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Analytica: Revista de Psicanálise
versão On-line ISSN 2316-5197
Analytica vol.4 no.6 São João del Rei jan./jun. 2015
Psicanálise e assistência social: o vínculo transferencial enquanto porta de entrada nos serviços do CRAS
Psychoanalysis and social assistance: The transference bond as gateway in the CRAS services
La psychanalyse et l'aide sociale: Le lien du transfert en tant que passerelle dans les services CRAS
Psicoanálisis y asistencia social: El vínculo transferencia como puerta de entrada en los servicios CRAS
Anna Caroline SouzaI; Fernanda Mariana Silva SouzaII; Jane Mara dos Santos BarbosaIII; Kylmer Sebastian de Carvalho PereiraIV; Juliana AzevedoV; Thayane Bastos Moura DiasVI; Wilson Camilo ChavesVII
IGraduanda em Psicologia pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). Extensionista. anninhaecesar@gmail.com
IIGraduanda em Psicologia pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). Extensionista
IIIMestre em Psicologia pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ).Psicóloga do CRAS Tijuco da prefeitura Municipal de São João del-Rei. Co-Orientadora do Projeto de Extensão. janemarapsi@yahoo.com.br
IVGraduando em Psicologia pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). Extensionista. lawliet.kylm@gmail.com
VGraduanda em Psicologia pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). Bolsista de extensão PROEX-UFSJ. julianaazevedoc@hotmail.com
VIMestranda em Psicologia pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). Bolsista CAPES.Extensionista. thayanebastospsi@hotmail.com
VIIDoutor em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos- UFSCar. Docente do Departamento de Psicologia da UFSJ. Coordenador do Projeto de Extensão.camilo@ufsj.edu.br
RESUMO
O presente artigo tem como objetivo a apresentação do relato de uma prática psicanalítica desenvolvida no âmbito da proteção social básica em assistência social a partir do pressuposto da importância do vínculo transferencial nos serviços oferecidos nesta instituição. Tal prática refere-se à criação de um grupo informativo de mães dentro do contexto do CRAS - Centro de Referência de Assistência Social, cuja finalidade é fomentar a prevenção do rompimento de vínculos familiares e comunitários. O enfoque teórico adotado foi a psicanálise. O grupo foi composto por mães, beneficiadas pelo Programa Bolsa Família, que frequentam os CRAS de São João del-Rei - Minas Gerais, e que apresentavam dificuldades de protagonização dos seus direitos. Como resultados obtidos, ressaltam-se: o estabelecimento de vínculo das mulheres ao projeto, maior adesão às oficinas oferecidas pelos CRAS e retificação de seus conflitos.
Palavras-chave: Psicanálise; Grupo; Transferência; Assistência Social.
ABSTRACT
The objective of this article is to present a psychonalytical practice, developed in the field of social assistance, based on the assumption that the transference is a fundamental aspect of the services provided by the social assistance programs. The practice is the creation of an informative group of mothers inside CRAS - Reference Center of Social Assistance; an institution whose objective is to prevent the break of family and comunity ties. The theorical basis of this study was freudian and lacanian psychoanalysis. The group was composed of mothers, beneficiaries of the Bolsa Familia program, that use the services provided by CRAS in the town of São João del-Rei - Minas Gerais. Those mothers had trouble reclaiming their civil rights. The most noticeable results of the study were: the estabilishment of ties between the women and the project, a bigger acceptance of the CRAS-provided workshops and subjective retification of their conflicts.
Keywords: Psychoanalysis; Group; Transference; Social Assistance.
RÉSUMÉ
Cet article vise à présenter le rapport d'une pratique psychanalytique développé dans la protection sociale de base en travail social de l'hypothèse de l'importance de la relation transférentielle dans les services offerts dans cet établissement. Cette pratique se réfère à la création d'un groupe d'information des mères dans le CRAS contextuel - Aide sociale Centre de référence, dont le but est de promouvoir la prévention de la rupture des liens familiaux et communautaires. L'approche théorique était la psychanalyse. Le groupe a été composé de mères, bénéficié par le Programme d'aide aux familles, assister à la CRAS São João del Rei - Minas Gerais, et qui avait des difficultés de protagonization de leurs droits. Comme résultats que nous soulignons: l'établissement d'une connexion des femmes à la conception, une plus grande adhésion à des ateliers offerts par CRAS et de rectification de leurs conflits.
