as palavras que saem da boca. Sua pele morena e seus olhos verdes indicam sua origem mestiça e lhe conferem uma beleza pouco comum. Com firmeza, ela assegura que “lutar pela moradia da gente não é errado! Se alguém chegar pra vocês e falar que isso tá errado, não tá errado, estamos lutando por um direito da gente”.
Cerca de vinte pessoas a escutam. Pessoas de diferentes idades, algumas sozinhas, outras com suas famílias, crianças e bebês. Em comum, todas estão interessadas em entender como funciona a máquina de guerra de que tinham ouvido falar – uma máquina que lutava e já tinha conquistado o direito de ter uma casa própria para várias famílias. Queriam entender como era possível forçar o Estado a reconhecer o direito à moradia dos que têm sido historicamente colocados nas margens de sua proteção e cuidado. Como era possível enfrentar ou inibir a repressão estatal que, com frequência, assistiam de perto ou mesmo vivenciavam. Como, enfim, era possível se deslocar do lugar de subviventes em que se encontravam.
A palavra “subvivência” é aqui utilizada para nomear condições de vida, ou melhor, condições de subvida a que muitos indivíduos, famílias, grupos e coletivos têm sido submetidos ao longo da modernidade capitalista. Em uma passagem das Estórias Abensonhadas, o escritor moçambicano Mia Couto (1994) escreve: “[...] a mulher, subvivente, somava tanta espera que já esquecera o que esperava” (p. 20). Nesse sentido, consideramos que cabe aos subviventes essa existência pálida de sonhos, apostas e possibilidades de conexão com o modo de existência dominante. Ou, em casos extremos, resta-lhes o esmagamento de suas existências, quando consideradas um estorvo de somenos importância pelos homens de Estado. São subviventes aqueles cuja posição no diagrama das relações de poder empurra-os para habitarem um sub-lugar, marcado pela ausência de pertença em diferentes dimensões. No momento contemporâneo, há uma pertença apenas marginal destinadas aos subviventes, que são colocados em uma posição de acesso ao modo de vida hegemônico basicamente como força produtiva em trabalhos mal remunerados, inconstantes e sem perspectivas de ascensão econômica ou social, condição que foi agravada pelo governo de extrema direita que administrou nosso país de 2018 a 2022. Pode-se dizer, para lembrar as análises de Karl Marx (1867/2013), que eles e elas (mais elas do que eles, vale destacar) acessam o modo de vida dominante basicamente como “exército de reserva”. Sua posição no diagrama das relações de poder exige que funcionem à margem, com acesso muito limitado aos direitos que o Estado se propõe a garantir e desde que permaneçam em territórios periféricos precários a eles destinados, como indicou Edson Passetti (2006).
Como disseram Deleuze e Guattari (1980/1997), ao efetuar-se como máquina de captura e ressonância, o Estado delimita seu interior, abrangendo o que se passa sob suas estruturas e deliberações. O interior do Estado envolve inclusive suas políticas externas, sua relação com outros Estados. Mas qualquer formação estatal precisa lidar com o Fora, aquilo que se passa além ou aquém dos controles e ingerências estatais, fora de seu domínio. É possível pensar nas máquinas transnacionais empresariais, civis, artísticas ou religiosas que podem gozar de grande autonomia de funcionamento e podem atravessar diferentes Estados. Mas há ainda o Fora que se passa dentro ou nas franjas dos limites estatais. Fora que por vezes se manifesta nos movimentos minoritários, nos grupos, maltas e organizações marginais que não se cansam de escapar aos poderes e ingerências estatais; que não se cansam de lutar contra o Estado; que se propõem a arranjar outras maneiras de existir diante de posições de subvivência que lhes são destinadas pelos modos de vida hegemônicos.
No caso das ocupações aqui discutidas, sua máquina de guerra agencia-se entre subviventes de Belo Horizonte para lutar por moradia sob a coordenação de um movimento que vem acumulando experiências, positivas e negativas, nesse tipo de luta. A finalidade desse máquina é produzir novas possibilidades de viver. Enfim, eles não estão mais sozinhos e o modo como suas conexões se efetuam envolvem os aspectos de um agenciamento do tipo guerreiro ao qual nos referimos acima e detalhamos a seguir.
Para funcionar, esta e outras máquinas de guerra precisam que seus componentes produzam um complexo articulado de números. Isso “[...] não implica de modo algum grandes quantidades homogeneizadas, como os números de Estado ou o número numerado, mas produz seu efeito de imensidão graças à sua articulação fina, isto é, à sua distribuição de heterogeneidade num espaço livre” (Deleuze & Guattari, 1980/1997, p. 67). Trata-se do número guerreiro, nômade ou numerante que se difere do número numerado. Este se efetua nos cálculos e abstrações capazes de contar, medir, dividir o espaço, segmentar pessoas e coisas; já o número guerreiro não visa contar ou medir, mas deslocar. Aqui, deslocar e ocupar.
