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Analytica: Revista de Psicanálise
On-line version ISSN 2316-5197
Analytica vol.11 no.20 São João del Rei Jan./June 2022
ARTIGOS
A noiva do Diabo: a psicanálise entre o cinema e a história
Devil's Bride: Psychoanalysis between Cinema and History
Devil's Bride: la psychanalyse entre cinéma et histoire
La novia del diablo: psicoanálisis entre el cine y la historia
Gabriel Silva Medeiros*; Patrícia Ferreira Alcântara**
RESUMO
O presente artigo toma por objeto o filme A noiva do Diabo, de Saara Cantell, baseado nos julgamentos das bruxas de Aland, na Finlândia, em 1666, sob uma perspectiva lacaniana em interface com a historiografia. Este trabalho visa a estabelecer pontos de interlocução entre obra cinematográfica, fatos históricos e o Zeitgeist medieval. A produção artística, para Freud e Lacan, sempre permitiu entrever o objeto de uma maneira distinta. A pesquisa foi do tipo qualitativa, via método exploratório e revisão bibliográfica de artigos, livros e textos em psicanálise e História. Inicialmente, foram tecidas considerações sobre a noção de heresia, que se opõe ao "para todos" como proposição universal. Com a óptica analítica, foram avaliados certos procedimentos jurídicos da Igreja contra os ditos hereges. Além disso, revisitou-se fragmentos de documentos históricos, com o fim de trazer a lume estruturas misóginas próprias da subjetividade inquisitorial. Para tanto, recorreu-se às categorias significante-significado, à cinemato-grafia - no que ela joga com um real ao projetar em tela - e à dialética entre o criador e sua obra, tratada por Lacan quando aborda, no seminário da Ética, o catarismo. Posteriormente, considerando-se a tábua da sexuação, foi examinada a questão do gozo feminino, temática presente no filme e sinalizadora de uma alteridade veementemente rechaçada no curso dos tempos. Por fim, considerou-se algumas passagens do Malleus Maleficarum, concluindo-se que o real do gozo e da pulsão se fazem elementos trans-históricos, ao passo que a história, como construção significante, aproxima-se da verdade. O ódio às mulheres, constantemente reiterado no livro O martelo das bruxas, reflete a defesa do tout homme contra a singularidade do sintoma.
Palavras-chave: Noiva do Diabo, Psicanálise, Cinema, História.
ABSTRACT
This paper takes as its object, the film "Devil's Bride", by Saara Cantell, based on the witches' judgments in Aland, Finland, in 1666, according to a Lacanian perspective, in a historiographic scope. This work aims to establish points of dialogue between the cinematographic work, historical facts, and the medieval Zeitgeist. The artistic production, for Freud and Lacan, always allowed a different way to write the object. The research was qualitative, using an exploratory method and the bibliographic review of articles, books and texts in psychoanalysis and history. Initially, considerations were made about the notion of heresy, which is opposed to "for all" as a universal proposition. With an analytical perspective, certain legal procedures about the Church against heretics were evaluated. Furthermore, fragments of historical documents were revisited to clarify misogynist structures, typical of inquisitorial subjectivity. To do so, we appealed to the significant-meaning categories, to the cinematography - how it plays with the reality projecting it onto a screen - and, to the dialectic between the creator and his work, agreed by Lacan, when he addresses, in the Ethics seminar, the Catharism. Forward, considering the graph of sexuation, the issue of female jouissance was examined, a theme presented in the film that signals an alterity rejected in the time course. Finally, some passages from Malleus Maleficarum were considered, concluding that the real jouissance is a transhistorical element, while history, as a significant construction, relates with the truth. The hate against women, constantly reiterated in the book The Hammer of the Witches, reflects the defense of tout homme against the singularity of the symptom.
Keywords: Devil's Bride, Psychoanalysis, Cinema, History.
RÉSUMÉ
Le présent travail a pour objet le film « La Mariée du Diable », de Saara Cantell, basé sur les procès des sorcières d'Aland en Finlande, en 1666, dans une perspective lacanienne en interface avec l'historiographie. Il vise à établir des points de dialogue entre l'œuvre cinématographique, les faits historiques et le Zeitgeist médiéval. La production artistique, pour Freud et Lacan, a toujours permis d'entrevoir l'objet d'une manière différente. La recherche a été menée de façon qualitative, utilisant la méthode exploratoire et la revue bibliographique d'articles, de livres et de textes en psychanalyse et en Histoire. Dans un premier temps, des réflexions ont été faites sur la notion d'hérésie, qui s'oppose au « pour tous » en tant que proposition universelle. D'un point de vue analytique, certaines procédures juridiques de l'Église contre les soi-disant hérétiques ont été évaluées. Par ailleurs, des fragments de documents historiques ont été revisités afin de mettre en lumière des structures misogynes typiques de la subjectivité inquisitoriale. Pour ce faire, nous avons eu recours aux catégories signifiant-signifié, à la cinémato-graphie - dans laquelle elle joue avec un réel lorsqu'elle projette sur écran - et à la dialectique entre le créateur et son œuvre, traitée par Lacan lorsqu'il aborde, dans le séminaire de l'Éthique, le catharisme. Par la suite, à partir du tableau de la sexuation, la question de la jouissance féminine a été examinée, thème présent dans le film et signalant une altérité rejetée avec véhémence au fil du temps. Enfin, certains passages de Malleus Maleficarum ont été considérés, concluant que le réel de la jouissance et de la pulsion sont des éléments transhistoriques, tandis que l'histoire, en tant que construction significative, se rapproche de la vérité. La haine des femmes, constamment réitérée dans Le Marteau des Sorcières, reflète la défense du tout homme contre la singularité du symptôme.
Mots-clés: Mariée du Diable, Psychanalyse, Cinéma, Histoire.
