Introdução
O breve texto “Post-scriptum sobre as sociedades de controle” foi publicado pela primeira vez na popular revista L'Autre de Michel Butel e republicado no livro “Conversações”, que agrupou uma coleção de textos e entrevistas realizadas entre os anos de 1972 e 1990, pouco antes da última escrita de Deleuze e com Guattari, “O que é filosofia?” (Gilbert & Goffey, 2015). Nele Deleuze (1992) anunciou mudanças na modalidade de poder advindas com uma mutação do capitalismo e afirmou que, na época, vivenciava-se a transição da sociedade disciplinar para a sociedade de controle.
O texto é dividido em três partes: histórico, lógica e programa. A sociedade de controle é constantemente apresentada por comparativos com a sociedade disciplinar, que atingiu seu apogeu no início do século XX. Na sociedade disciplinar, os meios de confinamento tiveram auge e as pessoas tinham que recomeçar a todo tempo: iam da casa, para a escola, para o quartel, para a fábrica e eventualmente para o hospital ou a prisão. Nesse ínterim, eram identificadas por sua assinatura e número de matrícula; trocavam produtos e serviços por meio de moedas cunhadas em ouro e manejavam máquinas energéticas, tendo que lidar com os perigos da entropia e da sabotagem. O capitalismo, nesse momento, era de concentração e visava a produção, conquistando o mercado por especialização, colonização ou redução de custos.
Já na sociedade de controle, as pessoas são regidas por uma linguagem numérica que transforma massas em dados e, ao invés de recomeçarem a todo o tempo, nunca terminam nada, estando em formação permanente. O essencial não é mais assinatura e matrícula, mas cifras e senhas que provêm acessos. Ao invés de moedas cunhadas em ouro, tem-se trocas flutuantes de uma percentagem da moeda: “os homens não são mais confinados, são endividados” (Deleuze, 1992, p. 224). A lógica da fábrica é substituída pela da empresa e as máquinas passam a ser de informática, com perigos relacionados à interferência, pirataria e vírus. Nesse contexto, a corrupção ganha nova potência e há explosão de guetos e favelas. O capitalismo torna-se de sobre-produção, pois visa prioritariamente vender serviços e comprar ações, e o marketing passa a ser o principal instrumento de controle social (Deleuze, 1992).
Além de se tornar um texto amplamente citado, o pós-escrito suscitou diferentes interpretações e análises. Alguns pesquisadores acreditam que Deleuze fez um bom diagnóstico da sociedade contemporânea (Corbanezi, 2018; Gilbert & Goffey, 2015; Goffey, 2015). No entanto, para outros, ele não trouxe nenhuma novidade no ensaio e ainda fez falsas previsões, “descrevendo como mudanças coisas que não são novas ou não estão acontecendo'' (Kelly, 2015, p. 151 1). Há também quem defenda ainda que longe de ajudar a apontar saídas para as capturas do capitalismo, seu programa apenas previu o futuro (Dufour, 2008).
A nós, interessa que para parte da literatura o texto é “sombrio” e “pessimista”, representando uma descontinuidade do restante de sua obra (Culp, 2016; Galloway, 2004). Neste artigo, buscamos argumentar que é possível adotar outra interpretação. Em acordo comGilbert e Goffey (2015), consideramos que algumas análises do texto em questão negligenciam o fato de que o filósofo estava tratando de um conceito bem específico de controle e acreditamos que compreender esse conceito pode levar a interpretações mais embasadas.
Uma possível explicação para as controvérsias suscitadas é a brevidade do ensaio, que não contempla mais do que quatro páginas. A falta de referências também parece contribuir para isso, uma vez que antes da publicação dos três módulos do curso que ministrou sobre Foucault entre outubro de 1985 e maio de 1986 - “As formações históricas” publicado em 2013, “O poder” em 2014 e “A subjetivação” em 2015 -, não havia como reconstruir o percurso do pensamento de Deleuze para elaboração desse texto.
Diante dessas lacunas, procuramos investigar as origens e nuances do conceito de controle a fim de agregar mais elementos para sustentar interpretações do pós-escrito. Optamos por analisar dois dos três módulos do curso que Deleuze ministrou sobre Foucault: “O poder” (Deleuze, 2014) e “A subjetivação” (Deleuze, 2015), por dois motivos. Em primeiro lugar, porque são os conteúdos que permitem retraçar o percurso que Deleuze fez para escrever o ensaio em questão. Em segundo lugar, porque ainda são textos poucos explorados na literatura nacional.