Os números, em um agenciamento guerreiro, são os elementos que compõem a força da máquina, sua velocidade turbilhonar, seus movimentos estratégicos e seu preparo logístico, sua capacidade de enxamear e confluir, as condições para sua afirmação e sua vitória. Mais do que de sujeitos, com suas identidades e dramas, suas vaidades e medos, uma máquina de guerra demanda o engajamento subjetivo para a produção de um corpo numérico, “espírito de corpo”, capaz de assumir posições, capaz de compor com outros corpos (humanos e não humanos), capaz de articular a diplomacia, a espionagem, a retórica, a força. O corpo numérico não é importante apenas para as situações de combate e enfrentamento; é preciso “um número de números” capazes de organizar as reservas e os estoques, capazes de promover a manutenção e o cuidado com as pessoas e as coisas.
Em nossa pesquisa, não apenas visitamos as ocupações, conhecemos algumas de suas famílias e participamos de reuniões e eventos; procuramos conversar também com moradores de bairros vizinhos a elas. Dentre eles, Elton e seu filho Gustavo, proprietários de um apartamento na parte mais rica da mesma região e para os quais perguntamos sua impressão acerca dos vizinhos que moravam nas ocupações. Os dois prontamente se posicionaram contra as ocupações: “é errado invadir terreno dos outros!”. Elton explica que o problema das pessoas mais pobres é que não têm família, “só a mãe e os filhos”; que são pessoas que recebem educação ruim, porque só podem estudar em escola pública; que não têm os pais estimulando para conseguirem emprego; que estão em contato constante com o mundo do crime. Gustavo, por sua vez, quando perguntado se participaria de uma ocupação caso não tivesse outra opção, admite que sim, mas lembra que as famílias mais pobres têm a alternativa de conseguir financiamento através da Programa Minha Casa, Minha Vida e podem pagar, conforme a faixa de financiamento, em até 30 anos. Pondera, no entanto, que muitas famílias não “correm atrás” ou não têm educação financeira para pagar mensalmente o financiamento conquistado e acabam perdendo o imóvel. Os dois parecem não vislumbrar que aqueles que se dispõem a fazer uma ocupação não o fazem porque não “correm atrás” das saídas propostas pelos aparelhos de Estado ou porque não têm educação. A questão é mais complexa. Além disso, para compor uma máquina de guerra de ocupar, é preciso desejar e se dispor a compor um agenciamento guerreiro com todos os seus riscos. É preciso estar disposto a correr atrás, organizar-se, lutar e, para tanto, é preciso efetuar – o que exige um tipo de educação mais nômade do que a educação sedentária ensinada pelos aparelhos de Estado – toda uma “[...] ciência da articulação dos números de guerra” (Deleuze & Guattari, 1980/1997, p. 68).
Na reunião na creche comunitária, Bárbara explica a importância numérica para a construção de uma máquina de guerra capaz de ocupar um terreno, transformar suas destinações já estabelecidas dentro dos braços do Estado e criar um espaço liso, mesmo que novos estriamentos venham depois. A partir das contribuições de Zourabichvilli (2004) sobre o conceito de espaço liso para Deleuze e Guattari, pode-se considerar que este é um espaço não estriado, dividido, segmentado ou apropriado. É um espaço ainda não ocupado por um agenciamento sedentário ou um espaço que, por operação de uma máquina de guerra, é destacado de suas segmentações, retirado dos estriamentos definidos pelos aparelhos de Estado – certa Terra que volta a ser uma terra, por assim dizer. O espaço liso não faz conexões regidas por determinação e, sim, é um espaço de pequenas ações de contato, pura estratégia.
Para operar a produção de um espaço liso pela máquina de ocupar apresentada por Bárbara, cada participante da reunião deve somar como número, com disposição para integrar o coletivo e participar das estratégias que a máquina de guerra coloca para funcionar. Ela convoca: “a gente tem que tá unido aqui pra gente ter espaço!”. Tal arranjo numérico precisa assumir, como ela explica, duas frentes na engrenagem que organiza a máquina guerreira de ocupar. De um lado, implicar-se na montagem da logística da máquina; de outro, envolver-se na construção de um corpo com os números necessários e suficientes para a guerra.
