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Analytica: Revista de Psicanálise
On-line version ISSN 2316-5197
Analytica vol.10 no.19 São João del Rei July/Dec. 2021
EDITORIAL
Aos portos de Ítaca: entre mitos, odisseias e o novo normal
Enquanto escrevo este editorial, a Ômicron se espalha pelo mundo, causando nova elevação de casos e recordes de infecção, ainda outra variante da covid-19 é detectada por pesquisadores do Instituto Hospitalar Universitário (IHU) de Marselha no sul da França. Essas variantes, associadas à imprevisibilidade do surgimento de novas variantes do SARS-CoV-2, em contraponto ao fim definitivo desta pandemia e de um "retorno ao normal", que nunca será retorno, porque sempre será diferente, faz emergir uma pergunta: Até quando teremos que vivenciar essa odisseia? Fica, ademais, outro questionamento: os sons desse novo normal são reais ou canto das sereias? Tais questões invariavelmente remetem a um dos principais poemas épicos da Grécia Antiga, atribuído a Homero.
É fato que, nas mitologias, não é incomum depararmos com histórias de homens que desafiam os deuses. Na Odisseia de Homero, por exemplo, Odisseu, depois de uma artimanha que lhe rendeu a vitória na guerra de Troia, acreditou-se maior que os deuses e, pela palavra dita, desafiou-os. A resposta, ainda que moderada por Zeus, veio em seguida de Poseidon e uma viagem de volta, que seria triunfal e festiva, transformou-se em décadas de tormenta, além de ter levado à morte muitos cidadãos de Ítaca na travessia.
Estranhamente, as narrativas míticas tomam contornos de realidade. Não sem razão, Freud, em inúmeros momentos, utiliza os mitos como método epistêmico, ao lançar mão deles para esclarecer certas aporias e ideias referentes ao terreno indizível do universo psíquico a fim de pensar os fundamentos de sua clínica. Portanto, não é incomum que, em diversos pontos da teoria psicanalítica, deparemo-nos com referências e metáforas mitológicas que possibilitam ilustrar impasses teóricos, assim como preencher lacunas estruturais que parecem ultrapassar a formalização conceitual. Mas por que essa menção mítica é importante nesse contexto pandêmico?
Ao que tudo indica, o homem tomou para si o orgulho de pensar-se maior do que a própria Natureza - a escrita em maiúsculo se justifica pela verossimilhança com os mitos de origem - a Terra e tudo que a ela pertence fora chamada de Gaia. Não obstante, assim como nos contos míticos, ao que parece, Gaia respondeu à afronta. Isso, pois há aproximadamente dois anos, um vírus literalmente aplacou o ego dos muitos Odisseus contemporâneos ao preço de inúmeras vidas inocentes ou não. Referência trágica essa de grande importância, dado que somos construídos e constituídos pelos contornos trágicos da vida e por suas narrativas que tendem a ser cíclicas no universo humano. Aprendemos com nossas experiências, o que deveria nos permitir escolher construir pontes e não muros.
A guerra de Troia fora vencida e o júbilo de chegar a Ítaca, que outrora era o porto seguro e a volta certa ao lar, apesar de estar próxima, nunca é alcançado. De modo similar, temos a volta a uma normalidade que de normal nada possui. Ao que tudo indica, as aulas presenciais, assim como uma parte importante da produção acadêmica voltarão a um patamar que ainda soa estranho chamar de normalidade. O idílico mundo do saber, que enevoado pelos ventos das tantas incertezas de um porto seguro, segue a um ritmo de uma viagem da qual a precisão do tempo nos escapa. Seria o som do certo um canto incerto das sereias? Por quantas "ilhas gregas" desconhecidas ainda teremos que passar até conseguirmos chegar a Ítaca? Não há como saber, mas se partirmos da concepção de que a Odisseia pode ser pensada como sendo uma narrativa de retorno ao lar como forma de aprendizado ou, como diria Gilbert Durand n'As estruturas antropológicas do imaginário, "toda a Odisseia é uma epopeia da vitória sobre os perigos das ondas...", podemos nos fiar nas formações simbólicas que a viagem proporciona.