Ressalvamos que a contribuição desta investigação não está em agregar elementos para tentar decifrar o que Deleuze quis ou não dizer no texto, mas dar suporte à utilização do conceito de controle para que ele possa ser utilizado como uma “caixa de ferramenta” (Foucault, 1979), especialmente para problematizar os processos de subjetivação contemporâneos. Afinal, entendemos que conceitos podem ser utilizados como lentes para a análise de processos sociais, configurando-se como instrumentos úteis “para desenvolver novos modelos e novas formas de pensar o social, o que é em si uma forma de resistência” (Hui, 2015, p.91).
Na primeira parte do artigo, apresentamos questões relativas a ideia de controle presentes sobretudo no módulo do poder. Na segunda parte, enfatizamos principalmente o módulo da subjetivação, quando aparece uma noção central para a compreensão do conceito em pauta: a de resistência. Articulamos os resultados com reflexões propostas por pesquisadores atuais com a finalidade de problematizar como os achados desta pesquisa podem ser úteis para pensar os novos processos de subjetivação. Por fim, apresentamos as considerações finais do artigo.
Controle: uma modalidade específica de poder
Não é novidade que a ideia de sociedade de controle segue a trilha deixada por Foucault, que na visão de Deleuze (1992) “analisou muito bem o projeto ideal dos meios de confinamento” (p.219). É sabido também que Foucault (2008 [1978]) discorreu sobre três técnicas de poder que se sobrepõem e correlacionam: as jurídico-legais, as disciplinares e as de segurança. Os dispositivos de segurança representam um marco nas relações de poder, uma vez que, ao contrário dos da lei ou da disciplina, não repercutem de maneira exaustiva, impositiva. Na lógica da segurança não se visa governar efetivamente a totalidade dos súditos, nem vigiar os indivíduos pelo “panóptico”, mas deixar as pessoas e as coisas agirem, o que “quer dizer, essencial e fundamentalmente, fazer de maneira que a realidade se desenvolva e vá, siga seu caminho, de acordo com as leis, os princípios e os mecanismos que são os da realidade mesma” (Foucault, 2008a [1978], p. 61). Ou seja, trata-se de governar de forma necessária e suficiente, uma vez que a liberdade aparece como um “elemento indispensável à própria governamentalidade” (2008a [1978], p. 475).
Diante disso, pesquisadores consideram que a última modalidade de poder no diagrama de Foucault pode ser assimilada ao conceito de “controle” em Deleuze (Gilbert e Goffey, 2015). Porém, conforme explicam os autores, para Foucault, as modalidades de poder não representam fases históricas distintas, sendo coexistentes, uma vez que se interpenetram e se reforçam mutuamente. No diagrama de Deleuze, a modalidade de controle parece suceder a da disciplina.
Segundo Hur (2018), no curso que ministrou sobre Foucault entre os anos de 1985 e 1986, Deleuze tratou da emergência do novo diagrama de poder. Entretanto, conforme ressalva o autor, no livro que escreveu sobre o filósofo não há referência a isso: “não sabemos se o livro foi enviado para impressão antes da realização do curso, ou se Deleuze preferiu não colocar essas novas reflexões na obra, por não estar tão seguro delas” (p.173). Pontuamos que embora não haja menção ao termo “controle”, há uma discussão sobre o “super-homem” e suas “super-dobras” que, como veremos, serviu de base para o pós-escrito.
No curso, Deleuze (2014 [14/01/1986]) explica que, para Foucault, o poder não é uma forma, mas uma relação de forças - no plural -, o que é uma ideia “rigorosamente nietzschiana”. Nietzsche explicava essas forças por meio do conceito de vontade, já Foucault falava em “situação estratégica complexa”, o que não significa “complicado”, mas “múltiplo”. Ou seja, segundo Deleuze, para Foucault, o poder é uma multiplicidade. Isso implica em não haver um único diagrama do poder, mas uma multiplicidade aberta de diagramas os quais são, si mesmos, constituídos por múltiplas singularidades e afetos. São esses diagramas de poder, compostos por múltiplas forças de fora que variam a depender do contexto, que se exercem no homem.