Mots-clés: la psychanalyse; Groupe; Transfert; L'aide sociale.
RESUMEN
Este artículo tiene como objetivo presentar el informe de una práctica psicoanalítica desarrollada en la protección social básica en trabajo social de la asunción de la importancia de la relación de transferencia de los servicios que se ofrecen en esta institución. Esta práctica se refiere a la creación de un grupo informativo de las madres dentro del contexto CRAS - Centro de Referencia de Asistencia Social, cuyo propósito es promover la prevención de la interrupción de los lazos familiares y comunitarios. El enfoque teórico fue el psicoanálisis. El grupo estaba compuesto por madres, beneficiado por el Programa Bolsa Familia, de asistir a la CRAS São João del Rei - Minas Gerais, y que tenía dificultades protagonization de sus derechos. Como resultados destacamos: el establecimiento de una conexión de las mujeres para el diseño, una mayor adhesión a los talleres ofrecidos por CRAS y rectificación de sus conflictos.
Palabras clave: Psicoanálisis; Grupo; Traslado; La asistencia social.
Introdução
Com este artigo, pretende-se refletir sobre um trabalho desenvolvido dentro de uma instituição pública de assistência social, o CRAS, analisando os vínculos transferenciais estabelecidos neste local, sob a perspectiva da psicanálise. Para tanto, serão abordados alguns aspectos relevantes referentes à política nacional da assistência social, especialmente em relação à proteção social básica. Serão discutidos os pressupostos básicos da psicanálise no que tange à escuta e à relação transferencial, relacionando-a com a política de assistência social e a maneira como esta pode ser empregada neste espaço. Por fim, serão relatadas as ações realizadas durante um projeto de extensão universitária realizado por discentes do curso de Psicologia da Universidade Federal de São João del-Rei e por uma psicóloga do CRAS. Esses relatos serão acompanhados de discussões sobre os resultados alcançados até o presente momento.
Para Freud, o saber em psicanálise é atravessado de ponta a ponta pelo inconsciente, sendo os processos conscientes pouco expressivos em relação aos processos inconscientes (Freud, 1980a). É um método desenvolvido por meio da escuta e da abertura para a singularidade do outro, que fala do seu sofrimento e que traz um pedido de ajuda. Assim, é possível afirmar que a psicanálise atua sobre o sujeito, é uma possibilidade voltada para o sujeito de direito (Miller, 2011). Desde a sua criação, a psicanálise encontra-se em contínua investigação. Seu campo de estudo e conhecimento tem se expandido bastante, não se restringindo apenas ao contexto da clínica e seus moldes tradicionais (Manonni, 1981). E um dos cenários em que a prática da psicanálise está se difundindo é o da política pública de assistência social.
A política pública de assistência social começou a ser desenvolvida no Brasil a partir de 1993, quando foi regulamentada a Lei Orgânica de Assistência Social - LOAS, que define em seu primeiro artigo que a Assistência Social é "[...] direito do cidadão e dever do Estado, é Política de Seguridade Social não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas" (1993, p. 6). Em 2004, foi lançada a Política Nacional de Assistência Social - PNAS, que expressa a materialidade da LOAS. Já em 2005, foi aprovada a Norma Operacional Básica do Sistema Único de Assistência Social - NOB/SUAS, que visou à implantação e à consolidação do Sistema Único de Assistência Social - SUAS.