RESUMEN
Este articulo toma por objeto la película "La prometida del diablo" de Saara Cantell, basada en los juicios de las brujas de Aland en Finlandia em 1666, bajo una perspectiva lacaniana en interface con la historiografía. Este trabajo pretende establecer puntos de interlocución entre la obra cinematográfica, los hechos históricos y el Zeitgeist medieval. La producción artística, para Freud y Lacan, siempre permitió entrever al objeto de una manera diferente. La investigación fue del tipo cualitativa, vía método exploratorio y revisión bibliográfica de artículos, libros y textos en psicoanálisis e Historia. Inicialmente, fueron establecidas consideraciones sobre la noción de herejía, que se opone al "para todos" en cuanto proposición universal. Desde la óptica analítica, fueron avaliados ciertos procedimientos jurídicos de la Iglesia contra los llamados herejes. Además, se revisitaron fragmentos de documentos históricos, con el fin de traer a luz, las estructuras misóginas propias de la subjetividad inquisitorial. Para eso, se recurrió a las categorías significante-significado, a la cinemato-grafía - en lo que ella juega con un real al proyectar en un telón - y a la dialéctica entre el creador y su obra, tratada por Lacan cuando aborda en el seminario de la Ética, el catarismo. Posteriormente, a partir de las tablas de la sexuación, fue analizada la cuestión del goce femenino, temática presente en la película y que señala una alteridad vehementemente rechazada en el curso dos tempos. Finalmente, se consideraron algunas partes del Malleus Maleficarum, concluyéndose que lo real del goce y de la pulsión se convierten en elementos trans-históricos, al paso que la historia, en cuanto construcción significante, se aproxima de la verdad. El odio a las mujeres, constantemente reiterado en el libro Martillo de Las Brujas, refleja la defesa del tout homme contra la singularidad del sintoma.
Palabras claves: La prometida del Diablo, Psicoanálisis, Cinema, Historia.
Heresia: o que resiste ao "para todos"
A noiva do Diabo é um filme de Saara Cantell baseado num acontecimento histórico: os julgamentos das bruxas de Aland, na Finlândia, em 1666. A sinopse estabelece que, à referida data, iniciavam-se as mais sistemáticas caças às bruxas da história escandinava, entre as quais a primeira é retratada no filme. Crendo que a pequena Aland se tornou um "ninho de bruxaria", o juiz Psilander - um dos personagens - justificará sua chegada na ilha com intensões bastante alinhadas àquele clima cultural: introduzir no local a modernidade, o discurso científico, expurgando dali o obscurantismo e a superstição.
Ao início do filme, o espectador entreverá, na estante de Psilander, um exemplar d'O martelo das feiticeiras, livro escrito em 1484 pelos inquisidores Heinrich Kramer e James Spranger. Trata-se de um famoso manual de repressão violenta que sistematiza o conhecimento demonológico acumulado até então, descrevendo medidas radicais de suprimir a bruxaria (Le Goff, 2013; Schmitt, 2011). Conforme Schmitt (2017), deve-se considerar, desde o século XIII, a evolução dos procedimentos jurídicos da Igreja contra os hereges. O cerco desses grupos ganha, em 1231, um procedimento e um tribunal específicos: a Inquisição. Em 1233, Gregório IX confiará às Ordens Mendicantes, especialmente os dominicanos, "[...] o cuidado de perseguir os hereges em nome da Santa Sé" (Schmitt, 2017, p. 479).
Surpreendentemente, encontraremos "n'A ética da psicanálise" uma referência aos cátaros, grupo ferrenhamente perseguido pela Inquisição. No referido capítulo do seminário, Lacan (2008/1959-1960, p. 148) afirma que o problema central de das Ding é o problema central da ética, introduzindo a pergunta: "[...] se foi Deus quem criou o mundo, como é possível que, primeiro, façamos o que for, segundo, deixemos de fazê-lo, o mundo vá tão mal?". Devemos nos lembrar de que das Ding, central na constituição da realidade subjetiva, é uma exterioridade íntima; uma unidade velada, e para que se a conceba, é preciso circunscrevê-la. Por um lado, a lei interpõe certa distância entre o sujeito e das Ding ao repartir, distribuir, retribuir o que diz respeito ao gozo (Lacan, 1985/1972-1973). Por outro, também demarca seu lugar - o do real -, pondo o sujeito a fantasiar ao estabelecer em seu entorno um vacúolo que exerce irresistível atração (Lucero & Vorcaro, 2013). O gozo, cuja causa é o próprio significante, está do lado de das Ding (Miller, 2015), de sorte que quanto mais insistimos em dela nos aproximar, mais entra em cena a face mortífera da dinâmica pulsional. Seganfredo e Chatelard (2014) ressaltam que suster uma vida desejante exige contornar das Ding, reconhecendo em seu vazio o limite da castração. Um interessante fazer-com esse furo é a atividade sublimatória: se a sublimação "[...] eleva um objeto à dignidade da Coisa" (Lacan, 2008/1959-1960, p. 137), é porque no campo artístico, a criação de um novo objeto é capaz de explicitar das Ding conservando o vazio em seu centro (Lucero & Vorcaro, 2013). O discurso artístico não evita das Ding, motivo pelo qual, com sua obra, o criador é capaz de salvaguardar, inventivamente, alguma coisa do real.
Lacan (2008/1959-1960) evoca a primitiva figura do oleiro para investigar os mistérios da criação. O vaso, que está aí desde sempre, introduz uma distinção entre seu emprego de utensílio e sua função significante. Como "primeiro significante modelado pelo humano ", ele é significante de tudo que é significante, isto é, de nada particularmente significado. "Nada de particular " qualifica o vaso como tal. O vaso cria o vazio introduzindo a perspectiva de preenchê-lo, ou seja, de lhe dar sentido num mundo onde até então não se estabelecia diferença entre o pleno e o vazio. Desse modo, a modelagem do significante e a introdução de um furo no real se identificam (Lacan, 2008/1959-1960). Se concebemos o vaso como um objeto que representa a existência do vazio no centro do real, então das Ding, representação do vazio, apresenta-se como nada. Assim, o oleiro cria o vaso em torno do vazio e, de modo análogo, o Criador mítico o faz a partir do furo. Por quê? Lembremo-nos das primeiras linhas do Gênesis, que versam sobre o real de uma terra amorfa e vazia, na qual as trevas cobriam o abismo e o espírito de Deus pairava sobre as águas. Destarte, "a introdução desse significante modelado que é o vaso já constitui a noção inteira da criação a partir do nada. E ocorre que a noção da criação a partir do nada é coextensiva da exata situação da Coisa como tal" (Lacan, 2008/1959-1960, p. 149).