Bárbara conta como funcionaram outras máquinas como a que pretendem formar. Explica que, para participar em uma ocupação, cada família deve contribuir com R$ 150,00 em seu ingresso no movimento e com R$ 10,00 por mês até que o processo seja concluído, com direito a uma carteirinha. O pagamento das contribuições é feito de acordo com as condições e os prazos possíveis para cada família (com um, dois, três ou mais membros), com negociações e ajustes sempre que necessário. “Quando a gente faz a ocupação, o que acontece?”, pergunta. E esclarece que, ao entrar em um terreno, é preciso que as pessoas se distribuam no espaço ocupado para preenchê-lo, armando barracas de pau e lona onde irão dormir; é preciso fazer a cozinha e o banheiro comunitários; é preciso levar água, gás de cozinha, mantimentos, materiais elétricos e outros; é preciso montar a portaria e a segurança do local. Grande parte dos valores arrecadados são para isso, pois “a primeira coisa que acontece quando a gente entra na ocupação é polícia em cima, né? Como que a gente vai resistir se a gente não tiver levado nada? Quem é que vai ficar três, quatro, cinco dias sem comer?”. Destaca ainda a importância dos recursos para a construção da creche comunitária, especialmente se não há creches próximas para onde as crianças possam ir: “quando a gente faz a ocupação, tem que fazer a creche logo. Se não, a primeira coisa que eles [os homens do Estado] fazem é usar as crianças, tirar as crianças da gente”. Além disso, há os custos até a realização da ocupação, com panfletos, passagens de ônibus e outras estratégias para difundir o movimento e trazer mais pessoas para compor a máquina guerreira: “A gente precisa... não tem como... Vocês acham que só este tiquinho de gente que tá aqui hoje dá uma ocupação?! [...] A gente faz panfletagem, entrega os ‘mosquitinhos’, chama as pessoas. [...] Porque a gente junto... a gente precisa crescer este grupo para ter força”, conclui Bárbara. Com efeito, é preciso militar por um povo por vir para que a máquina funcione, é preciso buscar, como disseram Deleuze e Guattari (1980/1997, p. 47), “essa sustentação popular”. É preciso desejar um povo, invocá-lo, contagiá-lo, esperá-lo e acolhê-lo no momento oportuno. A máquina existe para este povo, mesmo se ele ainda falta.
Como agenciamento nômade, a máquina de guerra é marcada por sua instabilidade, pela variação e possibilidade constante de que alguns a abandonem ou de que ela ganhe a adesão de muitos e uma força impressionante. Cabe frisar que a participação na máquina guerreira aqui tratada é aberta a qualquer um, ou melhor, a um qualquer, tal como proposto por Giorgio Agamben (1993) em suas proposições para A comunidade que vem. Acompanhando as reflexões desse filósofo, é possível pontuar que não se trata de considerar que a participação na máquina guerreira de ocupar é aberta a qualquer um indiferentemente, em especial quando consideramos o termo latino que se refere ao ser qualquer – quodlibet:
A tradução corrente, no sentido de “qualquer um, indiferentemente”, é certamente correta, mas, quanto à forma, diz exatamente o contrário do latim: quodlibet ens não é “o ser, qualquer ser”, mas “o ser que, seja como for, não é indiferente”; ele contém, desde logo, algo que remete para a vontade (libet), o ser qual-quer estabelece uma relação original com o desejo. (Agamben, 1993, p. 11)
A abertura para a participação a uma pessoa qual-quer na máquina de ocupar não supõe, assim, um sujeito em sua indiferença ou uma indiferença em relação a quem cada participante é. De outro modo, trata-se de assumir cada um e cada família participante em sua singularidade tal como é. Cada pessoa pode se engajar com sua singularidade, e não por causa de certas características que lhe garantiriam a condição de pertença ao conjunto. Qual-quer um pode participar, tal como é, desde que assuma, desde o início, a importância do engajamento do desejo para a força coletiva de resistir.
Em entrevista com Patrícia, outra coordenadora do MLB, ela nos explica que podiam participar de uma ocupação famílias as mais diversas. Para ela, as ocupações que conhecia tinham a característica de acolher “pessoas muito diferentes”, funcionavam como “um refúgio” para muitas famílias cujos arranjos destoavam dos padrões e expectativas dominantes. As composições de “uma família”, por isso, poderiam ser bem diversas:
As composições familiares são do jeito que elas [as famílias] querem! [...] Não impomos nada. Se querem morar 20 pessoas numa casa, moram. Se quer morar uma, mora. [...] Então tem de tudo numa ocupação. Tem avó que cuida de neto; têm amigos morando juntos; têm muitos casais LGBT. (Patrícia)
Desse modo, as ocupações organizadas pelo MLB procuram acolher pessoas que não “cabem” nos modos de subjetivação e nos padrões familiares instituídos pela modernidade capitalista. O ingresso em uma de suas máquinas de ocupar possui, no entanto, uma limitação ético-política: todos são bem-vindos para somar à luta, mas para consolidar a conquista de um lote no terreno ocupado qual-quer um deve mesmo necessitar deste como sua única possibilidade de moradia própria. Além disso, indivíduos e famílias devem se implicar com o coletivo, dispor-se como corpo numérico para as ações que irão ocorrer após a ocupação do terreno. Aqueles que já têm um imóvel e querem construir mais uma casa no terreno ocupado são expulsos; aqueles que abandonam a luta sem justificativa também.
Sustentar a máquina guerreira para morar
Uma das coisas mais difíceis em um agenciamento guerreiro nômade, especialmente quando consideramos os processos de subjetivação a que os homens e as mulheres submetidos ao Estado estão acostumados, é conseguir sustentação e duração não sedentárias pelo tempo suficiente da luta. A pergunta seria: como conseguir manter um funcionamento guerreiro sem instituir as segmentações, estruturas, burocracias, hierarquias, pertenças, apropriações, sobrecodificações, conjugações, exclusões e capturas que fazem brotar um Estado e o consequente endurecimento das linhas do agenciamento e das relações de poder? Ou ainda: como sustentar uma máquina de guerra “em si mesma” quando lhe faltam os mecanismos de captura tal como em um Estado com seus regimes de obediência e servidão? Com efeito, na máquina de ocupar aqui abordada, as pessoas só permanecem ligadas a ela porque querem. Podem ir embora a qualquer momento e se muitas o fizerem, o agenciamento se dilui, a máquina se desmonta. É, assim, necessário produzir um outro tipo de agenciamento de desejo, corpos, palavras e coisas, outras maneiras de pensar e agir, outra sensibilidade que mantenha as pessoas unidas, o desejo de lutar vivo, a força estratégica presente, o que nunca quer dizer que não existam regras e segmentações que também fazem parte.