Portanto, a ideia de controle sustenta-se, antes de tudo, nas reflexões acerca do poder empreendidas principalmente por Foucault e Nietzsche. Mas há ainda uma terceira referência principal: Espinosa (Gilliam, 2019; Hur, 2016). Assim, nas referências de Deleuze haveria uma “trindade do poder” formada por Nietzsche, Espinosa e Foucault:
Nietzsche nos fornece um modelo dinâmico das forças, no qual há o interjogo entre as forças ativas e reativas. Espinosa traz a discussão da potência, como análoga ao poder de ser afetado. [...] Foucault traz uma elaboração do poder inédita, não mais o compreendendo como substância, mas como práticas, relações e estratégias (Hur, 2016, p.189).
Sendo assim, embora os filósofos tenham especificidades próprias, podemos considerar que para os quatro o poder se inscreve em um plano de imanência. Espinosa e Nietzsche pensam os modos de existência como possibilidades de liberdade e criatividade, sem nenhum apelo a valores transcendentais. Já Foucault o alude a critérios “estéticos”, de vida, que substituem avaliações transcendentes por imanentes (Deleuze, 2005a). Logo, além do pós-escrito ter recebido influência do pensamento de Simondon, principalmente através do conceito de modulação (Hui, 2015), recebeu também de Foucault, Nietzsche e Espinosa, sobretudo no que se refere ao plano de forças imanentes que se exerce no homem.
Essas influências indicam que há continuidade entre o pós-escrito e o restante de suas produções filosóficas, diferentemente do que defende parte da literatura (Culp, 2016; Galloway, 2004). Pesquisadores que fazem essa leitura, por vezes, sustentam-se na afirmação que Deleuze fez em 1990 em uma entrevista com Toni Negri, de que ele e Félix Guattari sempre “permaneceram marxistas”, ou de que planejava escrever um livro sobre Marx no fim da sua vida (Schleusener, 2020).
Contudo, cabe lembrar que logo após dizer que permaneceram marxistas, ele demarca algumas diferenças conceituais significativas com Marx. Em primeiro lugar, diferem-se por definir uma sociedade por suas linhas de fuga, não por suas contradições. Em segundo lugar, por não consideram que uma sociedade é composta por classes, mas minorias. Em terceiro, por não definirem as máquinas de guerra pela guerra, mas por uma certa forma de ocupar, preencher ou inventar espaços-tempos. Os movimentos artísticos, por exemplo, seriam máquinas de guerra. Assim, na perspectiva de Deleuze, “já não dispomos da imagem de um proletário a quem bastaria tomar consciência” (Deleuze, 1992, p. 213).
O que argumentamos aqui, portanto, é que analisando as origens das ideias de Deleuze acerca do poder, podemos dizer que não há descontinuidade entre o pós-escrito e o restante de sua obra. Afinal, ele desenvolveu as reflexões sobre o poder e, por conseguinte, sobre o controle, tomando como base autores que sempre o influenciaram: Espinosa, Nietzsche e Foucault. Além disso, como veremos, faz considerações importantes sobre resistências e emancipações, apontando, como sempre fez, para possibilidades de construção de linhas de fuga mesmo na era do controle.
Fato é que foi a partir dessas bases filosóficas que Deleuze (2014 [04/03/1986]) elencou três diagramas do poder. O primeiro é relativo ao tempo em que se operava máquinas simples, como a polia e os mecanismos de relojoaria. Nesse momento, compunha-se forças no homem de tal forma que seu composto era Deus. O segundo é referente ao período em que se operava máquinas energéticas e a vapor, uma composição de forças que tinham como resultado não mais Deus, mas o próprio homem: “assim, o século XIX estará sob a forma: ‘Deus está morto’; o que significa menos que Deus não existe e mais que o conceito de Deus não existe” (p.5). O terceiro refere-se ao tempo das máquinas produzidas pelo silício, em que as composições de forças resultam no “super-homem”. Esse termo, ressalva Deleuze, é tomado emprestado de Nietzsche, não tendo sido usado por Foucault. O super-homem não é mais nem a forma Deus nem a forma homem, mas um sistema chamado “homem-máquina”:
o que há de interessante hoje nas novas máquinas é a revanche do silício. É incrível, o silício retorna. Preferiu-se o carbono, mas em seguida: bum! [risos] Devido a um expediente tecnológico, é a revanche do silício. Não construímos memórias com carbono, mas com silício e creio que isso seja fundamental. Eu diria que o trabalho se reúne nas máquinas de terceira espécie, ou, em termos gerais, reúne-se no silício (Deleuze, 2014 [11/03/1986], p.23)
Um ponto merece discussão aqui: a empolgação com a qual Deleuze fala das máquinas da terceira espécie, o que retifica a hipótese de que não há descontinuidade nas reflexões acerca do poder e coloca em questão interpretações “pessimistas”. Entretanto, é importante lembrar que mesmo sendo possível identificar a empolgação com que ele fala do silício, não é possível também localizar otimismo em suas falas. Isso porque Deleuze (2014) afirma categoricamente que “nenhuma das três formas – Deus, homem e super-homem – é pura e nunca se pode dizer que são a maravilha. Eu insisto nisso porque tenho muitas preocupações” (2014 [08/04/1986], p.15). Ele lembra que quando se escreve, é preciso fazer simplificações, e que mesmo Nietzsche foi mal interpretado ao falar do super-homem, como se estivesse dizendo que essa fase seria uma maravilha, o que não foi bem o que quis dizer.