Lacan (2008/1959-1960) situará o problema da moralidade da seguinte maneira: de um lado estão a obra, o oleiro e Deus. Segundo o psicanalista, a Bíblia dirá, numa inflexão de alegria otimista, que ao final dos seis dias o Senhor contemplou a criação e viu que estava bom. Ao sétimo, descansou. O mesmo pode ser dito do oleiro com seu vaso. "Em outros termos, do lado da obra é sempre belo" (p. 149). Mas isso não tem a ver com o mérito do benefício ou o malefício das obras, suas consequências e, de maneira mais geral, o funcionamento do mundo humano, que como bem sabemos é marcado pelo mal-entendido, pelo engodo do princípio do prazer, pela proliferação dos significados. Também estão desse lado a filosofia a religião e a ciência, construções que, às suas maneiras, evitam o vazio central de das Ding - "o que define o humano, embora, justamente, o humano nos escape" (p. 152). A fonte do mal lança o homem numa busca ansiosa, e é também nisso que das Ding tem relação direta com a ética. De onde brotaria o mal? Lacan apresenta três alternativas: das obras, da matéria ou de das Ding.
A problemática do mal, do que não vai bem na criação, impôs-se para um movimento místico e religioso nomeado heresia cátara. Segundo as pessoas pertencentes a esse movimento, o mal está na matéria, o que faz dela execrável e leva o sujeito a uma radical ascese, cuja proposta é afastá-lo da profanidade mundana. Chama-se perfeito o cátaro que já alcançou sua salvação e, assim, encontra-se pronto para o mundo adâmico, verdadeiro, de luz e pureza, somente a ser encontrado na morte. É difícil precisar o pensamento desse grupo, pois, tamanha sua potência temporal, muitos vestígios do processo foram suprimidos pela Inquisição. Entretanto, Lacan (2008/1959-1960) nos aponta que, entre os poucos testemunhos disponíveis, está o de um padre dominicano que afirmava serem os cátaros boa gente, puros e, no fundo, católicos. Então, podemos nos perguntar o porquê da chacina dos cátaros. Foi lançada até mesmo uma cruzada - a Cruzada Albigense - no encalço deles. Não é difícil enxergar, no ascetismo desses hereges, provocação intrépida a uma cristandade regida por poucos, cujas querelas amiúde envolviam moeda e poder. Seguindo a perspectiva lacaniana, é lícito atribuir à potência temporal cátara uma força verdadeiramente capaz de contestar a tendência unificante da cristandade dita verdadeira - a Romana. Fagundes (2011) nos dirá do mal-estar experimentado pelos líderes da Igreja Medieval ao constatarem o fracasso de suas tentativas de conversão de hereges na região de Languedoc, porquanto as habilidades de retórica, discussão e debate dos cátaros se sobressaíam.
Em "O triunfo da religião", Lacan (2005/1974) diz só haver uma verdadeira religião, a romano-cristã, cuja função é encontrar uma correspondência de tudo com tudo, secretar sentido. Ainda que o real expanda desordenado no século XXI, encontraremos no horizonte a garantia religiosa, pronta para apaziguar-nos os corações. A Igreja é capaz de dar sentido a qualquer coisa: desde a vida humana a fenômenos outrora considerados naturais. Para Miller (2016), aliás, a célebre "morte de Deus" permitiu que a psicanálise lograsse ocupar um lugar no mal-estar da civilização. Com efeito, "Deus está morto! ", mas, outrossim, em nome de Deus se mata e se morre. Nietzsche assinalou um momento histórico do pensamento, qual seja, o advento do discurso científico, que fez surgir um sujeito sobre o qual viria a operar, também, a psicanálise. O "eclipse de Deus", por sua vez, tornou necessário que os homens resolvessem as coisas entre si, criando comitês de ética. Sucede, pois, uma história de Deus caracterizada por sua morte e retorno, em cujo âmago se inscreve a doutrina analítica. Freud de fato se propôs a resgatar a verdade do sujeito, embora Lacan, mais tarde, faria a ênfase recair sobre o gozo.
Miller (2016, p. 222) faz um recorte da história de Deus partindo do "retorno do Criador às sombras", evento concomitante ao advir científico. Esse acontecimento encarregou o sujeito da época de pensar e fazer suas coisas "por conta e risco". O Outro, portanto, começava a esvanecer, à medida que a ciência tomava forma. A denominada "época romântica" - séculos XIX e XX - produziu o que Miller nomeou "Deus dos filósofos", o qual teve de se confrontar não só com a ciência, mas também seu efeito de abertura ao infinito. "Portanto, traçando a história de Deus, acompanharemos o definhamento progressivo do Outro" (p. 221). Durante a época clássica - séculos XVII e XVIII -, o paradigma era outro. Enquanto o mundo era um cosmos ordenado hierarquicamente, Deus estava em todo lugar. Não era necessário demonstrar sua existência matematicamente, bastando, para tal, as maravilhas da criação. Antes do discurso da ciência, diz-nos Miller, o nome de Deus era libidinalmente irrigado, ou seja, vívido, até que Nietzsche anuncia o fim de seu primado. Doravante, tratar-se-ia de uma divindade puramente significante, cartesiana, que exilou o objeto a por um tempo.
A obra A noiva do Diabo transcorre justamente nessa transição histórica, assinalada pelo enfraquecimento (mas não o absoluto fim) do poder da Igreja sobre o estabelecimento do laço social à época, ante a chegada de uma "luz da razão" cujo modo de operar, nada obstante, continuava a matar. Embora se propunha inovadora e tributária do progresso, a modernidade iminente estendia as mãos aos antigos costumes, forçando confissões e arrancando cabeças. O gozo feminino, de um lado, era combatido sob a forma de intolerância à diferença, inflamada pela misoginia universal. De outro, reafirmava sua presença não-toda, que a própria ciência inaugurava ao destituir a instituição sacrossanta como orientadora do ser humano no universo. A obra de Saara Cantell projeta, destarte, uma verdadeira transição, em termos historiográficos, de clima cultural.