Tal política divide-se em dois aspectos: proteção social básica e proteção social especializada. A proteção social básica volta-se para a assistência às famílias em vulnerabilidade social e se faz por meio do Centro de Referência da Assistência Social - CRAS. A atenção especializada se faz por meio do Centro de Referência Especializado da Assistência Social - CREAS, cujo objetivo é acompanhar pessoas em condição de vulnerabilidade social, que apresentaram seus direitos infringidos (Brasil, 2004).
O CRAS é uma unidade pública pertencente ao Estado e se localiza em locais onde está presente a vulnerabilidade social e risco (Brasil, 2004). Pode-se considerá-lo como porta de entrada para o Sistema Único de Assistência Social (Suas). Essa instituição oferece a seus usuários o Programa de Atenção Integral a Família - PAIF (Brasil, 2004), que tem como objetivo desenvolver um trabalho social com as famílias de maneira continuada, visando à prevenção da ruptura dos seus vínculos, possibilitando o acesso a seus direitos constitucionais, além de contribuir para a melhoria da qualidade de vida dos indivíduos. Ressalta-se que no PAIF é vedado o desenvolvimento de ações cujo caráter seja terapêutico (Brasil, 2009). No entanto, pressupõe-se que os técnicos possuam capacidade de escuta qualificada individual e em grupo (Conselho Nacional de Assistência Social, 2009). Nesse sentido, percebemos a necessidade de uma escuta do singular nesse espaço, pois tal escuta pode implicar em um posicionamento diante do outro, no qual a linguagem, enquanto mediadora da relação entre os sujeitos, e destes com o seu contexto, possibilita a elaboração de suas experiências.
Assim, é possível afirmar que a psicanálise tem muito a contribuir para o trabalho na Assistência Social. Freud já falava da possibilidade de levar a psicanálise para além da clínica, uma vez que esta poderia contribuir muito para as instituições sociais. Freud (1980b) proferiu o texto Linhas de Progresso na Terapia Psicanalítica, em que manifestou a preocupação com o lugar da psicanálise na sociedade. Tratando as neuroses como problema de saúde pública, o autor desperta para a necessidade que o pobre tem de receber assistência à sua mente e que esses cuidados não poderiam ser deixados sob responsabilidade de impotentes indivíduos. Dessa forma, ele vislumbra a necessidade de aliar a psicanálise ao suporte material oferecido pelo Estado. Percebemos, na atualidade das palavras de Freud (1980b), que essa assistência psicológica como direito do cidadão ultrapassa os limites dos serviços de saúde, desdobrando-se também para a assistência social. A necessidade de se repensar as doutrinas teóricas da psicanálise para além dos consultórios também é uma marca contemporânea de seu pensamento. Ao sujeito é ofertada, por meio das políticas públicas, a garantia de seus direitos. Em contrapartida, as demandas singulares fogem das normas institucionais. A escuta analítica, então, possibilitaria apreender a demanda psíquica apresentada pelo sujeito que vem, muitas vezes, substituída por uma demanda material. Em muitos momentos, o sujeito pede ajuda para si através da denúncia, como aponta Barros-Brisset (2011):
Se os efeitos da experiência com a causa analítica se manifestam, pela surpresa de um encontro, sabemos que, ao contrário, o funcionamento habitual das instituições existe para se proteger das surpresas - ali se empurra a rotina, funcionam os protocolos de ação e a abstenção subjetiva (não é caso, não tem perfil, não está implicado, não se responsabiliza, não tem jeito). A burocracia encantada pelo saber sem sujeito dos protocolos vive do esforço para disciplinar e fazer com que seus casos sigam as regras e façam parte do conjunto (p. 8).