As reflexões sobre o super-homem fizeram Deleuze (2014 [08/04/1986]) se questionar sobre a ascensão de uma terceira forma jurídica: “mesmo que haja sobreposição entre as formas, não poderíamos formular a partir dos textos de Foucault a hipótese de três formações jurídicas, e não duas?” (p.17). Note-se que para Foucault (2008) não há uma sucessão soberania-disciplina-segurança, mas sobretudo sobreposições e um sistema de correlações. Não devemos esquecer, também, que “Foucault estava analisando os discursos do século XVIII que culminaram no neoliberalismo, e que Deleuze referia-se a uma realidade mais estrita” (Rodríguez, 2015, p. 373). Sendo assim, podemos considerar, como defende Corbanezi (2018), que Deleuze fez uma “apropriação” das ideias de Foucault.
Em seguida, ele se questiona sobre a nomenclatura dessa possível terceira forma, recorrendo à Burroughs para nomeá-la. O filósofo explica que se sente à vontade para utilizar o termo controle, pois Foucault conhecia Burroughs e tinha por ele grande admiração - especialmente por suas análises do controle social nas sociedades modernas após a 2ª Guerra, embora não o tenha mencionado em seus escritos. Ressalvamos, seguindo as trilhas de Gilbert e Goffey (2015), que a frase "sociedades de controle" pode evocar uma imagem para alguns leitores ingleses de um sistema de poder altamente direcionado e centralizado, e a intenção de Deleuze era expressar justamente o oposto.
Vale mencionar que os três pensadores estavam presentes no colóquio Schizo-Culture, que aconteceu em 1975 nos EUA. O evento representou “o ponto de inflexão para o que geralmente tem sido chamado de ‘teoria francesa’ nos Estados Unidos” (MIT Press, 2014). Na ocasião, Burroughs (2014) proferiu uma palestra denominada “Os limites do controle” na qual afirmou que as palavras são os principais instrumentos de controle e explicou que essa modalidade necessita de tempo e de oposição ou assentimento para ser exercida: “todos os sistemas de controle tentam fazer o controle o mais estreito possível, mas, ao mesmo tempo, se o conseguisse completamente não haveria mais nada para controlar. ” (n.p).
Assim, concordamos com Rodríguez (2015) quando argumenta que para Burroughs e Deleuze a informação está na base do novo diagrama de controle e que a fórmula do novo diagrama poderia ser: controle = segurança + informação. Lembrando que, para Foucault, a liberdade é indispensável na tecnologia de segurança (Foucault, 2008a [1978]) e que, para Deleuze, “a informação é exatamente o sistema de controle” (Deleuze, 2013, p.11).