Nesse momento, as ondas nos trazem a nova edição da Analytica: Revista de Psicanálise - volume 10, número 18 - que conta com um amplo espectro temático, textos e autores que transformaram essa temporada em um período de construção e desenvolvimento de questões importantes para o universo psicanalítico e com essa publicação em mente, fica também a dúvida se aqui aportamos em Ítaca ou seria Circe, a deusa da feitiçaria, e seus estratagemas a nos ludibriar novamente? Seria ela a responsável por fazer com que o tempo cronológico e lógico se tornasse um misto de desencontros e desarranjos? Resposta ainda obnubilada pelas incertezas de variantes e variáveis nunca antes previstas. Ainda assim, heróis teóricos transvestidos de pesquisadores surgem diante das intempéries e, na grafia de sentidos, contam seus saberes e descortinam mitos. Desse modo, e, por eles, os ventos dos portos de Ítaca ficam mais próximos e as artimanhas dos deuses, sereias e feiticeiras deixam, por um momento, de existir e o frescor da academia nos toca, por meio de escritas que nos encaminham para um "novo" normal, como as destacadas a seguir.
No tocante às questões sobre o feminino, temos: Arrebatamento e êxtase em Clarice Lispector que objetiva apresentar o conceito de devastação em Psicanálise e como este se liga à experiência de êxtase e de arrebatamento, e Violência contra as mulheres: questões do feminino na/para a Psicanálise, texto que procura estabelecer diálogo entre as áreas da Psicanálise e os estudos de gênero, no que tange à violência contra as mulheres.
Encaminhando para questões referentes ao gênero, contamos com: "Batizados na pia da vida": o segundo nascimento na experiência trans que tem como enfoque investigar o caráter antinormativo da experiência trans, e Lacan e Butler: uma conversa possível, artigo que percorre, de forma sucinta, a trajetória teórica do movimento feminista, destacando, sobretudo, a torção operada em sua terceira onda, que dá lugar à emergência do pensamento queer.
No campo das interlocuções, a Psicanálise e a literatura são contempladas em: A voz em Daniel Paul Schreber, Louis Wolfson e James Joyce, trabalho no qual as autoras apresentam a particularidade da voz enquanto como causa e efeito do sujeito, sendo um objeto que resta das operações lógicas de constituição do sujeito, e Literatura e Psicanálise: sobre a perversão em um conto machadiano, que faz um estudo psicanalítico de um conto de Machado de Assis, "A causa secreta", com base na teoria lacaniana.
Percorrendo as contas do amor e da identificação, podemos navegar por: "Reconhecer é amar"?: Algumas reflexões psicanalíticas sobre o reconhecimento de paternidade no Brasil, artigo que busca discutir o reconhecimento de paternidade a partir da Psicanálise, em articulação com o conceito de função paterna em Lacan, e A questão da identificação em O estádio do espelho e sua relação com a alteridade em Jacques Lacan, texto que faz uma abordagem da questão da identificação na obra "O estádio do espelho", publicada em 1949 por Jacques Lacan, relacionando tal momento ao surgimento da alteridade.
A pauta da educação inclusiva ganha contornos em: Educação inclusiva: (im)passes contemporâneos a partir da óptica psicanalítica que questiona o próprio discurso da EI e como ele vem sendo postulado. Enquanto Winnicott e a clínica podem ser encontrados em: O apofatismo winnicottiano a respeito do self e suas implicações clínicas, artigo que se propõe a analisar o conceito de self e como uma postura "apofática" fundamenta reformulações feitas por Winnicott no campo da ética e da técnica.
Além disso, contamos com a tradução do texto Metapsicologia do capital de David Pavón-Cuéllar, reconhecido por suas investigações e reflexões na interseção entre o marxismo, a Psicologia Crítica, a Análise do Discurso e a Psicanálise de Jacques Lacan.
Por fim, se pensarmos o símbolo como aquele objeto que tem por função unir o passado e as experiências do presente a fim de indicar um novo reestabelecido, a publicação desta revista, nesse momento, talvez seja um dos símbolos capazes de nos aproximar da ideia de "um novo normal", mas Ítaca ainda está no horizonte, sigamos!
Elizabeth Teodoro