Em outros casos, aquele que se apreende como vítima na denúncia mantém uma posição que alimenta a situação da queixa. Os usuários do CRAS, em sua maioria, apresentam baixa escolaridade, inserção precária ou não inserção no mercado de trabalho formal e informal, acesso restrito às políticas públicas, uso de substâncias psicoativas, condições de moradia bem precárias e outras dificuldades, em grande parte devido à sua condição social. Aqui, a perspectiva psicanalítica propõe uma escuta do discurso como possibilidade de situar o sujeito em relação à sua queixa, ao seu desejo. Tal escuta é pautada pela ética da psicanálise que tem no Outro seu lugar de enunciação, conforme problematizam Scarparo e Poli (2008):
O discurso da vitimização coloca a responsabilidade no outro, no Estado, dificultando ao sujeito o reconhecimento de seu sintoma como impedimento de seu lugar desejante. (...) Já foram idealizados e apontados como solução parcial, compensatória, os programas de renda mínima. É fato, que para situações emergenciais e eventuais de crise, como calamidades, sinistros, enfermidades incapacitantes ou desemprego, este recurso financeiro cumpre a função de resguardar a não entrada ou permanência numa situação de insustentável excesso de privação. Mas, para situações onde a repetição do descaso, descrédito, da impotência paralisante se impõe, ou nos casos onde a dor e o sofrimento tomam a dimensão de condição relacional, sem que haja uma busca de saída para esta condição, é neste lugar que a escuta do sujeito é emergente (p. 8).
É importante ressaltar a necessidade de se desenvolver um processo de implicação cidadã concomitante à implicação subjetiva, ou seja, a responsabilidade que o sujeito precisa assumir diante de seus próprios conflitos e escolhas. Entretanto, as políticas públicas são projetadas de forma a abranger o maior número de pessoas que delas necessitem, nesse sentido, por mais que haja uma preocupação com as características do território onde a instituição está localizada e sua área de abrangência, há uma homogeneização dos programas ofertados. Dessa forma, Barros-Brisset (2011, p.4) defende, com base em sua prática em instituições, que:
A ordem de nossa época tem sido assim: siga o manual de instruções e goze! Podemos lê-la nos planejamentos estratégicos de planos de governo e instituições do nosso tempo, sejam públicas ou privadas. O gozado é que isso falha. Esclarecidos quanto ao impossível imiscuído na promessa dos significantes mestres institucionais, conduzimos nossa prática orientada pelo sujeito, seja nos consultórios ou nas instituições (p. 4).
Scarparo (2008) nos aponta um possível caminho para esse fazer ao dizer que há diferença entre a noção de escuta do sujeito de direitos na cidadania e da escuta da singularidade no laço social em relação ao sujeito do inconsciente na psicanálise. A respeito disso, afirma: "É nessa 'zona de fronteira' que podemos situar uma escuta do sujeito, orientada pela ética da psicanálise" (2008, p. 43). Escuta que produz demanda. Assim, pautada na escuta singular desses sujeitos, foi proposta a formação de um grupo, no qual mulheres poderiam discutir assuntos de seus interesses, que versassem sobre aspectos do seu cotidiano, e pudessem ser fonte de informações importantes, que gerassem reflexões e questionamentos. É desse grupo que falaremos adiante.
Metodologia
Os grupos criados em 2012 ganharam o nome de "Grupo de Mães". Com o objetivo de serem informativos, visava atingir mães que encontrassem dificuldades em cumprir as condicionalidades do Programa Bolsa Família e também apresentassem dificuldades na adesão aos serviços oferecidos pelo CRAS. Eles foram desenvolvidos sob o aporte teórico da psicanálise nos CRAS dos bairros Tijuco, Matosinhos e Senhor dos Montes, na cidade de São João Del Rei/MG. Apesar de terem enfoque informativo, os grupos não se restringiam apenas à transmissão de ideias. No decorrer dos encontros, iam surgindo aspectos a respeito das mães, das suas singularidades. Dessa forma, os assuntos abordados e sugeridos pelas mulheres são geradores de reflexões sobre os temas em questão e desenvolvem a possibilidade de ressignificações.