É preciso ainda admitir que a previsibilidade do processo não está assegurada e que qualquer movimento da máquina, qualquer ação é sempre recheada de riscos e possibilidades de perda. Como pondera o Comitê Invisível (2016) sobre os movimentos de luta e insurreição, é importante manter viva, a todo momento, a força de um mundo comum. Força capaz de instaurar um regime de verdade, de abertura e de sensibilidade que engaja um povo qual-quer ao que está sendo construído, mesmo que lentamente. Na reunião na creche, Bárbara explica aos presentes que o processo de montar uma ocupação pode demorar um, dois, três anos. Semanalmente é feita uma reunião com os interessados; são feitas também ações para mobilizar novas pessoas e fazer crescer os envolvidos. A participação é fundamental, uma vez que “cada um conquista o seu pedaço” – na máquina, no movimento, no terreno. Paulatinamente é importante firmar o grupo com as famílias que perfaçam as condições qualitativas da máquina guerreira de ocupar: deve-se ter o número de famílias suficiente e capaz para efetuar as estratégias da luta conforme as características do terreno; ou então, deve-se encontrar o terreno adequado para o número e as características das famílias que à máquina se vincularam. Nesse processo, a importância das lideranças do MLB que voluntariamente permanecem dedicadas às lutas por moradia, mesmo se já conquistaram a sua casa, está nos conhecimentos que detém, nas experiências que já vivenciaram, nos contatos que possuem, na sua capacidade de articulação estratégica e logística, no seu papel de sustentar as orientações ético-políticas que não deixam uma ocupação “virar bagunça”. Elas e eles aprenderam que, antes de ocupar, é preciso organizar a máquina, distribuir os números, criar o corpo coletivo, preparar a luta, antecipar os riscos. E, mesmo com tudo isso, há sempre o risco de serem despejados, inclusive com violência: “pode ser que sim, pode ser que não”, pondera Bárbara, explicando que o movimento não pega a contribuição financeira das famílias, identifica qualquer lote vazio e organiza ali a ocupação, correndo o risco de a polícia chegar no dia seguinte retirando todo mundo. Há sempre um criterioso estudo do terreno:
A gente vai pegar um terreno que a pessoa não paga imposto, que não é de ninguém, o dono não aparece... e a gente vai ter certeza disso. Aí a gente vai, coloca as famílias lá. Pode ser que tenha despejo, mas a gente faz de tudo para não ter. Porque se tem, tudo que a gente construiu hoje, a gente vai perder e vai ter que construir tudo de novo. (Bárbara)
Nesse contexto, há um pacto de confiança fundamental: as famílias organizam-se para uma ocupação cujo terreno em estudo é mantido em sigilo até o momento de ocupá-lo. Em toda guerra é prudente manter certos segredos... E quando o momento chega, é preciso colocar a máquina de guerra para funcionar com sua velocidade turbilhonar, sua capacidade de ocupação do espaço tornado liso, sua força de resistência. Uma ocupação é montada com barracas de lona em poucas horas, mas é necessário que as famílias nelas permaneçam por dias ou por meses à espera de todas as negociações com as autoridades e envolvidos até que o processo de autorização da construção das casas e de regulamentação urbana (divisão do loteamento, abertura das vias de circulação conforme as normas vigentes no Estado etc.) se defina. Nesse cenário, junto com o desejo e a força para a luta, há o sol e o calor, há a chuva e o frio, há o medo e a possibilidade da violência, há a precariedade da moradia, há a instabilidade do processo – tudo isso atravessando as barracas e suas famílias.
Nesse sentido, é exemplar a história de uma das ocupações a que tivemos acesso. Sua máquina de guerra foi acionada em uma noite de abril de 2012 com 350 famílias organizadas para ocupar o terreno: um braço de mata em uma das bordas da cidade de Belo Horizonte. Eram cerca de mil pessoas que, após a entrada no terreno, rapidamente armaram barracas de lona para ali ficar até conseguirem construir sua casa de alvenaria. Esta só poderia ser feita após autorização do MLB, o que dependia da divisão do terreno entre todos os grupos familiares que tinham se proposto à empreitada, além das diversas negociações com os órgãos e agentes do Estado. Contudo, após 21 dias da ocupação, a polícia empreendeu um dos despejos mais violentos já ocorridos no estado de Minas Gerais.