A partir dessas três formações, Deleuze (2014 [08/04/1986]) postula as três formas jurídicas. A primeira, que surgiu na Idade Média e terminou com a Revolução Francesa, operava um poder soberano o qual extraía do homem e decidia sobre a sua morte. A segunda, que surgiu após a Revolução francesa, operava um poder disciplinar o qual consistia em impor tarefas a conjuntos pouco numerosos de humanos, tomadas nos limites atribuíveis. “O que conta nessa formação, na verdade, não é a relação do homem com o soberano, mas do homem com o homem, para que dela saia o máximo de efeitos. O sujeito do direito não é mais o soberano, mas o homem” (p.18). A terceira, fundamentada numa “biopolítica das populações”, surgiu quando o direito se propôs a gerir a vida em multiplicidades abertas:
[A gestão biopolítica] se dá no espaço aberto, são grandes multiplicidades cujos limites não são atribuíveis. Elas só serão tratáveis pelo cálculo das probabilidades, daí o desenvolvimento do cálculo de probabilidades e o sentido dos controles sociais de probabilidades (probabilidades de ocorrerem casamentos em uma nação, de nascimentos, taxa de natalidade, núpcias, mortalidade, planejamento, expansão de cereais, erradicação dos vinhedos etc.). São populações também, não são só os homens que são populações. Trata-se realmente de gerir as populações em espaços abertos (Deleuze, 2014 [08/04/1986], p.18).
Uma análise atenta das periodizações mostra que Deleuze nunca esteve muito seguro dessa questão: “bem, vocês podem decidir se há uma terceira formação ou sé é o mesmo da segunda, se é a segunda formação em forma mais complexa” (2014 [08/04/1986], p.18), apenas afirma que ela inicia já no século XIX e explode no século XX. Em determinado momento do curso, associa a virada de uma forma a outra ao rádio e à televisão, mas na entrevista de 1990 associa à cibernética (Deleuze, 1992). Também no curso, diz que o Hitler e Mussolini representaram o ponto de inflexão da disciplina ao controle, assim como Napoleão representou o ponto de inflexão da soberania à disciplina, mas na conferência de 1987 falou que a sociedade de controle só se tornaria evidente daqui quarenta, cinquenta anos. Independentemente dessas incertezas, assegura que a sociedade disciplinar iria “deixar resquícios e permanecer por anos a fio” (Deleuze, 2013, n.p).
Após desenhar as três formas jurídicas, Deleuze (2014 [08/04/1986]) afirma que é melhor prestar atenção aos procedimentos de controle que irão substituir a disciplina, e que está convencido de que “a terceira idade do direito não é melhor do que as outras duas”, principalmente por estar ligada à ascensão do fascismo. Nesse momento, é inegável o tom sombrio para com os rumos da sociedade. Porém, vale frisar que ele nunca se debruçou profundamente sobre esses temas (Rodriguez, 2015).
Apesar de demonstrar desalento político-econômico futuro nesse momento, cabe lembrar que o filósofo defendia constantemente que “a questão não é saber se isso é melhor ou pior” (Deleuze, 2005a, p.6), mas “saber por que e contra quem se luta, em qual momento” (Deleuze, 2005a, p.6). Para ele, a grande questão não é atribuir valor moral à nova era, mas “encontrar novas armas” (Deleuze, 1992, p. 92).
Tem-se nessa reflexão uma questão central para a compreensão do conceito de controle, que merece ser melhor discutida: a noção de resistência. Para isso, prosseguiremos na apresentação do curso, abrangendo agora, sobretudo, o segundo módulo, denominado “A subjetivação”. Esperamos que esse arcabouço teórico conceitual promova sustentação para refletirmos sobre os novos processos de subjetivação.
O outro lado do poder: a noção de subjetivação
Ainda durante o segundo módulo do curso, Deleuze (2014 [15/04/1986]) lembra que Foucault deu um intervalo de um ano entre a publicação de Vigiar e Punir, em 1975, e A vontade de saber, em 1976, e que nesse período apareceu outra novidade central em sua obra, além da mutação dos diagramas de poder: “a ideia de que numa sociedade, num campo social, não há somente pontos de afetar e pontos de ser afetado, mas um terceiro tipo: pontos de resistência, singularidades de resistência” (p.18). Apesar de ter feito esse intervalo, na visão de Deleuze, “Foucault nunca deixou de falar dela, de praticamente não falar senão dela, somente em condições que eram recobertas pelo problema do saber e pelo problema do poder” (p.18).
Assim, explica que quando Foucault falava sobre “o outro lado da relação de poder”, estava falando dos pontos de resistência (p.20). A resistência, nessa perspectiva, não é heterogênea ao poder, mas algo que se passa nas relações de poder, por meio delas e se inscrevem nestas relações como irredutíveis. Conclui, então, que as resistências são inclusive primárias em relação ao poder: “em outras palavras, um campo social resiste ao poder antes de se estrategizar nas relações de poder” (p.24). Segundo Deleuze (2014), foi a partir do encontro com a noção de resistência que Foucault conseguiu abordar três eixos sucessivos: o eixo do saber, o eixo do poder e, por último, o eixo que vai além do poder, que o ultrapassa e invoca a vida: o da subjetivação.