A proposta de formar grupos partiu da psicóloga que atua em uma dessas instituições. Na rotina de trabalho do CRAS, a técnica percebeu diversas dificuldades enfrentadas por mulheres no seu dia-a-dia. Assim, a partir das entrevistas e visitas domiciliares feitas a essas famílias, foi cogitada a ideia de um grupo informativo que não objetivasse um trabalho psicoterápico, mas um trabalho que envolvesse a escuta e informação a essas mulheres sobre temas relativos aos vínculos familiares ou a temas referentes às demandas trazidas por elas, como educação e convivência com os filhos, companheiros/maridos e/ou pais de seus filhos. Com as entrevistas individuais e convites feitos por meio das visitas domiciliares, a proposta de um grupo que abordasse essas relações foi aceita por essas mulheres.
As mulheres podiam levar seus filhos pequenos, caso não tivessem com quem deixá-los. Para tanto, foram utilizados os espaços de brinquedoteca dos CRAS para a realização de oficinas lúdicas com essas crianças simultaneamente aos grupos informativos, os quais eram realizados em uma sala disponível do CRAS, com duração de uma hora (1h) a uma hora e 30 minutos (1h e 30min). O grupo de mães, inicialmente, teve como proposta discutir os assuntos relacionados às dificuldades encontradas pelas participantes em suas relações familiares, bem como aspectos relacionados às mulheres, para que as mesmas pudessem contribuir com uma maior qualidade de vida em seus contextos sociais e para que isso repercutisse no fortalecimento dos vínculos com a família e com a comunidade. Mas é importante salientar que a maioria dos temas eram propostos pelas próprias mulheres ao final de cada reunião de grupo. Vale ainda ressaltar que, embora seja considerado que cada bairro tenha suas especificidades, as atividades realizadas se assentam sobre os mesmos pressupostos teóricos e compartilham a mesma metodologia de trabalho.
Resultados e discussão
Os resultados do projeto foram alcançados, a princípio, na adesão das mulheres às propostas de trabalho. Podemos refletir sobre alguns efeitos subjetivos e intersubjetivos da relação transferencial, uma vez que muitas mulheres chegaram ao grupo de mães sem entender exatamente o que estavam fazendo ali, foram por indicação das técnicas do CRAS ou por sugestão de oficineiros. Sendo assim, inicialmente, não dirigiam às estagiárias uma demanda. Scarparo (2008) afirma que a demanda precisa ser construída em transferência, o que se pretendeu realizar.
No CRAS do bairro Senhor dos Montes, havia uma oficina de ginástica para idosas e o grupo de mães acontecia após o horário dessa oficina. O oficineiro incentivava de modo contundente que as idosas participassem do grupo, fazendo com que no começo muitas ficassem por incentivo dele, tendo em vista sua grande influência sobre as mulheres. Entretanto, o que se constatou foi que aos poucos foi se estabelecendo a transferência de algumas mulheres com o grupo, fazendo com que participassem do mesmo sem a interferência do oficineiro. As mulheres que permaneceram no grupo passaram a demandar a discussão de determinados temas e a trazer histórias de suas vidas, levando-as à construção de novos conhecimentos e à ressignificação de alguns pontos importantes de suas trajetórias.
No bairro Matosinhos, inicialmente, como meio de convidar as mães e de divulgar o grupo, foram realizadas, juntamente com a psicóloga do CRAS e algumas vezes com a Assistente Social visitas domiciliares, visitas às escolas, ao Movimento Familiar Cristão do bairro e também às oficinas que são ministradas no próprio CRAS, nas quais as mães participam. Como forma de divulgação, eram distribuídos convites impressos para cada mãe com explicações acerca dos objetivos do grupo, a data, local e horário. Outra forma utilizada para abordar as mães foi através de ligações diretamente para elas. Ainda assim, algumas mães começavam a participar do grupo, mas logo deixavam de ir, sendo que algumas das principais queixas que justificavam as faltas eram em relação ao horário e ao fato de não terem com quem deixar os filhos. Passamos, então, o grupo para a noite e foi combinado entre os estagiários que a cada encontro alguém seria responsável por ficar com as crianças na sala de ludo.