Patrícia, umas das lideranças referidas acima, conta que foi uma operação surpresa e sigilosa da polícia, sem notificação prévia para desocupação do terreno, uma propriedade pública3. A polícia cercou a ocupação quando boa parte das pessoas estava fora, em seu trabalho ou na escola, retirando tudo o que as famílias tinham e deixando apenas as pessoas que estavam na ocupação – boa parte composta de crianças pequenas e idosos que já não trabalhavam – ao relento. Patrícia lembra que os policiais constrangeram os que tentavam resistir dentro do terreno com atitudes como urinar na frente das mulheres e xingar as mães pela situação em que estavam colocando os próprios filhos. Depois de 24 horas do cercamento e sem qualquer estrutura, o grupo que resistia decidiu abandonar a ocupação. Dali, foram acolhidos por uma entidade ligada à Igreja Católica e parte do grupo acampou na porta da Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) para tentar demonstrar às autoridades a situação de extrema vulnerabilidade das famílias e pedir alguma tratativa digna para o caso. Mas o então prefeito da cidade nunca os recebeu. Organizaram então uma segunda ocupação meses depois e, mais uma vez, a polícia cercou o local. Entretanto, desta vez, as famílias providenciaram um cordão de isolamento humano permanente, para o qual os integrantes da ocupação iam se revezando, e conseguiram impedir que a polícia entrasse, apesar das ameaças e agressões sofridas por alguns dos que sustentavam o cordão. Como o segundo terreno era privado e ninguém entrou com pedido de reintegração de posse imediatamente, a polícia teve que desmontar o cerco. As autoridades os “[...] acusaram de esbulho, mas não existe esse crime em ocupação urbana. Não tinha flagrante de crime algum. Nossos advogados agiram muito rápido também e nós conseguimos ficar até hoje” (Patrícia).
As áreas escolhidas para uma ocupação bem-sucedida devem ter fortes indicativos de que não cumprem a sua função social, tal como prevista no inciso XXIII do Artigo 5º da Constituição Federal de 1988 (Brasil, 2020). No caso descrito, a segunda ocupação preencheu dois terrenos que eram inicialmente do estado de Minas Gerais e foram doados para empresários. Como contrapartida, esses empresários deveriam utilizar as áreas para a implantação de atividades produtivas com geração de emprego e renda para a região. No entanto, nada foi construído nos terrenos que, ainda assim, não foram reintegrados pelo estado. De outro modo, eles passaram a ser objeto de grande especulação imobiliária, transferidos de um dono a outro até a aquisição pelos proprietários à época da ocupação em valores que giravam em torno de cinco milhões de reais. Apesar das irregularidades na transmissão dos imóveis, algum tempo após a ocupação, os dois proprietários (cada um de um terreno) entraram com pedidos de reintegração de posse. Com o avançar dos processos por vários meses, membros de diferentes movimentos de luta por moradia uniram-se e ocuparam a sede da PBH até que o prefeito Márcio Lacerda (2009-2016) finalmente os escutassem. Na única oportunidade que o prefeito se reuniu com os membros dos movimentos, foi acordado o congelamento dos processos judiciais até a regularização da situação de moradia, em condições dignas, para as famílias daquela ocupação. E, em um movimento solidário, as ocupações vizinhas foram incluídas na reinvindicação e conseguiram ter os processos específicos contra elas também congelados.
Após vários meses, as ocupações foram sendo regularizadas e os lotes são distribuídos entre as famílias. Todavia, mesmo quando as barracas de lona podem ser substituídas por barracos de madeirite ou casas de alvenaria, mesmo quando alguma estabilidade já foi alcançada, há ainda muito a se fazer. Patrícia conta da conquista da energia elétrica na ocupação onde mora, onde foi preciso lidar com muitos enfrentamentos. Inicialmente foi instalado um “gato” para levar luz às casas, feito por um eletricista da própria ocupação. Ele fez a lista do material necessário para que a luz fosse retirada de um poste de iluminação pública próximo com segurança e distribuído entre os moradores no terreno. Fizeram uma “vaquinha” para arrecadar o dinheiro e executaram o procedimento. A seguir, começaram a tentar regularizar a iluminação nas ruas e nas casas junto à Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig), responsável pelo fornecimento de energia elétrica nos municípios do estado. Contudo, a Cemig apenas foi lá para retirar o “gato” e que, por isso, foi necessária nova mobilização coletiva para produzir mais um cordão de isolamento humano em torno do poste de luz. Grupos de moradores se alternavam em torno do poste para que os funcionários da Cemig não tivessem acesso a ele e cortassem a energia do “gato”:
Tivemos que fazer acampamento em torno do poste. A Cemig e a gente. Vocês terão que passar por cima da gente se quiserem desligar. Argumentamos que tinha muita gente que dependia dessa luz e ela [Cemig] não podia cortar! A gente não paga não é porque a gente não quer, é porque vocês não colocam [os padrões regularizados de luz]. (Patrícia)
A luta pela luz durou várias semanas. A Cemig acabou por concordar em colocar a estação de distribuição elétrica, mas, para tanto, informou que a prefeitura do município precisava colocar os postes para a iluminação pública, uma vez que isso era de sua competência. A prefeitura, por sua vez, argumentou que não podia instalar os postes, pois, para tanto, precisava de um projeto de lei aprovado pela Câmara dos Vereadores. Já os vereadores receberam com descaso o pedido e os argumentos dos moradores, informando que não havia interesse público no caso. A saída encontrada pelo movimento foi juntar moradores dispostos e invadir a Câmara, ali permanecendo até o projeto de lei ser colocado em discussão. “Saiu gente nossa machucada de lá, mas não tinha outro jeito. Já tínhamos tentado todas as saídas” (Patrícia). Depois disso, a energia elétrica foi instalada rapidamente.