A verdade herege, na obra encarnada em costumes e tradições matriarcais, ameaçava, como os cátaros, a organização falocêntrica cuja mão de ferro, por meio dos tribunais da Inquisição, mantinha-se erguida. Nesse sentido, o "Manual dos Inquisidores" traz que a verdade católica é aquela contida nas Escrituras, explícita ou implicitamente. Conforme o Manual, caberá apenas à Igreja explicitar os conteúdos implícitos, já que ela é o próprio fundamento da verdade. O que não é de fé é herético, e o que é de fé é o que a Santa Sé e o Sumo Pontífice definem como tal. Também o é a interpretação unânime das Escrituras ou uma opinião emitida pelo conjunto dos Padres. Será a busca pela verdade a função dos interrogatórios do Santo Ofício, cabendo ao inquisidor, com sua astúcia e prudência, ouvir testemunhas e acusados. Estes devem jurar dizer a verdade, restringindo-se pura e simplesmente a ela. Seu juramento consente com o castigo de Deus, caso seja quebrado. A justiça inquisitorial, portanto, é o instrumento destinado a assegurar que a verdade e a unidade da Igreja Católica Romana prevaleçam. Todavia, em "Televisão", Lacan (2003/1974) nos avisa do caráter relativo da verdade, que só pode ser dita não-toda porque, materialmente, faltam as palavras. "É por esse impossível, inclusive, que a verdade tem a ver com o real" (p. 508). A verdade é como o feminino e, talvez por isso, o Manual nos haja pegado de surpresa com esta inusitada advertência aos inquisidores:
Mostrem sagacidade. Vejam um exemplo das consequências nefastas da falta de sagacidade. Uma prostituta conseguiu resistir dias e dias com respostas evasivas a vários doutores ilustres que a interrogavam diante do Tribunal da Inquisição, até que foi solta. Mas, logo depois, foi surpreendida juntando os ossos de um herege queimado durante esse tempo, para venerá-los como relíquias de um Mártir! (Eymerich & La Peña, 1993, p. 118).
Aí, o feminino apresenta alguma coisa de seu modo de gozo, deixando-nos estupefatos ao estremecer a força fálica do discurso jurídico-eclesial. A dureza do texto, imperativo e sistemático, esvanece no flash dessa curiosa vinheta - sobre uma mulher que fende o saber douto -, para logo ressurgir no curso das linhas seguintes.
Conforme Fagundes (2011), é importante salientar a diversidade herética na Baixa Idade Média, não perdendo de vista que outros grupos foram perseguidos. Na verdade, diversos outros focos de heresia surgiam em diferentes lugares, o que tornava ainda mais dificultosa a pugna cristã. Entre o século XV e a primeira metade do século XVIII, desencadeia-se, na Europa, a caça às bruxas, que teve como gênese o encontro entre, de um lado, as instituições Igreja-Estado e, do outro, as figuras do Diabo e da bruxaria (Schmitt, 2017).
O documento histórico: um escrito para não ser lido?
Talvez o analista se interrogue quanto à viabilidade de uma interlocução entre a psicanálise e a historiografia. Sabiamente, Jacques Le Goff (2013) nos lembra que o historiador parte do presente para apresentar questões do passado e, outrossim, o passado existe em sua relação com o presente. "O passado é uma construção e uma reinterpretação constante e tem o futuro que é parte integrante e significativa da história" (p. 28). O progresso tecnológico nos leva a crer que uma parte importante de documentos de outrora ainda está para ser descoberta. Materialmente, a arqueologia descobre, incessantemente, monumentos do passado, e os arquivos do passado continuam, também, a se enriquecer. "Novas leituras de documentos, frutos de um presente que nascerá no futuro, devem também assegurar ao passado uma sobrevivência - ou melhor, uma vida -, que deixa de ser 'definitivamente passado'" (pp. 28-29).
Em psicanálise, o escrever diverge do ler, podendo a função do primeiro ser situada a partir da diferença entre significante e significado. Quando falamos, isso significa alguma coisa - trata-se de efeitos de significação, e também a leitura está do lado da significação. Já o que se escuta, o que se ouve, é de ordem significante, do qual o significado constitui efeito. Há, pois, entre significante e significado, uma barra, de sorte que podemos afirmar haver no segundo injeção do primeiro (Lacan, 1985/ 1972-1973). E o escrito? Interessará a Lacan, tendo James Joyce em seu horizonte, questionar a correspondência imediata entre leitura e escrita. O psicanalista qualifica Joyce como ilegível devido à multiplicidade de leituras permitidas por seu texto; multiplicidade conformada a um ajuste contínuo, nunca oferecedora de um repouso estático (Mandil, 2003). Abordar o significante como letra é considerar sua materialidade, destacando daí os efeitos de significação. Lacan (1985/ 1972-1973, p. 51) isola isso em Joyce: "O significante vem rechear o significado. É pelo fato de os significantes se embutirem, se comporem, se engavetarem [...] que se produz algo que, como significado, pode parecer enigmático [...]". Os próprios Escritos são entendidos por seu autor como o que não é para ser compreendido, mas explicado. Miller (2010, p. 34) afirma: "segundo o seu [o de Lacan] ponto de vista, um escrito não deve deixar outra saída senão a de se entrar nele".
Cremos que o documento histórico comporta alguma coisa de ilegível. Diante de "O martelo das bruxas " e do "Manual dos Inquisidores", arriscamos afirmar que a distinção entre significante e significado está no cerne do que Le Goff (2013) chama de uma incessante possibilidade de novas leituras. Com efeito, não podemos prever destinos para o ritmo galopante do progresso científico, e menos ainda adivinhar os impactos disso na investigação histórica. É justamente no que Jacques Le Goff toca ao dizer que sempre haverá, no futuro, um presente a nascer. Todavia, também tem o historiador, em seu objeto, a materialidade da letra, que não lhe deixa outra alternativa senão aventurar-se nele. Os limites do compreender se atualizam no campo historiográfico, e será ao reconhecê-los que o pesquisador escapará da tentação de reduzir a história a um somatório de narrativas sobre o passado. A noção presente em "Lituraterra" de que a escritura cava um vazio-godê sempre pronto a dar acolhida ao gozo, a invocá-lo como seu artifício, lembra-nos de que a pena do historiador está condicionada ao seu ser de gozo. Se ele ambiciona, de modo pretensamente neutro, estabelecer uma verdade unívoca para determinada época, não conseguirá com isso resolver o real da divisão subjetiva que o implica em seu trabalho. No máximo, pode tentar escondê-la, ao forçar o significante mestre no lugar da verdade, como se faz, tipicamente, no discurso universitário.