Os assuntos abordados e escolhidos pelas mães para serem discutidos eram sobre os limites em relação aos filhos, como falar sobre sexo com eles, questões relacionadas às drogas e também às relações conjugais. O grupo permaneceu por algumas semanas com a participação de, em média, 4 a 5 mulheres, até que, por fim, apenas uma estava comparecendo. Ainda assim, com todas as dificuldades encontradas, o grupo exerceu influência sobre a vida dessas mulheres, pois foram percebidas algumas mudanças de posição das mulheres em se tratando dos relacionamentos com os cônjuges.
Nesse CRAS, uma das mulheres se destacou pelo interesse e participação no grupo em função de sua frequência e o modo como lidava com um dos condutores deste. Esse condutor era um homem, para o qual ela sempre dirigia questões referentes a relacionamentos amorosos e ao modo como os homens pensam. Assim, acredita-se que a presença desse coordenador tenha contribuído para sua adesão ao grupo e lhe permitiu falar sobre assuntos que ela acreditava que somente um homem poderia lhe responder.
Essa mulher, que aqui chamaremos de Eliana, de 34 anos, chegou ao grupo com a queixa de estar com dificuldades em impor limites à filha de três anos. Posteriormente, ela foi trazendo questões que diziam respeito a relações conjugais e que pareciam ser de seu maior interesse, uma vez que aos finais de cada encontro ela sempre sugeria que no próximo fosse falado sobre tais relações. Nesses momentos, como ressaltado anteriormente, pode-se observar que logo foi estabelecida uma transferência dessa mulher para com o condutor. Quando o estagiário não comparecia ao grupo, a participante sempre perguntava por ele, afirmando que o mesmo iria gostar do que ela tinha para falar naquele dia, além de pedir para que as outras estagiárias relatassem o que havia sido contado.
De acordo com "Eliana", a relação dela com o marido estava ruim e, por isso, ela estava até pensando em se separar. Na medida em que ia relatando suas experiências, sempre questionava ao estagiário o que ele achava que ela devia fazer, colocando este num lugar de suposto saber. Eliana passa a direcionar, então, um amor para o saber que ela julga que ele tenha e a transferência está presente, justamente, nesse amor direcionado ao saber. Ela acredita que o estagiário possui o saber sobre o seu sofrimento, sobre o seu sintoma. Nunca se sabe ao certo quando a transferência vai aparecer e não é por acaso que o vínculo se estabelece, mas sim quando há algo que captura o sujeito para que ele suponha um saber naquele a quem se dirige, que no presente caso, se refere à figura do estagiário.
Com as demais mulheres, a transferência parece não ter sido estabelecida, pois não houve continuidade da frequência delas ao grupo. Freud (1980c) menciona em A dinâmica da transferência que a resistência da transferência aparece em instituições mesmo que a condução do trabalho não seja psicanalítico: "A manifestação de uma transferência negativa é, na realidade, acontecimento muito comum nas instituições. Assim que um paciente cai sob o domínio da transferência negativa, ele deixa a instituição em estado inalterado ou agravado" (p. 117).
No bairro Tijuco, o grupo de mães teve um pequeno número de participantes durante o ano de 2013, porém, as mesmas tiveram frequência regular e percebemos um desenvolvimento no que tange à participação dessas mulheres no grupo. A partir de seus relatos, pudemos identificar que o grupo exercia influência no cotidiano delas, seja na relação com o companheiro, com os filhos e até mesmo no próprio grupo, ou ainda, na relação com a instituição. Pudemos identificar aqui a importância do vínculo transferencial na adesão dessas mulheres à proposta do grupo por meio da escuta neste espaço.
Algumas vezes, o grupo foi porta de entrada para a participação dessas mulheres em outras atividades oferecidas pelo CRAS. Como exemplo, temos o caso de uma mulher de mais ou menos 33 anos de idade, que será chamada aqui de Inês. A princípio, ela procurou o CRAS com interesse em buscar orientação da técnica de psicologia. Sua queixa dizia respeito ao fato de ela se sentir deprimida e de estar chateada com a vida que levava. Relatava que o marido era alcoolista, além de ser pouco atencioso com ela e com o filho. Inês apresentava baixa autoestima e sentimento de inferioridade. Após algumas entrevistas individuais, a psicóloga a encaminhou para o grupo de mães. Sua frequência no grupo não era regular e ela participou apenas de algumas reuniões.