“Alguns dizem que somos muito radicais, mas a gente teve que ser”, analisa Patrícia, sem expectativas de que a luta, um dia, possa ser dada por concluída. No caso dos subviventes, é preciso estratégia, perspicácia e organização constantes contra as necropolíticas que produzem sua miséria ou seu extermínio. Melhor que suas máquinas de guerra consigam permanecer a postos. Patrícia conclui:
A luta continua. Agora conseguimos água [...] Para conseguir a água, tivemos que sequestrar um caminhão pipa que ficou dois dias dentro da ocupação. A Copasa [Companhia de Saneamento de Minas Gerais] viu que a gente não ia liberar o caminhão e começou o processo de regularização [da distribuição] da água para a comunidade.
Resistir: a luta (sempre) continua
Após a consolidação de uma ocupação, as lideranças do MLB têm clareza da importância de se sustentar viva a máquina de guerra para manter a força coletiva. Força necessária para mobilizar o apoio de moradores de diferentes comunidades; para sensibilizar e conquistar a contribuição de profissionais, entidades, pessoas públicas, universidades para muitas das demandas que construir uma comunidade exige; para negociar ou confrontar os aparelhos de Estado sempre que necessário. Viabiliza-se, assim, toda uma rede de amparo e proteção “extra-oficial” que inclui cada uma das famílias em um funcionamento que é sempre maior do que elas.
Ainda assim, é importante reconhecer que as pessoas e as famílias das ocupações pesquisadas não funcionam somente como agenciamento guerreiro; elas são compostas, em boa medida, pelas linhas que sustentam o modo de vida dominante em seus enlaces com o Estado e com o Capital. Seus sonhos, desejos, lógicas e percepções, suas maneiras de amar e relacionar-se em diferentes níveis são perpassadas pelo diagrama das forças sociais em vigor. Elas estão, por isso, entre a máquina de guerra e os ditames, valores, práticas, sonhos que o capitalismo não se cansa de propagandear através das ferramentas informáticas. Elas estão entre a máquina de guerra e a vigilância e os confinamentos determinados em nome da Paz pelo Estado. Se sua pertença a uma máquina guerreira não exclui as conexões com o Estado e o Capital, nem com os valores socioculturais dominantes nesta época, por outro lado, permite a emergência de novas “margens de manobra”, novos acordos, novas alianças e novas forças colocadas em jogo.
Por certo, novas segmentações nascem à medida que um agenciamento guerreiro precisa institucionalizar uma maneira sedentária de ocupar uma terra para garantir melhores condições de vida para os que dele fazem parte. No caso da máquina guerreira de ocupar, isso é necessário especialmente porque ela foi montada em um contexto sócio-histórico em que as lógicas capitalistas privadas são hegemônicas. Se, por um lado, a organização sedentária da terra ocupada é necessária para seu reconhecimento pelo Estado e por outras estruturas sociais, por outro lado, é preciso que os que fazem parte da máquina de guerra estejam atentos aos constantes riscos de endurecimento das linhas de segmentaridade que instituem hierarquias e privilégios. É preciso que os que fazem parte da máquina de guerra sustentem a potência do Fora que o nomadismo trouxe, mesmo se agora os fluxos nômades precisem encontrar novos caminhos e velocidades.
Cláudia, outra liderança do MLB, mostra o Termo de Compromisso que todos os maiores de 16 anos que participam de uma ocupação coordenada pelo MLB precisam assinar, explicitando sua concordância com o Regimento Interno de sua ocupação. As orientações e normas que estão contidas ali devem ser respeitadas por todos. Elas versam sobre a importância da participação de cada integrante; sobre o necessário zelo para a construção de um ambiente de respeito mútuo e cooperação coletiva; e sobre o modo como moradores e famílias devem se organizar na ocupação. Nas ocupações que estudamos, essa organização envolve a formação de núcleos, de ruas ou regiões, com coordenadores – trata-se de uma instância que deve acompanhar de perto as famílias e deve ser acionada sempre que há conflitos em alguma família ou entre vizinhos. Há também as comissões de assuntos especiais que devem promover ações ligadas à educação, limpeza, saúde, cultura, creche, lazer, alimentação, entre outras, para a comunidade. O “órgão máximo” da ocupação é a Assembleia Geral. Suas decisões devem ser respeitadas e cumpridas por cada um, sob pena de expulsão da ocupação. O artigo 6º do Regimento determina que todos devem dedicar parte de seu tempo a atividades coletivas, que são distribuídas levando-se em consideração as condições de cada um. O Regimento versa ainda sobre as faltas graves que, uma vez investigadas pelo Conselho Geral da Ocupação, podem ser levadas para análise na Assembleia Geral que decidirá pela expulsão ou advertência dos que as cometeram. Entre as faltas graves estão a prática de furtos, roubos, abuso de bebidas alcóolicas e outras drogas, violência doméstica.