Do cinema ao feminino em A noiva do Diabo
Os chamados dramas épicos são prova de que o cinema pode almejar retratar a história. Não passam incólumes, todavia, a questionamentos quanto à fidedignidade de suas representações. Na academia, pede-se que o historiador em formação, ao projetar um filme para seus alunos, tenha em mente a verossimilhança entre a obra e os fatos. Sem embargo, chama-nos a atenção que mesmo os documentários exibem boa dose de dramaturgia ou sensacionalismo. A cena em que se dispõem instrumentos de tortura é, do contexto inquisitorial, paradigmático exemplo. Para a psicanálise, bem mais que o coeficiente de verdade da ficção, interessa a ideia de que, enquanto discurso, a arte contemporânea pode ser um indicador aliado. Atualmente, ela nos revela a nova relação do ser falante com seu corpo, então marcada pela prevalência do eu ideal sobre o ideal do eu. O império das imagens ferve desligado do Outro da palavra (Brousse, 2014), fato cujas incidências capturaremos no campo fílmico. É que hoje, em nossa sociedade, a fantasia é elevada ao zênite, constituindo um verdadeiro mercado; mercado do gozo especular, do gozo auditivo, do gozo fantasioso (Miller, 2015). O discurso do capitalista impõe padrões que obstam a inventividade de certos cineastas, os quais, ainda assim, sobressaem genialmente na cultura contemporânea com o singular de sua arte.
A originalidade de James Joyce foi indicadora aliada de Lacan. No livro 23 d'O seminário, o psicanalista afirma: "o sintoma em Joyce é um sintoma que não lhes concerne em nada, é o sintoma na medida em que não há chance alguma de ele enganchar alguma coisa do inconsciente de vocês" (Lacan, 2007/1975-1976, p. 160). Miller (2010, p. 38) esclarece que "ninguém lê Finnegans Wake para saber o que vai se passar na página seguinte" - é um texto cujo leitor não se emociona (Miller, 2014). Se Lacan (2007/1975-1976) convida, em sua audiência, a ler Joyce sem tentar compreender, é porque isso se lê, e o ler-se é a razão pela qual se pode sentir o gozo do escritor. Nisso está a impossibilidade de fixar sentido no texto joyciano, que faz a interpretação permanecer suspensa a uma interminável abertura. Ora, então como localizar a abertura ao inconsciente num texto que, ele próprio, é só abertura? (Mandil, 2003). Da mesma maneira, pode proceder a escrita cinematográfica, não sendo raro que um filme seja "sem pé nem cabeça". Perplexos, chamaremos de denso, indigesto, ou, então, percebemo-nos diante de um sem-sentido a causar inesperada vertigem. Isso mostra que a passividade do espectador é ilusória, na medida em que o filme é sempre para cada um.
Jacques Le Goff (2015) escreve: "A bruxaria é um fenômeno essencialmente feminino: desde então, ela influencia o ponto de vista da sociedade sobre a mulher, a tal ponto que esta não é, no Renascimento, como desejaria a tradição, o objeto de respeito e admiração, mas um ser ambíguo, situado entre Deus e o Diabo" (p. 92).
No que tange à feitiçaria, sobretudo as mulheres, experimentaram o suplício da fogueira. Ao basear seu filme nos julgamentos das bruxas de Aland Island, em 1666, Saara Cantell nos dá a entender que é alguma coisa do feminino o que lhe interessa projetar. A maneira como termina A noiva do Diabo revela o aspecto de homenagem do filme, porquanto, ao desfecho, ver-se-á, na tela, os nomes de sete mulheres, verdadeiramente executadas pelo poder secular, às quais a obra é dedicada. O encalço das bruxas é o cenário no qual se articula o longa, narrativa de uma trágica paixão. A jovem Anna Eriksdotter, mediante um truque de adivinhação, supõe que encontrará um homem magnífico nalgum momento iminente. Ela não tarda a enxergar em Elias, indivíduo casado e pai de três filhos, a realização de sua fantasia. Em "Televisão", Lacan (2003/1974) afirma que todas as mulheres são meio loucas, não havendo limites para as concessões que podem fazer a um homem: entregam seu corpo, sua alma, seus bens. Uma faísca apaixonada, pois pode terminar em devastadora tormenta.
Ao final de seu ensino, Jacques Lacan se intitulará herege de boa maneira, forjando para si um uso renovado do adjetivo a apontar para a haeresis: escolha da via por onde tomar a verdade (Lacan, 2007/1975-1976; Laurent, 2011). "A boa maneira é aquela que, por ter reconhecido a natureza do sinthoma, não se priva de usar isso logicamente, isto é, de usar isso até atingir seu real, até se fartar" (Lacan, 2007/1975-1976, p. 16). Trata-se efetivamente de algo inédito, considerando que, no "Manual dos Inquisidores", encontraremos a escolha necessariamente vinculada à eleição de uma doutrina falsa e perversa. Era como se tingia a verdade do herege medievo. Verdade transmitida ao longo das gerações, constitutiva de um saber cotidiano de curandeiras e parteiras que então se tornaria, sob a alcunha de magia negra, heterodoxo.
Em psicanálise, o gozo feminino, por estar sob regime do não-todo fálico, jamais permitirá a universalidade (Lacan, 1985/ 1972-1973). A mulher tem relação com o significante do Outro, que só pode ser radicalmente Outro - Lacan o escreve S de A barrado, significante a exprimir que não há Outro do Outro. Miller (2015) nos diz que o corpo da mulher não faz unidade, manifestando, ao gozar, seu aspecto outrificado. Esse modo de gozo comporta efeitos de ilimitação, a cuja experiência, amiúde, atribui-se estranheza. Também é sobre o gozo que o falasser feminino tece o amor, isto é, elas gozam por amor. O parceiro deve ser barrado porque lhe falta alguma coisa, o que o faz falar e dar provas de que ama. Para uma mulher, o amor coloca um imperativo de que o Outro, além de amá-la, deve lhe dar o significante de seu ser (Eulálio, 2018; Miller, 2015). Coisa impossível, já que tal significante inexiste. Lacan (1985/ 1972-1973) nomeia essa falha no Outro de "mais, ainda", ressaltando que o amor demanda amor e não cessa de o fazer.