Nesse ínterim, ela se separa do marido devido à uma traição por parte dele. Em alguns momentos, comenta a respeito da outra mulher do marido, identificando nesta atributos os quais ela não possui, identificando no outro o que lhe falta. Outro exemplo disso foi o seu relato em um dos encontros, que teve como tema: "Como os pais podem auxiliar os filhos na escolha de uma profissão". A partir desse, tema ela relatou que morava na zona rural e que não teve oportunidade de estudar, que cursou apenas o quarto ano do ensino básico. Relatou, ainda, que tinha muita vontade de estudar, contudo, seus pais a proibiam e diziam que ela deveria aprender a ser uma boa dona de casa e se casar, para isso não precisaria estudar. Nesse encontro, ela apontou para as estagiárias e disse: "olha as meninas são mais novas do que eu e já fazem faculdade. Mas agora eu estou fazendo supletivo e vou correr atrás do tempo perdido."
Pelos relatos que Inês fez, nos poucos encontros aos quais esteve presente, percebe-se que, naquele momento de sua vida, ela estava numa busca de ser mulher e o significante "grupo de mães" contradizia algo que era de seu desejo. Inês, que foi criada para ser mãe, queria resgatar a função de mulher que, conforme ela mesma dizia, foi deixada de lado. Ela agora queria ocupar um lugar de objeto causa de desejo. Fangmam (2010) destaca a diferença entre a mãe e a mulher. A mãe goza de forma fálica, o que é bem diferente do gozo feminino que aspira ao infinito e está inserido no corpo.
Com o grupo, Inês se deparava com dois grandes incômodos: o significante grupo de mães e também o fato de as estagiárias serem mais novas do que ela e terem um maior nível instrução. Inês parou de frequentar o grupo, mas começou a participar de uma oficina de aeróbica e, com isso, relatou ter melhorado sua autoestima e sua relação com o próprio corpo. Pode-se notar que Inês tem uma transferência com o CRAS, no entanto, no grupo tal laço não foi estabelecido em momento algum. Quinet (1991) aponta que a transferência não é motivada pelo analista, esta é função do analisante, cabe ao analista apenas seu manejo. Ela é essencial ao processo analítico, pois é através dela que os processos inconscientes se atualizam e surgem os conflitos psíquicos e sua resolução.
Em O Seminário, Livro 11, Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise, Lacan (1990) diz que a transferência é representada comumente como um afeto e é, de maneira vaga, classificada por positiva ou negativa. A primeira é aceita como o amor, em que o termo é usado de modo aproximativo, trata-se de uma espécie de um falso amor, uma sombra de amor. A transferência negativa jamais é identificada com o ódio, ambivalência seria o termo mais adequado a se empregar. No caso de Inês, pelas características da relação que estabelecia com as estagiárias, se tivesse havido de fato um laço transferencial, estaríamos tratando de uma transferência negativa e isso apenas exigiria um manejo desta, assim como acontece com a resistência. Com o manejo adequado, as fantasias e os significantes atribuídos às estagiárias e ao grupo seria um empecilho a ser contornado, mas como não houve o estabelecimento da transferência. isso não foi possível, já que sem o vínculo transferencial não há trabalho psicanalítico.
Apesar de seu caráter informativo, o grupo se baseia na fala dessas mulheres, no que elas têm a dizer sobre cada tema trabalhado, já que cada tema fora proposto pelas mesmas. São temas que, de alguma forma, falam da singularidade de cada uma. É a partir dessa escuta que novas significações são elaboradas, como afirma Miller (1987):
Uma transferência aparece, na conceituação de Freud, como um fragmento da repetição inconsciente, como presa ao automatismo da repetição. No fundo, o analista exerce uma pressão sobre o inconsciente pela própria oferta que faz de escutar o paciente, escutá-lo na medida em que diz qualquer coisa - e sabemos que o que diz nunca é qualquer coisa -, e essa qualquer coisa o conduz à zona que imaginamos no mais profundo, onde estaria escondida sua libido (p. 63).