Nesse momento, fica claro que não há possibilidade de compreendermos o conceito de controle sem entendermos o de resistência. Para explicá-lo, no segundo módulo do curso, Deleuze (2017 [06/05/1986]) retomou as ideias de Nietzsche. Segundo ele, em “Vontade de potência”, Nietzsche estava se referindo à mutação da potência que foi possível graças à emergência da filosofia: da concepção de “potência-soberania”, que visava assegurar a dominação ou promover a guerra, para uma potência de “afirmação da vida”. Em suas palavras: “afirmar a vida, e já não julgar a vida como faz o deus soberano. Romper com a concepção da potência-soberania é, então, o primeiro ato da filosofia, que faz da vida uma arte, ou seja, que cria novas possibilidades de vida” (p.201). Ou seja, a noção de resistência, para Deleuze, está associada a essa concepção de “libertação da vida’ que ocorreu devido ao nascimento da filosofia, e que foi analisada por Nietzsche.
Para ele, em última instância, resistir é o que procuram fazer não apenas os filósofos, mas todos os grandes artistas: “sem dúvida, é isso que a escrita, os grandes escritores e grandes filósofos buscam fazer” (Deleuze, 2015, p.29). Conforme explica Ulpiano (1995b), a possibilidade de emancipação não está restrita apenas aos filósofos ou aos verdadeiros artistas, mas a todos nós: “é como se você resolvesse – e é isso que o artista resolve – assumir a sua própria liberdade; resolvesse assumir a experimentação da sua própria vida, não deixasse a sua vida ser governada por poderes exteriores e viesse a fazer dela o que bem entendesse” (Ulpiano, 1995b, n.p.).
Para compreendermos melhor essa definição, podemos nos voltar novamente para a palestra “O ato de criação” (2013), onde o filósofo diferencia resistência de contra-informação e, novamente, associa resistência à arte, ao ato de criação: “todo ato de resistência não é uma obra de arte, embora de uma certa maneira ela faça parte dele. Toda obra de arte não é um ato de resistência, e no entanto, de uma certa maneira, ela acaba sendo” (p.186). No Abecedário, traça novamente essa articulação: “criar é resistir efetivamente”, num exercício de “libertação da vida” (Deleuze, 1994 [1988-1989]). Logo, podemos concluir que nessa perspectiva o conceito de resistência – fundamental para compreendermos o de controle - está intimamente ligado ao de criação.
Após o desenvolvimento da ideia de resistência, Deleuze (2015 [06/05/1986]) afirma que ainda que não nos demos conta, o livro “O uso dos prazeres” deriva de Nietzsche - embora Foucault tenha elaborado respostas muito diferentes das dele. Explica que foi por meio do retorno aos gregos que Foucault conseguiu desenvolver o eixo da subjetivação, uma vez que os gregos aportaram uma nova concepção da força, inventando um eixo para além da relação poder-saber. Em outro escrito, afirmou isso novamente: “é que os gregos, enquanto filósofos, que os filósofos gregos, inventaram novas possibilidades de vida. Fizeram do pensamento uma arte” (Deleuze, 1995, p. 200).
A identificação, por parte de Foucault, do eixo da subjetivação, foi possível porque no diagrama de poder grego - que consistia em uma “relação agonística entre agentes livres” -, havia uma premissa derivativa fundamental: que somente aquele que é capaz de governar a si mesmo, é capaz de governar os outros (Deleuze, 2017, p. 204). O “governar a si mesmo”, portanto, não se reduz ao domínio das relações de poder (do governo dos outros), nem ao domínio do saber (do conhecimento de si e dos outros), é independente. Por isso, Deleuze (2015) explica que os gregos inventaram a subjetividade e a converteram na regra facultativa do homem livre, ou seja, na aposta estética por excelência.