No que a mulher se dirige ao companheiro pela via da demanda, pode experimentar o retorno dessa demanda como o pior de uma devastação; assolação que não conhece limites. A infinitude da demanda estabelece uma erotomania estrutural, em cujo ponto antípoda, encontraremos o deslumbramento, termo que significa felicidade extrema, mística, força irresistível (Miller, 2015). Desigualmente, a posição masculina se assenta no para todos da castração, e é pela função fálica que o homem como todo toma inscrição (Lacan, 1985/ 1972-1973 ; Laurent, 2011). Lacan (1985/ 1972-1973) descreve que o homem só atinge o parceiro sexual por intermédio de que o mesmo é a, causa de seu desejo. A conjunção entre o sujeito e o objeto é a fantasia e podemos situar nesse plano o fetiche e a perversão constitutivos do estilo masculino de desejar. Só nos resta afirmar, pois, que devido às diferenças que caracterizam os modos de gozo das duas posições sexuadas, não se pode estabelecer o Um da relação sexual (Lacan, 1985/ 1972-1973).
A noiva do Diabo é o nome nacional de Tulen Morsian, que, traduzido do finlandês, significa algo como "noiva do fogo". Lacan (1992/ 1969-1970) diz que o gozo começa com as cócegas e termina com as labaredas da gasolina, e a essa progressão calamitosa corresponderá a história de Anna Eriksdotter. A jovem de 16 anos se apaixona por Elias de tal maneira que chega a ponto de denunciar sua esposa, Rakel Larsdotter, ao juiz Psilander, acusando-a falsamente de praticar magia negra. Anna queria tirar a cônjuge de cena e acredita que a consequência de tal denúncia seria não mais que a banir do vilarejo. Contudo, no contexto do filme, uma tal acusação supunha pacto com o Diabo, para o qual a punição era uma morte brutal: decapitação e imolação do cadáver.
Antes de ser presa, Rakel revelou a Anna saber do caso, suplicando que ela se afastasse do marido. Mas a jovem respondeu que tinha com Elias ligação muito forte, mais que a própria vida, denotando aí algo de erotômano. Conhecedora do esposo, Rakel contou que não era a primeira vez que aquilo acontecia: "ele se interessa fácil por meninas jovens e bonitas como você". Após essa conversa, Anna Eriksdotter, enfurecida, foi à casa do amante para confrontá-lo. Tomou nas mãos uma foice e lhe disse: "não se aproxime. Você nunca mais vai me tocar". Atacou-o, mas se arrependeu imediatamente. Se jogou aos pés de Elias, abraçou-o e exigiu dele a promessa de que nunca a abandonaria. Importante ressaltar que a condição não foi respondida. Relativizando o episódio, o rapaz falou que foi "só um arranhão", que "iria ficar tudo bem", para beijá-la na sequência.
A ambivalência de Anna sinaliza o transcurso de uma tempestade que já se anunciava. Valborg, curandeira da vila e mãe adotiva da protagonista, chegou a aconselhar a garota a não se envolver mais com o homem de Rakel: "você está se deixando levar pela luxúria e o amor não tem nada a ver com isso". Mas as meninas vão para a cama por amor, não separando deste a atividade sexual (Miller, 2015). Além do mais, Valborg não poderia ensinar nada a Anna sobre o feminino, já que falta no Outro um significante que o defina. Não se pode dizer que há transmissão de um princípio de feminilidade, sendo ilusória a identificação mãe-filha (Eulálio, 2018).
Por outro lado, o gozo sem-limites não só levou a jovem à própria ruína como também repercutiu destrutivamente nas vidas de outros. A certeza da iminência de um homem "magnífico como uma montanha" selou a parceria de Anna com o A barrado que Elias viria a encarnar. Para Eulálio (2018), um homem pode rechaçar assumir o lugar do Outro, não compactuando com o infinito das demandas de amor. Abre-se assim caminho para uma redução dos potenciais efeitos devastadores do encontro. Não foi o caso, porque Elias chegou mesmo a chamar Anna de noiva, dando pistas de interesse. Mas era um interesse no pequeno a, cuja função exerciam as "moças jovens e bonitas". Entre os seres falantes, o ato de amor é a perversão polimorfa do macho, porque se ele crê abordar uma mulher, na verdade o faz com o objeto-causa de seu desejo (Lacan, 1985/ 1972-1973).
Ao entender que a pena de Rakel seria capital, a protagonista confessou ao amásio haver denunciado sua mulher injustamente. A reação colérica dele rapidamente deu lugar a uma investida sexual: Elias chamou Anna de vadia e a agarrou por trás, afirmando que sabia o que ela fez para convencer o juiz das mentiras sobre Rakel. O amante parece nos mostrar a nota perversa da masculinidade, pois isso que diz saber está, por estrutura, submetido ao engodo do fantasma. A conotação sexual e ambígua de sua malsinação é índice de um dizer orientado pela fantasia. Quando do fim do filme, Elias partiu de Aland num barco, deixando para trás a esposa - ainda encarcerada na masmorra - e as crianças. Às importantes convocações que se lhe apresentaram, sua resposta foi uma fuga silenciosa, marca de um coto de gozo desimplicado do amor.
Anna Eriksdotter se empenharia, a seguir, na libertação de Rakel. Apresentando-se à corte de Psilander, desmentiu as acusações, precisando inventar, para efetivar seu motivo, que usou magia negra. Conseguiu o que almejava, mas ao preço do próprio sacrifício. Quando o juiz lhe deu a palavra, discursou:
Excelência, o Diabo não seria o Diabo se pudesse ser reconhecido facilmente. Ele nos seduz com sua grandeza, nos promete o céu, toca nosso âmago. Nos preenche com um poder inigualável, e nos faz ganir como cadelas, até que estejamos prontos para voar.
Que nos diz a moça senão dos possíveis destinos a que pode conduzir o parceiro-devastação?