A transferência aqui aparece como uma formação de compromisso a partir do que Lacan nomeia como o sujeito suposto saber. A escuta no espaço ao qual nos referimos ocorre na e pela transferência, que envolve tanto o sujeito como o psicanalista. Esse espaço é situado como campo transferencial. A escuta psicanalítica implica que o analista suporte escutar, que ocupe o lugar de suposto saber sobre o sujeito como uma estratégia para que o sujeito se aproprie de seu discurso.
Conclusão
Comentamos anteriormente que as demandas singulares que tanto aparecem no estatuto de direitos, fogem às normas institucionais. Freud (1980d) já mencionava que as normas universais que regem nossas condutas são geradoras de um mal-estar. Em Psicologia das massas e análise do eu, Freud (1980d) analisa de que forma o grupo exerce influência na vida mental do indivíduo. Afirma, então, que as relações amorosas (laços libidinais) constituem a essência da relação grupal, são esses laços que os mantêm ligados. Tais laços se constituem a partir da identificação. Busca ainda, no complexo de Édipo, a identificação primordial em que a criança ao mesmo tempo em que se identifica com o pai, tem para com ele um sentimento ambivalente, pois também possui a mãe enquanto objeto de desejo. Nesse primeiro momento, há um recalcamento desse desejo. Aqui se dá a formação do supereu a partir de uma identificação com um ideal de eu. Dessa forma, seu desejo é recalcado e há a internalização da lei paterna pela ameaça de castração sob a forma do supereu.
Freud (1980e), em Totem e tabu, busca também um fator primário para o sentimento de culpa na horda primeva. O pai impede os filhos de se satisfazerem, forçando-os a desenvolver laços emocionais com os demais, laços que impõem freios ao narcisismo, sendo fator fundamental na civilização. O ato do parricídio deu origem à comunidade de direitos iguais e de proibições, nesse sentido, a tensão entre o ideal do eu e o eu originaria um sentimento de culpa. A identificação e o ideal do eu fazem parte da constituição do laço social. O assassinato do pai da horda primeva descreve a internalização de uma lei externa e uma perda de satisfação para o sujeito, bem como ocorre no complexo de Édipo.
Em O mal estar na civilização, Freud (1980f) retoma a questão do sentimento de culpa como sendo o causador do mal estar e o maior entrave ao projeto civilizatório, pois há um impasse do sujeito à sua adequação ao ideal de universalidade que é imposto pelo Outro. Trata-se de um antagonismo entre as exigências de satisfação da pulsão e as restrições impostas pela civilização. A renúncia à satisfação pulsional teria origem no medo da perda do amor do Outro do qual o sujeito é dependente, o supereu exige tal renúncia. Em O futuro de uma ilusão, Freud (1980g) argumenta que o estado de desamparo do homem em relação à natureza é homólogo ao estado de desamparo infantil. Ou seja, o desamparo do homem permanece e, com ele, o anseio pelo pai que o proteja.
O que podemos concluir é que quando tratamos da ética da psicanálise, não estamos ofertando cumprir uma função normalizadora, pelo contrário, esta está voltada para a singularidade, para a orientação do sujeito no sentido de que não há possibilidade de satisfação integral do desejo, pois a mesma desencadearia uma liberação total de pulsão - pulsão de morte. A função normalizadora da sociedade, sucumbida a ideais, não preenche o campo vazio deixado pelo objeto a, a Coisa da qual se referiu Lacan. Para a psicanálise, seu objeto está no âmbito da relação, da experiência do qual o sujeito faz seu relato.
Referências
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Recebido/Received: 24.03.2015/03.24.2015
Aceito/Accepted: 24.04.2015/04.24.2015