Nesse contexto, uma força - que antes só tinha relação com outras forças - passa a afetar a si mesma, operando uma “dobra”. A operação da “dobra” ocorre por meio de quatro aspectos, quatro partes: a primeira, diz respeito a parte material de nós mesmos, ou seja, ao nosso corpo. No diagrama grego, por exemplo, o que está em voga são os corpos e os seus prazeres, enquanto no diagrama cristão, é a carne e os seus desejos. A segunda, diz respeito às leis, que podem ser, por exemplo, estéticas, divinas ou racionais. A terceira, está relacionada à nossa relação com a verdade. E a quarta, ao que esperamos para os sujeitos, como imortalidade, morte feliz ou liberdade (Deleuze, 2015).
Como ocorrem com as configurações de poder, os modos de subjetivação que se desdobram são diversos: “há grotescas, há aterrorizantes, há sublimes, há belas etc. Mas o interessante é ver como em torno dos grandes corredores históricos se formam modos de subjetivação que se desenham” (2017, p.226). Ele assegura que quando escreveu “O uso dos prazeres” e fez o retorno aos gregos, Foucault tinha em mente o que sempre teve: “que modo de subjetivação podemos esperar hoje e agora?” (2017, p.226). O próprio Deleuze, até o fim de sua vida, também não cessou de se questionar isso:
Quais são as novas lutas em relação às eventuais novas formas de poder? Segundo problema, que me parece menor, mas interessante: há um novo papel para o intelectual nessas lutas e em relação ao novo conhecimento? Terceiro problema: em que medida e como os modos de subjetivação que têm regra própria se relacionam com novas lutas, a ponto de poder decidir-se como fórmula que qualquer transformação das relações sociais implica novos modos de subjetivação? (Deleuze, 2013, p. 114).
Sabemos que por não se ter debruçado mais sobre essas questões, são pontas abertas em sua obra (Hur, 2016). Encontramos apenas algumas indicações importantes que nos ajudam a problematizá-las. Entre elas, a ideia de que na era do “super-homem”, poderíamos ver nascer “super dobras”, presentes no livro de que escreveu sobre Foucault (Deleuze, 2005b). Todavia, em nenhum momento do livro, há explicações de como seriam as super-dobras, sabemos apenas que são dobras diferentes do que ocorriam na era das disciplinas, como as sabotagens nas fábricas.
Um interlocutor que nos ajuda a compreender a ideia de “super-dobras” é Ulpiano (1995b). Segundo ele, assim como a máquina termodinâmica no século passado libertou os nossos músculos, as máquinas da terceira espécie poderão libertar os nossos cérebros e nos permitir criar muito mais do que outrora. Lembramos que “criar”, nessa perspectiva, é resistir. Dessa forma, o século do super-homem pode significar a libertação do cérebro. Além disso, pode ocasionar também na conquista do código genético, da transcodificação, bem como na conquista do “agramatical”, isto é, na libertação das línguas standards que representam marcações de poder.
Isso não significa que o século do super-homem será melhor do que os anteriores, mas que nos permitirá produzir mais criações, mais pensamentos: “nós, no século XXI, não seremos nem melhores nem piores, mas o mundo que se vai abrir para nós, vai ser aquele que vai dar liberdade ao nosso cérebro para produzir os pensamentos mais incríveis” (Ulpiano, 1995b, n.p.). Ou seja, a associação entre os seres humanos e as máquinas da terceira geração vão produzir novos modos de vida, novos processos de subjetivação, que não necessariamente são melhores, mas que abrem muitas possibilidades de criação, de “super-dobras”, de resistências. O século do super-homem permitirá isso, agora, como bem afirma Ulpiano: “o que esse super-homem vai fazer, aí eu não sei”.
Dessa forma, podemos nos perguntar se, na atualidade, onde “não nos falta comunicação [...] falta-nos criação.” (Deleuze, 1992, p.139) a possibilidade de resistência não está mais ligada a “criar” do que “contrainformar”. Nesse sentido, por que não usarmos os novos objetos técnicos a favor da arte? Afinal, como defende Ulpiano (1995c) “as tecnologias ou os objetos técnicos que o homem produz estão a serviço da arte do homem – ao invés de ser o contrário!” (n.p.). Hui (2020), por exemplo, defende o uso das tecnologias em sua diversidade, o que ele chama de “cosmotécnica”, para resolver problemas específicos de cada localidade. Para Zarifian (2002), na sociedade de controle as resistências podem ser substituídas pelo engajamento subjetivo, que se configuram, ao mesmo tempo, como o cerne de controle e possibilidades de emancipação.