Na medida em que o homem se aloja em S de A barrado como Outro de uma mulher, podemos, a partir dos termos de Anna, situá-lo em série com o Demônio e a cativante fascinação que exerce. Mas quando o amor não circunscreve o infinito do gozo feminino, advém o pior (Eulálio, 2018), cuja dor as palavras não podem articular. O filme, além de drama histórico, é uma obra sobre o erotismo de homens e de mulheres, ali culminados em nefastas consequências.
Malleus Maleficarum: a questão IV da primeira parte
Encontramos em Freud (1996/1931, p. 237) a seguinte citação: "uma das coisas que remanesce nos homens, da influência do complexo de Édipo, é um certo desprezo em sua atitude para com as mulheres, a quem encaram como castradas". Amar uma mulher exige que o homem recorra à palavra para que ofereça sua falta-a-ser. Dar o que não se tem põe em jogo a castração, coisa da qual é possível refugiar-se no gozo silencioso que permite a masculinidade. O sujeito evita a castração no autoerotismo ou na relação com a prostituta, que, diversamente da parceira amorosa, não lhe forçam a falar (Miller, 2015). Está aí um sintomático apagamento da alteridade entre os sexos, o qual também pode se dar pela via da brutalidade. Segundo Bassols (2017), a violência contra as mulheres, enquanto ato, pretende abolir a diferença que o feminino encarna. O uso da violência no exercício coercitivo de um poder sempre é signo da impotência em sustentar uma palavra que seja verdadeira; impotência correspondente à impossibilidade de escutar o feminino que há em cada sujeito. Ademais, as fórmulas lógicas da sexuação suportam a constatação freudiana. Se podemos contar com a solidez de sua escrita perante a fugacidade dos amores líquidos (Laurent, 2007), também é possível remetê-las ao passado distante, verificando que sua funcionalidade permanece conservada.
No fim século XV, Kramer e Sprenger (2017, p. 99) afirmavam: "em conclusão. Toda bruxaria tem origem na cobiça carnal, insaciável nas mulheres". A tese defendida pelos inquisidores na 4ª Questão - Parte I é de que, principalmente as mulheres, em consequência de sua natureza, entregam-se às superstições diabólicas e atos de bruxaria. Eva teria sido a primeira sedutora e sua volúpia foi o princípio das malevolências femininas que apresentaram suas imitadoras posteriores. No entender dos dois dominicanos, por ter sido criada a partir de uma costela recurva, a primeira mulher se opunha à retidão masculina. Trata-se aí de uma falha formativa em virtude da qual, desde então, "[...] a mulher é animal imperfeito, sempre decepciona e mente" (p. 94). As abominações carnais fazem com que elas sejam mais carnais que os homens: a boca de útero é o que as leva, para saciar sua lascívia, a copular com Demônios. Luxúria, ambição e infidelidade são os vícios comuns a deslumbrar mulheres perversas, mais suscetíveis à bruxaria. Afinal, foi a própria Eva quem se deixou tentar pelo Diabo, não Adão, e é disso que se lamenta no Eclesiastes, capítulo 7, versículo 26. Por seu pecado haver trazido a morte para a alma e o corpo, ela é mais amarga que a morte. A morte natural destrói somente a carne, mas o pecado que veio dela entrega o corpo à punição e destrói a alma por privá-la da graça. Se a morte é inimiga terrível e visível, a mulher é inimiga secreta, enganadora, eclipsada pela concupiscência e em cujo coração reina malícia inescrutável. Kramer e Sprenger também argumentam que, ao odiar alguém que amava, a mulher agita seu espírito com ira e impaciência, tal qual a força da maré ondulando agita os mares. Argumentando que foram mulheres a comprometer reinos inteiros, os autores evocam Helena de Troia, Jezebel do mundo judeu e Cleópatra, a rainha do Egito, para defender sua ideia.
Reunimos anteriormente alguns dos motivos que, segundo O martelo das bruxas, justificariam ser maior o contingente feminino entregue à heresia em questão. Também, n'O Martelo, consta a assertiva: "abençoado seja o Altíssimo, que até agora tem preservado o sexo masculino de crime tão hediondo: como Ele veio ao mundo e sofreu por nós, deu-nos, a nós homens, esse privilégio" (Kramer & Sprenger, 2017, p. 99).
Esses argumentos evidenciam que, de diversas maneiras, o enigmático regime do não-todo já se apresentava para os homens do século XV: uma volúpia tamanha que somente o Demônio saciaria, metáforas de mares agitados, exemplos de impérios supostamente arruinados por uma única mulher. As interpretações que se tentavam fixar nesses fenômenos nos soam como um movimento de defesa contra o real que a alteridade, desde há muito, traz para a cena. Devemos nos lembrar do esforço hercúleo em garantir que a verdade cristã se sustentasse como a única. Além do que, a inseparabilidade entre religião e Estado era fundamental para a consolidação das unidades identitárias nos reinos europeus, e por cerca de 500 anos, tribunais do Santo Ofício se empenharam na proteção dessas unidades. Todavia, o implacável combate às heresias reflete a impotência de assegurar a estabilidade de um para todos, diante dos distintos feixes discursivos que, incessantemente, surgiam no horizonte. Valdenses, cátaros, judeus, muçulmanos, bruxas, reformistas, estudiosos da anatomia, alquimistas: o Outro herege sempre dava as caras.
Assim, constataremos a passagem das chamadas cruzadas espirituais - que fracassaram em seu intuito inicial, limitando-se à conversão de heterodoxos - à legitimação da tortura e do suplício. O falhanço da palavra dita verdadeira dava lugar ao ato violento, por intermédio do qual a Inquisição lutava para suster a hegemonia cristã. Fosse clamando para si o privilégio de estar protegido da feitiçaria, fosse se atribuindo uma retidão incorruptível, o homem tentava se colocar no ponto de exceção - lugar mítico daquele sobre o qual a castração não incide. Ilusoriamente, reservava-se o buraco da função apenas ao Outro sexo, que, no mundo dos homens, deveria respeitar em silêncio o poder da tradição. O desprezo do qual fala Freud vem aqui como marca do horror à castração, o que nos leva a hipotetizar que o acontecimento inquisitorial poderia se inscrever do lado do macho no quadro da sexuação.