As pessoas que participam das assembleias e atividades no MLB e que trabalham por um bom ambiente coletivo ganham prioridade quando é preciso fazer escolhas como, por exemplo, no momento da escolha de qual lote fica com quem, na definição das primeiras vagas na creche ou no recebimento de doações quando estas são poucas. “A gente sempre tenta que todo mundo receba e do mesmo jeito. Mas às vezes não dá”, explica Cláudia.
Quanto à regularização das casas junto ao Estado, esta envolve a definição da área ocupada como Zona Especial de Interesse Social (Zeis) conforme regulamentação do Plano Diretor municipal e as diretrizes do governo do estado. Uma vez a área definida como Zeis, o MLB, junto com os órgãos competentes, define o número, metragem e distribuição dos lotes para as famílias participantes, as vias de acesso e circulação interna, as áreas de preservação quando é o caso. Com essas definições, o terreno pode então ser dividido entre as famílias da ocupação que recebem o título de posse. O título é intransferível.
Cláudia esclarece que a regularização das casas envolve muita negociação. Logo que a ocupação é feita, um cadastro com os dados de todas as famílias envolvidas é passado para os órgãos competentes, na tentativa de começar o longo processo para legalizar a ocupação ou negociar a saída do local ocupado com as devidas garantias de que todos serão realocados em outro local com dignidade e segurança para firmar sua moradia.
A efetiva permanência no imóvel construído na ocupação é condição fundamental para a manutenção do direito ao lote e à casa. Nos primeiros momentos da ocupação, quando todos precisam se implicar para fortalecer a máquina de guerra, quem se ausenta sem justificativa por mais de três dias é considerado desistente e seu barraco é repassado para outra família. Nenhuma família pode vender seu lugar na ocupação – seja sua barraca de lona ou o lote cuja posse é transferida para seu nome, sob pena de ser expulso pelo movimento e ainda ser acionado judicialmente pela prefeitura. Todos precisam assumir o lote e o barraco construído como seu lugar de moradia; não é permitido conquistar um lote para ganhar dinheiro vendendo-o depois. Quando o morador já construiu sua casa de alvenaria e é expulso, falece ou desiste da moradia, pode reivindicar, mediante a apresentação de notas fiscais e recibos, o valor gasto com o material de construção da nova família ingressante que é definida conforme sua participação no movimento. E, em todos os casos, há um critério que o MLB coloca para seus integrantes e para as negociações com os aparelhos de Estado: que a posse do lote e o direito à casa construída sejam registrados sempre no nome da mulher de referência da família. O registro em nome do homem só pode ser feito na ausência de uma mulher (um homem viúvo ou um pai sozinho com seus filhos, por exemplo).
Sobre a presença feminina nas ocupações, Patrícia explica que a experiência ensinou as lideranças do MLB que as ocupações começam, em geral, como uma luta das mulheres: “Os homens vêm depois. É uma luta muito da mulher”. No entanto, sem a garantia do registro em seu nome, muitas mulheres que retomavam ou começavam um relacionamento durante o processo da ocupação perdiam o lote e a casa que tinham conquistado caso se separassem do marido, companheiro ou namorado, uma vez que este acabava invocando seu poder de patriarca sobre o terreno. Por isso, o movimento adotou, como uma de suas escolhas ético-políticas, agenciar um especial apoio comunitário para que as mulheres – mulheres pobres e mais vulneráveis a muitos tipos de violência em diversos níveis – pudessem articular novos arranjos de existir, inclusive em suas alianças amorosas-conjugais. Patrícia considera que as lideranças do MLB, mulheres e homens, lutam para que todos sejam respeitados em sua singularidade e necessidades, que as diferentes configurações familiares sejam acolhidas, mas “a gente vai dar mais apoio a quem precisa mais”.
Ocupação é um negócio que separa as pessoas e separa mesmo, porque é onde a mulher consegue entender que ela não precisa de tá com o outro pela questão da dependência financeira. Aí o número de mulheres que se separa porque sente o apoio do movimento é gigante, é gigante. Posso relatar agora umas dez aqui. Eu sou uma. (Patrícia)
Nesse cenário, os problemas familiares não são tratados como algo íntimo e reservado aos seus membros. Como pontuado, a violência doméstica é uma falta grave que pode acarretar a expulsão do abusador ou mesmo de toda a família, quando esta é condizente ou omissa diante da situação violenta. Esta é uma outra escolha ético-política do movimento: tentar enfraquecer as lógicas machistas difusas em nossa sociedade, principalmente quando elas descambam na violência intrafamiliar física, psicológica, sexual ou outra.