Outra maneira de produzir “dobras” - ou “super-dobras” - seria associar a arte não apenas aos objetos técnicos, mas a nossa própria vida, já que na modalidade de poder exercida pelo controle a liberdade é intrínseca, como acontecia na Grécia. Assim, por que não usamos a nossa própria vida para produzir arte?
Por último, assim como fizeram Gilbert e Goffey (2015), também consideramos válido citar aqui o breve texto que foi incluído na contracapa do livro “Conversações”, pois nele o filósofo explica melhor o que os autores chamam de pragmática da 'não comunicação' em relação aos poderes:
É verdade que a filosofia não pode ser separada de uma raiva contra sua época, mas também de uma serenidade que ela nos garante. No entanto, a filosofia não é um poder. [...] Por não ser um Poder, a filosofia não pode travar uma batalha com os Poderes. [...] E não pode falar com eles, não tem nada a dizer a eles, nada a comunicar, apenas negocia. Como os poderes não se contentam em ser externos, mas também passam para dentro de cada um de nós, cada um de nós se encontra em uma negociação incessante e em uma guerra de guerrilha consigo mesmo, graças à filosofia (Deleuze, 1992, n.p.)
Três pontos são importantes para nós nesse trecho. O primeiro, que Deleuze, por meio da filosofia, criou os seus pontos de resistência, as suas linhas de fuga. O segundo, o fato de que a filosofia não é um poder e não visa travar uma batalha contra os poderes, apenas negociar com eles. Ou seja, ela não visa comunicar nada, configurando-se como um meio de resistência possível para outras pessoas também, ao lado de outras ciências e artes. O terceiro, que os poderes não são apenas externos, mas também internos, o que implica em negociações constantes de cada um consigo mesmo. Isso significa que o papel da filosofia – ou de outros meios de resistência - é também travar negociações constantes entre cada pessoa consigo mesmo, pois os perigos não estão apenas no fora.
Ressaltamos que estudar o conceito de controle em Deleuze é importante para buscar novas luzes, novas potências. Esperamos ter elucidado alguns caminhos possíveis ao longo deste ensaio. A nosso ver, compreender as novas configurações do poder pode ser útil para lidar com os perigos inevitáveis de qualquer progresso. Buscar novas luzes e potências na era do controle não é uma tarefa fácil, mas, como procuramos demonstrar, é possível e urgente.
Considerações finais
Este estudo mostrou que as bases filosóficas para a construção do Pós-escrito foram as teorizações de Foucault acerca das três tecnologias de poder, bem como determinadas ideias de Nietzsche e Espinosa - além das influências de Simondon, analisadas por Hui (2015). Partindo dessa premissa, argumentamos que não é possível fazer análises do texto sem levar em consideração essas bases e que, ao contrário do que sugere parte da literatura, não há razões para supor uma descontinuidade entre o texto e o restante de sua obra. Defendemos que o texto ressoa congruentemente com o restante de seus pensamentos e publicações e que, diante disso, é possível não o interpretar como pessimista (embora também não possa ser considerado otimista).
Acompanhando o percurso teórico de Deleuze a partir dos cursos que ministrou sobre Foucault, ficou claro que controle é uma nova modalidade de poder, caracterizada sobretudo pela proliferação da informação. Identificamos também que não é possível falar em poder e controle sem considerar as possibilidades de resistência associadas. Tanto na perspectiva dele quanto na de seus autores de referência, não existe controle sem possibilidade de libertação. Para Deleuze, essa possibilidade não está apenas na contrainformação ou na luta entre os homens, mas sobretudo no ato de criação, na arte. Naquela que não visa comunicar nada, apenas inventar novos modos de vida.
Importante dizer que este estudo não está isento de limitações. Devido ao fato de termos concentrado nos cursos de Deleuze sobre Foucault, alguns escritos importantes podem ter sido negligenciados. Este estudo, portanto, não esgota o caminho traçado por Deleuze para conceituar o controle, abrindo inclusive direções para pesquisas futuras. Novas pesquisas podem se concentrar, também, em retraçar o conceito de resistência em Deleuze. Isso seria importante para, assim como procuramos fazer aqui, utilizá-lo como uma ferramenta para analisar os novos processos de subjetivação que podem emergir na sociedade de controle.