Conforme Lacan (1985/ 1972-1973), A mulher não existe porque o artigo definido designa um universal e, dessa maneira, só pode ser escrito barrado. Para o psicanalista, a maior necessidade da espécie humana é que haja um Outro do Outro. Daí a invenção de Deus, ao qual o cristianismo supõe um gozo - o impossível gozo do Outro. Referenciando a maternidade, Lacan (2007/1975-1976) afirma que, no que ela é poedeira, A mulher corresponde a Deus, e o mito a faz sair toda de uma única mãe: Eva. Parece estar traçada uma equivalência entre o gozo d'A mulher e o gozo de Deus. Todavia, a psicanálise ensina haver um descompasso entre o feminino e a maternidade, de sorte que ele nos dirá só existirem poedeiras particulares. Mais uma vez, o autor evidencia o irrepetível do feminino. Com efeito, A mulher só pode existir na perversão, porque pode ser toda apenas lá de onde o homem a vê (Lacan, 1985/ 1972-1973).
Falar em "imitadoras de Eva" implica a transmissibilidade de um saber que, como já demarcamos, é impossível, já que alguma coisa das mulheres permanece sempre excluída das palavras. Kramer e Sprenger (2017) parecem escrever sua obstinação em fazer existir A mulher, cuja índole encontraríamos na figura da bruxa que, supostamente, repete a natureza decaída da mãe primordial. Jamais houve, no curso dos tempos, um nome capaz de definir o ser sexuado da mulher: Santa, Rainha, Mãe, Esposa, Herege ou Bruxa, nenhuma deixou de experimentar o mais-além do Falo que a faz Outra de si mesma. Lembremo-nos de Teresa de Ávila. Ademais, entendemos ser o discurso universitário a orientar O martelo das bruxas, porquanto se tentou assegurar a força de seus argumentos com intermináveis referências a doutores e autoridades intelectuais. Após exaltar, muito brevemente, virtudes que entendem ser femininas, os inquisidores afirmam: "no entanto, em muitas vituperações que lemos contra as mulheres, o vocábulo mulher é usado para indicar a lascívia da carne" (p. 93). Está posto o núcleo argumentativo para o qual convergirão, com o auxílio dos significantes mestres, os parágrafos seguintes.
Conclusões
Este trabalho toma a psicanálise lacaniana como eixo central e estabelece algumas interfaces com a historiografia (particularmente com Jacques Le Goff) e com o cinema. Constatamos que o documento histórico se apresenta como objeto-causa do historiador, para o qual a psicanálise pode delimitar interessante ferramenta de pesquisa-leitura. Assim como o texto de Joyce desperta alguma coisa no psicanalista, os documentos de outrora mexem com o medievalista, convidando-o a imergir no multiverso de artefatos pretéritos. Vale lembrar que a psicanálise enfatizou a diferença entre significante e significado, lição da qual foi possível depreender que nem tudo é para ser compreendido. Significados psicológicos e narrativas vêm e vão, podendo ser rearticulados infinitamente. A letra de gozo, porém, institui um ponto de real que restringe o sentido. Tal linha de raciocínio sinaliza o "imanente à humanidade" - algo da ordem do signo -, pois as engenhosidades do gozo e da vida pulsional fazem frente às mudanças culturais, parecendo simplório afirmar que "todas as coisas mudam com o tempo". A relação sexual não existe. As fórmulas lógicas da sexuação, evidenciaram como a misoginia sintomática mortifica e prevalece até os dias correntes, como pura defesa contra o real.
Que homens e mulheres não se entendam por estrutura, isso não delimita novidade. A difamação entre os sexos compõe o quadro corriqueiro das neuroses. Mas há que se atentar, com desconfiança, para as estratégias sutis com que discursos totalitários insistem em manter ordens unívocas e irrevogáveis, para determinados estados de coisas, visando a afastar qualquer elemento alusivo à divisão subjetiva. A violência explícita na pena do inquisidor "retornou à sombra", se assim quisermos, para oprimir tacitamente. Logo, deve estar no horizonte da prática analítica, portanto, opor-se a formas de opressão, uma vez que sua seara possível e/ou necessária reside, justamente, no Estado Democrático de Direito. Miller (2016) lembra que estamos assistindo, na atualidade, não a uma "consciência de classe", como quisera Marx, mas a uma "consciência da religião", que adquire a forma de retorno de Deus sob a forma de imperialismo. Trata-se aí de impor ao outro um modo de gozar sob a alcunha democrática.
Já a obra de Saara Cantell compõe o terceiro vértice de nossa triangulação com a psicanálise e com a história. A cineasta, bem como o historiador, tem aquilo que lhe causa: o filme, que projetou em tela uma imprescindível homenagem àquelas mulheres. O longa-metragem é simbólico e imaginário, ao mesmo tempo em que tangencia um real, qual seja, o do gozo feminino, não-todo, avesso à homogeneização. Ora, assim como o povo cátaro foi vitimado pela rebeldia contra a Igreja Medieval Ocidental, também muitas mulheres encontraram na decapitação e na pira seu derradeiro destino, por se manterem fiéis às heranças culturais recebidas de mães e avós. A postura de Elias ante Anna apenas reflete, em primeira mão, a leitura mais ampla discorrida neste trabalho. De seu lado, apenas embarcava, mais uma vez, numa "ética de solteirão", para fazer jus ao termo de Lacan, ao passo que, na óptica de Anna, era o Outro da demanda. Esse mal-entendido - que é o próprio mal-entendido da relação sexual inexistente - trouxe arrasos sem limites.
Enfim, negar que haja incompletude é o sonho dos déspotas, que insistem em manter-se, mesmo que ilusoriamente, às exceções do conjunto, isentos da castração. O magnânimo esforço dessas instituições absolutas, contudo, cedo ou tarde, depara com o impossível de circunscrever característico da própria humanidade. O falasser feminino, como disse Lacan, já é Outro de si mesmo, e se o Outro não existe, resta saber se alguém pode mesmo encarná-lo.
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*Especialista em Saúde Mental pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Graduado em psicologia pelo Centro Universitário FIPMoc. Atua como psicólogo clínico.
**Psicóloga psicanalista, especialista em psicanálise e saúde mental. Experiência com a clínica psicanalítica, e psicanálise aplicada ao social e ao jurídico.