Esse negócio que, em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher, o MLB mete a colher! Relação com os filhos, a gente mete a colher também. Relação de abuso, a gente mete a colher de novo, né? A gente sempre mete a colher. Esse negócio de que, ah, cada um cuida da sua vida não existe, cada um cuida da vida de todo mundo mesmo. (Patrícia)
Esse cuidado da coordenação do MLB sempre envolve, a princípio, conversar com os envolvidos quando algum abuso, agressão, negligência, abandono é identificado ou se tem a suspeita de que está ocorrendo. “É preciso entender o que acontece até para ajudar”, como esclarece Cláudia, que narra a situação de um casal que, ao ser apoiado pelo movimento, conseguiu sair da dinâmica violenta em que vivia. Nesse casal, “o marido batia muito, mas muito mesmo, na esposa”. Eles haviam participado da luta em uma ocupação e só tempos depois, quando já estavam em sua casa de alvenaria, a violência doméstica cotidiana foi conhecida pela comunidade. Várias mulheres foram conversar com a vítima que, para o espanto de todas, contou-lhes que achava isso [da mulher apanhar] normal, pois ela vivia assim com o marido desde o início, quando se casou ainda muito jovem. Cláudia comenta que ficaram sem saber o que dizer para a esposa, até que uma das presentes perguntou se ela tinha nascido apanhando. Se não, como isso seria então normal? Deste momento em diante, em conversas com a esposa e o marido, o grupo de mulheres que se organizou para ajudá-los foi mostrando ao casal que mulher não nasceu para apanhar. “Fomos ganhando [o casal]. Nunca mais ela apanhou!”, conclui Cláudia. Em outros casos, no entanto, as forças que procuram manter as linhas de segmentaridade já instituídas resistem à sua flexibilização ou transformação. Nesse sentido, Cláudia indica uma intervenção feita por Patrícia para evitar que uma mulher fosse enforcada por seu marido dentro de uma das ocupações. Chamada às pressas pelos vizinhos, Patrícia conseguiu libertar a mulher que, no dia seguinte, acabou indo até sua casa e quebrando a porta da entrada para tentar agredi-la, sob a justificativa de que Patrícia havia tentado atrapalhar o casamento dela. Algum tempo depois, com a persistência das agressões sofridas, a mulher procurou a coordenação do movimento na comunidade que, a partir da abertura dada, conseguiu ajudá-la para que ela se separasse do marido. “Tem que ter a abertura [da família], se não, a gente não consegue ajudar”, afirma Cláudia.
Nesse cenário, é importante destacar que também nas ocupações aparecem marcas do patriarcado, lógica de dominação dos homens sobre as mulheres, insistindo na posição periférica das mulheres enquanto sujeitos políticos e de direitos (Saffioti, 2004). Essa lógica se faz através de relações de poder assimétricas e a desvalorização simbólica da mulher, mantendo relações de dominação masculina que, por vezes, expressa-se em situações de abuso e violência intrafamiliares nesse território. Quando essas situações se mostram rotineiras e sem abertura para mudança, as lideranças convocam a Assembleia que decide, em geral, pela expulsão do agressor da comunidade. Cláudia lembra que, em alguns casos, as mulheres escolhem acompanhar o marido ou companheiro, alegando que não vivem sem ele. Nesses casos, toda família é retirada.
É possível considerar que o compromisso ético-político e as estratégias comunitárias efetuadas pelos integrantes das ocupações e suas lideranças não eliminam o machismo, nem a violência que acometem algumas famílias. Ainda assim, eles abrem brechas e permitem a produção de linhas de fuga em vários casos. E não apenas nas dinâmicas familiares “em si”. Por vezes, as linhas de fuga atravessam outras segmentações e transformam, por exemplo, as divisões de gênero no trabalho como no arranjo produzido por algumas mulheres do MLB: diante de suas separações ou mesmo da ausência de maridos, companheiros ou namorados, precisaram aprender a construir elas mesmas as suas casas e se tornaram “mulheres construtoras”, responsáveis por muitas casas levantadas nas ocupações e em outras vilas e favelas de Belo Horizonte. Juntas e apoiadas por um grupo de arquitetas, elas compõem hoje o projeto Arquitetura na Periferia4 que visa capacitar mulheres que querem e ou precisam construir por si mesmas ou com alguma ajuda de terceiros suas próprias casas.
Considerações finais
Como dito, a habitação é um direito social fundamental, porém inacessível para grande parte da população em um país portador de uma imensa desigualdade estrutural como o nosso. Acuados pelas classes médias e altas, que têm oportunidades de aquisição do imóvel próprio, assistimos à periferização dos vulneráveis, com alternativas de aluguel e programas de financiamento que muitas vezes são inviáveis. Entretanto, os “não-moradores”, embora quase sempre invisibilizados, também precisam e desejam uma moradia.
Para escapar da exclusão social e da subvivência, a máquina de guerra de ocupação convoca potência em meio à precarização, enfrenta relações hierárquicas e empobrecedoras. Resiste. Mas não resistimos sozinhos, precisamos da força maquínica do coletivo para ocupar. Ocupar o espaço não somente para dominar, para possuir, mas sobretudo para deslizar, para associar, para ser matilha. Entre o sedentário e o nômade, entre o estriado e o liso, muda-se o lugar social, escapa-se de modelos dominantes, resiste-se à precariedade. Resistir é também uma experiência de problematização, de invenção de problemas e soluções, de produzir outras maneiras de entrar em relação com o mundo e com nós mesmos. E assim, a vida se faz.